#MemóriasJornalismoEmiliano – Da prisão política Emiliano José mergulha na droga/vício/paixão do jornalismo
(Foto: Agliberto Lima )
Falar
do próprio autor desta série, o jornalista, escritor e professor Emiliano José,
é uma responsabilidade. E uma ousadia. Ainda mais agora que ele é imortal da
Academia de Letras da Bahia. E como se isso fosse pouco, o cara tem uma
história política de resistência à ditadura a ser respeitada e reverenciada. Talvez por isso mesmo eu tenha me amarrado tanto em editar esses
capítulos que deram início à série #MemóriasJornalismoEmiliano, tendo como
ponto de partida o dia 11 de maio de 2019. Emiliano por Emiliano.
Portanto, há quase dois anos, de forma ininterrupta, Emiliano vem postando (tem muita água ainda pra passar debaixo dessa ponte), originalmente em sua página do Facebook e depois transpostas para o blog Pilha Pura, crônicas sobre sua vida profissional e de vários colegas do início da carreira (alguns anteriores, mas igualmente importantes para o entendimento do período). Mas quem segue a escrita de Emiliano sabe que ela não se governa. Conforme um “diabinho” vai soprando no ouvido, ele vai mudando o rumo da prosa. Mas calma que depois ele volta, porque a história dele está só começando. Por isso esse volume não está em sequência, tem seis datas diferentes. E faltam muitos capítulos, para quando o “diabinho” deixar. Esse é só o primeiro volume.
A série é uma forma de resgatar
uma fase importante do jornalismo local, em plena ditadura militar, abrangendo
sobretudo as redações do extinto Jornal da Bahia e da Tribuna da Bahia, que
tiveram em comum o acolhimento a “comunistas”, alguns ex-presos políticos como
ele.
Só me atrevo a essa missão por ser um exercício de amizade, de admiração, de coleguismo...sem nenhuma pretensão literária – essa parte fica com ele, que esbanja talento com as palavras.
Apesar
de profissionalmente Emiliano ter estreado no dia 23 de outubro de 1974,
exatamente um mês após ter saído da prisão, foi justamente nos quatro anos de
cadeia, que incluíram muita tortura, que o jornalismo começou a ser exercido.
Tinha até nome, Jornal de Notícias, o resumo que ele fazia do noticiário que
ouvia num velho rádio, na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito. O “jornal”
percorria as celas e era “impiedosamente queimado” na última, para não deixar
rastro.
Autodidata,
assim que saiu da prisão ensinou história em um cursinho pré-vestibular no
Mosteiro de São Bento, sem ter sequer cursado faculdade. “Téo (o filho) a caminho, tinha que se virar”,
explica. O mesmo “deus ex-machina” Emanoel Macedo, que conseguiu a vaga de
professor, teve a ideia de transformá-lo em jornalista. A ele agradecemos pela
providência, ganhamos uma grande referência, um mestre.
-Vá à
Tribuna da Bahia e procure Barreto.
Tratava-se
do querido Barretinho, Zé de Jesus Barreto, cuja trajetória também será
retratada nesta série. Era o chefe de reportagem e deu ao foca Emiliano (sim,
ele já foi foca) a primeira pauta: ouvir professores da Escola Politécnica da
UFBA sobre energia solar. Dia seguinte a matéria publicada, provando que o
texto tinha sido aprovado. O jornalista também.
Em
1976 Emiliano José é aprovado no curso de jornalismo da UFBA, na antiga EBC
(Biblioteconomia e Comunicação), no Canela, aos 30 anos de idade. Foi lá que
conheci sua história e aprendi a admirá-lo. Entrei na faculdade dois anos
depois, junto com o também ex-preso político Dalton Godinho, que me deu o
serviço completo sobre o colega barbudo, bolsa de couro a tiracolo, já craque
na arte de transformar pauta em matéria, quando eu nem sonhava como era uma
redação.
Quando
cheguei para estagiar no JBa, no segundo semestre de 1979, Emiliano já atuava
em uma das mais disputadas sucursais dos jornais de circulação nacional, o
Estadão. Tive o orgulho de também ver publicada parte das minhas lembranças nesta
série, junto com as “comadres” Jaciara Santos, Joana D´Arck, Isabel Santos,
Carmela Talento, Sônia Vieira... Mas essas são outras histórias.
É
Emiliano quem resume o jornalismo em sua vida: “Tornou-se minha droga, meu
vício, paixão...”. Está aberto o baú.
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(Foto: Agliberto Lima - Emiliano, repórter de O Estado de São Paulo, em coletiva de imprensa com o presidente Figueiredo e o governador ACM, em 24 de outubro de 1978)
Emiliano José
11
de maio 2019
Subsolo da
memória
Eu
não sei bem por que apaguei da memória o momento de minha saída da prisão.
Sei
o dia: 23 de setembro de 1974.
Curioso
lidar com números: fui preso em 1970.
Data?
23
de novembro.
O
23 me acompanhando.
Pois
é, mas aquele momento tão especial, que devia estar vivo na retina,
desapareceu.
Não
sei se alguém veio me buscar - se José Borba Pedreira Lapa, meu inesquecível
advogado, se Mércia, com quem então era casado, se ninguém.
Apaguei.
Não
é motivo de preocupação.
Apenas
um registro.
Já
tive outros apagões, que entendo.
Situações
pós-prisão, a envolver riscos políticos, não consigo recuperar de modo nenhum.
Nem
que me matem.
Testemunhas
várias me relataram episódios onde tive notória participação e não me vêm à
memória de modo algum.
Aí,
eu compreendo: fora treinado na clandestinidade para esquecer situações
comprometedoras.
E
continuei a agir assim, inconscientemente, em liberdade.
Mas,
não tinha nenhuma justificativa para apagar aquele específico momento de minha
saída da prisão.
Gostaria
muito de recordar cada detalhe daquele dia.
Não
consigo.
É
uma pena.
Tinha
pressa.
De
voltar a viver.
A
sensação que tenho hoje é essa: tinha pressa de reencontrar-me com a realidade,
com o burburinho da existência, que a gente é levado a esquecer no calabouço.
Apagar
aquele exato momento para deparar-me com a dureza da existência - não da
política naquele instante, já que saíra em liberdade condicional.
Deparar-me
com a vida, crua.
Não
tinha tempo para muitas alegrias.
Acho
que já saí pensando em como me sustentar - é, acho que era essa minha agonia
imediata.
Volto
a falar daqueles ásperos tempos, e os atuais não deixam de ser tão ásperos como
aqueles.
Só
que nessa série vou me concentrar na minha caminhada jornalística.
Vocês
sabem, eu comecei atuar como jornalista na Penitenciária Lemos Brito, preso...
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Maria Luiza Mota Miranda: Continue...
Emiliano José: Aguarde, que
volto.
Lucia Correia Lima: Até hoje tenho
dificuldade de guardar nomes das pessoas. Treinávamos para esquecer em caso de
prisão
Emiliano José: Nossos
treinamentos...
Lucia Correia Lima: Emiliano José marcam
para sempre mas tentamos realizamos contribuímos isto vale muito. Escreva uma
resposta...
Valdelio Silva: A recordação é
sempre muito dura...
Maria Renilda Daltro Moura: A ordem era
esquecer nomes , endereços , fisionomia . As vezes rolava a conversa sem olhar
a face ...
Jorginho Ramos: Você se lembra
de fatos exteriores da época ? Tipo assim, algum jogo de futebol, alguma
novela, alguma moda, alguma
gíria
, a morte de alguém famoso?..
Emiliano José: Jorginho Ramos
Sim.
Jorginho Ramos: Emiliano José...persiga os fatos...alguma
lembrança que o ligue a esses fatos. Sugiro uma visita à hemeroteca do
Instituto Histórico e tente folhear os jornais da época em que fostes solto
...talvez se recorde dalgum fato que o reconecte à época...sei lá pode ser um
filme, algum acontecimento por mais prosaico que seja..
Eli Eliete: Ah! Querido!!!
O importante é que você está vivo!
Luiz Antonio De Souza Bastos: Que história, isso
não contam nos livros ditos didáticos escolares
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Emiliano José
12
de maio 2019
Primórdios do
jornalismo
Estava
dizendo: jornalismo veio a mim por vias travessas.
Estava
posto em sossego, e sei lá por que razões, os companheiros do coletivo da
Galeria F, da Penitenciária Lemos Brito, me convocam a fazer um jornalzinho
diário.
Penso
ter contado isso por aí, em minhas escrevinhações, mas como o assunto é
jornalismo, tenho que voltar aos meus primeiros passos na profissão.
Já
havia pensado em enveredar por esse caminho antes que a luta revolucionária me
tomasse pelas mãos, em São Paulo.
Quando
ainda um apaixonado pelo futebol, especialmente pelo Santos de Dorval, Mengálvio,
Coutinho, Pelé e Pepe.
Procurei
a sucursal do “Jornal do Brasil”.
Queria
ser repórter esportivo.
Ouvia
muito rádio, televisão ainda não era a tal.
Acompanhava
cada jogo do Santos pela narração dos
bambambãs da época, pela voz dos grandes comentaristas.
Quem
não viveu a transmissão de uma partida de futebol pelo rádio não pode ter
ciência do tanto de emoção experimentada ao longo de um jogo.
Ainda
há futebol pelo rádio, mas nos anos 60 a força das emissoras e dos narradores
era impressionante.
Isso
me levou a procurar o “Jornal do Brasil”.
Entusiasmo
pelo jornalismo esportivo, pelo futebol.
Sem
conhecer ninguém, sem nunca ter trabalhado na área, a ida ao “Jornal do Brasil”
foi uma frustração só.
Aí
veio a militância política, e o sonho de ser repórter de campo, narrador,
comentarista, o que fosse, colocado de lado.
Era
1971, fora preso final de 1970.
Não
sei exatamente o mês, e recebo a tarefa de fazer o que chamei "Jornal de
Notícias".
Vocês
já sabem: nos organizávamos num coletivo.
Recebi
a tarefa: acompanhar o noticiário por um pequeno transistor - um radinho de
pilha - e ao final do dia entregar o produto.
O
transistor foi colocado pra dentro da prisão por uma de nossas visitas.
Ouvia
o noticiário de meia em meia hora, caneta à mão, registrava tudo, e ao final da
tarde, cuidava de resumir as notícias em meia folha de papel ofício, frente e
verso.
Abaixo
do cabeçalho - "Jornal de Notícias" - seguiam as notícias de no
máximo duas linhas cada, e nem sei por quê, só escrevia com caneta esferográfica
vermelha.
Talvez
considerasse que o vermelho se destacava mais na página em branco.
Meia
folha de papel ofício era porque o volume físico do jornal não podia ser maior.
Explico:
a publicação era passada de cela em cela a partir de 18 horas, às vezes 18,30,
por um pequeno buraco da instalação elétrica, quase rente ao chão.
O
volume tinha de ser diminuto.
Quando
o jornal atrasava, os companheiros começavam a dar murros nas paredes,
cobrando.
Não,
não me peçam exemplares do "Jornal de Notícias".
Percorria
todas as celas.
Na
última, era impiedosamente queimado.
Afinal,
pra não perder a mania, era uma atividade clandestina.
Ao
sair da prisão, a prioridade...
#MemóriaJornalismoEmiliano
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(Memorial de Resistência do Povo da Bahia, no Forte do Barbalho, apontando seu nome na relação dos ex-presos políticos, em 2014)
Emiliano José
13
de maio 2019
Sapo não pula
por boniteza
A
prioridade ao sair da prisão era conseguir algum trabalho.
Saí
angustiado com isso.
Padre
Cláudio Perani, do Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), jesuíta dedicado às
lutas do povo, prestou-se logo a formalizar uma ocupação pra mim no próprio
CEAS de modo a satisfazer exigência de minha liberdade condicional.
Remuneração
era pró-forma, no entanto.
Precisava
de atividade assalariada.
Teo,
o filho, estava a caminho.
Nasceria
em março de 1975.
O
pão de cada dia - precisava garanti-lo.
O
teto, também.
Primeiro,
morei com os pais de Mércia, Rosinha e Haziel, na Ladeira da Cruz da Redenção,
Brotas.
Depois,
num apartamento de Renato da Silveira, na Barra Avenida.
Generosidade
de companheiro de cárcere.
De
léu em léu, não podia continuar.
Até
que surgiu, e foi logo, a oportunidade de dar aulas no Cursinho do Mosteiro de
São Bento.
Dar
aulas de história - vejam a ousadia.
Eu
sequer havia cursado Universidade.
O
sapo não pula por boniteza, mas por necessidade.
Que
fosse - daria aulas de história.
E
ganharia uns trocados, já era bom demais pra quem estava sem eira nem beira.
Dava
História do Brasil - Colônia e Império, creio.
Rapidamente,
elaborei uma apostila, rodada na Gráfica Emita, distribuída aos alunos.
Sempre
fui um autodidata aplicado, e esse rigor no estudo me ajudou muito.
Tivera
ótima professora de História no ginásio e estudara bastante na prisão.
Minha
primeira experiência como professor.
Em
sala de aula.
Ensinara
redação quando no ginásio, aulas particulares, não mais que isso.
Agora,
enfrentar aquela multidão de 30, 40 alunos...
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mateus Dos Santos: O sapo pula
por necessidade, mas os saltos resultam numa linda trajetória
Fredson Costa: Suada e brilhante trajetória, com resiliência, luta, ousadia, determinação e glória!!!
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(Foto: Milton Mendes - Emiliano com o filho Téo recém-nascido, em 1975)
Emiliano José
14
de maio 2019
Reencontrando-me
com Madureza
Se
a minha memória estiver boa, o cursinho chamava-se Max Curso.
Eu
tinha cabelos compridos.
Não,
não é força de expressão.
Rabo-de-cavalo,
ia até o meio das costas.
Não
cortei durante os quatro anos de prisão.
Mantive
um bigode à Stalin.
Mais
tarde, deixei crescer a barba pra valer.
Domestiquei-a
depois, e a mantenho assim, menos selvagem.
Dava
aulas de sandálias franciscanas, que depois acostumei-me a comprar na loja
Adamastor, Rua Chile.
Bem,
entrava na sala assim: cabelo grande, bigode de responsa, de sandálias, a olhar
praquela sala diversa: uns jovens, outros nem tanto, negros penso maioria.
Um
pouco tímido no início, depois me soltei.
Parecia
um experiente professor.
O
curso era pra estudantes correndo atrás do prejuízo: Madureza.
Encontrava-me
noutra situação com a Madureza.
Em
1968, março, concluí o curso colegial pelo Madureza, exames feitos no Colégio
São Bento, em Araraquara, São Paulo.
Insubordinara-me
com uma nota 1 em Física, no Colégio Cedom, Santana, capital paulista, e
resolvi matar todo o colegial em oito meses, e consegui.
Agora,
aos 28 anos, professor de alunos com o mesmo objetivo, sem diploma
universitário ainda.
Esse
cursinho tem história, como tudo.
Envolve
de uma forma ou de outra vários personagens.
Dom
Timóteo Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São Bento, onde funcionava.
João
Henrique Coutinho, que fora meu companheiro de prisão.
Emanoel
Macedo - para o que me interessa, o mais importante.
José
Crisóstomo de Souza, filósofo hoje, amigo inseparável de Emanoel Macedo.
A
história eu conto como foi...
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Crisóstomo é o
mesmo do CEAS e do Movimento?
Emiliano José: É. Ainda falo
nele.
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(João Henrique Coutunho - Visita à Lemos de Brito 30 anos de Anistia)
Emiliano José
15
de maio 2019
As meninas de
dona Anfrísia
Muitas
vezes, a gente demora a perceber o significado de algumas pessoas em nossas
vidas.
Falava
do cursinho de Madureza que passei a dar aulas em outubro de 1974, recém saído
da prisão.
Como
isso aconteceu, quem se movimentou para tanto?
Creio
teve o dedo de João Henrique Coutinho, companheiro de prisão, mas sobretudo de
Carlos Emanoel Macedo Silva, sócio do cursinho com Coutinho, empreendimento que
contava também com os esforços de José Crisóstomo de Souza.
Compensa
conhecer Emanoel Macedo.
Ele
terá outro gesto de solidariedade comigo, conto à frente.
Nasceu
em Jacobina, em 1947.
Quem
me falou mais demoradamente sobre ele foi Crisóstomo, atualmente professor de
Filosofia da UFBA, e que conviveu com Emanoel Macedo durante muitos anos.
O
colégio Severino Vieira foi o primeiro encontro dos dois.
Emanoel,
mais ousado, mais namorador, convidava Crisóstomo sempre pra ver saída das
meninas do Colégio de dona Anfrísia, privado, e os dois se aboletavam nas
proximidades para vê-las passar.
Sobravam
um olhar, um sorriso, não muito mais.
Eram
meninas da elite de Salvador.
Não
eram pro bico deles.
Olhar,
no entanto, não tirava pedaço.
Emanoel
Macedo foi fazer História.
Crisóstomo,
Filosofia.
Bem
se vê a tendência dos dois - eram um perigo ontem, seriam hoje em tempos de
combate ao marxismo cultural.
Movimento
Estudantil, balbúrdia, e logo se ligam ao professor István Jancksó, um
consistente luckacsiano, militante de esquerda, sucesso com a moçada, influente
com toda juventude de São Lázaro, onde estudavam os dois...
#MemóriaEmilianoJornalismo
COMENTÁRIO
Fátima Aquery Vidal: Meu querido
colégio, onde fiz o primário e ginásio.
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(José Crisóstomo de Souza)
Emiliano José
16
de maio 2019
São Lázaro, o
Esclarecimento
Agora
era São Lázaro o território das andanças deles dois.
Antes,
as andanças eram por Nazaré, Desterro, Mouraria.
Namoros,
aventuras, primeiros lampejos de rebeldia.
São
Lázaro sugeria calma, contemplação, com seu espaço acolhedor, árvores, verde
que te quero verde.
Mas,
que calmaria que nada.
Momento
da descoberta, do esclarecimento, da chegada ao porto turbulento da esquerda
naqueles anos 60, ditadura, espaçonaves, guerrilhas.
Animados
pelo irrequieto professor István Jancksó, constituíram "O Círculo",
com a participação de vários estudantes e naturalmente de István.
Na
definição de Crisóstomo, um grupo humanista, radical, de esquerda, com a
participação de cristãos e não-cristãos, presença do padre Paulo Tonnucci,
missionário italiano vinculado à Teologia da Libertação, de Andreas Matto,
ligado ao Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), e de muitos estudantes,
Emanoel e Crisóstomo incluídos.
Não
era uma organização leninista, não se pretendia um partido.
Queria
formar a base, educar o povo, desenvolver práticas de educação popular,
articulada com as Comunidades Eclesiais de Base, com quem mantinha relações,
até pela presença de Tonnucci e Matto.
Editaram
uma revista - "O Círculo", rodada num mimeógrafo, defendendo as
ideias do grupo, fundadas numa perspectiva revolucionária.
Tinham
a benção protetora de dom Timóteo Amoroso Anastácio, abade do Mosteiro de São
Bento.
Os
dois, estudantes pobres, nessa fase, passaram a morar num apartamento no fim de
linha do bairro de Cosme de Farias, na companhia, também, de Edson Argolo, e
eventualmente visitados por João Henrique Coutinho, ambos meus companheiros de
prisão na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, mais tarde.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de maio 2019
Quincas Berro
d'Água
Emanoel
e Crisóstomo, apesar de conviverem com os cristãos de "O Círculo",
não tiveram militância na Juventude Universitária Católica (JUC) ou na
Juventude Estudantil Católica (JEC), caminho comum de muitos para chegar à
esquerda, não fosse pelo PCB.
