O homem cordial e a tortura


Sem querer tirar o clima de Copa, achei esse texto interessante sobre a Lei da Anistia, e os absurdos que a envolve:


Luiz Fernando Veríssimo chamou a atenção para a atitude do ministro Eros Grau, que, ao relatar a ação da OAB solicitando a revisão da Lei da Anistia, argumentou que tal medida se chocaria com o caráter cordial do brasileiro. O magistrado trouxe à baila, com seu voto, uma importante tese de Sérgio Buarque de Holanda: a do brasileiro como homem cordial.

O “homem cordial” é provavelmente o que mais chamou a atenção no livro de estreia do historiador paulista, “Raízes do Brasil”, publicado em 1936. (…) O autor de “Raízes do Brasil”, ao falar em “cordial”, pensou principalmente na origem etimológica da palavra, “o que vem do coração”.

Ou seja, “cordial” pode tanto implicar amor como ódio. Tem, em outras palavras, igualmente consequências positivas como negativas.

Ao falar em “homem cordial”, Sérgio Buarque queria chamar a atenção principalmente para a dificuldade do brasileiro viver sob uma ordem impessoal, condição mesma para se ter democracia. No “homem cordial” confluem, de certa maneira, segundo “Raízes do Brasil”, duas das principais orientações presentes em nossa sociedade: a cultura da personalidade e a auto-suficiência do latifúndio.

Na primeira, apareceria como crença mais forte “o sentimento da própria dignidade de cada homem”. Oposto ao privilégio, poderia até ser considerado como pioneira da mentalidade moderna. Mas mesmo que estivesse disseminada por todo o povo, Sérgio Buarque considera que a cultura da personalidade é antes “uma ética de fidalgos, não de vilões”, cada homem considerando-se como superior ao outro e não como seu igual. Ou seja, seria possível perceber que valores associados à aristocracia estariam espalhados por todo o povo. Num ambiente como esse, seria difícil fazer vigorar solidariedade social, até porque “em terras onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável”.

Já o domínio rural auto-suficiente contribuiria para o aparecimento da família patriarcal. A família seria inclusive o único setor da vida brasileira cuja autoridade não era questionada. Assim, se teria “uma invasão do público pelo privado”, os indivíduos agindo de acordo com seus preceitos, mesmo fora do ambiente doméstico. Tal comportamento dificultaria o estabelecimento do Estado democrático e mesmo de qualquer Estado no Brasil. Até porque a relação entre a família e o Estado não seria tanto de continuidade, mas de oposição.

Do encontro da cultura da personalidade com o ambiente doméstico, hipertrofiado pela auto-suficiência do latifúndio, surgiria o “homem cordial”. Ele como que seguiria o ditado popular que proclama: “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”. O “homem cordial” seria, não por acaso, alguém capaz de realizar tanto atos de extrema generosidade como de crueldade inaudita.

Nessa referência, é possível considerar que a tortura, objeto da ação impetrada pela OAB, não está fora do universo do “homem cordial”. O que é irônico e, até triste, é que alguém que foi vítima da ditadura, como foi o ministro Eros Grau, seja capaz de defender que se passe por cima de tais atos ignominiosos em nome da “cordialidade” que nos caracterizaria.

Por outro lado, um raciocínio como esse é prova da força da ideologia e mesmo da prática da “cordialidade” no Brasil. Ou melhor, imaginar que a tortura possa prescrever ou, ainda pior, que, por precaução, não se deva mexer em feridas que ela suscite, é prova que ainda temos grande dificuldade de viver sob regras mínimas de civilidade.

Talvez seja mais fácil imaginar que, como “homens cordiais”, sejamos capazes de perdoar, esquecer, mas, porque não dizer, também continuar a torturar.

Comentários

  1. Saindo da discussão em torno lei da anistia, o ditado “aos amigos tudo, aos inimigos a lei” remonta a situação da Bahia, onde o efeitos dessa prática a gente conhece muito bem . E agora os seguidores do guru dessa prática ( ACM) tentam se apresentar como “nova alternativa para a Bahia”,em programa do DEM veiculado na telinha, que quando vejo me acabo de rir da cara de pau dos caras. Então não foi assim por tanto tempo, com “homens cordiais” capazes de realizar tanto atos de extrema generosidade (entre eles) como de crueldade inaudita contra a população do estado, massacarada e torturada pelo analfabetismo, a miséria e a falta de perscpetiva ?. Não podemos concordar com a cordialilidade que perpetua a tortura contra ninguém.

