Pedimos licença, a nossa dor é tão grande! Eis o desabafo do amigo Paulo Bina:
Quando cheguei ao Jardim da Saudade pela manhã, na véspera do sepultamento, e encontrei dona Celene choramos. Perguntei o que é que eu poderia dizer. Nada minoraria a dor daquela mãe devastada pela perda anti-natural e injusta. A resposta entrecortada veio rápida e mostra a cepa de que a filha foi feita: “Nada. Basta sua amizade”.
Mas eu preciso dizer algo a ela e a seu Ercole que tão bem receberam, desde sempre, esse amigo da filha mais velha, líder natural dos outros cinco irmãos, igualmente criados com amor para serem, como são, homens e mulheres de bem.
Ela era a minha melhor amiga. Casou com o meu maior amigo. O lar que construíram é o único que freqüentei com regularidade. Sou caseiro.
Felizmente a família é espiritualizada. Já eu não consigo conforto com golpes dessa ordem. Não acho justo. Admiro a força de dona Celene que, à beira do túmulo, agradeceu a solidariedade e o apoio que os amigos e parentes tentaram transmitir-lhe e, apud Vinicius e Chico, eu que não creio peço a Deus que dê conforto a essa gente que não merecia esse sofrimento. Rezo para que seu Ercole consiga suportar a dor.
Escrevo aqui para a família unida que é a Landim Ricci e também para dona Edna, Bira (falou lindamente, embora eu não tenha muita simpatia por sua igreja, a Presbiteriana,) e Juçara, os Gomes e Silva, com quem a vida me permitiu menos contato – mas guardo ainda no coração as palavras de dona Edna quando visitou meu pai no hospital perto do seu falecimento em agosto (21) de 1983. Lembro também com carinho o coronel Mário Hamilton.
Escrevo também para os amigos. E esse é o veículo exato.
Foi um privilégio conviver com Mayra por mais de 30 anos. Pessoa doce, ponderada, humana, amorosa e atenta às coisas da vida e do mundo. Uma cidadã. Confirmando a praxe, não guardo lembrança de como aconteceu o primeiro encontro ou mesmo através de quem ocorreu. Possivelmente, numa das cantorias noturnas da Quadra de Cima do Júlio César – quando eu ainda estava longe da Escolinha de Biblioteconomia e Comunicação (antecessora da Facom UFBa) e ela ainda fazia o primeiro grau no Bom Pastor, em Brotas, onde ganhou um festival estudantil (eu, Lula, Arnaldo e Mackenzie estávamos lá) com “Uma Raio de Sol” – entoado ontem com tristeza no Jardim da Saudade por seus irmãos, primos e os mais chegados.
Mayra chegava calçando um xagrim, de jeans e violão a tiracolo. Ficava até que o irmão, Ercole, infalível às 9h em ponto aparecia: – Mayra painho mandou dizer que já são 9 horas. E lá ia ela... agüentando a pirraça dos mais velhos até a noite seguinte.
Fomos companheiros ainda dos verões intermináveis da década de 70 no salva-vidas da Pituba, com a escadinha de irmãos menores: Ercole, Geovana (a mais constante), Túlio, Bruno e Carina. Na turma também Carlinha (vinha de Sampa), Iana, Naia, Alda e Aleida – todas primas – bem como Lula, Sá Barreto, Neyla, Neisa, Guga, Tostão, Ary, Paulinho, Betinho, Rubem, Guza, Macário, Toni, Arnaldo, Tony e Chuca. Acampamos algumas vezes (Itacimirim, Bom Jesus..., sempre com os irmãos por perto).
E ela encontrou em Mackenzie o primeiro namorado, sob o olhar severo de Ercole (Pai) e cumplicidade de dona Celene que até hoje gosta do indivíduo, meu primo de consideração. Foi para a Itália, voltou em poucos meses. Gostava do Brasil. Da Bahia.