Chegaram
diretamente, animados pela balbúrdia do movimento estudantil e por István
Jancksó.
Os
militantes cristãos naturalmente também contribuíram, sem que, no entanto,
filosoficamente tivessem os dois assumido o cristianismo.
Crisóstomo,
feliz em poder falar do amigo querido, considera-o um personagem saído das
páginas de Jorge Amado.
Podia
sair de Subterrâneos da Liberdade, pela generosidade com que se entregava à
luta, pelo carinho com os companheiros.
Não
era dos mais entusiasmados com as discussões teóricas.
Às
vezes, saía incomodado delas.
Confessava
a Crisóstomo tal incômodo.
As
formulações de István pareciam quase incompreensíveis para ele.
Alguma
modéstia dele, na opinião de Crisóstomo.
A
seu modo, no entanto, gostava mesmo era da militância, da prática, mais do que
do exercício teórico.
E
de beber, divertir-se.
Podia
sair assim, também, das páginas de "A morte e a morte de Quincas Berro
d'Água", que morto uma primeira vez saiu pelas ruas levado pelos amigos de
cachaça para continuar a bebericar.
E
depois numa segunda morte, o mar o levou.
Às
vezes, no apartamento de Cosme de Farias, também chamado "Balança, mas não
cai" pela precariedade, Crisóstomo e Edson Argolo dormindo, chegava
Emanoel abraçado a duas, três garotas, para uma boa farra, e os queria na
roda...
Era
um bom vivant, avesso aos padrões moralistas da esquerda da época - ao menos
uma parte dela...
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Esse sim era
feliz, cercado de garotas..
Emiliano José: Joaquim Lisboa
Neto, como você, ao menos no passado...
Joaquim Lisboa Neto: Como diz
Paulinho da Viola, não vivo no passado, o passado vive em mim
Emiliano José: Joaquim Lisboa
Neto Ainda bem..
Joaquim Lisboa Neto: Olho pras
minhas companheiras sentimentais com carinho e gratidão por me terem brindado
tantos momentos felizes; minimizo os momentos turbulentos.
Joaquim Lisboa Neto: Retificando:
ex-companheiras...
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Emiliano José
18
de maio 2019
"Balança,
mas não cai" resiste
As
noitadas do apartamento eram regadas a Sangue de Boi, vinho barato ornado com
um rótulo que o tornava um D'alambert, peça artística desenhada por João Henrique Coutinho para impressionar
as meninas.
Não
ficava bem oferecer bebida de tão baixa qualidade.
O
som rolava, só alegria.
Vontade
de fazer o tempo parar.
Emanoel,
sobretudo, quase explodia de felicidade, que de farra ele gostava, ah, e como.
E
o prédio, fazendo jus ao título "Balança, mas não cai".
Ninguém
sabe se os vizinhos se incomodavam com as baladas varando as madrugadas.
Mas,
o "Balança, mas não cai" não era só festa.
Claro:
em época de ditadura, arranjos como este, moradia comum, nascem das
necessidades, carências, mas a convivência guarda segredos entre os moradores.
Emanoel
e Crisóstomo, afinidade completa, política e pessoal, integrados ao pessoal de
"O Círculo'.
Edson
Argolo, vai se aproximando do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), e
não se abria com seus companheiros.
João
Henrique, que aparecia lá de vez em quando, muito mais para as festas, também
contido, tendente à Política Operária (Polop).
Um
dia, o "Balança, mas não cai" tremeu.
João
Luiz da Silva Ferreira, amigo de Emanoel e de Crisóstomo, frequentador e
eventual, andava preocupado.
Tinha
razões para tanto.
Juca
Ferreira, ministro e as porra mais tarde, era da "barra pesada" havia
tempo.
Contei
trajetória dele no primeiro volume da série "Galeria F - Lembranças do Mar
Cinzento".
Estavam
ele e Emanoel na festa do Bonfim em janeiro de 1971.
Juca
estava apreensivo: fora solto havia pouco tempo de uma breve e terrível prisão.
Na
balbúrdia, recebem o recado: ligue pra sua advogada imediatamente.
Acorda
Ronilda Noblat, e ouve a advertência de que a PF está atrás dele.
Um
militante caíra, abrira o bico.
Cuide-se
- aconselhou a advogada.
Foram
os dois para o "Balança, mas não cai", encontraram Crisóstomo.
Tinham
a mesma compreensão: Juca não podia sair pela Rodoviária, localizada nas
proximidades das Sete Portas.
Vivia
coalhada de policiais.
Emanoel
e Crisóstomo compraram a passagem logo cedo.
No
Fusca, viram o ônibus sair, meteram o pé no acelerador, Crisóstomo dirigindo
deu a mão para o motorista parar aos gritos, passagem nas mãos, Juca embarcou e
seguiu para o Rio de Janeiro, de onde mais tarde irá para o Chile e depois
Suécia até que a ditadura fosse derrotada.
O
"Balança, mas não cai" resistiu.
Orgulhosamente.
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Devanier Lopes: Maravilha
Albenísio Fonseca: Juca Ferreira
Eli Eliete: Emiliano José Este
texto está publicado em algum livro?
Emiliano José: Eli Eliete Respondi
logo abaixo. Completo: é uma série concentrada em minha trajetória
jornalística. Começo com esse perfil de Emanoel Macedo porque ele teve
importância no meu ingresso na profissão. Daqui a pouco, trato mais do
jornalismo.
Emiliano José: Escrevendo
agora, a quente.
Emiliano José: Sobre Juca,
você encontra em livro meu: Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento, primeiro
volume. São cinco. Beijo
Eli Eliete: Como conseguir
esse importantíssimo trabalho?
Emiliano José: Eli Eliete A
Editora (Caros Amigos) fechou. Tenho poucos exemplares. Se me mandar endereço,
posso mandar. Não sei se quer os cinco, ou o primeiro da série que fala de
Juca. Me fale.
Eli Eliete: Emiliano José Quero
os cinco.
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(Emiliano José com a farda da Galeria F da Lemos Brito)
Emiliano José
19
de maio 2019
Entre o mar e o
rochedo
Era
assim o Emanoel: pronto sempre para a solidariedade.
Se
era pra correr riscos, presente!
Em
nome da Revolução, mas, sobretudo, voltado a cada companheiro.
Foi
assim com Juca, a fuga, a certeza de vê-lo escapando das garras de Luiz Arthur
de Carvalho, o terrível superintendente da Polícia Federal na Bahia, comandante
da repressão no Estado.
Vou
cruzar com Emanoel em 1974, recém saído da prisão.
O
ano de 1974 foi acompanhado por mim em sua maior parte ainda na prisão.
Em
abril, desencadeamos, eu e meus companheiros, uma greve de fome de 13 dias,
vitoriosa, já contada em meus livros.
Refletíamos
no cotidiano da prisão sobre o que seria o governo Geisel, o quarto ditador.
Havia
a promessa de uma distensão lenta e gradual, pensada pelo bruxo Golbery do
Couto e Silva, que tinha consciência de que a ditadura tinha prazo de validade.
Que
ninguém se iluda, e nós não nos iludíamos: a ditadura queria essa chamada
distensão sob seu mais absoluto controle.
Matar,
se necessário fosse.
Continuar
a matar - Geisel dita essa sentença logo no início de seu governo.
Distensão
regada a sangue.
Logo
veríamos: mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, em 1975/1976, Massacre
da Lapa, em 1976.
E
ainda a luta do próprio Geisel contra os linhas-dura, os carniceiros mais
violentos, que não queriam saber de distensão, cujo desejo era a ditadura
eterna.
Nós,
toda a esquerda, ali no meio, ensanduichados entre o mar e o rochedo, atacados
pelas forças de Geisel e pelos que viviam à margem da própria linha oficial.
Barra.
Saí
em setembro, 23, já disse.
Foi
quando surgiu o deus ex-machina...
#MemóriaJornalismoEmiliano
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(Primeira matéria de Emiliano publicada na Tribuna da Bahia, dia 24 de outubro de 1974)
Emiliano José
20
de maio 2019
Decifrando o
aramaico
O
deus ex-machina chamava-se Emanoel Macedo.
Primeiro,
me chamou para dar aulas no Cursinho.
Depois,
me encontra uma noite antes da aula, e me pergunta de chofre:
-Você
quer ser jornalista?
Surpreso,
agradavelmente surpreso, respondo:
-Claro.
Quero muito!
-Deixe
comigo - respondeu.
Dia
seguinte, me deu a pista:
-Vá
à Tribuna da Bahia e procure Barreto.
Barreto, Barretinho, ZédeJesusBarreto, José Barreto de
Jesus nome de batismo, era Chefe de
Reportagem.
Fui.
Temeroso.
De
jornalismo, sabia nada.
De
suas técnicas, ao menos, nada.
Mas,
tinha um desejo enorme de vir a ser jornalista.
Pensava
saber escrever.
Tudo
era grandioso pro olhar de então.
O
prédio de poucos andares, ainda novinho em folha, se me recordo bem construído
especialmente para sediar as instalações do jornal.
Rua
Djalma Dutra, logo depois do Estádio da Fonte Nova, mais à frente, Sete Portas.
Subo
três, quatro degraus, deparo com a área de acesso, manchetes do jornal nos
quadros dependurados nas paredes, eu encantado, menino de 28 anos redescobrindo
o mundo depois de quatro anos de prisão.
Pergunto
por Barreto:
-Terceiro
andar - diz a recepcionista.
Barreto,
expansivo, bom humor, me recebe com carinho.
Sou
apresentado à pauta, entregue por ele: uma tira de papel datilografada onde se
diz a tarefa do repórter.
Recebo
a caixinha - bendita caixinha, que ajudou meu sustento por bom período.
Dinheiro
para o táxi - sempre sobrava algum, indispensável naquela fase da vida.
A
pauta pedia entrevista com professor da Politécnica da Universidade Federal da
Bahia especialista em energia solar.
À
mente, me vem um nome, e corro o risco de errar: professor Magno Valente.
Será?
Os
professores da Politécnica hão de me ajudar, corrigir se for o caso.
Caneta
e papel à mão, entrevistei-o, procurei entender suas descobertas sobre energia
solar, ele atencioso, revelando consciência da importância de seu trabalho.
Eu,
tremendo: será possível traduzir tudo isso para o português?
É,
porque pro pobre coitado aqui havia momentos que a explicação dele vinha em
aramaico.
Não
por culpa dele, que se esforçava para ser didático.
Por
culpa da minha ignorância - fizera Clássico, e quando surgia alguma coisa de
Ciências Exatas eu me sentia à beira do abismo...
#MemóriaJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Zeca Peixoto: Quando o jornalismo
se aprendia mais na prática do que em muitos salamaleques teóricos.
Paulo Paranhos: Os desafios da
vida são mais fáceis quando se tem amigos
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Emiliano José
21
de maio 2019 ·
Jogador a gente
conhece no arriar das malas
À
beira do abismo.
Assim
me encontrava.
As
folhas com meus garranchos, na bolsa a tiracolo, lembrança do nosso artesanato
na Lemos Brito.
Só
excepcionalmente usei gravador ao longo dessas décadas de jornalismo.
Caneta
e papel sempre me garantiram.
Uma
palavra anotada, duas que fossem, e o raciocínio do entrevistado vinha todo.
Talvez
isso tenha sempre exigido de mim uma atenção especial com o que era falado pela
fonte.
E
me ajudado a desenvolver alguma capacidade de "tradução" daquilo que
me fora dito.
Quando
você grava, sua atenção é menor. Tem a certeza de que está tudo gravado, então
não precisa muito capricho na escuta.
Nem
de longe, no entanto, estou aconselhando novos repórteres a dispensar gravador.
São
apenas reminiscências de velho marinheiro.
Temeroso,
subi.
Logo
percebi um movimento na minha direção.
Apresentou-se:
Gustavo Falcon.
Vinha
conscientemente em socorro do foca.
Generoso,
me deu as primeiras dicas, sobretudo sobre o lead, a cabeça da matéria: o que,
quem, como, onde, por que?
Responder
essas perguntinhas mágicas em cinco, sete linhas era o segredo.
Nada
de nariz de cera, introdução, nada de enrolar.
Já
havia lido muito jornal, mas não havia me dado conta da técnica, do segredo.
De
Gustavo, me tornei amigo, e parceiro. Fiz bem mais tarde prefácio do livro dele
sobre o grande comunista Mário Alves.
É
irmão de Peri Falcon, que cumpriu pena comigo na Lemos Brito.
Família
de boa estirpe - uma pletora de irmãs e irmãos comunistas.
Foi
outro de meus primeiros mestres nessa chegada ao mundo do jornalismo.
Torna-se
professor de Sociologia da UFBA, intelectual respeitado, precursor dos estudos
sobre imprensa alternativa na Bahia.
Sentei
e escrevi, com algum sofrimento.
Afinal,
aramaico não era língua de meu domínio.
Entreguei
o texto a Barretinho.
Por
intermináveis minutos, eu o vi deslizar os olhos sobre minha matéria.
Eu,
preocupado.
A
sorte estava lançada.
Se
a matéria não estivesse boa, adeus jornalismo, adeus emprego.
Barretinho
levantou os olhos e disparou:
-Jogador
a gente conhece no arriar das malas.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Uma das raras
com gravador foi aquela com nosso Mestre Guarany
Emiliano José: Joaquim Lisboa
Neto Você tem memória do cão.....
Joaquim Lisboa Neto: Não tanto como
a do grande escritor e jornalista Emiliano José.
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Emiliano José
22
de maio 2019
Duas vagas, três
candidatos
De
futebol, entendia um bocado.
Essa
frase, no entanto, de Sotero Monteiro, ainda não tinha ouvido.
Conta
a lenda que Sotero Monteiro, técnico do Ypiranga, tradicional time baiano,
olhava atentamente para um jogador que viera treinar no clube e que ainda nem
se trocara para treinar.
Olhava
que olhava.
Virou-se
para um auxiliar e disparou:
-Esse
aí joga muito!
O
auxiliar estranhou:
-Mas,
o senhor nem viu o rapaz jogar.
E
ele, sem relutar:
-Jogador
a gente conhece no arriar da mala.
Foi
mais ou menos a frase de Barretinho depois de ler atentamente minha matéria.
Para
um foca, a glória.
Só
fui saber agora: éramos três a disputar duas vagas de repórter da Editoria
Geral.
Eu,
certamente o mais velho, com 28 anos.
Jadson
Oliveira e Alex Ferraz, os outros dois.
Jadson
me contou agora que nos primeiros dias de teste soube que eu e Alex já estávamos
aprovados.
Ele,
tenso.
Barretinho,
no entanto, deu um jeito e garantiu também a vaga dele, colocando-o no plantão
da noite para - isso me foi dito pelo próprio Barretinho.
Jadson
trabalhava em banco e trabalhar a noite caía como uma luva.
Durante
muito tempo, foi carinhosamente apelidado de "plantãozinho".
Alex
logo se firmou.
É
um trocadilhista infernal, e gostava de me provocar com isso. Eu sempre fingia
me irritar.
Redação
grande, a da Tribuna. Vista de longe, com o olhar de hoje, parecia uma fábrica
barulhenta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Emiliano José: Celia Ramos
Tenho ao menos uma leitora fiel...
Jose Alcino Alcino: Emiliano José
Não Professor. Somos muitos. Precisamos de bons cronistas para os dias de ontem
e de hoje. Os tempos andam muito misturados.
Emiliano José: Jose Alcino
Alcino Obrigado, meu velho. Foi uma carinhosa provocação. Abração
Albenísio Fonseca: Alex Ferraz
Jose Jesus Barreto
Jorginho Ramos: A história
dessa frase é mais interessante do que esta versão. Sotero Monteiro Garrido foi
técnico em todos os times da Bahia: Vitória, GALÍCIA, Bahia, Ypiranga,
Botafogo, Leônico, etc. Ele era proprietário de uma pensão no Largo da Calçada,
perto da Estação Ferroviária, onde desembarcavam vindos de trem, jovens
oriundos do interior do estado, alguns até fugidos de casa que tentavam realizar
o sonho de ser jogador de futebol. A todos Sotero acolhia, mesmo os que
chegavam sem dinheiro, e no outro dia levava-os para um teste, no time que
estivesse eventualmente no comando técnico. Os que tinham aptidão eram
recomendados pelo técnico para contratação pelo clube, ou, caso não houvesse
vaga, indicado para outro clube, já que Sotero tinha muito prestígio no meio
futebolístico. A fama dele se espalhou e mais jovens chegavam a cada temporada.
De tanto "peneirar" jogadores e com a vasta experiência de olheiro e
técnico ele criou a frase que o tornou célebre : O CRAQUE EU CONHEÇO PELO
ARRIAR DA MALA ! Como a significar a habilidade, sutileza e elegância
necessários para ser um grande jogador...
Emiliano José: Jorginho Ramos
Genial, Jorginho. Merece uma crônica sua. Eu não tinha todos esses elementos.
Obrigado
Zeca Peixoto: Tem que reunir
essas fantásticas memórias num e-book, Emiliano José.
Emiliano José: Zeca Peixoto
Vamos conversar, Zeca. Estou no início. A sugestão é ótima. Me ajude quanto aos
caminhos. Obrigado. Abração
Zeca Peixoto: Emiliano José
às ordens! Tenha certeza!
Emiliano José: Zeca Peixoto
Mais uma vez,.muito obrigado
Zeca Peixoto: Emiliano José
tamos juntos, professor!
*************************
(Primeira matéria publicada com o lead no 4º parágrafo)
3
de junho 2019
Sequestraram o
lead
Volto.
23
de outubro de 1974.
Há
um mês havia saído de longa cadeia, curtida na Penitenciária Lemos Brito, logo
ali no bairro de Mata Escura, Cidade da Bahia, Salvador.
Assinalo,
en passant: o dia 23 marca minha existência para as coisas boas e ruins, mais
para as boas - até hoje ao menos..
Deu
as caras pra minha prisão: 23/11/1970.
Para
minha liberdade: 23/9/1974.
Para
meu primeiro dia de jornalista profissional: 23/10/1974.
Minto:
no mesmo dia de minha prisão, 23/11/1970, tivera minha primeira condenação em
São Paulo, à revelia.
Então:
empate boas e ruins.
Coisa
para numerologistas, astrólogos e outros especialistas decifrarem.
Já
contei como cheguei à “Tribuna da Bahia”.
Naquele
dia, me apresento ao jornal no início da tarde, perdido que só cachorro caído
da mudança, tímido que só a porra, recebo a pauta do Chefe de Reportagem,
Barretinho, e caio em campo, Escola Politécnica, entrevisto o professor Magno
Valente sobre um projeto de energia solar.
Logo,
no início de novembro, seria instalado, no Departamento de Engenharia
Industrial da UfBA, um coletor termo-dinâmico visando o aproveitamento de
energia solar sob a forma de calor.
Só
não fora posto pra funcionar ainda por falta de verbas.
Consegui
fazer matéria redonda, cheia de informações, não só sobre o projeto.
Politécnica estava com apenas 150 professores, somente cinco em tempo integral,
o que dificultava a celeridade do projeto.
Boa
matéria, digo sem frescura.
Tudo
muito bem, tudo muito certo.
