O fim da linha é o começo da mão

Ainda de férias e com poucas idéias, mas de vez em quando dando uma olhada nos e-mails, encontrei esse texto que me fez ler até o final. Dei uma espiada no blog do  autor e gostei. Achei que vale reproduzir aqui. Taí a dica:


Fabrício Carpinejar

Amo não terminar de começar. Já me separei várias vezes da minha mulher. Vivo me separando. Experimento aquelas brigas do final de noite, em que o choro se mistura à confusão. A voz se levanta como uma campainha e nenhuma palavra pousa. Sou passional e não nego. Não é tanto o ciúme, é a vontade de se aproximar de qualquer jeito, de provocar mais amor. Desconfio de quem resolve tudo pela conversa, sereno, compassivo, com a calma de um obituário distante. Amar é comprar fiado, um dia seremos cobrados. Um dia teremos que devolver o corpo. Um dia as marcas das unhas nos braços voltam a sangrar. A morte é muito longa para separar. É a vida que separa. O excesso de vida. Um armário, uma estante, um coração nunca serão suficientemente altos como uma escada. O teto é o chão das lagartixas. Na briga, os casais são lagartixas que se escondem da luz atrás do porta-retrato.



Casais brigam para descobrir onde estão as fronteiras. Casais brigam para renovar os votos. Casais brigam para se comover. Reclinar, declinar. Repelir, retornar. Já fiz as malas, já desfiz as malas, as lentas horas da madrugada nas quais os dois se olham com medo e paciência. A vigília pelo próximo vocábulo. A vigília da mímica. Será que acabou? Será que iniciou? Ela pode sair correndo e telefonar apaziguada. Pode sair correndo e ser alcançada no corredor. Pode sair correndo estando parada. Todo o andar fechado para a discussão. "Fala mais baixo, o filho dorme". Ninguém mais em casa para apartar. A intimidade é atrito, é estourar, é explodir, é não deixar para depois. A altivez do sussurro, as chaves na mão, as chaves fora da mão. A porta do banheiro trancada, o homem se agachando como um carteiro. A porta do banheiro aberta, o chuveiro ligado para disfarçar o ócio do rosto. O ódio do rosto. O formigamento dos pés. Não se briga de meias. O casal estará de pés descalços ou de sapatos, não entendo o porquê. Lembranças vencidas voltam, conservas de lembranças vencidas são abertas. A briga é a memória do casal - o rancor não faz esquecer coisa alguma. O rancor é uma coruja. Ambos se ameaçam, se censuram, se ferem com sinais e ofensas. As sobrancelhas se deitam como aves inconsoláveis. A cama vazia como um túmulo, sem as flores acesas do abajur. Tem certeza disso? Tem certeza disso?



Não há rotina quando se ama, mas a aventura de um copo contra a parede. Logo aquele copo de cristal. Não se escolhe um copo de requeijão para se estilhaçar na parede, arremessa-se sempre o mais caro.



Depois se varre em silêncio os cabelos do copo. E o outro logo se aproxima para ajudar com a pazinha. A brasa quase extinta é enrubescida pelo vento.



Ao varrer juntos, já estamos casados novamente.



Fabrício Carpinejar

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