O seu olhar para o outro. Para os carentes, levou-a ao curso de Serviço Social, depois do segundo grau no Nobel da Pituba (a caixa de sapato azul e branca), segundo Tony Baretta, hoje juiz em Salvador, pois nós já éramos universitários e nada de farda por cima da pele. Fez ainda mestrado na Uneb, doutorado em Barcelona e militou no PT desde sempre. E sempre no figurino de não perder a ternura jamais. Essa turma de praia se dispersou depois da faculdade, mas a amizade e o carinho daquele tempo inocente permanece.
Falo aqui de uma pessoa tão especial que conjugou características excludentes, como o rigor com os princípios ideológicos e a disposição natural para negociar e buscar soluções para aquilo o insolúvel. Mayra era daqueles seres humanos que Brecht considerava como imprescindíveis, mas também carregava em si a candura que Clarisse Lispector enxergou um dia num Chico Buarque novinho. E que ele conserva.
Casou brevemente com Miminho de quem, separada, continuou amiga. Visitavam-se e ele veio de Aracaju para a despedida. Dessa união nasceu Morena que estuda e trabalha em Londres. O irmão caçula Bruno veio da Itália e Carina, caçula das meninas também de Londres. Andando com a nossa patota nas festas de faculdades e em barzinhos (entra aí também Chico Bina, falecido, assim como meu irmão Lula), conheceu Arakem. Depois, em Arakem – meu maior amigo e o melhor amigo que qualquer pessoa pode conseguir – descobriu o amor de sua vida. O amigo, companheiro e cúmplice. O pai de Nara. União que caminhava para duas décadas.
Inicialmente eram em tudo dessemelhantes – a ponto do namoro, quando propagado, preocupar todo mundo. Ela comedida, ponderada, responsável e sensível. Ele boêmio, esporreteado, algo mulherengo, mas com um caráter e jeito de ser que pode ser descrito com apenas uma palavra, como fez uma vez James Amado para Ruy Espinheira Filho ao falar de Guido Guerra: “Sabe o que é que há com o Guido Ruy? O caso é que ele é bom”.
Arakem é Bom. Generoso e amigo dos amigos a ponto de se prejudicar pelo próximo. É aquele sujeito que está permanentemente preocupado com o outro. Liga, se informa, arranja emprego, freelas, conversa, dá toques. O tempo todo, com todo mundo! É o maior coração de toda uma geração da EBC que produziu gente como Jadson Oliveira, Alberto Freitas, Sinval e Joaninha, Carmel, Franciel, Nivaldinho, Luciano Aguiar e Borega (aquisições mais recentes), Bira Paim, Mocofaya, Mateus Matéria, Walmar Hupsel, Valmir Palma, Marcos Santana, Bonfim Brown, Vado, Adilson “hífen” Borges, Ivana Braga e ainda Xando Pereira, Catela, o grande Manuel Porto, Miltinho, Vicentão, Izurbaninho, Marco Antonio Moreira (veio de Brasília, assim como o querido Leonel Rocha, amigo sempre presente,) Roque Mendes e um monte de jornaleiros (como não precisa mais diploma, não é doutor Gilmar Mendes,) deve dar no mesmo.
Veio também do Rio, Andréa, namoro tempestuoso de Arakem na juventude, minha prima, junto com a mãe, Sônia, as irmãs Daniela e Geórgia e Bebeto, tio.
Perto da bondade de Arakem só seu compadre e advogado, o pai de Júlia, Irecê.
José Rodrigues de Miranda que cansou de chegar de madrugada em Lauro de Freitas, cidade que tratava por Lauro, na maior intimidade, já indagando a Mayra com a cara de pau que Deus lhe deu: “E aí minha senhora? A cozinha ainda está funcionando”.