Dia
seguinte, corro pra ler:
"Técnicos
da UFBA testam a utilização da energia solar".
Um
título mais ou menos, considerei, novato que fosse: eram professores, não
técnicos. Além de Magno Valente, havia o professor José Silva Cassa,
assistente.
Mas,
tudo bem.
Passava.
O
que não prestou mesmo foi o fato de que a abertura da matéria, o lead, foi
parar no quarto parágrafo.
Tornou
a matéria quase incompreensível.
Eu
não era culpado de nada, está certo.
Mas,
que porra.
Driblara
todo mundo, goleiro incluído, gol à disposição, e os caras da montagem,
chutaram a bola pra casa do...
Pros
infernos...
E
a primeira matéria a gente nunca esquece...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de junho 2019
Jornalismo,
vício, paixão
Feita
a primeira matéria, bem acolhida por Barretinho, me senti seguro.
Não
obstante, cauteloso.
Certo
de que havia muito que aprender, neófito na profissão.
Alimentava
a convicção de que seria contratado, no entanto.
Escapara
da vida de bancário quando caí na clandestinidade no final de 1968.
As
circunstâncias históricas, as determinações estruturais, não podem obscurecer o
quanto nosso inconsciente atua.
Chegara
a uma nova compreensão do mundo, havia superado a visão religiosa, mística da
vida, me aproximara do marxismo, ainda muito superficialmente, mas me
aproximara.
Não
desconheço, porém, o quanto, depois de algum tempo, eu odiava o trabalho no
banco.
Como
poucos, compreendo o sofrimento da rotina das mulheres e homens que ganham o
pão trabalhando num banco.
É
uma gigantesca clepsidra a esmagar o ser humano.
À
distância, reflito e concluo que cair na clandestinidade foi uma forma de me
livrar do banco.
Era
o inconsciente atuando, como em tudo.
Sem
que desconsidere o papel da razão, do esclarecimento.
Saí
e prometi a mim mesmo nunca mais ser bancário, nunca mais.
Oito
anos, dos 14 aos 22, me levaram a tal conclusão.
E
agora, pelas mãos de Emanoel Macedo, com a benção de Barretinho, chegava a uma nova
profissão.
Era,
para mim, um admirável, fascinante mundo novo.
O
avesso do avesso se comparado com o mundo bancário.
Tudo
tem rotina, claro.
Mas,
o jornalismo tem o fascínio permanente da novidade, não obstante suas amarras,
suas limitações estruturais, que serão analisadas mais à frente.
Tinha
convicção de ter encontrado meu caminho.
Sempre
gostara de escrever, e melhor, muito melhor, se pudesse viver da escrita.
Claro
vou descobrir rapidamente o quanto os salários eram baixos.
Mas,
nunca mais me apartei do jornalismo.
Escrevendo
a ganho.
Ou
não.
Mas
sempre escrevendo.
O
jornalismo tornou-se minha droga, meu vício, paixão...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Sérgio Guerra, José Carlos Zanetti, Emiliano e Sérgio Gabrielli . Na Associação dos Funcionários Públicos, início dos 80)Emiliano José
5
de junho 2019
Dança das moedas
Estava
no fundo do baú.
Carteira
profissional quase em pedaços. Registra desde meu primeiro emprego: office-boy
no Banco Comercial do Brasil.
Rua
Benjamin Constant, 45.
Rente
à Praça da Sé, São Paulo.
Data
da assinatura: 1 de outubro de 1960.
Tinha
então 14 anos de idade.
Remuneração:
34 mil, trezentos e quarenta cruzeiros.
Vá
lá saber quanto era isso, o que valeria com o olhar de hoje.
Vou
pedir a José Sérgio Gabrielli pra fazer a conversão para os dias atuais, que
ele é versado nas contas.
Final
de 1968, vocês já sabem, me danei no mundo, clandestino.
Larguei
tudo, obrigado pelas circunstâncias políticas, ditadura.
Não
há baixa na carteira.
O
segundo emprego, “Tribuna da Bahia”.
Contratado
no dia 1 de novembro de 1974 como repórter A.
Não
me perguntem que não sei o que vinha a ser isso.
Remuneração:
novecentos cruzeiros mensais.
A
dança das moedas.
Não,
não queiram fazer comparações com o que eu ganhava em 1960, aparentemente muito
mais.
Pra
mim, alegria alegria.
Um
belo ganha-pão.
Não
esquentei lugar: saio no dia 19 de fevereiro de 1975 para o “Jornal da Bahia”.
Conto
melhor essa mudança ao longo dessa série.
A
visitação ao baú fica por aqui.
Só
registro o quanto uma carteira profissional é preciosa.
Ela,
coitada, tão atacada nos dias de hoje.
Nela,
sua vida, história, idas e vindas, memória da existência.
Oremos
por sua saúde, os que têm o dom da fé.
Por
agora, vou tentar contar sobre os mais de três meses passados na “Tribuna da
Bahia”, local do meu rito de iniciação como jornalista.
Sérgio
Gomes, redator-chefe.
Se
me lembro bem, José de Castro Leal Valverde era o secretário de redação.
Já
disse, mas insisto em lembrar: José Barreto de Jesus, Barretinho, era o chefe
de reportagem.
Sérgio
Gomes, para nós, repórteres iniciantes, era uma figura distante.
Segundo
nosso olhar, não era de muita conversa.
Isso,
no entanto, pode ser avaliação apressada.
Valverde,
correndo pra cá e pra lá, conversava mais com a gente, nem que apressadamente.
Barretinho, era, sempre foi, afável, carinhoso, companheiro, estimulador... #MemóriasJornalismoEmiliano
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(Série sobre as colônias portuguesas na África)
22
de junho 2019
Poesia e
Revolução
Há
trabalhos jornalísticos a nos marcar para sempre.
Havia
chegado havia pouco tempo à “Tribuna da Bahia”.
Não
sei por que caminhos, uma jornalista portuguesa atravessa o meu caminho.
Passa
a me contar histórias de além-mar.
De
como Portugal esmagou suas Colônias por séculos.
E
de como a resistência foi sendo tecida.
Em
África, nas Colônias.
Na
Metrópole - já havia acontecido a Revolução dos Cravos, de 25 de abril de 1974.
De
como a poesia se insinuara na saga revolucionária dos povos das colônias de
Portugal.
Histórias
que me encantaram.
Novato
na profissão, mas envolvido com a Revolução, troquei ideias com meus botões, e
murmurei:
-Isso
dá matéria.
Que
dava, dava!
Só
faltava combinar com os russos.
Não
sei se consultei Barreto.
É,
só pode ter sido ele o russo.
Só
pode ter sido ele a me dizer:
-Siga
em frente.
Sobre
ele não me canso de dizer:
-A
gente sabe a quem chama de mestre.
E
a jornalista portuguesa foi me falando de matas, guerrilhas, revoluções, poetas,
poesias, lutas de libertação, por soberania.
E
denunciando a crueldade, violência da Colônia, séculos de dominação.
Não
há mal que sempre dure.
Às
vezes, perdura por séculos.
Mas,
um dia é derrotado.
Assim
foi com o colonialismo português.
Falou-me
primeiro de um poeta e seu país.
Amílcar
Cabral, o poeta.
Guiné-Bissau
e Cabo Verde, o país.
História
fascinante e trágica, a do poeta.
Não
menos diferente, a do país, até hoje.
Fosse
poeta, e era, Amílcar Cabral nunca deixou de ser revolucionário.
Por
algumas noites, ela me contou as sagas revolucionárias.
Na
pequena sala de um quarto e sala de um cortiço onde eu morava na Ladeira da
Cruz da Redenção, em Brotas.
Ela
pertencia ao Partido Comunista Português, que obviamente combateu o fascismo
salazarista e sua odiosa prática colonialista.
Nada
de gravador.
Papel
e caneta.
Começou
pela história de Amílcar Cabral.
Nasceu
em 1914.
Em
1945, desembarca em Lisboa para cursar o Instituto de Agronomia.
Único
negro de sua turma, começa a se envolver com grupos antifascistas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de junho 2019
Luta armada
contra a Metrópole
Amílcar
Cabral, chegado ao Instituto de Agronomia em Lisboa, envolve-se logo com grupos
antifascistas.
Junta-se
a Mário de Andrade, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, que conheceu na Casa
dos Estudantes do Império.
Os
três fundam o Centro de Estudos Africanos, em 1948.
Conhece
também militantes culturais que giravam em torno da ideia da reafricanizacão
dos espíritos, do Movimento da Negritude, cuja principal liderança era Léopold
Sédar Senghor.
Vai
firmando visão anticolonialista e de esquerda.
Terminado
o curso, é contratado pelo Ministério do Ultramar como adjunto dos Serviços
Agrícolas e Florestais da Guiné, em 1952, e regressa a Bissau.
Em
1953, percorre o País de ponta a ponta fazendo o Recenseamento Agrícola.
Adquire
um conhecimento profundo da realidade da Colônia.
Cria
a Associação Esportiva, Recreativa e Cultural da Guiné, aberta aos
"assimilados" e aos indígenas.
O
governador da Colônia, Melo e Alvim, não gosta.
Irritou-se
de modo especial com sua "Dissertação sobre a Dominação Portuguesa".
A
Metrópole não aceitava quaisquer iniciativas de organização do povo.
Nem
de qualquer elaboração teórica que a contrariasse.
É
obrigado a emigrar para Angola.
A
Revolução o toma.
Une-se
ao MPLA - Movimento pela Libertação de Angola, sendo um de seus fundadores.
Em
1955, participa da Conferência de Bandung e aprofunda seus conhecimentos em
torno da questão afro-asiática.
Em
setembro de 1956, dá o passo decisivo: funda o PAIGC - Partido Africano para a
Independência da Guiné e Cabo Verde, ao lado de vários companheiros, entre os
quais seu irmão Luís Cabral e Aristides Pereira.
Em
3 de agosto de 1958, o governo colonial reprime violentamente a greve dos
trabalhadores do Porto de Pidjiguiti - são mortos 50 trabalhadores, feridos
centenas.
A
radicalização do governo leva o PAIGC a intensificar os preparativos para a
luta armada, deflagrada no dia 23 de janeiro de 1963.
Era
a guerra contra a Metrópole, sinalizada naquele dia com um ataque ao quartel de
Tite, no Sul do País.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de junho 2019
A morte do poeta
A
luta armada de Guiné Bissau e Cabo Verde durou mais de dez anos e foi
fundamental para o desgaste da ditadura salazarista.
A
jornalista portuguesa, na longa entrevista que me dera no final de 1974, falava
de Amílcar Cabral com muita admiração.
Pelas
suas qualidades como líder revolucionário, pela sua formação intelectual, seu
amor à pátria, sua obstinação no combate à Metrópole.
Sempre
soube distinguir o combate ao salazarismo e a relação com o povo português, de
quem as populações das colônias não eram inimigas.
Afinal,
pregava, com propriedade: o povo português é também massacrado pela ditadura,
inimiga comum da população da Metrópole e das colônias.
Cabral
se articulava com as lideranças de outras colônias.
Sabia
da necessidade de fazer a grande política, ser ouvido no resto do mundo.
Não
fazer isso, era ser condenado ao isolamento.
Em
1970, ele, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos são recebidos pelo papa Paulo
VI, o que deu visibilidade à luta anticolonial.
A
Metrópole radicaliza.
Em
21 de novembro do mesmo ano, desencadeia a Operação Mar Verde, cujo objetivo
era a aniquilação do PAIGC, sobretudo de suas principais lideranças.
Fracassa.
Entre
1970 e 1973, o PAIGC cresce, a luta se dissemina.
Aproxima-se
o desfecho, com vitória das forças revolucionárias.
No
entanto, Amílcar Cabral é assassinado no dia 20 de janeiro de 1973.
Forças
adversárias no interior do próprio PAIGC o matam.
Ele
tinha noção desse perigo.
Se
alguém há de me fazer mal, dizia, é alguém que está aqui entre nós.
Aconteceu.
A
independência foi proclamada unilateralmente em 24 de setembro de 1973.
Luís
Cabral, irmão de Amílcar, é nomeado primeiro presidente de Guiné Bissau e Cabo
Verde.
O
reconhecimento da Independência ocorreu em 26 de agosto de 1974, pelo novo
governo português, no pós-Revolução dos Cravos.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Série sobre as colônias portuguesas na África - Guiné Bissau)
Emiliano José
25
de junho 2019
Traição
Primeira
colônia portuguesa a se libertar, registro no superlead da matéria de 11 de
janeiro de 1975, a Guiné Bissau passou séculos sob o jugo da Companhia União
Fabril (CUF), o que implicou numa economia monocultora, cuja base era a
produção de amendoim.
A
CUF, quando não controlava a produção diretamente com suas próprias fazendas, a
submetia.
Todos
os fazendeiros eram obrigados a vender seus produtos para a empresa, que assim
podia determinar o tipo de cultura a ser desenvolvida.
O
óleo de amendoim era o principal produto da CUF, todo voltado à exportação.
A
indústria quase inexistia.
A
condição do povo era de extrema pobreza.
Foi
contra esse quadro estrutural que o País, sob a direção do PAIGC, se levantou.
Na
fase inicial, logo após a libertação do domínio português, o PAIGC defendia
claramente a construção de uma economia planificada e harmoniosa, gerida pelos
princípios do socialismo democrático.
A
população deveria viver em liberdade, assegurados seus direitos políticos,
econômicos, sociais e culturais, como estava estabelecido na Constituição da
nova República.
Só
que nada seria tão simples.
Tratava-se
de um país muito pobre.
Havia
perdido o principal dirigente da Revolução, Amílcar Cabral.
Atento,
observador atento da conjuntura que o cercava, inclusive das entranhas de seu
partido, ele, poucos dias antes de ser assassinado, dissera:
-Se
alguém me há de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais pode
estragar o PAIGC. Só nós próprios...
Foi
assassinado por um membro das forças revolucionárias, em janeiro de 1973.
Na
matéria de 11 de janeiro de 1975, registro a posição pragmática do Itamaraty,
sob Geisel, reconhecendo rapidamente o governo revolucionário da Guiné Bissau.
Deixava
patente, ainda, que reconheceria outros governos decorrentes dos diversos
movimentos de libertação de países vizinhos.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de junho 2019
Uma serpente é
sempre uma serpente
A
série sobre as colônias portuguesas na África foi tecida a partir, sobretudo,
de entrevistas com a jornalista Teresa Sá Nogueira, de passagem pela Bahia.
Mas,
foram ouvidos também Vitor Tomás, português radicado no Brasil, Guilherme de
Souza Castro, presidente do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA e Marly
Geralda, professora de História da África da UFBA.
E
é claro que desenvolvi pesquisas sobre os territórios que estavam sob dominação
portuguesa até o advento da Revolução dos Cravos, em abril de 1974, a partir de
que se acelera um processo de transição que levaria todas as ex-colônias à
libertação.
Não
foi uma benesse, como se sabe.
Todas
viviam intensos processos de luta armada.
Não
assinei a série.
Recém-saído
da prisão, em liberdade condicional, tratando-se de matéria obviamente
favorável à esquerda, podia despertar alguma reação da ditadura.
Podia
não acontecer nada, mas gato escaldado tem medo de água fria.
Ditadura
é ditadura.
Aqui,
comecei pela Guiné Bissau, por ser o primeiro país a se libertar e contar com
uma das mais preparadas lideranças de todo o processo, Amílcar Cabral,
assassinado às portas da libertação.
Ficará
para sempre na memória dos que lutaram contra o colonialismo português.
Para
os africanos, disse um dia Cabral, o colonialismo português é o inferno,
"e onde reina o mal, não há lugar para o bem".
Gostava
das metáforas:
-O
nosso povo africano sabe muito bem que a serpente pode mudar de pele, mas é
sempre uma serpente.
Alertava
sobre as muitas peles de que podiam se revestir os personagens do colonialismo.
Era
poeta, além de formulador teórico e político, líder revolucionário.
Da
revista Seara Nova, de 1946, extraio trecho de um de seus poemas:
"Ama
as Poesias de todo o Mundo - ama os homens.
Solta
teus poemas para todas as raças, para todas as coisas.
Confunde-te
comigo...
Vai,
poesia.
Toma
os meus braços para abraçares o Mundo,
dá-me
os teus braços para que abrace a vida.
A
minha poesia sou eu."
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de junho 2019
Ouro negro
A
Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974, que derrubou Marcelo Caetano,
assegurou um papel mais destacado à jovem oficialidade progressista e abriu as
portas para o rompimento de cinco séculos de dominação colonial portuguesa.
É
a abertura do superlead da matéria de página inteira de 9 de janeiro de 1975,
da “Tribuna da Bahia”, parte da série feita por mim sobre aquele processo de
libertação.
Angola,
a mais rica, com suas imensas reservas petrolíferas, variado estoque de
minérios, era a jóia da Coroa, e tropeçava em dificuldades no processo de
libertação.
Não
conseguira ainda chegar a um governo de transição, como já ocorrera em
Moçambique.
O
máximo a que chegara: um acordo de cessar-fogo e a instalação de um governo
provisório.
Sua
riqueza era seu maior problema.
À
época, somente a região de Cabinda, ao norte do País, produzia mais petróleo
que o Brasil.
Não
era simples mexer com isso.
Em
todos os setores essenciais da economia, empresas multinacionais detinham o
controle.
Capitais
ingleses, norte-americanos, belgas, franceses, alemães sentaram praça no país.
Interesse
maior, investimento maciço no petróleo.
No
processo de luta armada, constituíram-se três grupos: MPLA (Movimento Popular
de Libertação de Angola), sob a liderança de Agostinho Neto, FNLA (Frente
Nacional de Libertação de Angola), liderada por Holden Roberto, e a UNITA
(União Nacional para Independência Total de Angola), comandada por Jonas
Savimbi.
O
MPLA, e já é apreciação posterior, depois de um longo processo de luta armada
entre as três forças, terminou vitorioso, e governa Angola até hoje. #MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de junho 2019
Prelúdio das
armas
Logo
que o capital internacional sentiu o cheiro do petróleo, desembarcou em Angola
com malas e bagagens.
Desde
o início dos anos 50, a Royal Dutch Shell, a Gulf Oil Corporation, a Compagnie
Francaise des Petroles, a Texaco, caíram matando.
Eram
belgas, americanos, franceses, ingleses e alemães em busca do ouro negro.
Investiram
pra valer.
Era
muito petróleo.
E
havia um resto de diamante, desde o início do século XX explorado por capital
estrangeiro.
Também
o manganês, a bauxita, minério de ferro, enxofre, controlados pelo capital
multinacional.
Revelo
tudo isso na matéria de 9 de janeiro de 1975, parte da série que escrevi sobre
as colônias portuguesas em processo de libertação.
E
falo da resistência, desde os tempos da rainha de Angola e de Matamba, Nzinga
Mbandi, até aqueles meados dos anos 1970.
No
início de 1961, circulavam rumores sobre a transferência dos prisioneiros
políticos para a sinistra prisão de Tarrafal, em Cabo Verde.
O
MPLA foi pra cima.
Em
4 de fevereiro daquele ano, a uma hora da manhã, comandos armados atacam
prisões, postos militares, a sede da Pide, rádio oficial, a zorra toda.
Era,
como dizia o MPLA, o prelúdio da luta armada generalizada, assim configurada em
1968.
Já
se disse que o MPLA se firmou como a principal força política do País.
