*De belas e feras
Por Jaciara Santos
Nunca me senti confortável fazendo matéria sobre violência sexual. Pessoalmente, tenho dificuldade em lidar com suspeitos de estupro, principalmente quando a vítima é uma criança. Lembro de uma vez, há pouco mais de cinco anos, em que entrevistei um pedreiro preso por estupro continuado à filha de onze anos. E não era estreante: durante anos, abusara sexualmente da menina mais velha que, ao atingir a adolescência, saiu de casa para escapar às sevícias.
Depois de ouvir o relato oficial da titular da Delegacia Especializada de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Derca), fui até o suspeito. Como se nada soubesse do caso, lhe indaguei o porquê da prisão. Sem se abalar, ele me respondeu que tinha feito “umas coisas com a menina”. Tentando aparentar uma empatia que não sentia, insisti com um “que tipo de coisas?”. Ele não respondeu. Foi aí que arrisquei: “A delegada disse que o senhor abusou da sua filha, eu não acreditei e por isso queria saber se é verdade…”. Olhando diretamente pra mim, mas sem deixar transparecer qualquer emoção, o custodiado disse: “Eu só estava ensinando as coisas da vida a ela”. Gelei, enquanto ele completava que “é melhor ela aprender comigo do que com um estranho, não é?”.
Não respondi à pergunta, obviamente de caráter retórico. Optei por me concentrar nas suas respostas, enquanto sentia o estômago revirar. Acabei tomando conhecimento do histórico de vida dos personagens daquele drama, que tinha como pano de fundo a miséria quase absoluta. A família vivia em um barraco toscamente plantado numa favela às margens da Avenida Ogunjá, em Salvador, em condições francamente subumanas. Dos quatro filhos do casal, três moravam ali (eram duas meninas e um menino) e todos dormiam num mesmo cômodo junto com os pais, circunstância que, segundo alguns especialistas, facilita o abuso sexual intrafamiliar. E foi nesse cenário, com a muda cumplicidade da companheira, que o pedreiro estuprara as duas filhas mais velhas e poderia vir a seguir o mesmo script em relação à caçula, então com oito anos.
Saí da delegacia arrasada. Mesmo hoje, decorridos mais de cinco anos desse episódio, ainda me sinto tocada pela história. O que teria acontecido com a menina abusada? E a menorzinha, agora adolescente, teria também se tornado vítima do pai? E quanto a ele, será que, após enfrentar os horrores da cadeia na condição de estuprador, teria mantido a conduta criminosa?…
Corte para o presente.
Essas lembranças me ocorreram nos últimos dias a propósito do caso Mirella Cunha, a repórter que humilhou um preso suspeito de estupro dentro de uma delegacia. Não pretendo engrossar o coro de juízes da jornalista. Aprendi muito cedo que – com o perdão da expressão grosseira – não se deve chutar cachorro morto. Até porque, contrariando o senso comum, a cena, bizarra em si, não me causou nojo, revolta ou raiva, como à maioria dos internautas. Na verdade, o único sentimento que o vídeo me despertou foi pena. Da entrevistadora, do entrevistado e, sobretudo, do telespectador.
E por que pena? Porque trata-se de um caso explícito de ignorância em série. A jovem Mirella, usada como massa de manobra, não se percebe enquanto produto de consumo de uma engrenagem tão bruta quanto o sistema que ela retroalimenta. Paulo Sérgio, assaltante confesso, menino que nunca teve infância, faz parte da legião de pretos pobres da periferia (os chamados PPPs) que nascem, crescem e morrem ignorantes de seus direitos e deveres. Nessa cadeia de ignorância, o público figura como elo mais forte: se não houvesse público, para quem essas mocinhas bonitas de cabeça oca e seus partners truculentos iriam se exibir?
E o que minha entrevista com aquele estuprador confesso tem a ver com Mirella e Paulo Sérgio? É simples. O fato de aquele homem ter me deixado abalada demonstra que o repórter tem emoções e elas podem aflorar em meio a uma reportagem. Já chorei diante de corpos jovens abatidos na guerra do tráfico e perdi o sono após entrevistar meninas vítimas de exploração sexual. Não me envergonho disso. Antes de ser jornalista sou um ser humano com emoções e fraquezas. Mas, como diz o amigo Erival Miranda, ex-colega de Correio da Bahia e atual assessor de comunicação da SSP-BA, isso deve ser coisa de jornalista das antigas. Jornalista que, mesmo conhecendo a versão oficial sobre determinada prisão, faz questão de chegar até o preso para ouvi-lo. Sim, é obrigação do jornalista dar voz e vez a quem tem a palavra cerceada momentaneamente.
Afinal, quando o jornalista se contenta com o boletim de ocorrência e trata o preso como bandido, ignora o postulado constitucional da presunção da inocência. É também como se atirasse a primeira pedra num processo de linchamento moral.
*Texto publicado no blog À Queima Roupa
Recomendo tb acessar o texto publicado no blog de Jaciara (o mesmo), pra acompanhar o debate nos comentários. Tá pegando fogo e tem postagens de muitos jornalistas. Já que a merda tá feita mesmo, que esse episódio sirva pelo menos pra esquentar o debate sobre esse modelo escroto de jornalismo policialesco, mizeravão. Demitir só a repórter não adianta zorra nenhuma.
ResponderExcluirobs: desculpem a ausência, é que fiquei literalmente desconectada esses dias todos. beijos