Funcionava sempre. Ainda que heterodoxamente o conviva notívago às vezes pedisse para fritar um ovo, que jogava dentro da sopa, com a gema mole. Se existir algum céu, nirvana, plano superior ou o que quer que seja, estão agora juntos tricotando porque José gostava de um fuxiquinho, daqueles sem maldade.
E o casamento funcionou. Foram felizes e companheiros. Sonharam por novos tempos aqui. Venceram e vibraram e trabalharam. Cada um fazendo sua parte.
Agregadores, adoravam a casa cheia, com seu Ercole no exagero de sempre na comidaria dos finais de semana. Nos churrascos, massas e nas orelhas de porco cozida, que nunca provei.
Foi lá, em Lauro, que passei alguns dos melhores momentos da vida junto com Leninha e os meninos Caio e Dudu. Natal, às vezes, mas São João e Reveillon, sempre na casa de Arakem e Mayra, onde Jadson uma vez dançou várias vezes com a tia Anaide, que já ia pelos 85 anos, depois que sua Deta se jogou na piscina de madrugada. Nas viagens de Leninha, infortunadamente em constância crescente, é lá que eu me refugio, pois os meninos já não são tão meninos assim para me pajearem e agüentarem minhas manias.
Ela e ele adoravam música. Música da boa. De preferência de Minas, vale dizer Milton, Lô e Telo Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Venturinni, Tonhinho Horta e todos os iluminas do Clube da Esquina, com seus sucessores como Marina Machado. Chico, Edu, Tom, Gil, Caetano (com Arakem fazendo caretas) também tinham vez, bem como MPB-4, Boca Livre, Paulinho Pedra Azul, Novos Baianos, Dodô e Osmar, Fred Menendez, Juçara Silveira e Matita Perê – com a inestimável colaboração no sopro e percussão de Léo, produtor e dono da mochila mágica onde carrega até uma bateria completa – ou pelo menos assim reza a lenda.. Fagner da época de Canteiros também era lembrado. Eu gravava fitas, depois CDs, para tardes de ócio, cafezinho feito numa cafeteirazinha que parecia coisa de boneca que a colocava no fogão várias vezes (cumprindo seu papel social, dizia Irecê,) amizade e música. Muitas tardes. Lamento não terem sido mais.
Arakem toca violão, bandolim e cavaquinho (menos). Insistisse seria músico profissional. Portanto, os saraus eram da melhor qualidade e em especial quando Rita Birita (maldade ainda da EBC, a criatura de sobrenome de músicos nobres, Tavares, nunca bebeu uma gota de álcool)
E Mayra tinha música dela (como fala o Milton Nascimento), era do Lô e do Márcio Borges, Um Girassol da Cor do seu Cabelo, do disco Clube da Esquina 1.
A letra é incrível lida, cantada ou recitada agora é incrível. Parece profética, bem como o crescendo e a polifonia de quando se chega à parte final, instrumental:
Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor de seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo?
Se eu cantar, não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar, bom dia
Como vai você?
Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer dançar comigo?
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?
A terra azul da cor de seu vestido
Um girassol da cor de seu cabelo
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?Você vem?
Ou será que é tarde demais?
O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo
Para dar uma idéia da paciência e compreensão de Mayra lembrarei um fato, coisa pequena, mas que mostra a mulher diferente que ela era. Foi num São João, talvez tenham se passado três anos. Chovia a cântaros (para ficar no bordão) e a fogueira, lógico não acendia. Lá pelas 8h da noite Arakem encrencou em acender o fogo. São João sem fogueira, concordou Manuel Porto, não valia.
Secaram o tanque do Peugeot 2006, duas garrafas de álcool e nada. Arakem arrancou a cortina de plástico do chuveiro da sauna e jogou no, vá lá, fogo. Nada. Queimou dois baldes de plástico. Os pirulitos de isopor e um colchão de ar da piscina. O fogo subia e apagava com a chuva implacável. Ele e Manuel ensopados. Arakem fazia o fogo e Manuel abanava com uma tampa do isopor da cerveja que acabou também sacrificada.