Na
matéria, Vitor Tomás e Teresa Sá Nogueira já faziam a conjectura de que o MPLA
sairia vitorioso.
Afirmavam:
é o movimento mais consequente, tem representatividade grande, interna e externa.
Elaborou
e levou à frente um programa anticolonialista, nacional e democrático, combateu
o tribalismo e o racismo.
Os
passos seguintes, de lá até os dias atuais, é outra história, a revelar que os
problemas políticos eram muito maiores do que se pensava, não obstante a
continuidade da hegemonia do MPLA.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de junho 2019
Frelimo e
hegemonia
Teresa
Sá Nogueira enfrentou os rigores da ditadura salazarista.
Passou
dez anos exilada.
Foi
jornalista em Moçambique por um bom tempo.
Em
meados dos 70 do século passado, andou pela Bahia, onde a encontrei.
Em
setembro de 1974, no mês em que eu estava saindo da prisão, visitou Moçambique,
assistiu à posse do Governo de Transição.
Já
disse, mas insisto: foi pedra angular dessa série sobre as ex-colônias
portuguesas.
Na
visita a Moçambique, à noite, quando chegou, ela ainda ouvia tiros em Lourenço
Marques, a capital, Maputo desde 1976.
O
aeroporto, sob controle militar.
Nos
subúrbios, casas e carros queimados.
Cinco
mil negros foram mortos por golpistas que tentaram criar uma nova Rodésia em
Moçambique, no dia 7 de setembro daquele 1974.
Os
golpistas foram derrotados.
A
Frelimo conteve a multidão negra que partia em direção à "cidade dos
brancos".
Queria
matar brancos em reação aos irmãos negros assassinados.
Pacificar
o país era essencial.
Sob
a liderança de Samora Machel, a Frelimo ia construindo hegemonia, tentando unir
todo o povo moçambicano, recusando o tribalismo, o regionalismo e o racismo.
Defendia
não haver luta contra o povo português ou contra a raça branca.
Todos
os que viviam do trabalho honesto tinham contribuição a dar ao povo
moçambicano.
A
burguesia sempre fomentou a luta tribal e o preconceito racial como melhor meio
para o domínio do país.
Fala
de Samora Machel: todos os complexos de superioridade e inferioridade da cor
têm de desaparecer.
"Não
há direitos nem deveres especiais para ninguém."
A
Frelimo tinha como finalidade principal a liquidação total das estruturas do
colonialismo português.
Construir
um Moçambique independente e desenvolvido onde o poder pertencesse ao povo.
Havia
focos oposicionistas, sobretudo em Lourenço Marques e no seu entorno, setores
que não queriam perder seus privilégios de cor e poder.
Eram
constituídos pela alta burguesia branca, uma pequena burguesia também branca,
comerciantes e uma camada de pequenos colonos da área agrícola.
E
havia, ainda, claro, os grandes latifundiários.
Entre
os negros intoxicados pela propaganda colonialista, contava-se uma pequena
burguesia colaboracionista, além dos sobas e chefes tribais de confiança da
ditadura salazarista.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de junho 2019
Um novo tempo
O
governo de transição em Moçambique começou a partir de 20 de setembro de 1974.
Teresa
Sá Nogueira, testemunha.
Chefiado
por Joaquim Chissano, naturalmente de maioria negra.
Havia,
no entanto, quatro ministros brancos em sua constituição.
Tudo
contado em matéria de 13 de janeiro de 1975, da Tribuna da Bahia.
Na
Justiça, o advogado moçambicano Rui Baltazar.
Como
representante da Frelimo na Comissão Militar Mista, Jacinto Veloso, piloto
aviador pela Academia Militar de Lisboa.
Veloso,
em 1963, desertou com o avião que pilotava para Tanganyika.
Representando
Portugal, o almirante Vitor Crespo, identificado com as teses da libertação do
país.
A
presença de representantes brancos simbolizava a disposição da Frelimo de não
deixar o racismo contaminar os novos passos da República que surgia.
Insista-se:
deixava claro, não obstante que os negros sufocados durante séculos, agora
seriam os condutores daquele processo político.
A
independência política, início de outra história, se daria a 25 de junho de
1975, quando estaria concluído o governo de transição.
Havia
uma expectativa muito grande.
Afinal,
o salazarismo e o colonialismo iam para o lixo da história.
Era
um momento de alegria, de esperanças.
De
sonhos revolucionários se concretizando.
Teresa
prognosticava devesse haver a partir do novo governo o término do saque do país
pelo capital estrangeiro.
Moçambique
aceitaria investimentos estrangeiros desde que em condições justas e com as
limitações que se fizessem necessárias.
O
principal é, a partir dali, ter-se iniciado um amplo processo de libertação,
envolvendo também e com muita ênfase uma revolução cultural.
Os
negros não seriam mais discriminados.
Não
seriam mais olhados como coisas sem direitos.
Sua
cultura seria respeitada.
A
burguesia branca teria que engolir seus insultos e aceitar a nova ordem,
conquistada com muito sangue e sacrifícios.
A
Frelimo, vista por ela como um bando de terroristas, de selvagens, assassinos,
e não uma força revolucionária libertadora, agora seria governo.
Não
haveria perseguições.
Mas,
o poder político mudara de mão.
E
viera para iniciar um novo tempo.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
1º
de julho 2019
Torturas,
estupro das mulheres
Havia
saído da prisão havia pouco tempo.
Conhecido
as terríveis torturas da ditadura.
Como
eram as torturas durante a guerra colonial?
Era
uma pergunta que me fazia, que o salazarismo era do ramo, são conhecidas tantas
histórias de tortura durante o longo período de domínio de Salazar.
Conversei
com Teresa, com Vitor, pesquisei.
Tive
à mão "Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial", organizado por quatro
jornalistas portugueses.
Compreendi
melhor o horror, o terror implantado pelas tropas portuguesas, a crueldade, a
perversidade.
E
os relatos estão na matéria de 13 de janeiro de 1975.
"Há
um chefe de Brigada da PIDE, de nome Alves, que interroga os presos utilizando
as seguintes torturas: afogamento (o prisioneiro tem a cabeça debaixo da água;
quando está prestes a sufocar é retirado, e assim por diante até a morte);
arranque dos olhos (depois põe os olhos nas mãos do prisioneiro e manda-o
embora); corte de membros (corte de pulsos quando as algemas não saem) e outras
partes do corpo..."
Em
1968, 17 mulheres haviam fugido de suas casas em decorrência da guerra. Presas,
foram todas violadas pelos soldados.
Uma
rapariga de 14 anos, virgem, foi estuprada no mesmo dia por 17 soldados .
"Consoante
o interesse físico que elas despertam, as prisioneiras de guerra servem
habitualmente para consumo dos oficiais, sargentos ou soldados."
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Série sobre as colônias portuguesas na África)
Emilino José
2
de julho 2019
Uma ideologia
pra viver
As
ditaduras, à época, tinham uma ideologia.
Precisavam
de uma ideologia para viver.
Eram,
ainda, tempos de Guerra Fria.
Ecoava
a imortal frase de Marx e Engels: "um espectro ronda a Europa, o espectro
do comunismo", escrita lá por meados do século XIX, abrindo o também
imortal Manifesto Comunista.
Era
uma ideologia destinada a assustar.
E
havia a URSS, que dava substância a ela.
Até
hoje o anticomunismo é acionado, e com surpreendentes efeitos, não obstante um
simulacro.
Afinal,
a URSS não existe desde o início dos anos 1990.
Talvez
assuste como uma formulação capaz de levar a humanidade ao encontro de si
mesma, por seu conteúdo anticapitalista, mas nada a ver como ameaça imediata.
Os
brutamontes das ditaduras precisavam dessa ideologia.
As
autoridades das colônias usavam-na à vontade para torturar e matar.
Amílcar
Cabral, no processo de luta contra a Metrópole, produziu relatório sobre as
atrocidades colonialistas e o enviou à ONU.
Relatava
a morte de Vitorino Costa, Bernardo Soares e de vários outros militantes,
"covardemente assassinados pelos colonialistas portugueses".
Não
matavam apenas.
"A
Vitorino Costa cortaram a cabeça, a qual foi mostrada através das aldeias.
Bernardo Soares foi queimado vivo, regado com gasolina. Outros compatriotas
nossos foram deitados aos rios, com os pés e as mãos atados, com pedras para
fazer peso."
Os
"Sete Cadernos sobre a Guerra Colonial" faz um diagnóstico desse
quadro, em minha matéria de página inteira, de 13 de janeiro de 1975:
"Todas
as guerras têm seus horrores. Mais horrorosa uma guerra se torna quando se
trata de uma luta entre uma luta entre um exército regular e um levantamento
popular".
Dura
coisa de duas décadas.
A
luta nas colônias portuguesas foi um horror, terror, enfim vencidos naquele
meio de década dos anos 197O.
Os
povos sempre encontram caminhos para romper com a dominação, por mais dura seja
ela.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
3
de julho 2019
Horrores da
guerra contra os povos das Colônias
As
guerras são sempre um teatro de horrores.
São
guerras.
Humanas,
demasiadamente humanas.
O
século XX assistiu a duas grandes guerras.
Correram
rios de sangue.
Disputas
intercapitalistas.
Das
guerras, nasceram a Convenção de Genebra, um esforço de tratamento digno aos
prisioneiros e feridos.
Sempre
precariamente cumprida.
Visito-a
agora para evidenciar o quanto as tropas portuguesas a desrespeitavam.
Numa
circular do Alto Comando português sobre prisioneiros dizia-se deles que
devessem ser respeitados como soldados que eram.
Tudo
muito bom, tudo muito certo.
Porém,
"o terrorista não é um soldado".
E
não é, no raciocínio do Alto Comando, porque não está sujeito durante o combate
aos riscos inerentes ao uso de um uniforme que o identifica como combatente
inimigo.
"Foge,
esconde-se, mistura-se com a população. Está mais próximo do assassino do que
do militar".
Segundo
a ética dos exércitos, diz a circular, um combatente aprisionado sem uniforme é
fuzilado.
No
entanto, é importante fazer prisioneiros.
"Só
eles nos podem fornecer informações e esta é a razão pela qual não os fuzilamos".
E
o terrorista deve ser interrogado "com eficácia".
Todos,
sem exceção, "deverão fornecer-nos informações sobre os chefes diretos, os
seus camaradas habituais, os seus subordinados - e onde eles têm podido
operar."
"Se
não obtivermos estas informações de um terrorista é porque somos incapazes e
irresponsáveis."
Ao
prisioneiro, deve ser dada a chance de falar por sua própria iniciativa,
concede a circular.
Se
não o fizer, "será preciso adotar medidas eficazes que o convencerão
rapidamente a colaborar até ao ponto de ser fuzilado como a ética militar
preceitua com respeito a todo combatente aprisionado sem identificação de sua
unidade."
O
leitor sabe o significado de "medidas eficazes".
Ainda
assim, a circular acautela-se:
"Não
se procura propriamente torturar, trata-se apenas de uma questão de
eficácia."
As
tropas portuguesas sempre torturavam e matavam.
Não
é preciso dizer "torturavam com requintes de crueldade".
Isso
é inerente à tortura.
Insisto:
apesar de toda violência, crueldade, terror, o colonialismo foi derrotado.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de julho 2019
Ralando
Chegar
até essa série sobre as colônias portuguesas e o processo de libertação delas
demandou trabalho, aprendizado. Estava
na Editoria Geral, àquela época o melhor campo de treinamento para qualquer
repórter, quanto mais fosse ele um principiante como eu.
Além
de Barreto, na chefia, havia Menezes e Paulo Roberto Tavares.
Tinha
então 28 anos, quatro dos quais passados noutra escola, a Penitenciária
"Lemos Brito", disso já falei.
Como
disse, nunca houvera sido jornalista, salvo a experiência do "Jornal de
Notícias", um diário manuscrito dirigido aos companheiros enquanto
estivemos fechados nas celas.
Fazer
matérias diárias era fundamental para o aprendizado.
Treino
é treino.
Jogo
é jogo.
Estava
em campo, não podia mais tremer.
Agora,
dar tratos à bola.
Na
segunda matéria, 26 de outubro de 1974,
amassei barro, senti o cheiro fétido dos Alagados, aquela imensidão de palafitas
precariamente assentadas sobre o mar.
Tornara-se
cartão postal da Bahia, exibia-se a miséria, naturalizava-se a pobreza.
A
população pobre muito pobre sem ter onde morar o capital imobiliário tomando
tudo invadiu o mar.
O
governo do Estado tinha um plano de aterrar tudo aquilo, com previsão
orçamentária e tudo.
Os
moradores iam sendo alojados num barracão.
E
estavam desconfiados e com medo.
Quem
construíra um barraco sobre o mar quis fugir de aluguel.
Era
sua morada.
Quando
ia para o barracão, abandonava a casinha de madeira na palafita, precária
fosse, tinha um receio enorme de não receber uma nova morada depois de perder a
que construíra com tanto sacrifício.
Ruim
com ela, pior sem ela.
O
pavor de voltar ao aluguel.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de julho 2019
Filhos da pauta
O
jornalismo diário é uma surpresa permanente.
Uma
aventura fascinante.
Ao
menos, aparecia assim pra mim naqueles passos iniciais.
Se
repórter, quanto mais se iniciante, não se tem ideia sobre a pauta a ser jogada
em suas mãos.
A
pauta, não.
As
pautas.
Não
sei se acerto o nome, mas havia o "Filhos da Pauta", acho que é isso,
articulado por jornalistas da TB, que saía às ruas durante o carnaval.
Fazia
sucesso.
Recebíamos
coisa de três pautas diárias.
Saíamos
pra rua no início da tarde, os do turno vespertino, como no meu caso.
Era
uma correria atrás das fontes, papel e caneta à mão, anotações ligeiras, sai de
uma, procura a outra, e fonte nem sempre é bicho fácil de lidar, a cabeça já
tentando descobrir o lead de cada uma, que não era coisa tão simples.
Lead
é a abertura da matéria, o que há de mais importante, e que não deve ter mais
de cinco, no máximo sete linhas, produzindo uma espécie de síntese do que virá
adiante, destinada a chamar a atenção de quem lê.
Estou
dizendo isso para o leitor universal.
Não
para os jornalistas, que dominam isso melhor que eu.
Voltava
à redação, e outra correria.
Tomava
de uma Olivetti, e pau na máquina.
Havia
feito datilografia, escrevia e escrevo com os dez dedos.
Espancava
a máquina, mania de colocar vigor nas coisas que faço.
O
carro da máquina, o que dava espaço entre uma linha e outra, sofria, produzia um barulho danado ao voltar.
Mas,
fazia tudo isso com algum estilo, de modo sincopado, botava ritmo, creiam.
Era
como fosse um instrumento musical - acreditem.
Talvez
tentando compensar minha frustração por nunca ter aprendido a tocar nada, uma
nulidade musical.
Menos
à máquina.
Redigidas,
as matérias seguiam para o pessoal do copydesk, um time de primeira linha,
entre os quais o celebrado poeta e romancista Ruy Espinheira, o grande Otto
Freitas e Gustavo Falcón, entre outros.
Dali
pra diagramação, sob direção dos editores, secretário de redação, editor-chefe.
Mais
tarde, pra oficina.
Manhã
seguinte, repórter sempre tem a emoção de ler o que saiu.
Pra
se alegrar ou se decepcionar.
No
meu caso, na maioria das vezes, alegria.
Era
outubro de 1974.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de julho 2019
Sonhos e dores
do jornalismo
Estava
voltando à vida depois de quatro anos de prisão.
Natural:
ingressar numa nova profissão, ter a possibilidade de sustentar o filho a
caminho, descobrir coisas novas, mergulhar na vida da Bahia, tudo isso era
motivo de alegria, de entusiasmo.
Naquela
euforia, escapava-me muita coisa, não obstante minha consciência política.
Não
demorei pra acordar.
O
trabalhador-jornalista se ilude.
Ou
pode se iludir.
Deixa
escapar a sólida e dura noção de que é, a rigor, um trabalhador como outro
qualquer, explorado como o mais comum dos mortais.
As
luzes do sucesso, eventual que seja, podem ofuscar sua visão, fazê-lo
imaginar-se um ser especial, uma estrela, esquecer-se de sua real condição.
A exploração
não poupa ninguém no mundo do trabalho.
Lembra-me
a situação dos jogadores de futebol.
Há
grandes estrelas, a ganhar milhões, e a esmagadora maioria, nas tantas
divisões, ralando pra valer, com rendimentos muito baixos.
Claro
que no jornalismo impresso naqueles anos, as diferenças salariais não eram
gritantes.
Falo
das redes televisivas, sobretudo, capazes de iludir os que estão chegando à
profissão.
Jornalista
dá duro.
Amassa
barro, entra em beco sai em beco, cobre ocupação de terras urbanas, greve,
incêndio, engarrafamento, assassinatos, violência policial, a porra toda.
Não
olha pro relógio.
Negócio
de seis horas de trabalho é conversa mole pra boi dormir.
E
o interessante: a atividade é tão envolvente, tão fascinante, que você nem vê a
hora passar.
A
exploração se realiza sem que você se dê conta.
Ou
só vai percebê-la tardiamente.
É
como se você vivesse num mundo à parte.
E
não vive.
O
sindicalismo nosso, assim, nunca foi fácil.
Requeria
intenso trabalho de convencimento, mostrar nossa condição de trabalhador.
Disso,
do nosso sindicalismo, falaremos mais tarde.
Volto:
nada disso, no entanto, pode obscurecer o fascínio dessa atividade.
A
sensação de lidar com as coisas do mundo, de contribuir para revelar a
realidade, se exercendo a profissão com ética, com a utopia permanente de
correr atrás da verdade.
Desde
1974, fiz muita coisa na vida.
Duas
permaneceram: o jornalismo e a política.
Paixões
de toda a vida.
#MemóriaJornalismoEmiliano
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7
de julho 2019
Rebelião da
morte
E
eu segui pela estrada, caminhante.
Nem
lembrava, ou o inconsciente cuidou de colocar em algum canto, que costumava
resmungar quando alguma pauta de bairro me caía à mão.
Metido
a besta logo cedo.
Queria
matérias de peso.
Menezes
me disse isso.
Foi
um de meus chefes de reportagem.
Dos
bons.
Cheio
de talento.
E
de bom humor.
Nome
todo: José Carlos Menezes.
Segui
viagem.
Conheci,
retratei a história da Venerável Ordem Terceira do Rosário às Portas do Carmo,
a igreja do Rosário dos Pretos, construída por escravos, defendida a custa de
muito sangue e cuja tradição segue até hoje - matéria de 28 de outubro de 1974.
Fui
atrás da história dos cemitérios em Salvador, às vésperas de Finados.
Surpreendido.
Descobri
uma "Cemiterada" - Irmandades vestidas em suas roupas coloridas e de
cruz alçada insuflando o povo a quebrar o novo cemitério.
Havia
o costume pelas irmandades de enterrar os mortos nas naves das igrejas.
Só
que endinheirados resolveram tomar conta do lucrativo negócio e surgiu a
empresa José Augusto Ferreira de Matos & Cia., em 4 de junho de 1835.
Aberto
o novo cemitério, a Santa Casa com a exclusividade do transporte dos mortos, e
o pau quebrou.
As
Irmandades puxaram a rebelião.
Estavam
sendo alijadas
O
Campo Santo, como até hoje chamado, novinho em folha, foi inteiramente
destruído.