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  2. Todos cobertos pelo "manto sagrado da concórdia"...rsrsrs

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  3. É isso aí, Simoa (é o feminino de Simão?), nosso Veríssimo tem sempre boa pontaria. Esse Eros Grau é o mesmo que foi relator quando nossa justiça (vai, de propósito, com “j” minúsculo) devolveu o “feudo” chamado Maranhão ao senhor feudal Sarney.

    No capítulo Direitos Humanos a nossa “democracia” brasileira está entre as mais atrasadas da América do Sul. Para comprovar, é só acompanhar o noticiário dos processos contra torturadores e responsáveis pela tortura nas últimas ditaduras da Argentina, Uruguai e Chile.

    Mas não apenas nestes países. No Peru, por exemplo, que tem um governo francamente de direita, a Justiça botou na cadeia o ex-presidente Fujimore, campeão da era do neoliberalismo (vivia de braços dados com nosso FHC). Na Bolívia, o último ditador (acho que foi o último, de 1981/82, não tenho certeza), García Meza, está cumprindo pena de prisão em La Paz, junto com seu ministro do Interior (responsável pela área). Recentemente, mais um responsável pelas torturas e massacres do mesmo período foi se juntar na cadeia aos dois. O último presidente do neoliberalismo, Gonzalo Sanchez de Lozada, está respondendo processo, mesmo estando exilado em Miami (EUA), acusado de massacre. Na revolta popular que resultou na sua destituição e fuga, foram mortas 67 pessoas e umas 400 feridas.

    Até no Paraguai, que aparece sempre na imprensa como o país mais atrasado e problemático (por sinal, soube hoje que é o campeão em nossa região na concentração de terras, o Brasil só perde pra ele neste quesito), torturadores e responsáveis da época da ditadura Stroessner passaram uns 20 anos na prisão (acho que foram soltos recentemente). Se livraram da punição o ditador (estava exilado no Brasil, onde morreu, seu corpo ficou por terras brasileiras, pois os paraguaios não o quiseram), e seu ministro do Interior, também exilado fora do país.

    E mais um sério agravante: fica parecendo que a tortura no Brasil foi somente na ditadura (ou nas ditaduras, para falar da história dos últimos 80 anos, porque na de Getúlio Vargas, do qual apenas é lembrado o lado bom, o nacionalismo, a tortura contra opositores, especialmente os comunistas, correu solta). Fica parecendo que a tortura no Brasil acabou. Até a campanha/o livro Tortura Nunca Mais, apesar de se tratar de um trabalho importantíssimo, reforça esta falsa idéia. A tortura acabou, mas somente pra nós, classe média, universitários. Para a MAIORIA, pobres/negros das periferias, a tortura continua nas nossas delegacias de polícia. Sempre existiu, também durante as “democracias”, e continua vigente. Nossa polícia, inclusive a baiana, não só tortura como mata, diariamente, jovens negros e pobres. Os jornais noticiam: “morto ao resistir à prisão” ou “foi ferido na troca de tiros com a polícia e morreu ao ser conduzido ao Hospital Roberto Santos”. Trata-se de uma política pública de Estado.

    Desculpe a crueza num blog geralmente de assuntos leves como o nosso Pilha Pura, mas foi Simoa quem levantou a bola (pra não esquecer que estamos na Copa de Dunga. Viva o Brasil!).

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  4. Pois é gente, convivendo, agora um pouco mais na greve, com essa turma jovem, fico perplexa com o desconhecimento da nossa história, não só o desconhecimento, como tb a falta de interesse.
    É necessário mostrar a essa nova geração. Até pra que essa história sórdida não se repita.

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  5. Aqui pode tudo Jadson. Até falar de coisa séria e grave. Boa postagem de Simoa, reforçada por esse seu comentário bastante esclarecedor e bem informado. Bjs.

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  6. Só hoje vi essa postagem de Simoa. Minha memória falha com o ano (84, 85?)mas, de quando da Lei da Anistia lembro muito bem o slogan dos militares e afins: Revanchismo,Não. E ficou por isso mesmo. Agora, levantaram essa bola (revisão da Lei), bem levantada, mas que não fez nenhum gol.

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