Queimou ainda parte da coleção da revista Recreio de Nara (só não torrando tudo porque a menina descobriu e abriu no choro). Ele sumiu um pouco e apareceu com uma braçada com umas quatro toalhas de banho que estavam secando nos fundos. Não agüentei e segredei: “Moça, Arakem vai queimar agora a roupa da casa”. Ela sem espanto algum redargüiu: “Paulo você não sabe como é Araka quando implica em fazer uma coisa” e foi tirar o resto dos panos da corda. Na maior calma.
O fogo afinal prosperou com a entrada do “técnico” Franciel que passou a dar penadas sobre onde abanar, quando foi jogado na fogueira um balde com veneno de rato. O produto era inflamável e rendeu um fogaréu amarelo, fedorento, que ninguém usou para assar carne como insistiu o anfitrião.
Era assim a Mayra. Menina que estava num dos postos mais espinhentos do governo. Chefe de Gabinete de Ruy Costa, o secretário de Governo. Estava contando nos dedos os dias para chegar o mês de março quando haverá a desincompatibilização dos secretários-candidatos. Queria dar aulas. Faria concurso para a UFBa (passou em todos os que se submeteu), para estudar e ter mais tempo para o marido, filha, pais, irmãos e a legião de amigos que conquistou.
Moções de pesar já foram feitas na Câmara de Salvador e na Assembléia Legislativa. Sua amiga Moema Gramacho decretou Luto oficial em Lauro. Como amigo fiquei grato pelo sinal de respeito e reconhecimento, mas despojada como era ela onde estiver estará ruborizada.
Mamá, sua lembrança aquecerá sempre os nossos corações nesse mundinho a cada momento mais fuleiro. Um abraço e um beijo. Estarei sempre perto do nosso Araka.
São 4h16 da madruga e vou tentar dormir. Mais tarde verei como postar.
Paulo Bina
Quando cheguei ao Jardim da Saudade pela manhã, na véspera do sepultamento, e encontrei dona Celene choramos. Perguntei o que é que eu poderia dizer. Nada minoraria a dor daquela mãe devastada pela perda anti-natural e injusta. A resposta entrecortada veio rápida e mostra a cepa de que a filha foi feita: “Nada. Basta sua amizade”.
Mas eu preciso dizer algo a ela e a seu Ercole que tão bem receberam, desde sempre, esse amigo da filha mais velha, líder natural dos outros cinco irmãos, igualmente criados com amor para serem, como são, homens e mulheres de bem.
Ela era a minha melhor amiga. Casou com o meu maior amigo. O lar que construíram é o único que freqüentei com regularidade. Sou caseiro.
Felizmente a família é espiritualizada. Já eu não consigo conforto com golpes dessa ordem. Não acho justo. Admiro a força de dona Celene que, à beira do túmulo, agradeceu a solidariedade e o apoio que os amigos e parentes tentaram transmitir-lhe e, apud Vinicius e Chico, eu que não creio peço a Deus que dê conforto a essa gente que não merecia esse sofrimento. Rezo para que seu Ercole consiga suportar a dor.
Escrevo aqui para a família unida que é a Landim Ricci e também para dona Edna, Bira (falou lindamente, embora eu não tenha muita simpatia por sua igreja, a Presbiteriana,) e Juçara, os Gomes e Silva, com quem a vida me permitiu menos contato – mas guardo ainda no coração as palavras de dona Edna quando visitou meu pai no hospital perto do seu falecimento em agosto (21) de 1983. Lembro também com carinho o coronel Mário Hamilton.
Escrevo também para os amigos. E esse é o veículo exato.