Ânimos
serenados, algum tempo passado, e tornou-se durante mais de um século o
cemitério das classes dominantes de Salvador, um luxo só.
Foi
matéria de página de 1 de novembro de 1974.
Descobri
que morrer estava pra hora da morte em Salvador - desculpem brincar com assunto
tão sério.
Era
muito caro ser enterrado, mesmo nas Quintas, mais barato que o Campo Santo.
Ia
descobrindo Salvador, a Bahia, suas rebeliões, sua história.
O
jornalismo, minha escola.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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8
de julho 2019
Crise do
jornalismo sob a ditadura
O
problema da verdade, o papel do rádio, televisão na Alemanha, censura e
monopólios, nível do jornalismo na França e EUA, problemas do telejornalismo,
liberdade de expressão.
Tanta
coisa discutida naqueles dias.
Explico.
Me
cai às mãos, certamente por decisão de Barreto, a cobertura do Seminário
Internacional de Jornalismo Comparado, realizado entre os dias 5 e 12 de
novembro de 1974, quase um mini-curso de jornalismo, providencial para quem
estava chegando à profissão.
À
frente do encontro, tão importante naqueles tempos obscuros, várias entidades e
dois personagens centrais: Isidro Duarte, presidente do Sindicato dos
Jornalistas, e Othon Jambeiro, professor de Jornalismo Comparado da Escola de
Biblioteconomia e Comunicação.
Foi
um momento de aprendizado.
Acompanhava
com atenção cada uma das palestras - pela necessidade de produção das matérias
e pelo interesse nas falas de figuras notórias do jornalismo brasileiro e
mundial.
Mino
Carta, de “Veja”.
Ney
Gonçalves Dias, da “Rádio Panamericana”,
de São Paulo.
Juarez
Bahia, do “Jornal do Brasil”.
Armando
Nogueira, da “TV Globo”.
Carlos
Castello Branco, do “Jornal do Brasil”.
Pompeu
de Souza, de “Veja”.
Falaram,
ainda, o adido de imprensa do Consulado Geral da França, Christian Geschwind,
Hans Bayer, adido de imprensa da embaixada alemã, Dennis Rendmont, da
“Associated Press” e Joseph Sandro, diretor de divulgação do Usis para o
Brasil.
Dessa
cobertura, resultaram oito matérias, entre os dias 5 e 13 de novembro de 1974.
Era
Geisel, tempo de abertura lenta e gradual, ditadura ainda vai matar muita
gente, censura e auto-censura, o encontro caminhou no fio da navalha.
Fez
a crítica da censura com algum cuidado, defendeu a união de empresários e
jornalistas de modo a garantir uma maior liberdade de imprensa, discutiu os
desafios do jornalismo impresso, o impacto das emissoras de rádio, o papel
delas na história do jornalismo brasileiro.
Juarez
Bahia foi mais contundente: "todo regime autoritário considera que a
liberdade de imprensa é um risco" e que a rigorosa censura existente no
Brasil levava o jornalismo a uma crise em todos os campos.
Foi
além: o clima político do País provocara uma crise de criação cultural que
afetava todas as áreas.
A
volta de manifestações culturais mais profundas só ocorrerá em outro quadro
político.
Diagnosticou:
"o jornalismo brasileiro é descompromissado com a realidade nacional, com
os problemas e preocupações do povo."
Pregou
mudanças no rumo de um jornalismo com raízes nacionais, deixar de ser simples
cópia de modelos norte-americanos.
Saído
de prisão havia pouco tempo, era uma alegria ouvir tudo aquilo.
Pelo
jornalismo e pela política.
Foi
uma forma inteligente de combate à ditadura.
Não
um ataque frontal, mas uma crítica fundada no exercício do jornalismo, que dificultava
a repressão por parte da ditadura.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
31
de agosto 2019
Documentos e
memória
E
eu seguia, repórter da Tribuna. Menezes me disse esses dias de minha
resistência a matérias de bairro, e eu não sou doido de desmenti-lo.
Deve
de ser verdade.
Que
seja.
No
dia 14 de novembro de 1974, reportagem minha falava de uma Salvador assustada
com o barulho, a fumaça e a sujeira.
Um
terror.
Praias
sujas, mau cheiro e fumaça exalados pelas chaminés das fábricas, praias de Boa
Viagem, Ribeira, Roma, Pedra Furada cheias de pneus velhos, latas, lixo de todo
tipo, esgotos desaguando na areia.
Do
Farol da Barra a Itapuã, esgotos desaguavam na areia.
E
a poluição chegava longe, ia além de Salvador: a Tibrás terminava com o paraíso
das praias de Arembepe, Jauá, Buraquinho.
Tudo
pra mim era descoberta.
Ia
além da Salvador dos cartões postais, das aparências.
Repórter
só aprende assim: metendo a mão na massa.
Jornalista
só se torna jornalista se passar pela reportagem.
Fui
destacado para minha primeira viagem: cobrir eleições em Jequié e Vitória da
Conquista, num Fusca.
Eu,
motorista, fotógrafo.
Conquista,
raro município governado pelo MDB, prefeito era Jadiel Matos, campanha cheia de
dinamismo.
E
houve intervenção da polícia: delegado Jaymilton Gusmão acabou com a exibição
da peça "Carroça de Ouro", na Praça Rio Branco.
Nada
explicou, que os tempos eram de ditadura.
Régis
Pacheco, ex-governador, presidente do MDB de Conquista, elevava o tom:
"governos discricionários cansam":
-
Ou o governo abre, dá liberdade de imprensa ou o povo acaba estourando em busca
de liberdade democrática.
Lembrava:
-
Nós não temos Constituição. O AI-5 a anula.
Em
Jequié, o juiz Edmundo Benevides reclamava: o dinheiro para alimentação e
transporte não dava nem pro começo, volume de abstenções chegou a 50 por cento.
Foi
minha primeira cobertura de eleições.
Relembro
tudo olhando para amareladas páginas de jornais.
Matérias
do dia 16 de novembro de 1974.
Na
primeira fase de minha vida jornalística o anjo-da-guarda-arquivista foi minha
irmã, Maria Aparecida, que morava em Salvador à época.
Não
fosse ela e não estaria contando esses primeiros passos com precisão.
A
memória reclama documentos.
Minha
irmã os guardou.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de maio 2020
Jogo do bicho e
parto de onça
É
sempre a mesma história.
Começo
um texto, um projeto, e desvio-me.
A
escrita me toma pelas mãos, e lá vou eu, distante do objetivo inicial.
Comecei
animado pela ideia de contar minha trajetória jornalística.
Outros
atores, parceiras e parceiros de jornada, foram surgindo e ocupando o palco.
Me
tiraram de cena.
Com
méritos.
Como
se me dissessem, e diziam, ninguém está só no mundo.
Confesso:
quando tenho de resgatar o fio da meada de minha caminhada, não tenho o mesmo
entusiasmo.
Gosto
mesmo é de contar a história das comadres, dos compadres, amigos, amigas.
Fazer
descobertas de pessoas admiráveis, com suas capacidades, singularidades,
humanidade.
Perdidas
às vezes pelos ásperos caminhos da vida.
Recuperadas
agora.
Volto
a mim, cumprindo a pauta.
Ainda
estava na "Tribuna da Bahia" naquele janeiro de 1975.
Morava
na Ladeira da Cruz da Redenção, em Brotas.
Teo,
o filho, nasceria em março.
Um
entusiasmo só com a nova profissão.
Depois
da série sobre a libertação das ex-colônias portuguesas em África, enfrentei a
rotina de pautas menos espetaculares.
Entrevistar
dirigente do BNH para explicar o desastre do empreendimento do "Parque
Julius Caesar", na Pituba, com o assustador índice de mutuários arrasados
em suas prestações - 14/1/1975.
Entrevistar
dirigente do porto de Salvador, comandante Antônio Malafaia, sobre os desafios
enfrentados desde novembro de 1970, quando sofreu intervenção, perdurando até
aquele momento, ditadura é ditadura - 24/1/1975.
Mostrar
os prejuízos decorrentes de um primeiro domingo sem ferry-boat, depois de
acidente no Terminal de Bom Despacho - 27/1/1975.
Barretinho
inventava era coisa.
Ele
e Menezes.
Lá
fui eu atrás de reportagem sobre o jogo do bicho - legalizar, não legalizar.
Todo mundo de saia justa. Rolava à vontade, nunca deixou de rolar, banqueiros
uma vez ou outra presos, logo soltos, e os pequenos operadores pagando o pato,
os da ponta, vendedores.
A
ditadura pensava seriamente na legalização. Ocorreu não - 30/1/1975.
Até
distribuição dos "pãezinhos de Santo Antônio", na Igreja da Piedade,
cobri. Dezenas de mães de família pobres e seus filhos aglomeravam-se em busca
do pão doado por "algumas brancas" - 29/1/1975.
Vida
de repórter né brinquedo, não.
Obrigado
a lidar, como sempre digo, com atracação de navio e parto de onça...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Fred Matos: Pauteiro é
foda, me lembro de sair da redação com 6 pautas pra cobrir. Um dia me sentei na
grama do Dique do Tororó, rasguei todas as pautas e só voltei na Tribuna um
anos depois pra dar baixa na carteira. Mas não era isso que eu ia comentar. É
que eu me lembro de você nessa época jogando o baba (tem quem chame de pelada)
em um campo lá na Cruz da Redenção onde eu corria atrás da bola sem muito
sucesso. Lembro-me que você batia pra caralho.
Emiliano José: Fred Matos
Puta que pariu. Ia falar nesse campinho, num descampado ali em frente onde eu
morava, nenhum prédio por ali, hoje coalhado de espigões. Não, não me lembrava
de você lá. Pudesse, gostaria me dissesse um pouco mais disso. Tem razão: batia
muito. Talvez para compensar minha pouca intimidade com a bola. Nem sabia
também tivesse sido jornalista. Descobertas. Obrigado. Abração.
Fred Matos: Eu morava ali
perto, Emiliano. Na época eu trabalhava na Bahiatursa, na equipe que fazia a
revista ViverBahia. Minha passagem na Tribuna foi meteórica. Na época o
pauteiro era Pedro Formigli e o chefe de reportagem era o Césio Oliveira. A
primeira vez que estive com você (você também não deve se lembrar) eu acho que
foi logo depois que você saiu da cadeia. Se a memória não me falha, você morava
na cidade baixa, na Ribeira, talvez. Mas me lembro que fui na sua casa com o
Cesio, mas acho que isso aconteceu já no tempo da ViverBahia.
Emiliano José: Fred Matos
quanta coisa... Apaguei boa parte. Nem psicanálise resolveu. Quem viveu
clandestino, faz isso, eu ao menos fiz. É o inconsciente. Não, não morei na
Cidade Baixa. De Brotas para Federação, e depois sempre pro lado de cá. Hoje,
Ondina. Descobertas.
Fred Matos: Onde você
morou logo depois de sair da prisão, Emiliano?
Emiliano José: Primeiro, na
Ladeira da Cruz da Redenção. Primeiro momento, no segundo andar de pequeno
prédio onde morava a sogra. Depois, nos fundos desse prédio, num autêntico
cortiço, sem desqualificação. O último quarto e sala daqueles compartilhados,
lá no baixo. Em seguida, já 1979, batemos lage no Alto do Saldanha, ali mesmo,
Brotas, e tive apartamento próprio. Maior. Tinha quarto pra Teo, já com quatro
anos. Saí da prisão em setembro de 1974.
Fred Matos: Então pode ter
sido na casa de outra pessoa que eu fui com Cesio, Emiliano, mas na minha
cabeça ficou como tendo sido você. Ou pode ter sido mesmo você e eu estou confundindo
o local. Em 74 eu já estava na ViverBahia, mas na primeira equipe da revista,
que era egressa do "Verbo Encantado" (Armindo Bião, Luciano Diniz e
outros). Cesio chegou na ViverBahia, se eu não me engano, em 75. É, deve ter
sido outra pessoa e ficou na minha cabeça como tendo sido você.
Emiliano José: Fred Matos Vá
saber... Já estamos nos pondo viejos, no?
Fred Matos: Emiliano José
Estamos sim. É um milagre lembrar de tantas coisas que aconteceram há quase 50
anos.
Emiliano José: Fred Matos
Vamos montando o mosaico. Conversei com seu irmão. Ele vai lhe provocar.
Aceite.
Jose Jesus Barreto: Mas é na rua,
cobrindo pauta, que o repórter/jornalista aprende o que é povo e também os
intrincados mundos dos burocratas/poderosos. Viva Emiliano José, bom de baba
também. Irmão véi querido. Continue. Tamos no passo.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Honrado. O primeiro chefe a gente nunca esquece.
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
e os renhidos babas na Boca do Rio, à noite, nas quintas, lembra ?
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Claro. Você, além de craque, eu nunca fui, era um provocador de
primeira, gostava de irritar...
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
desconcentrar e desarticular o adversário, aprendizado de angoleiro. Rsrs. E
prática nos babas de rua, a velha e boa escola. Fora das 4 linhas, resenha e
irmandade. Ê saudade!
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto resumo perfeito. Anjo, fora das quatro linhas. Demônio, em campo.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Um grande, (e)terno companheiro.
Ludmilla Duarte: Jose Jesus
Barreto EXATO!!!!!
Vander Prata: É isso aí,
Emi. É na rua que a vida (jornalística) pulsa e acontece.
Emiliano José: Vander Prata
Perfeito, grande Vander
Mônica Bichara: Eitcha quanta
gente boa junta....a gente sabe quando o foca engrossa a voz quando começa a
protestar de pauta de "buraco de rua", "outro bobó" kkkkkk
Jose Jesus Barreto: Mônica Bichara
depende do tamanho e da localização do buraco, mãe.
Mônica Bichara: Jose Jesus
Barreto kkkkk verdade, tem buraco de luxo, de pobre, de remediado....
Jose Jesus Barreto: Mônica Bichara
buraquinho, buracão, cratera ...
Isadora Browne Ribeiro: E mesmo
cobrindo pautas tão diversas precisou de anos pra descobrir como funciona a
Lavagem do Bonfim. 😃😃😃😃😃
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Emiliano José
20
de junho 2020
Epidemia de
meningite: ontem como hoje
Estava
na "Tribuna da Bahia", início de 1975.
Não
demoraria, e Césio Oliveira me levaria para o "Jornal da Bahia".
No
dia 1⁰ de fevereiro, me cai no colo pauta
sobre a epidemia de meningite.
Inicia-se
em São Paulo.
Desce
para o Sul.
Migra
pro Centro-Oeste.
E
chega ao Nordeste.
Começou
no início da década, 1971, só arrefece no final, ali pelo ano de 1977.
Ditadura,
sobretudo na fase inicial, tenta encobrir dados.
Lembrei
de Marx: a história não se repete.
Uma
vez, é tragédia.
Outra,
farsa: Bolsonaro tentando maquiar dados do coronavírus.
Brasil
vence a Copa de 1970, milagre brasileiro.
Pra
quê divulgar dados de meningite?
Ia
atrapalhar o clima de festa.
Esse
era o raciocínio do general Emílio Garrastazu Médici.
Geisel
assume, e tempera um pouco mais as coisas.
Cria
em julho de 1974 a Comissão Nacional de Controle da Meningite - admite-se a
gravidade.
A
Bahia também seguiu o bordão: abafa o caso.
Durante
bom tempo, a Secretaria da Saúde se recusava,. como digo na matéria, a fornecer
os números reais.
De
repente, num encontro de Saúde Escolar, o coordenador do Serviço de
Epidemiologia da Secretaria, doutor Ary Sá Menezes, deixa escapar um número:
432 mortes por meningite no Estado, 186 por meningite meningocócica.
Está
lá, na minha matéria.
E
por que o silêncio até ali?
"Razões
de ética profissional".
O
secretário da Saúde, Ênio Rozendo Pinto, é entrevistado por mim e informa
então, face à gravidade do quadro, ter solicitado ao Ministério da Saúde
antecipação da vacinação em massa da população baiana.
O
secretário acrescenta números: além das 186 mortes ocasionadas pela meningite
meningocócica, houve outras 246 causadas por outros tipos de meningite.
O
interior era mais afetado.
Houve
necessidade de aumentar o número de leitos especificamente voltados para a
epidemia.
A
mim, assunto caro.
Nos
anos 1950, perdi uma irmã ainda bebê devido à meningite, em São Paulo.
Hoje,
nos debatemos com o coronavírus e a política genocida do governo Bolsonaro.
Vida
que segue.
A
luta continua.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carla Estela Rodrigues: Cíclico.
Atual. Memórias que hipnotizam. 🖤👏
Edmilson Sales Santos: Minha irmã
mais velha morreu de meningite em julho 1975
Joana D'arck: A história se
repete
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Emiliano José
21
de junho 2020
Garis e a quase
escravidão em Salvador
Estava
nos últimos dias de "Tribuna da Bahia", querida "Tribuna",
primeira casa a me abrigar, e a primeira casa a gente não esquece jamais.
E
Barreto ia me pautando.
Me
botou entre garis.
Descobrir
como viviam no trabalho.
Tomei
susto: confesso.
Quase
escravidão.
Clériston
Andrade era o prefeito biônico, escolhido por ACM, governador ainda, biônico
também.
Pense
num abandono.
Imaginei
a pré-revolução industrial.
Matéria
de 6 de fevereiro de 1975, cabeça da página três.
Carteiras
sem assinar.
Trabalhadores
temporários ao menos não tinham esse direito.
Eram
1300 dos 2346 funcionários.
A
maioria.
Na
coleta, esmagadora maioria.
Nada
de 13⁰ salário.
Péssima
assistência médica.
Nem
pensar em abono-família.
Nem
em capacetes de proteção
Horas
extras, sempre atrasadas.
Taxa
de insalubridade?
Esqueça.
Jornada
de mais de quinze horas diárias.
Condições
subhumanas.
Férias
de 23 dias, não interessa se há domingo ou feriado.
Um
cartão, a única prova do vínculo com a Prefeitura.
Trabalho
aos domingos e feriados sem receber um tostão a mais, sem qualquer adicional.
Se
faltar, suspenso ou demitido.
Havia
desemprego alto em Salvador, mas para o lixo, carência de trabalhadores.
Vinha
gente de outros estados nordestinos preencher as vagas.
Mesmo
os desempregados de Salvador recusavam o lixo, tal a desumanidade do regime de
trabalho imposto aos garis.
O
delegado regional do Ministério do Trabalho, Lauro Zak, prometeu nomear
comissão para apurar as irregularidades - dizia isso em matéria feita também
por mim em 18 de fevereiro, doze dias depois das denúncias.
Seria
minha despedida da "Tribuna", derradeira matéria.
Antes,
no dia 14, fiz reportagem...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Emiliano José: Cesio Oliveira
Emiliano José: Denilson
Vasconcelos
Isabel Santos: Fechando o
ciclo na TB de uma maneira bem legal, relatando o drama de uma categoria que
eternamente merece o respeito e gratidão da população.
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Emiliano José
22
de junho 2020
Beco da Rabada
Estava
de partida.
Sabia-me
já viajando pra outro destino.
Quase
saindo da "Tribuna da Bahia".
E
Barretinho, Jose Jesus Barreto, me mete pelos peitos matéria sobre a crônica
falta d'água em Salvador.
Pensei em Patativa do Assaré, em Luiz Gonzaga:
Meu
Deus, meu Deus
Setembro
passou
Oitubro
e novembro
Já
tamo em dezembro
Meu
Deus, que é de nois
(Meu
Deus, meu Deus)
Assim
fala o pobre
Do
seco Nordeste
Com
medo da peste
Da
fome feroz...
