A canção que você fez para mim



Quem não tem uma canção na vida? Aquela que marcou época, o primeiro
beijo, a primeira transa, uma viagem, uma mudança, uma situação
inesquecível? Música às vezes funciona como cheiro que quando bate nos
faz lembrar. Uma fumaça que passa pode nos levar à beira de um fogão à
lenha a quilômetros e quilômetros da metrópole até uma pequena fazenda
no sertão.

Músicas perdidas no ar vivem grudadas na memória. Mais de três décadas
depois ainda hoje quando ouço Ednardo cantando Carneiro viajo até a
Rue de la Roquette no outrora mais comunista dos bairros de Paris onde
um grupo de exilados ouviu junto a canção pela primeira vez.

“Amanhã se der o carneiro/Carneiro/Vou-me embora pro Rio de Janeiro.”
Tenho um amigo que não pode ouvir Movimento dos Barcos na voz de Jards
Macalé. Enfiado num terno no décimo andar de um prédio na Avenida
Paulista ele tem vontade de vestir uma calça vermelha, um casaco de
general, encher os dedos de anéis e sair por aí, pegar um velho navio
acreditando que não precisa de muito dinheiro, graças a Deus.

Voltando à França dos anos 1970 ainda me lembro bem daquele sábado de
final de dezembro num quarto de hotel em Gobelins ouvindo numa velha
fita K-7 ao lado de Augusto Boal a canção que Chico fez pra ele.
“Meu caro amigo, me perdoe, por favor/Se eu não lhe faço uma
visita/Mas como agora apareceu um portador/Mando notícias nessa
fita/Aqui na terra tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e
rock and roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero
é lhe dizer/Que a coisa aqui tá preta/Muita mutreta pra levar a
situação/Que a gente vai levando/De teimoso e de pirraça/E a gente vai
tomando, que também/Sem a cachaça/Ninguém segura esse rojão.”
O rei Roberto, esperto, soube traduzir bem tudo isso cantando As
canções que você fez pra mim.

“Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim/Não sei por que razão
tudo mudou assim/Ficaram as canções e você não ficou.”
Algumas músicas ficam mesmo para sempre. Em 1971, a guerrilheira Dilma
Rousseff estava comendo o pão que o diabo amassou no presídio da
Avenida Tiradentes em São Paulo e era uma canção que muitas vezes
confortava aquelas mocinhas que viviam ali naqueles poucos metros
quadrados imundos e fétidos. Cada guerrilheira nova que chegava Dilma
a recebia com um acalanto porque não estava fácil segurar o rojão.
A história está muito bem contada no livro A Vida quer é coragem de
Ricardo Batista Amaral. Quando bati os olhos na pagina 78, fiquei
imaginando Paulinho da Viola lendo aquilo. Será que ele sabia que a
futura presidenta do Brasil tinha na cabeça, naqueles momentos de
aflição, uma canção sua?

A uruguaia Maria Cristina Uslendi conta que em outubro de 1971, toda
vez que voltava das sessões de tortura encontrava Dilma de braços
abertos “me amparando, me ajudando a usar a latrina quando não tinha
forças, me dando sopinhas de colher na boca, me cedendo a parte de
baixo do beliche e pondo na vitrolinha de pilhas as melhores músicas
da MPB”.

Cristina conta que Dilma sempre pedia a ela que prestasse muita
atenção à letra de Para um amor no Recife, uma canção de Paulinho que
diz assim:
“A razão por que mando um sorriso/E não corro/É que vou levando a
vida/Quase morto/Quero fechar a ferida/Quero estancar o sangue/E
sepultar bem longe/O que restou da camisa/Colorida que cobria minha
dor/Meu amor eu não esqueço/Não se esqueça, por favor,/Que voltarei
depressa/Tão logo a noite acabe/Tão logo este tempo passe/Para beijar
você.”
Pois é, existem canções que são verdadeiros rios que passam na vida da gente.

Texto de Alberto Villas, publicado no site Carta Capital

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