Foi um privilégio conviver com Mayra por mais de 30 anos. Pessoa doce, ponderada, humana, amorosa e atenta às coisas da vida e do mundo. Uma cidadã. Confirmando a praxe, não guardo lembrança de como aconteceu o primeiro encontro ou mesmo através de quem ocorreu. Possivelmente, numa das cantorias noturnas da Quadra de Cima do Júlio César – quando eu ainda estava longe da Escolinha de Biblioteconomia e Comunicação (antecessora da Facom UFBa) e ela ainda fazia o primeiro grau no Bom Pastor, em Brotas, onde ganhou um festival estudantil (eu, Lula, Arnaldo e Mackenzie estávamos lá) com “Uma Raio de Sol” – entoado ontem com tristeza no Jardim da Saudade por seus irmãos, primos e os mais chegados.
Mayra chegava calçando um xagrim, de jeans e violão a tiracolo. Ficava até que o irmão, Ercole, infalível às 9h em ponto aparecia: – Mayra painho mandou dizer que já são 9 horas. E lá ia ela... agüentando a pirraça dos mais velhos até a noite seguinte.
Fomos companheiros ainda dos verões intermináveis da década de 70 no salva-vidas da Pituba, com a escadinha de irmãos menores: Ercole, Geovana (a mais constante), Túlio, Bruno e Carina. Na turma também Carlinha (vinha de Sampa), Iana, Naia, Alda e Aleida – todas primas – bem como Lula, Sá Barreto, Neyla, Neisa, Guga, Tostão, Ary, Paulinho, Betinho, Rubem, Guza, Macário, Toni, Arnaldo, Tony e Chuca. Acampamos algumas vezes (Itacimirim, Bom Jesus..., sempre com os irmãos por perto).
E ela encontrou em Mackenzie o primeiro namorado, sob o olhar severo de Ercole (Pai) e cumplicidade de dona Celene que até hoje gosta do indivíduo, meu primo de consideração. Foi para a Itália, voltou em poucos meses. Gostava do Brasil. Da Bahia.
O seu olhar para o outro. Para os carentes, levou-a ao curso de Serviço Social, depois do segundo grau no Nobel da Pituba (a caixa de sapato azul e branca), segundo Tony Baretta, hoje juiz em Salvador, pois nós já éramos universitários e nada de farda por cima da pele. Fez ainda mestrado na Uneb, doutorado em Barcelona e militou no PT desde sempre. E sempre no figurino de não perder a ternura jamais. Essa turma de praia se dispersou depois da faculdade, mas a amizade e o carinho daquele tempo inocente permanece.
Falo aqui de uma pessoa tão especial que conjugou características excludentes, como o rigor com os princípios ideológicos e a disposição natural para negociar e buscar soluções para aquilo o insolúvel. Mayra era daqueles seres humanos que Brecht considerava como imprescindíveis, mas também carregava em si a candura que Clarisse Lispector enxergou um dia num Chico Buarque novinho. E que ele conserva.
Casou brevemente com Miminho de quem, separada, continuou amiga. Visitavam-se e ele veio de Aracaju para a despedida. Dessa união nasceu Morena que estuda e trabalha em Londres. O irmão caçula Bruno veio da Itália e Carina, caçula das meninas também de Londres. Andando com a nossa patota nas festas de faculdades e em barzinhos (entra aí também Chico Bina, falecido, assim como meu irmão Lula), conheceu Arakem. Depois, em Arakem – meu maior amigo e o melhor amigo que qualquer pessoa pode conseguir – descobriu o amor de sua vida. O amigo, companheiro e cúmplice. O pai de Nara. União que caminhava para duas décadas.
Inicialmente eram em tudo dessemelhantes – a ponto do namoro, quando propagado, preocupar todo mundo. Ela comedida, ponderada, responsável e sensível. Ele boêmio, esporreteado, algo mulherengo, mas com um caráter e jeito de ser que pode ser descrito com apenas uma palavra, como fez uma vez James Amado para Ruy Espinheira Filho ao falar de Guido Guerra: “Sabe o que é que há com o Guido Ruy? O caso é que ele é bom”.