(Aí
ai ai ai...)
Creiam.
Constatei
isso em matéria de 14 de fevereiro de 1975.
Três
meses e pouco de jornalismo.
Lata
d'água na cabeça, lá vai Maria, mulheres mais mulheres equilibrando latas
d'água na cabeça no IAPI mode lavar roupa e cozinhar das torneiras só saía
vento água qué bom nada.
Faltava
água em todo lugar: Brotas, Engenho Velho, Cosme de Farias, Liberdade, Jardim
Cruzeiro, Ribeira, Cidade Alta, Baixa, Subúrbio, cidade inteira.
A
conta, sempre a mesma - era a reclamação de todos.
A
Secretaria de Saneamento e Recursos Hídricos admitia "a extrema
vulnerabilidade do sistema".
O
secretário Domingos Lavigne garantia: até o final do ano, assunto resolvido.
Os
moradores perguntavam:
-
E enquanto isso, compramos água de balde, fazemos poços artesianos ou buscamos
água na fonte?
Eram
soluções precárias encontradas pelo povo enquanto o governo nada resolvia.
E
nem as muitas preces adiantavam.
Deus
devia estar ocupado com coisas mais importantes, quem sabe com a fome, tão
presente no Nordeste.
Baldes,
eram vendidos a CR$ 1.
Quem
tinha algum tostão, adquiria.
Quem
não tinha, às vezes tomava banho na casa do vizinho.
Ficar
sujo muitos dias não era de bom tom, inda mais se tivesse de namorar.
João
Magalhães, lá da rua Odilon Machado, no IAPI, me confidenciou:
-
Quando se chega à casa do sem-jeito, quando não há dinheiro nenhum, melhor é
caminhar um tanto, chegar a uma baixada perto do Beco da Rabada, onde há fonte
de água limpa, e aí é só botar a lata d'água na cabeça...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Ô período
difícil esse, de falta d'água em Salvador, especialmente na periferia. Eram
matérias corriqueiras nas pautas recebidas pelos repórteres. Tantos dramas
vivenciados pelas comunidades, vítimas de variados problemas de saúde em razão
desse descaso.
Gostei
da referência a Patativa do Assaré. Seus textos também são poéticos, Emiliano
José.
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Emiliano José
23
de junho 2020
Mas como é que o
tempo voa...
O
tempo voa.
Esse
dito...
O
povo o repete como um mantra no enfrentamento cotidiano.
Como
é verdadeira a filosofia dos comuns.
Sinto
isso agora ao pensar na transição da "Tribuna da Bahia" para o
"Jornal da Bahia".
Eram
dias de um novo nascimento.
Havia
saído da prisão no final de setembro de 1974.
Dado
aulas de História no "Max Curso".
Ingressado
na "Tribuna".
E
agora, fevereiro de 1975, malas prontas.
Ia
para o "Jornal da Bahia".
Rápido,
não?
Cesio
Oliveira ainda me deve: quero saber com exatidão como me descobriu.
Já
ouvi versões.
Ele
deve, não nega, confio: vai pagar.
Me
convidou para o "Jornal da Bahia", há de expor razões.
Morava
na Ladeira da Cruz da Redenção.
Bati
baba ali em frente.
Fred
Matos me disse esses dias de minha vigorosidade no trato com os adversários -
forma elegante de dizer.
Compensava
minha inabilidade no trato da bola com a violência: a redonda podia passar,
adversário, não.
A
memória não o alcança como um dos adversários.
Fomos
nos reencontrar agora, eu em busca de seu pai, Ariovaldo Matos.
Ele,
poesia nas Minas Gerais.
Alô,
Fred, "Corta-Braço" já em mãos.
À
sua espera, e dos irmãos: Ariovaldo merece.
Teo,
o filho, às portas.
Nasceria
em 25 de março de 1975.
Registro
da velha Carteira Profissional número 066371, série 158-a, indica contrato de
trabalho com a "Tribuna" em 1º de novembro de 1974, não obstante
tivesse começado um pouco antes, sendo testado.
A
velha carteira, e não me perguntem como sobreviveu a tantas turbulências,
registra a primeira admissão: 1⁰ de outubro de
1960.
Tinha
então 14 anos de idade...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Vera Barbosa: Partilhei....
"Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão significa que ninguém
pode ficar indiferente ao sofrimento de outrem; ou, de outra maneira: sente-se
simpatia por quem sofre." Nas línguas em que a palavra compaixão não se
forma com a raiz passio= sofrimento, mas com o substantivo
"sentimento", a palavra é empregue mais ou menos no mesmo sentido,
mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A
força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz dá-lhe um
sentido mais lato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não
só a sua infelicidade mas sentir também todos os seus outros sentimentos:
alegria, angústia, felicidade, dor." trecho do livro de Milan Kunders: A
insustentável leveza do ser.
Emiliano José: Vera Barbosa minha
querida irmã, imensa saudade.
Vera Barbosa: Emiliano José,
irmão tão querido! Saudade imensa. Beijo
Vera Barbosa: Emiliano José
gosto de acompanhar o desenrolar de suas memórias... Parabéns
Fred Matos: Você batia até
na sua sombra, Emiliano
Isabel Santos: Começou cedo
sua linda trajetória pessoal e profissional, né, amigo Emiliano José?
Precisava, para hoje podermos conhecer uma rica história, que busca interligar
com a história de amigos e colegas, com leveza, criatividade, poesia, bom
humor..., a uma bela 'colcha' de VIDAS. Parabéns é muito pouco, para, sem
demagogias, te elogiar.❤️
Emiliano José: Isabel Santos
Beijo, Bel.
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Emiliano José
24
de junho 2020
Uma velha
Carteira Profissional e suas revelações
Difícil
entender.
Uma
carteira profissional resistir 60 anos.
Certo:
a aparência não é lá essas coisas.
Por
dentro, amarelou.
Posso
ler, legível, legível, o endereço de minha residência: Rua Guapira, 2406.
Jaçanã.
São
Paulo.
Creio
errado.
Avenida
Guapira, não?
Minha
juventude, ali.
"Moro
em Jaçanã, se eu perder esse trem que sai agora às 11 horas só amanhã de
manhã"...
Ali
meu ginásio, meu futebol, primeira namorada.
Se
animem, não.
Nossa
prosa é outra.
Deixa
juventude pra outra hora.
Vem
aí "O cão morde a noite".
Nesse
livro, conhecerão dela.
Entrei
na "Tribuna da Bahia" no final de outubro 1974.
Data
de admissão na velha carteira, 1⁰ de novembro.
A
saída, 19 de fevereiro de 1975.
Três
meses e alguma coisa, quase quatro.
Inesquecíveis.
Aprendizado
para toda a vida.
Nunca
será possível agradecer suficientemente aos diretores do jornal pelo
acolhimento em período tão difícil, ditadura.
E
nem a mestres como Barretinho - Jose Jesus Barreto - notável profissional e
amigo querido.
Como
Gustavo Falcón.
Menezes.
Rosa
Bastos.
Tantos
outros, nessa série já lembrados.
A
primeira casa a gente nunca esquece.
Entrei
tremendo.
Foca
treme.
Saí
fortalecido.
Os
mestres eram bons.
Novo
na profissão, chamado para outra escola.
A
data de admissão no "Jornal da Bahia", minha carteira profissional
não me deixa mentir, é 21 de fevereiro de 1975, dois dias depois da saída da
"Tribuna".
No
dia 5 daquele mês, completei 29 anos.
Os
últimos quatro, na prisão.
Confesso:
naquele momento, um homem feliz.
Além
de tudo, o filho Teo nasceria logo, 25 de março.
O
ano começava bem.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Lembranças
boas. Rosa Bastos, nossa rosinha, alto astral, riso largo, ótimo texto,
querida. Cadê ela? Ainda em SP ?
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Não sei, Barretinho. Gostaria de saber.
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
andou pelo Estadão.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto vamos procurar?
Viviane Andrade Sant Ana: Emiliano José
sem dúvida nenhuma o jornalista e escritor virtuose que a terra do axé recebeu
com todas as suas bênçãos e braços abertos. Emiliano, ainda anseio por seus
livros. Breve te envio lista e você um valor de um combo, quem sabe, para que
eu possa adquiri los. Queto moe debruçar aos estudos dos tempos de chumbo. Estava
"presa" ao período do primeiro governo de Seabra, moas resolvi
avançar, numa mesma base temática. Mulheres pobres e negras e saude mental.
Aceito dicas, indicações de leituras. Voce é meu capitão. Abraços.
Emiliano José: Viviane
Andrade Sant Ana Você tem A última clandestina em Paris?
Viviane Andrade Sant Ana: Emiliano José
mas é claro! 😍
Viviane Andrade Sant Ana: Emiliano. Me
da uma dica doa melhores. uma lista quero estudar TUDO sobre ditadura. Todos os
publicados
Emiliano José: Fred Matos
Fred Burgos Fred Vaccarezza
Isabel Santos: O Jornalismo
baiano estava recebendo de braços abertos, você, Emiliano José, um profissional
que o engrandece e que nos mostra a cada dia porque sempre foi tão bem
acolhido, né, Barretinho Jose Jesus Barreto? Uma história muito linda, que
emociona (tempos da ditadura), que dá exemplo....Sou muito grata ao Universo
por tê-lo encontrado no meu caminho, há muito tempo. Eterno aprendizado.
Jose Jesus Barreto: Isabel Santos
sim , ganhei um amigo, irmão. Com ele tb muito aprendi e aprendo. Seguimos
próximos, mesmo que cada um na sua estrada, cada qual carregando o peso de suas
vivências, histórias. E isso é muito enriquecedor, se temos respeito e
gostamos.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Duas amizades sinceras. Há algo maior que a amizade? Gracias a la vida,
que me deu vocês dois, uma benção.
Isabel Santos: Jose Jesus
Barreto Vocês são dois lindos, duas figuras ímpares, dois amigos que respeito e
que estão guardadinhos lá no fundo do meu coração. Como diz Emiliano José,
gracias a la vida por um dia tê-los encontrado, sem nunca perdê-los. 😘😘
Isabel Santos: Emiliano José ❤️🌻
Jose Jesus Barreto: Isabel Santos
meu beijo carinhoso
Isabel Santos: Jose Jesus
Barreto 🙏😘🌻
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Emiliano José
25
de junho 2020
Copidesque: o
terror dos repórteres
A
velha sede do "Jornal da Bahia", na velha Barroquinha, centro
nervoso, multidão dia e noite, ônibus vindos de toda cidade.
Olhei
para o prédio.
Contraste:
"Tribuna", prédio moderno, semi-novo, tinindo; "Jornal da
Bahia", já com as marcas da idade.
Subo
as escadas.
Deparo
com a redação, no primeiro andar.
Aquelas
fotografias, tantas e tão belas.
Primeira
conversa, provavelmente com Cesio Oliveira, o autor do convite.
Os
primeiros e inesquecíveis personagens, além do Gordo, como Césio era conhecido.
Frederico Simões, pauteiro.
Das
admiráveis figuras a cruzar meu caminho.
Sabedoria
e serenidade em figura de gente.
Nunca
se alterava.
Conhecia
a cidade.
Pautava
bem pra burro.
Recolho
muito suas lições e mais tarde o substituo, acho por férias dele.
Os
copidesques.
Hoje
nem se fala mais nisso.
Peças
de museu.
Naquele
tempo, e lá se vão 45 anos, eram indispensáveis.
E
temidos.
Escolhidos
a dedo.
Profissionais
talentosos.
Dominavam
a língua.
Metiam
a caneta nas matérias.
Sem
dó nem piedade.
Alguns
tremiam quando chamados por um deles.
Alguns,
didáticos e tranquilos.
Outros,
sarcásticos, irônicos, deixavam o repórter à beira de um ataque de nervos.
Cito
nomes dos últimos, não.
Sei
de choro e ranger de dentes por conta deles.
Isso
podia ensinar, mas era um aprendizado sofrido.
No
time dos copidesques, estavam, e não sustento lembrar todos, Fernando Vita,
Gilson Nascimento, Zé Maria, Luis Augusto, Mara Campos.
Um
time de primeira.
Minha
relação com todos foi sem abalos.
Nunca
me esqueço, relembro a ela sempre, um episódio com Mara Campos.
Ela
é atualmente secretária de Comunicação da prefeita Moema Gramacho, de Lauro de
Freitas.
Entregara
matéria sobre o "Juliano Moreira", então um hospício.
De
repente, vejo sair detrás das baias dos copidesques uma moça perguntando quem
era Emiliano.
Tremi.
-
Sou eu - disse, levantando.
-
Boa matéria - disse Mara Campos.
Sentei.
Leve.
Feliz.
Chegando,
reconhecendo terreno, assuntando...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Denilson Vasconcelos: Os bons
pauteiros e redatores fazem falta. Isso evitaria tantas informações truncadas e
cheias de pedradas e outras agressões ao leitor que espera clareza e conteúdo
naquilo que lê, ouve e assiste. Por falar em JBa e bom texto, lembrei de Béu,
outro Gordo que por ali passou.
Emiliano José: Denilson
Vasconcelos Excelente. Grande caráter. Autodidata, como tantos da época.
Jose Jesus Barreto: teria sido Béu
Machado? E o gordo Otto Freitas? Dois profissionais de ponta, humanos
admiráveis.
José Américo Castro: Lembro de
Mara. Figura.
Isabel Santos: Custo a
acreditar que você temia os copis, tão competente que sempre foi. Mas,
realmente, eram figuras amadas e desamadas das redações. Os repórteres os
amavam como pessoas, colegas.... Mas, como profissionais que gostavam de
tesourar nossos textos, eram demoniados kkkkk. Lembro muito de Inacio Panzani,
no JBa. Profissional tbem de primeira. Muitas vezes era um chororô, um quase se
ajoelhar para o texto ser mantido, da forma original. Sobretudo, quanto a
textos maiores. Ô meu Deus, que barra argumentar. rssss Claro que, aí, os
atritos surgiam, mas, normalmente, o que tinha que ser feito, era, e amizade
continuava. tanto assim, que todos nós, os jornalistas 'dasantigas' os
respeitamos até hoje, e agradecemos a todos pelo aprendizado.
Jose Jesus Barreto: Copy dos bons
: Ruy Espinheira Filho.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Na TB.
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Emiliano José
26
de junho 2020
Atrás da cabeça
de Milton Cayres de Brito
Aquela
sede tinha as marcas do tempo, muita história.
O
"Jornal da Bahia" comemorava seu terceiro ano de fundação, 21 de
setembro de 1961, e ela era inaugurada.
Uma
novidade, ousadia.
Ousadia
do empresário João Falcão.
No
quarto andar, havia até um auditório para 60 pessoas.
Um
luxo.
A
diretoria do jornal anuncia também a compra de uma rotativa MAN, alemã,
capacidade de 10 mil exemplares por hora.
Em
março de 1962, começou a funcionar, dando outra cara ao jornal, bem mais
moderna.
O
ano de 1961 foi marcado também pela morte de Alberto Vita.
A
sala da redação levava o nome dele.
Chefiava
a equipe de copidesques quando morreu.
Era
muito amigo de João Falcão.
Eles
se conheceram no início dos anos 1940 no movimento estudantil.
Os
dois, do PCB.
Os
dois, do jornal "O Momento", publicação do PCB.
Falcão
o levou para o "Jornal da Bahia".
Chegava
a uma sede testemunha da história.
Um
jornal marcado.
Em
64, madrugada de 1⁰ de abril, o jornal é invadido por 12
oficiais do Exército, comandados pelo capitão médico Geraldo Sodré Martins.
Era
para impedir a circulação do "Jornal da Bahia" com manchete favorável
ao presidente João Goulart.
Espumavam
de ódio contra Milton Cayres de Brito, um dos diretores do jornal, de conhecida
tradição comunista.
João
Falcão, autor do livro "Não deixe esta chama se apagar", de onde
retiro tais informações, corre à casa de Milton Cayres.
Recomenda:
não durma em casa.
Vai
depois ao comandante da VI Região Militar, Manoel Mendes Pereira, alcunhado Manelão,
e consegue dele a promessa de não tocar no seu diretor, cumprida.
A
edição do dia 1⁰ de abril circulou com espaços em
branco, inclusive na primeira página.
Denunciava
a censura, a primeira na Bahia, no alvorecer do golpe.
Mais
tarde, o jornal enfrentará ACM, com sua vocação de déspota, história já
conhecida.
Dava
gosto chegar a uma casa assim.
Com
tanta história.
E
de luta.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Milton Cayres
foi o chefe de redação da Tribuna, logo que Quintino de Carvalho nos deixou. Um
grande homem, sereno e firme. De bons exemplos, o Dr Milton Cayres de Brito.
Comandou a TB no período mais duro da ditadura, os censores /PF todos os dias
na redação.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Oportuna lembrança, Barretinho.
----------------------------------------------
(Dom Jerônimo defende o divórcio)
Emiliano José
27
de junho 2020
Dom Jerônimo,
divórcio e um conselho do Diabo
Ao
longo dessa caminhada, irei lembrando de amigas, amigos com quem convivi no
"Jornal da Bahia".
Pouco
a pouco.
Hoje,
vou começar a falar da primeira matéria escrita por mim no "Jornal da
Bahia".
Envolvia
dom Jerônimo Sá Cavalcanti, monge beneditino, religioso respeitado.
Das
maiores figuras do Mosteiro de São Bento.
Das
mais controvertidas.
De
posições arrojadas.
Minha
entrevista com ele, publicada no dia 23 de fevereiro de 1975, revelava, logo no
título a posição dele em defesa do divórcio.
Um
escândalo à época.
Primeira
matéria, e com direito a chamada de primeira página.
Não
sei quem correu o risco de me entregar essa pauta.
Se
Cesio Oliveira, se Fred Simões.
Se
os dois, em conluio.
"Vamos
testar de vez" - devem ter resolvido na coxia.
Deu
certo.
Sorte
deles.
E
minha.
Só
agora, tanto tempo passado, tomo ciência da importância da matéria.
Pelas
pesquisas feitas por um ex-aluno, Everaldo de Jesus, mergulhado num mestrado na
área de História em torno da figura de dom Timóteo Amoroso Anastácio, passando
necessariamente também pela trajetória de dom Jerônimo.
A
matéria abriu a Caixa de Pandora da Igreja Católica, cuja doutrina condenava a
ideia do divórcio.
O
texto ganhou o mundo, alimentou polêmicas.
Mesmo
entre os beneditinos, sabe-se, a controvérsia não foi pequena.
Ele
morre, se a memória não falha, em 1978, ainda acicatado pelos conservadores da
Igreja Católica, certamente sereno, amparado pela fé e pela segurança de sua
consciência teórica e política, afinada sempre com a história e suas mudanças.
O
Diabo atenta, mesmo quando se trata dos assuntos de Deus.
Mais
talvez quando se trata dos assuntos Dele.
Me
provoca:
-
Que mal lhe pergunte, e pedindo licença para meter a colher em território
alheio, por que não falar agora dos dois, Timóteo e Jerônimo? Eles eram do
mesmo mosteiro, não?
-
Ia falar da entrevista de dom Jerônimo - respondi, meio irritado com a
intromissão.
-
Ora, não fuja pela tangente. Não lhe faltará tempo e espaço. Está com algum
receio de ofender a Deus? Saiba, não quero provocar, só ajudar.
Acreditei.
E
dou duas ou três palavras sobre os dois, ajudado por Everaldo de Jesus, cuja
contribuição ilumina meu caminho.
Depois
disso, trato da matéria com dom Jerônimo.
Às
vezes, o Diabo, por velho, tem razão...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Wellington José: Muito legal
lembrar. Contando suas memórias, sinto-me como testemunha ocular.
Mônica Bichara: Deixe esse
diabinho comandar, tem dado certo. Ele vai soprando, guiando a narrativa, e vc
obedece
Emiliano José: Mônica Bichara
há um diálogo excepcional, no Doutor Fausto, de Thomas Mann, entre o Diabo e
protagonista. Sempre me recordo dele.
Everaldo Salvador: Emiliano, essa
matéria sua rendeu muita polêmica. Por causa das declarações de Dom Jerônimo,
se eu não estiver enganado, a CNBB promoveu um encontro extraordinário em que
reafirmou suas posições contra o aborto e o divórcio. A Congregação Beneditina,
por sua vez, expediu um Nota Oficial em que declarava alinhamento à cúpula da
Igreja Católica no Brasil.
Emiliano José: Everaldo
Salvador posso dizer isso? Ou não?
Everaldo Salvador: Professor
Emiliano, essa informação consta no Dietário do Mosteiro de São Bento da Bahia.
Trata-se de um relato oficial a respeito da vida dos monges, arquivado no
mosteiro. No item sobre Dom Jerônimo, falecido em 25 de Janeiro de 1978, consta
o seguinte: matéria publicada em 23.02.1975 no Jornal da Bahia, repercussão das
declarações dia 25.02. Reunião extraordinária da CNBB entre 18 e 20 de março
para tratar do tema e publicação de documento "em favor da família".
Dom Jerônimo ainda era prior, e renunciou ao cargo em 1º de abril
"invocando rações de consciência" e "afim de contribuir para o
clima de diálogo". No dia 8 e 9 de abril, a Congregação beneditina reúne-se
no Rio e declaração que "segue a linha da CNBB". Meses depois, o
divórcio era promulgado.
Emiliano José: Everaldo
Salvador Maravilha.
Emiliano José: Everaldo
Salvador Divórcio meia boca. Em 1977, não?
Everaldo Salvador: Emiliano José,
primeiro veio o desquite.
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Emiliano José
28
de junho 2020
Jerônimo, vidas
secas, contra fome e miséria
É,
atendo a interpelação do Diabo, por oportuna.
Volto
depois à matéria do "Jornal da Bahia", com dom Jerônimo.
Os
dois monges, Jerônimo e Timóteo, marcaram a história da Bahia nos terríveis
anos da ditadura militar na Bahia.
No
Mosteiro de São Bento, de tantas e tão memoráveis histórias, foram uma
retaguarda essencial às lutas contra o arbítrio, a violência militar.
O
mosteiro poderia nem existir mais.
Permaneceu
de pé pela coragem e ousadia de um abade.
Dom
Majolo de Caygni se indignou com a disposição do governador J. J. Seabra de pôr
abaixo o Mosteiro, distribuiu um Aviso ao Povo Baiano, mobilizou a população, e
forçou o recuo do governo.
Era
agosto de 1912.
Outras
igrejas foram ao chão na modernização conservadora de Seabra.
O
Mosteiro de São Bento, de pé até hoje.
O
Diabo me sussurra:
-
Vá ao ponto. Não ia falar de Jerônimo e Timóteo? Digressões atrapalham.
Tenho
de concordar, de novo.
Duplas,
na história, são comuns.
Lá
vou eu, na contramão da recomendação do Diabo.
Lembro
de Ulysses e Tancredo, diferentes e inseparáveis.
Ulysses,
conservador até 1964, quando chega a apoiar o golpe.
Depois,
um gigante na luta contra a ditadura.
Tancredo,
um democrata radicalizado até 1964, contra o golpe, ficou mais moderado durante
a ditadura, sem deixar de exercer papel essencial na luta contra ela.
Eram
complementares.
Assim
com Jerônimo e Timóteo.
Jerônimo,
cearense, chegou cedo ao Mosteiro de São Bento de Salvador, anos 30 do século
passado.
Formação
intelectual densa, domínio da fala e da escrita, firmou-se como professor,
palestrante e pregador.
Andou
muito pelo Nordeste:
-
Entrei em contato com o que há de mais doloroso e desumano - escreveu em 1949,
quando com 35 anos.
O
caminhante das vidas secas a partir daí passa a apontar a fome e a miséria como
males a serem duramente combatidos pelos católicos.
Soltava
o verbo.
Do
púlpito ou dos jornais.
Foi
articulista do "Jornal da Bahia".
Não
se escondia.
Tanto,
a ponto de enfrentar inquérito policial-militar em 1963.
Isso:
antes mesmo do golpe.
Consolidou
prestígio nas hostes progressistas.
E
raiva, nas fileiras conservadoras.
Mesmo
entre os beneditinos.
Em
1965...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Alcancei Dom
Timóteo, lembro bem dele, da guarida que dava aos movimentos populares, da
história contada no maravilhoso livro de Diogo Tavares, mas não alcancei, ou
pelo menos não recordo, Dom Jerônimo
Emiliano José: Mônica Bichara
Ele morreu em janeiro de 1978.
Mônica Bichara: Emiliano José
comecei a estagiar final de 79
Diogo Tavares: ??? Não
entendi quem, mas, para evitar confusão: Dom Timóteo faleceu 5h do dia 2 de
agosto de 1994. Eu por enquanto ainda estou vivo... rsrs... Obrigado pela
lembrança, Moniquinha.
Emiliano José: Diogo Tavares
dom Jerônimo, Diogo
Mônica Bichara: Diogo Tavares
kkkkkkk graças a Deus vc tá bem vivinho, amigo. Disse q de Dom Timóteo eu
lembro bem tanto pelas reportagens qto pelo seu livro maravilhoso sobre ele, q
guardo com muito carinho. Não alcancei foi Dom Jerônimo, citado por Emiliano
nesses capítulos da série
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(Dom Timóteo - foto Arestides Baptista - jornal A Tarde)
Emiliano José
29
de junho 2020
A conversão de
Timóteo
É,
o Diabo atenta, e a gente cede.
Tudo
isso é preliminar à minha primeira matéria no "Jornal da Bahia".
Conto
a relação de Jerônimo e Timóteo.
Dois
homens santos.
E
do mundo.
Colados
às dores das gentes.
Pregadores.
Profetas.
Dom
Jerônimo, quando ocorre o golpe de 1964, estava à esquerda de dom Timóteo.
Em
agosto de 1965, acontece a escolha do Abade do Mosteiro de São Bento.
Pelo
prestígio acumulado, por toda sua trajetória, dom Jerônimo seria o escolhido.
Deu
dom Timóteo.
Assumir
o mosteiro beneditino mais antigo das Américas exigia um perfil moderado,
conservador.
Moldado
a uma boa convivência com os poderes locais.
Dom
Jerônimo, já se viu, não tinha esse perfil
Os
militares o detestavam.
Dom
Timóteo não negava: chegou a torcer então pelos golpistas de 1964.
Quem
conviveu com ele depois, leva susto.
Já
havia avançado na compreensão da prioridade das comunidades mais pobres para a
fé cristã.
O
trabalho anterior ao lado de dom Helder Câmara contribuira para isso.
Mas,
não era um dom Jerônimo ainda.
Por
isso, foi o escolhido para dirigir o Mosteiro, derrotando dom Jerônimo.
Diminuía
as tensões com os grandes da Bahia conservadora.
Os
ventos do Concílio Vaticano II, no entanto, foram levando dom Timóteo para
posições progressistas.
Logo,
logo a atuação dele mudou.
Tomou
posições firmes contra a ditadura.
O
Mosteiro de São Bento tornou-se uma fortaleza na defesa dos perseguidos pelo
autoritarismo.
Ele,
serenamente, usava o poder e a autoridade de uma Abadia construída no coração
de Salvador para acolher,. abraçar, proteger muitos dos perseguidos pelo
autoritarismo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Graças, a
conversão de Dom Timóteo, uma figura que guardo na memória com muita admiração.
No dia do seu desencarne, fiz questão de dar o último adeus, agradecida pelo
contato como profissional naqueles tempos sombrios vivenciados pelo Brasil,
quando os perseguidos recebiam acolhida no Mosteiro. Obrigada, Emiliano José
por mais esclarecimentos sobre a nossa história.
Jose Jesus Barreto: nas
manifestações de rua de 68, abriu as portas do mosteiro dando guarida aos
estudantes perseguidos pelas tropas, o mosteiro foi invadido, mas, ao lado de
Dom Jerônimo e outros, Dom Timóteio encarou, protegeu, salvou muitos da
truculência policial.
Jose Jesus Barreto: eu estava, eu
vi.
Sarno Carlos: Promessas
Ao
Abade Dm Timotéo Amoroso Anastásio
prometi
que, como penitência,
por
não acreditar em Deus ,rezaria para ele todos os dias,
reza
de sorrisos, abraços, olhar distraído para o horizonte
que
se vê do alto do Mosteiro
onde
morto, ele contempla a Bahia de Todos os Santos.
Ao
Gey, Chico e Eduardo, companheiros da distante invasão
ao
Reino da Fantasia, prometi que, de lá, jamais retornaria.
Por
sorte, poucas promessas fiz
e
a única que não cumpri, foi a de pegar, de surpresa,
o
mágico pondo os coelhos brancos na cartola,
persisto
achando que o mistério,
o
não senso que emana das coisas e das pessoas,
deixa
a varanda mais fresca
enquanto
o sono chega para abrir as janelas.
Poema
publicado em Ebó, dedicado ao Abade, que me acolheu tantas vezes e com quem
aprendi a importância da compaixão e do mistério.
Emiliano José: Sarno Carlos
Maravilha
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Emiliano José
30
de junho 2020
Dom Jerônimo e
dom Timóteo: bússola e farol
A
trajetória de dom Timóteo Amoroso Anastácio é mais conhecida.
A de
dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, menos.
Ao
menos de meu conhecimento.
Quem
sabe, pesquisadores possam mergulhar nessa história e revelar sua riqueza.
Cearense,
recém entrado nos 20 anos, final dos anos 1930, estuda Teologia na Alemanha e
conclui o curso em Roma.
Em
1939, sacerdote.
Ao
Mosteiro de São Bento, chega em 1960.
Já
maduro, com mais de 40 anos, sustentará suas posições arrojadas, e não serão
poucas as provações enfrentadas por ele, sempre com firmeza e serenidade.
Morreu
em janeiro de 1978, menos de três anos depois de minha matéria no "Jornal
da Bahia".
Everaldo
de Jesus, ex-aluno, concluindo dissertação sobre dom Timóteo, sacou do colete
uma metáfora adequada para falar de dom Jerônimo e dom Timóteo.
Um,
bússola: dom Jerônimo.
O
outro, farol: dom Timóteo.
As
pesquisas deverão iluminar a "simbiose entre os dois, como bússola e farol
na vida dos baianos que enfrentaram a névoa e o mar revolto em meio a torturas,
dor e mortes", pra me valer das palavras de Jesus - o nosso Everaldo.
Pra
não passar batido, lembro: o trabalho de final de curso dele, sob minha
orientação, foi sobre dom Timóteo.
Apaixonou-se.
Logo,
logo conclui a dissertação sobre o próprio Timóteo, como já revelado.
Agora,
podemos passar à matéria do "Jornal da Bahia", de 23 de fevereiro de
1975, com dom Jerônimo.
Insista-se:
primeira matéria, estreia.
Chegava
da "Tribuna".
O
título: "Prior beneditino faz defesa do divórcio".
Não
creio fosse prior, mas autoridade era tanta a ponto de induzir ao equívoco.
Logo
no lead, o monge chuta a canela dos conservadores, afronta dogmas.
Revela-se
a favor do divórcio, do aborto e do controle da natalidade.
Quanto
ao divórcio, é incisivo, peremptório: "não tem sentido um casal viver
junto quando não mais se entende ou manter os vínculos só por uma imposição
formal da Igreja".
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Everaldo Salvador: Dom Jerônimo
sempre esteve à frente do seu tempo, razão pela qual foi perseguido por
clérigos conservadores e esteve na mira das Forças Armadas muito antes da
ditadura militar. De fato, um personagem a ser devidamente
pesquisado/biografado.
Isabel Santos: Amei a
metáfora de Everaldo. "Um, bússola: dom Jerônimo.
O
outro, farol: dom Timóteo". Também estou amando esses capítulos sobre os
dois beneditinos do #MemoriasJornalismoEmiliano. Mais informações/aprendizado.
Mônica Bichara: Verdade Isabel
Santos, uma verdadeira aula. E q aula
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Emiliano José
1
de julho 2020
Dom Jerônimo, o
subversivo
Um
casal viver sem amor?
Para
quê?
Era
a inquietante questão de dom Jerônimo, na entrevista do dia 22, no silêncio do
Mosteiro.
Pra
quê a Igreja fica a se debruçar sobre questões de ordem moral, apontando erros
nesse território?
Como
se dissesse "não tem mais o que fazer?".
Com
sua voz calma, pausada, dizia:
-
A Igreja devia era partir para graves e sérias denúncias sobre os grandes
pecados da humanidade.
-
Quais, dom Timóteo?
E
ele, sem se alterar:
-
O colonialismo, os trustes, as estruturas econômicas e sociais injustas
prevalecentes em inúmeras regiões do mundo.
Música
pros meus ouvidos.
Ouvir
o profeta expressando meu pensamento, eu um antiimperialista convicto - e
anticapitalista.
E
qual deve ser a proposta da Igreja?
Ele
não faz rodeios:
-
A Igreja deve lutar, usando o seu prestígio, que não é tão grande como o
propalado, para criar uma civilização na qual os direitos do homem sejam
efetivamente respeitados.
Saíra
da prisão havia seis meses, e ouvia aquilo.
Bom
demais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jovino Alberto Pereira: ... talvez só
um pouco o que Francisco está fazendo, com todas as dificuldades e pressões
contrárias do Sistema. Aquele outro Francisco, em quem o Papa se inspirou, teve
tais preocupações e levou essa mensagem, aliás, as viveu. Mudou o mundo? Bem,
não sei o quanto o mundo ao seu redor ele conseguiu mudar, não sou estudioso da
vida de São Francisco, o mundo, definitivamente, ele não mudou, mas, se tornou
Santo! O capitalismo adora Santos, é uma mensagem para os pobres do mundo, que
na vida eterna encontrarão o mundo sonhado por São Francisco.
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Emiliano José
2
de julho 2020
Dom Jerônimo, as
dores do povo
Não
é facil voltar no tempo.
Não
me recordo exatamente da sala onde foi realizada a entrevista com dom Jerônimo.
No
Mosteiro, sim.
Aquele
ambiente acolhedor, reflexivo, agradável.
Dom
Jerônimo era um intelectual, um dos capitães da Igreja, e uso o termo
recorrendo a Gramsci, cujos estudos sobre as estruturas eclesiásticas
iluminaram suas reflexões sobre a natureza da política em seu tempo.
Normalmente,
os sacerdotes são intelectuais.
Ele,
no entanto, era, não se tenha medo de dizer, um erudito.
Um
ávido leitor, licenciado em Teologia Dogmática pela Universidade Católica de
Munique e formado em Sociologia pela Universidade de Louvain, na Bélgica.
Desde
muito cedo, no entanto, logo sacerdote, resolveu calçar as sandálias de
andarilho, e conhecer a vida do povo, dos nordestinos especialmente.
Foi
sentir de perto as dores do povo.
O
flagelo da fome e da miséria.
Falei
da chegada dele ao Mosteiro de São Bento de Salvador em 1960.
Verdade.
Sua
convivência com o mosteiro, porém, vem desde os anos 30, com idas e vindas.
Na
entrevista publicada no dia 23 de fevereiro de 1975, no "Jornal da
Bahia", ele revela a existência, à época, de duas correntes teológicas a
respeito do matrimônio.
Uma,
a defender a imutabilidade absoluta.
Deixar
tudo como dantes no Quartel de Abrantes.
Outra,
liderada principalmente pelo Patriarca Elie Zoghbi, do Egito, a cobrar uma
reformulação da doutrina matrimonial, inclusive a respeito do chamado vínculo
indissolúvel.
Ele
constata:
-
A posição da Igreja em termos tradicionais, olha o problema apenas do ângulo
formal, extrínseco. Não percebe que a questão essencial é a do amor. Muitas
vezes, um casal se separa mas por conta de uma imposição o vínculo matrimonial
é mantido. Outras, o casal, embora não se amando, permanece junto.
E
pergunta:
-
Será que Deus quer ver um casal que não se entende, não se ama, como sinal de
sua graça invisível? É humano manter junto quem não se ama?
E
como dom Jerônimo assimilou a ideia do controle da natalidade, defendida então
por ele?
Explica.
Retorna
ao Brasil em 1942.
Seu
primeiro impulso era continuar dedicado aos estudos acadêmicos, para ele
apaixonantes.
Mas,
resolveu caminhar sertões nordestinos adentro, e...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Carmela Talento: Que bem que
faz relembrar figuras como D. Jerônimo
Jose Jesus Barreto: Dom Jerônimo
tinha formação acadêmica, literária e popular, vivências. Seu currículo era
verdadeiro. Rsrs
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Emiliano José
3
de julho 2020
Dom Jerônimo e o
planejamento familiar
Foi
o contato com a vida do povo nordestino a Estrada de Damasco de dom Jerônimo de
Sá Cavalcanti.
Já
se disse, mas não custa insistir: foram as andanças pelo sertão do Nordeste o
combustível para uma reflexão mais profunda sobre as condições de vida do povo
brasileiro.
Nesse
mergulhar por ásperas catingas, ele me dizia: "entrei em contato com o que
há de mais doloroso e desumano".
Em
1967, revelava na matéria, participa de um Seminário de Planejamento Familiar
no Chile.
Nasce
então a preocupação com o que ele chamava explosão demográfica.
Lembra
de Aldous Huxley, consagrado autor de "Admirável Mundo Novo", pra mim
uma revelação na juventude, pela sua capacidade quase profética.
Huxley
afirmava ser a explosão demográfica de efeitos superiores à bomba atômica.
Sabia,
dom Jerônimo sabia: o assunto era controvertido.
E
tinha posição crítica diante da posição essencialmente procriativista da
Igreja, já experimentando algumas modificações naquele momento.
Os
estudos de dois teólogos alemães, Dietrich von Hildebrand e Herbert Dous,
estariam abalando os dogmas a respeito do assunto.
A
visão matrimonial, então, do ponto de vista teológico moderno, daquele instante
histórico, dava mais ênfase ao amor.
Ao
menos, dom Jerônimo pensava assim, como revelava na matéria, não sei se fruto
de uma espécie de um pensamento desejoso dele, uma ilusão.
A
Igreja não muda assim, com facilidade.
É
lenta, como instituição, como todas as instituições, arrisco dizer.
Ele
chega a uma conclusão: ter os filhos que quiser e puder ter é um direito humano
fundamental.
Vai
adiante, duro:
-
Chega a ser ridículo discutir ainda o problema do controle da natalidade, já
que é um problema médico-social e não religioso. O que pode ser discutido são
os métodos a serem utilizados.
Ele
lançava um olhar mais amplo sobre o mundo, sobre a vida das pessoas, das mulheres
em especial, das mais pobres ainda mais.