Arakem é Bom. Generoso e amigo dos amigos a ponto de se prejudicar pelo próximo. É aquele sujeito que está permanentemente preocupado com o outro. Liga, se informa, arranja emprego, freelas, conversa, dá toques. O tempo todo, com todo mundo! É o maior coração de toda uma geração da EBC que produziu gente como Jadson Oliveira, Alberto Freitas, Sinval e Joaninha, Carmel, Franciel, Nivaldinho, Luciano Aguiar e Borega (aquisições mais recentes), Bira Paim, Mocofaya, Mateus Matéria, Walmar Hupsel, Valmir Palma, Marcos Santana, Bonfim Brown, Vado, Adilson “hífen” Borges, Ivana Braga e ainda Xando Pereira, Catela, o grande Manuel Porto, Miltinho, Vicentão, Izurbaninho, Marco Antonio Moreira (veio de Brasília, assim como o querido Leonel Rocha, amigo sempre presente,) Roque Mendes e um monte de jornaleiros (como não precisa mais diploma, não é doutor Gilmar Mendes,) deve dar no mesmo.
Veio também do Rio, Andréa, namoro tempestuoso de Arakem na juventude, minha prima, junto com a mãe, Sônia, as irmãs Daniela e Geórgia e Bebeto, tio.
Perto da bondade de Arakem só seu compadre e advogado, o pai de Júlia, Irecê.
José Rodrigues de Miranda que cansou de chegar de madrugada em Lauro de Freitas, cidade que tratava por Lauro, na maior intimidade, já indagando a Mayra com a cara de pau que Deus lhe deu: “E aí minha senhora? A cozinha ainda está funcionando”.
Funcionava sempre. Ainda que heterodoxamente o conviva notívago às vezes pedisse para fritar um ovo, que jogava dentro da sopa, com a gema mole. Se existir algum céu, nirvana, plano superior ou o que quer que seja, estão agora juntos tricotando porque José gostava de um fuxiquinho, daqueles sem maldade.
E o casamento funcionou. Foram felizes e companheiros. Sonharam por novos tempos aqui. Venceram e vibraram e trabalharam. Cada um fazendo sua parte.
Agregadores, adoravam a casa cheia, com seu Ercole no exagero de sempre na comidaria dos finais de semana. Nos churrascos, massas e nas orelhas de porco cozida, que nunca provei.
Foi lá, em Lauro, que passei alguns dos melhores momentos da vida junto com Leninha e os meninos Caio e Dudu. Natal, às vezes, mas São João e Reveillon, sempre na casa de Arakem e Mayra, onde Jadson uma vez dançou várias vezes com a tia Anaide, que já ia pelos 85 anos, depois que sua Deta se jogou na piscina de madrugada. Nas viagens de Leninha, infortunadamente em constância crescente, é lá que eu me refugio, pois os meninos já não são tão meninos assim para me pajearem e agüentarem minhas manias.
Ela e ele adoravam música. Música da boa. De preferência de Minas, vale dizer Milton, Lô e Telo Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Venturinni, Tonhinho Horta e todos os iluminas do Clube da Esquina, com seus sucessores como Marina Machado. Chico, Edu, Tom, Gil, Caetano (com Arakem fazendo caretas) também tinham vez, bem como MPB-4, Boca Livre, Paulinho Pedra Azul, Novos Baianos, Dodô e Osmar, Fred Menendez, Juçara Silveira e Matita Perê – com a inestimável colaboração no sopro e percussão de Léo, produtor e dono da mochila mágica onde carrega até uma bateria completa – ou pelo menos assim reza a lenda.. Fagner da época de Canteiros também era lembrado. Eu gravava fitas, depois CDs, para tardes de ócio, cafezinho feito numa cafeteirazinha que parecia coisa de boneca que a colocava no fogão várias vezes (cumprindo seu papel social, dizia Irecê,) amizade e música. Muitas tardes. Lamento não terem sido mais.
Arakem toca violão, bandolim e cavaquinho (menos). Insistisse seria músico profissional. Portanto, os saraus eram da melhor qualidade e em especial quando Rita Birita (maldade ainda da EBC, a criatura de sobrenome de músicos nobres, Tavares, nunca bebeu uma gota de álcool)
E Mayra tinha música dela (como fala o Milton Nascimento), era do Lô e do Márcio Borges, Um Girassol da Cor do seu Cabelo, do disco Clube da Esquina 1.
A letra é incrível lida, cantada ou recitada agora é incrível. Parece profética, bem como o crescendo e a polifonia de quando se chega à parte final, instrumental:
Vento solar e estrelas do mar
A terra azul da cor de seu vestido
Vento solar e estrelas do mar
Você ainda quer morar comigo?
Se eu cantar, não chore não
É só poesia
Eu só preciso ter você
Por mais um dia
Ainda gosto de dançar, bom dia
Como vai você?
Sol, girassol, verde, vento solar
Você ainda quer dançar comigo?
Vento solar e estrelas do mar
Um girassol da cor de seu cabelo
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?
Você vem?
Ou será que é tarde demais?
A terra azul da cor de seu vestido
Um girassol da cor de seu cabelo
Se eu morrer não chore não
É só a lua
É seu vestido cor de maravilha nua
Ainda moro nesta mesma rua
Como vai você?Você vem?
Ou será que é tarde demais?
O meu pensamento tem a cor de seu vestido
Ou um girassol que tem a cor de seu cabelo
Para dar uma idéia da paciência e compreensão de Mayra lembrarei um fato, coisa pequena, mas que mostra a mulher diferente que ela era. Foi num São João, talvez tenham se passado três anos. Chovia a cântaros (para ficar no bordão) e a fogueira, lógico não acendia. Lá pelas 8h da noite Arakem encrencou em acender o fogo. São João sem fogueira, concordou Manuel Porto, não valia.
Secaram o tanque do Peugeot 2006, duas garrafas de álcool e nada. Arakem arrancou a cortina de plástico do chuveiro da sauna e jogou no, vá lá, fogo. Nada. Queimou dois baldes de plástico. Os pirulitos de isopor e um colchão de ar da piscina. O fogo subia e apagava com a chuva implacável. Ele e Manuel ensopados. Arakem fazia o fogo e Manuel abanava com uma tampa do isopor da cerveja que acabou também sacrificada.
Queimou ainda parte da coleção da revista Recreio de Nara (só não torrando tudo porque a menina descobriu e abriu no choro). Ele sumiu um pouco e apareceu com uma braçada com umas quatro toalhas de banho que estavam secando nos fundos. Não agüentei e segredei: “Moça, Arakem vai queimar agora a roupa da casa”. Ela sem espanto algum redargüiu: “Paulo você não sabe como é Araka quando implica em fazer uma coisa” e foi tirar o resto dos panos da corda. Na maior calma.
O fogo afinal prosperou com a entrada do “técnico” Franciel que passou a dar penadas sobre onde abanar, quando foi jogado na fogueira um balde com veneno de rato. O produto era inflamável e rendeu um fogaréu amarelo, fedorento, que ninguém usou para assar carne como insistiu o anfitrião.
Era assim a Mayra. Menina que estava num dos postos mais espinhentos do governo. Chefe de Gabinete de Ruy Costa, o secretário de Governo. Estava contando nos dedos os dias para chegar o mês de março quando haverá a desincompatibilização dos secretários-candidatos. Queria dar aulas. Faria concurso para a UFBa (passou em todos os que se submeteu), para estudar e ter mais tempo para o marido, filha, pais, irmãos e a legião de amigos que conquistou.
Moções de pesar já foram feitas na Câmara de Salvador e na Assembléia Legislativa. Sua amiga Moema Gramacho decretou Luto oficial em Lauro. Como amigo fiquei grato pelo sinal de respeito e reconhecimento, mas despojada como era ela onde estiver estará ruborizada.
Mamá, sua lembrança aquecerá sempre os nossos corações nesse mundinho a cada momento mais fuleiro. Um abraço e um beijo. Estarei sempre perto do nosso Araka.
São 4h16 da madruga e vou tentar dormir. Mais tarde verei como postar.
Paulo Bina
Bina, um belo desabafo desse belo coração. Beijo e abraço, também, pro nosso Araka.
ResponderExcluirConfesso que fiquei um pouco baqueado, diante desse "mundinho a cada dia mais fuleiro", como diz o amigo angustiado.
É uma merda, companheiro, "é uma merda, repetir não cansa, cansa é ser assim...", como diz o poeta.
Mas, temos de seguir em frente, tentando sempre torná-lo menos fuleiro.
P.Robert,
ResponderExcluirtá fueda pra segurar a onda.
Além de um breve e-mail particular que mandei pra Jadson, esta é a primeira vez que tento rabiscar alguma coisa - e nao consigo. Tá foda - e dói a porra toda.
Franciel, o técnico que conhece fogueiras em 12 idiomas.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSou primitivo,não sei lidar com perda.Virei uma pessoa melhor depois que conheci Araka e Mayra.
ResponderExcluiranonimo diga-se mané.
ResponderExcluirBina, tinha que ser você pra conseguir resumir, nessa "odisséia da fogueira" uma das facetas dessa figura chamada Araken e quem era Mayra, que eu conhecia pouco pessoalmente, mas sabia do bem que fez ao nosso amigo enquanto presente na vida dele e mesmo após a sua partida d´entre nós.
ResponderExcluirTenho certeza que ele vai se desdobrar em ser um grande pai, pois coração grande eu sempre soube que ele tem e é um batalhador.
Como já havia dito antes, eu venho me esforçando muito pra ser menos "anti-social" por dosar mal minha dedicação ao trabalho, principalmente. Espero ser mais presente na vida dos amigos, antes que o mundo vire uma fuleiragem de vez! Precisamos tomar uns sustos pra parar e arrumar. Deus abençõe cada um de vocês.
Araka já resumiu o que Bina representa na vida deles: o grande amor. E lembrar Irecê e Chico Bina foi um tiro no meu coração.
ResponderExcluirMayra é realmente inesquecível e dará forças a Araka, Moreninha, Narinha, Dona Celene, o pai, irmãos, primos, amigos...todos nós que estamos tendo que acostumar com a idéia de não ter mais a meiguice e a solidariedade dela. beijos a todos
Bina, lindo depoimento.
ResponderExcluirO canto, a casa, o encanto, os momentos foram todos nossos. Agora, também a dor e a saudade.
Saudade, Mayra!
Araka, estamos aqui, a seu lado, sempre.
Bina,
ResponderExcluirSó hoje li seu depoimento. Lindo, emocionante.Que bela amizade! É disso que a humanidasde precisa para "crescer". Que Deus acalme seu coração e dê toda a força/coragem a Araken, suas filhas... toda família, seus amigos. As preces e a demonstração desse todo amor que Mayra espalhou a estão amparando nessa passagem. Beijo no coração de todos.
Bina,
ResponderExcluirSó hoje li seu depoimento. Lindo, emocionante.Que bela amizade! É disso que a humanidasde precisa para "crescer". Que Deus acalme seu coração e dê toda a força/coragem a Araken, suas filhas... toda família, seus amigos. As preces e a demonstração desse todo amor que Mayra espalhou a estão amparando nessa passagem. Beijo no coração de todos.
Bina,
ResponderExcluirÉ impressionante a riqueza de detalhes. Parabéns!
Foi um "SORRIO ILUMINADO" que passou em nossas vidas.
Favor retificar "SORRISO ILUMINADO"
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