Não
raciocinava como se estivesse confinado ao seu claustro.
O
silêncio do mosteiro, a paz ali dentro, não o afastava das dores da gente mais
pobre, desamparada, sem políticas públicas a protegê-las...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Esse
anglicismo, no texto, não cabe, please!
Jose Jesus Barreto: Wishful
thinking??? Quie'isso??? Dom Jerônimo?
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Completei, Barretinho: pensamento desejoso. Se complica, melhor tirar,
velha lição. Obrigado.
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
bjs. Viva dom Jerônimo!
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Feito. A gente sabe a quem chama de mestre.
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
bjs, acompanhando e gostando muito das lembranças e releituras. Sigamos. Tá
xibante, cumpade.
Isabel Santos: "O
silêncio do mosteiro, a paz ali dentro, não o afastava das dores da gente mais
pobre, desamparada, sem políticas públicas a protegê-las". Emiliano José,
assim agem os nobres de coração.
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Emiliano José
4
de julho 2020
Dom Jerônimo:
dois milhões de abortos anuais
Quais
as razões para a defesa do planejamento familiar?
Dom
Jerônimo de Sá Cavalcanti alinha duas, na matéria publicada pelo "Jornal
da Bahia", entrevista feita por mim no dia 22 de fevereiro de 1975,
publicada no dia 23, como vocês vêm acompanhando.
A
primeira, uma razão de humanidade.
Mais
de 200 mil pessoas - dizia o religioso - nascem diariamente no mundo.
E
daí?
Ele
responde:
-
Está provado que a humanidade não sabe como alimentar os recém-chegados.
Mas
há impactos diferentes, não? - vou indagando.
-
É exatamente nos países menos desenvolvidos, onde a fome é maior, que a
explosão demográfica é mais acentuada.
E
ele faz a crítica:
-
No mundo de hoje somente a Igreja Católica e as religiões orientais têm-se
colocado contra o controle da natalidade.
A
segunda razão é a existência de uma civilização de consumo, inteiramente
diferente das anteriores.
Ele
poderia dizer, e talvez quisesse dizer, civilização capitalista.
Indica
as grandes cidades como uma preocupação.
Nelas,
o problema populacional é grave, ampliado com a atração exercida por esses
grandes centros urbanos sobre o homem do campo.
Insiste
na tese: nessa sociedade, ter filho deve ser um ato de liberdade do casal.
Surpreendeu-se,
ficou estarrecido quando tomou conhecimento, a partir de dados da Sociedade do
Bem-Estar Familiar (Benfam), da realização de quase dois milhões de abortos
anualmente no Brasil.
Elogia
a Benfam por defender a necessidade de combater o aborto indiscriminado,
procurando educar as pessoas para o planejamento familiar "ensinando e
aplicando os métodos científicos anticoncepcionais mais modernos".
Cheguei
a fazer questionamentos sobre a Benfam, sobre seus objetivos, sobre ajuda
norte-americana.
Ele
não vacilou:
-
A entidade recebe ajuda de entidades estrangeiras, especialmente da
International Planned Parenthood Federation (ITTF), de capital predominante
americano. A ela estão agregados mais de 100 países, inclusive vários da
chamada Cortina de Ferro.
As
acusações à Benfam...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de julho 2020
Dom Jerônimo:
uma civilização voltada para o lucro
Educação
- a palavra chave para dom Jerônimo de Sá Cavalcanti.
Só
ela podia levar as mulheres a ter filhos com responsabilidade.
Dar-lhes
consciência do planejamento familiar.
Nenhum
país conseguiu, por meios violentos, impedir a explosão demográfica.
E
até aquele momento a educação era sonegada a milhões de pessoas em todo o
mundo.
Não
simplifica o aborto.
Envolve
problemas graves.
Qual
o momento exato do início da vida humana?
-
Ciência e religião não responderam a isso de maneira completa. Existem decretos
da Igreja dizendo que é no momento da fecundação. A Organização Mundial da
Saúde, por seu turno, diz que é quando o óvulo fecundado se fixa no útero
feminino - mas estamos apenas diante de hipóteses.
E
então? - pergunto.
-
Por isso, é estranho que se tome uma posição radical contra o aborto. Existem
razões e motivos graves que justificam a interrupção da gravidez.
Ao
defender o controle da natalidade - hoje, à distância, penso seria melhor falar
em planejamento familiar, a que ele também se refere -, ao tomar essa posição o
faz "defendendo um dos aspectos da liberdade humana".
Não
está se referindo ao conjunto de problemas que circundam a explosão
demográfica, que a afetam, "causado por estruturas econômicas e sociais
injustas".
Admitiu
sentir-se às vezes como instrumento nas mãos de grandes interesses, mas de
qualquer maneira considerava positivo despertar o Brasil para o problema
populacional.
Tento
entender seu desconforto, peço que vá adiante:
-
É claro que a minha discordância é mais de fundo. Não concordo com o sistema e
a civilização em que vivemos, absolutamente desumana, que não coloca o homem no
centro de suas preocupações, mas o lucro.
Volta
a bater na tecla do papel da Igreja.
Para
ele, ela deveria bater-se por uma civilização mais humana.
_
Uma civilização que respeitasse os direitos fundamentais, entre os quais eu
citaria o da liberdade, não só de pensar, mas de escolher a sua vocação, os
seus governantes, e poder viver condignamente.
Ele
não contemporiza com a Igreja:
-
Enquanto...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de julho 2020
Dom Jerônimo e o
amor
Convivi
com muitos cristãos católicos.
A
maioria, progressistas.
Lembro-me
de Renzo Rossi, sobre quem escrevi biografia.
Amava
sua Igreja, mas não desconhecia seus erros.
Se
alguém a criticava, ele, parafraseando os mais jovens, dizia mais ou menos o
seguinte: sabe nada inocente, tem muito mais.
Assim,
dom Jerônimo.
Não
alisava a instituição a que pertencia.
Sabia
a necessidade de acicatá-la, a modo de fazê-la avançar.
A
Igreja, pensava, devia olhar para o mundo, para além de seus espessos muros, de
seus claustros, da paz idílica de seus conventos.
Como
um brado, me disse naquela entrevista publicada no dia 23 de fevereiro de 1975
no "Jornal da Bahia":
-
Enquanto as injustiças acontecem a cada minuto, a Igreja continua preocupada -
e com muita veemência - com os erros de ordem moral.
Respeitosamente,
eu observei:
-
Dom Jerônimo, esse conjunto de ideias defendidas pelo senhor contraria uma
série de dogmas da Igreja.
Ele,
serenamente, refletiu por alguns segundos, e reagiu com a sabedoria dos grandes
teólogos:
-
O dogma é uma verdade, e o maior dogma do cristinianismo é o amor.
No
amor, prosseguiu, se baseiam todos os demais princípios da Igreja:
-
Durante muitos séculos, a Igreja recebeu influências de toda ordem: da
filosofia grega, da política romana, da Renascença - e hoje reage contra as
influências de nossa época "porque contrariam a sua linha tradicional de
pensamento".
Como
um profeta, como quem não teme o espírito conservador e cruel dos fariseus, ele
ensina, como se falasse do alto da montanha, aos fiéis e não fiéis.
-
A verdade, o dogma, tem que ser analisado sempre dentro do contexrto
sócio-econômico-cultural em que se vive. Não se transmite através de uma
fórmula conciliar. Exige sempre uma confrontação com a realidade. A Igreja
precisa hoje ter a humildade de aceitar a sua posição de simples auxiliar da
humanidade, acabar com a mentalidade paternalista.
Dessa
entrevista, saí com a alma lavada.
Encontrara
não apenas um cristão.
Mas
um sábio, cujos conhecimentos contemplavam toda a humanidade, os do seu credo,
e os demais,
O
amor nele era a base da fé.
De
tudo.
Queria
mudar o mundo, e o fundamento de sua luta para transformar a terra numa festa
de trabalho e pão, era o amor.
Para
ele, simples assim.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Que amor.
Emocionada.
Ana Maria Muller: comovente o
seu texto. nos remete ao tempo em que lutávamos para transformar a terra numa
festa de trabalho, pão e amor. Viva você.
Emiliano José: Ana Maria
Muller Beijo
Carmela Talento: Que coisa boa
ler esses textos nessa quarentena, viu Emiliano José. A gente vai lendo e
lembrando. Mosteiro de São Bento de muitos religiosos extraordinários, e de
entrevistas marcantes. Lembrei de Dom Mariano, que paz ele transmitia !
Emiliano José: Carmela
Talento Beleza, Talento
Jovino Alberto Pereira: "... e o
maior dogma do cristianismo é o amor..." - isso diz tudo! Nada mais é
preciso dizer... mas, Padre Lancelotti também disse recentemente num encontro
ao vivo que por amor também se erra... está confirmado, não somos perfeitos,
nem a igreja.
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Emiliano José
7
de julho 2020
Dom Jerônimo e a
reação conservadora
A
repercussão da entrevista de dom Jerônimo de Sá Cavalcanti não foi pequena.
Pela
direita e pela esquerda, se for correto pensar nesses termos.
Pelos
conservadores e progressistas, se preferirmos outro caminho, quem sabe mais
próprio, se falamos de dogmas religiosos.
A
suíte - assim a gente chamava a repercussão de matérias no jargão jornalístico
- foi publicada no dia 25 de fevereiro de 1975, dois dias após a entrevista.
Fiquei
encafifado com isso.
Por
que razão não foi publicada no dia seguinte?
Dia
24 de fevereiro era segunda-feira.
E
o "Jornal da Bahia", até aquele momento, não saía na segunda.
Recuperei
essa informação com Oldack Miranda.
Mais
tarde, ele próprio, editor da edição de segunda-feira, cujo início, nas
lembranças dele, se daria com a chegada de novo editor, Roberto Quintais, em
1977, vindo do Rio de Janeiro, de curta permanência, derrubado por uma greve,
já contada nessa série.
A
reação conservadora veio primeiro do jesuíta Pedro Dale Nogare, professor de
Filosofia e Ética da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade
Católica de Salvador:
-
O divórcio é contra a lei natural e contra o Evangelho - dirá, na entrevista
dada a mim.
O
jesuíta segue um caminho dogmático, sólido, rigoroso:
-
A indissolubilidade do matrimônio é um imperativo da lei natural. A família
está destinada a unir duas pessoas com amor total, para a procriação. Não pode
haver amor total e educação correta dos filhos sem a indissolubilidade.
-
Mas, isso está no Evangelho? - pergunto.
E
ele, de pronto:
-
A segunda razão é que o divórcio vai contra o Evangelho - "o que Deus
uniu, o homem não separe". A Igreja, neste momento histórico, não admite
essa discussão por esses dois motivos.
Um
ponto final.
Um
sentença dos conservadores, ainda muito fortes naquele momento.
A
Igreja Católica vivia uma conjuntura de firmeza no combate à ditadura,
sobretudo depois de 1970, arrependendo-se do apoio dado ao golpe de 1964, e
colocando-se como uma retaguarda essencial aos perseguidos políticos.
Aí,
progressista.
Indiscutivelmente.
No
entanto, quanto aos dogmas, quanto aos aspectos morais, não experimentava
mudanças, ao menos de parte de seus principais Príncipes, bispos e cardeais.
O
divórcio, um dos aspectos imexíveis.
Para
ser justo, mesmo entre os progressistas, esse respeito aos dogmas era presente.
Me
recordo de Renzo, com toda sua ousadia progressista, e conservador quanto aos
dogmas.
O
jesuíta Pedro Dale Nogare considera necessário perguntar se há casos em que a
lei pode admitir o divórcio...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Mexer nos
dogmas ainda é algo complexo, imagine naquela época. Pouco importando a quem
atingir, principalmente se fosse a considerada minoria.
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Emiliano José
8
de julho 2020
A César o que é
de César, a Deus o que é de Deus
Há
casos em que a lei pode admitir o divórcio.
Casos.
Nunca
aceitar o divórcio de maneira generalizada.
Esta,
a opinião do professor de Filosofia da UFBA e da Ucsal, Pedro Dalle Nogare,
expressa na matéria publicada pelo "Jornal da Bahia" de 25 de
fevereiro de 1975.
Além
disso, Nogare acredita ser necessário fazer uma distinção entre "o
divórcio para os católicos coerentes de um lado, e de outro lado, para os que
não aceitam a doutrina católica".
Para
os ligados à Igreja de maneira autêntica, de acordo com a convicção dele,
"não há o que discutir":
-
O problema existe apenas para os desvinculados.
Fiéis,
fiéis.
Infiéis,
infiéis.
O
diretor do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, Guilherme de Souza Castro,
vê as coisas de modo bem diverso:
-
O divórcio é um passo a mais na direção do reconhecimento da igualdade entre os
sexos.
A
preocupação de Castro é a mulher:
-
Quando um tipo de economia impunha uma divisão de atribuições sociais baseada
na diferença dos sexos, a mulher, por suas características biológicas, foi
levada a desempenhar um papel dentro dessa sociedade que lhe atribuía direitos
e deveres marcadamente diferenciados em relação ao homem.
Em
algum momento da história isso se justificou? - pergunto.
-
Se isso foi necessário e benéfico até um certo estágio do desenvolvimento da
humanidade, hoje não há mais porque manter-se essa gradação de direitos e deveres
entre os dois sexos, uma vez que basicamente o homem e a mulher são igualmente
dotados para o desempenho de sua atividade social.
Conclui:
-
O divórcio é um passo a mais para se alcançar a igualdade entre os sexos.
Não,
ele não considera um assunto prioritário diante dos demais problemas da
sociedade moderna.
Mas,
acha oportuno o surgimento do debate, especialmente no momento em que se
comemorava o Ano Internacional da Mulher:
-Teoricamente,
tanto o homem como a mulher estão sujeitos à mesma condição legal com relação
ao vínculo matrimonial. Sociologicamente, entretanto, devido ao tipo de
estrutura social do Brasil, onde o homem é cumulado de direitos que a mulher
não tem, esta tem permanecido em desvantagem quando o casamento sofre uma
ruptura.
O
promotor Moacir Alfredo Guimarães é radical:
-
A Igreja não deve se meter nessa questão.
Religião
é religião.
O
jurídico, jurídico.
A
César o que é de César.
A
Deus o que é de Deus...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de julho 2020
Divórcio para os
pobres, de menos.
O
contrato de casamento, como todo contrato, deve conter condições de ser
rescindido.
É
essa a opinião manifestada pelo promotor Moacir Alfredo Guimarães, publicada na
matéria de 25 de fevereiro de 1975 do "Jornal da Bahia".
É
parte da, repercussão da entrevista-bomba de dom Jerônimo de Sá Cavalcanti,
prior do Mosteiro de São Bento, publicada pelo mesmo jornal no dia 23 de
fevereiro, sobre o divórcio e as questões suscitadas por ele.
Havia
manifestado dúvidas fosse ele prior.
Era.
Guimarães
acrescenta: o divórcio só não existe juridicamente. Considera o desquite uma
grande mentira, "mantida na sociedade atual apenas para a defesa de
preconceitos já ultrapassados". Não acredita venha a instituição do
divórcio abalar a família.
As
opiniões de uma assistente social toca o dedo na ferida: a maioria, as classes
mais pobres, e falamos mais ainda da situação das mulheres, nem se casa.
Nessas
camadas sociais, os casamentos são raros. Muitas mulheres têm vários filhos de
pais diferentes.
A
assistente social dizia: a adoção do divórcio não terá qualquer efeito para as
classes de baixa renda.
Além
de tudo, na opinião dela, entre as mulheres mais pobres, e a análise dela se
concentra no universo feminino, não vigora a mesma moral das camadas médias.
Não
há, entre as mulheres mais pobres, o estigma prevalecente para as das camadas
médias quando separadas.
A
estrutura moral é bem menos rígida.
Mas,
a repercussão não se resumiu a isso.
Foi
muito mais ampla.
E
só fui perceber agora essa dimensão, tanto tempo passado.
Já
disse: dom Jerônimo é uma figura a reclamar atenção bem maior, e tenho
convicção de que tal reclamação será atendida.
O
pouco elaborado em torno dele indica dois grandes momentos relativos às divergências
no interior da Igreja, desprezando os outros aspectos.
O
primeiro, em março de 1964, antes mesmo da eclosão do golpe, no final desse
mês, início de abril.
Ele
escrevia regularmente no "Jornal da Bahia".
Fui
descobrir isso agora.
Foi
aconselhado por sua instituição a...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano
José
10
de julho 2020
As tensões de
dom Jerônimo
Falava
de dois momentos tensos de dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, divergências dele com
a Igreja, incluindo com a Ordem Beneditina, a mais antiga ordem de clausura
monástica da Igreja Católica, surgida em 529.
Tais
lembranças estão no contexto da repercussão da entrevista feita por mim,
publicado no dia 23 de fevereiro de 1975, no "Jornal da Bahia" e
também de outra, decorrente da primeira, do dia 25 de fevereiro do mesmo ano,
onde algumas fontes discutem as opiniões de dom Jerônimo a favor do divórcio.
Essa
rememoração me levou a dialogar com Everaldo de Jesus, ex-aluno, e hoje
debruçado sobre a trajetória de dom Timóteo
Amoroso
Anastácio, e de raspão, também, sobre a história de dom Jerônimo.
Os
dois momentos me foram revelados por ele, a partir de suas pesquisas.
A
primeira tensão ocorreu em março de 1964, um pouco antes do golpe.
Dom
Jerônimo era colaborador regular do "Jornal da Bahia", considerado
pela Igreja uma publicação comunista.
Foi
aconselhado a ter mais reserva em relação à imprensa.
E
por ordem superior, proibido de continuar colaborando com o "Jornal da
Bahia",
Face
às suas opiniões, distantes do pensamento hegemônico dos beneditinos e de toda
a Igrejas naquele momento histórico, cogitou-se de seu afastamento da própria
Ordem.
Quanto
ao afastamento, o arquiabade, dom Plácido, não acolheu.
Dom
Jerônimo estava em Fortaleza quando ocorreu essa movimentação.
Participava
de um encontro da Juventude Universitária Católica (JUC), juntamente com 20
sacerdotes e mais de 80 estudantes discutindo os problemas sociais e políticos
do Brasil e do Nordeste.
Recebeu
a carta do arquiabade, manifestou sua indignação.
Atribuiu
as denúncias a "ressentimentos" de seus irmãos de sacerdócio.
Somente
tais ressentimentos, na opinião dele, podiam enxergar "nas minhas palavras
alguma formulação errônea que eles propositadamente amputam do seu
contexto".
A
denúncia contra ele só tinha um objetivo: calar a sua voz.
E
a de tantos outros, empenhados num cristianismo "autêntico e sadio".
O
segundo momento de tensão ocorre quando da publicação de minha entrevista com
ele, 23 de fevereiro de 1975.
A
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Everaldo Salvador: Dom Jerônimo
respondeu a processo aberto por militares em 1963. Em um artigo, ele escreveu
que o Brasil precisava viver uma "revolução social". Foi acusado de
insuflar uma revolução comunista.
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Emiliano José
11
de julho 2020
A crucificação
de padre Antonio Henrique
A
segunda tensão de dom Jerônimo de Sá Cavalcanti - tensão rima com tentação, mas
não é - foi provocada pela minha matéria, a de 23 de fevereiro de 1975.
Disso,
não sabia.
Everaldo
de Jesus, cavuca e cavuca, descobriu o tamanho da repercussão da matéria.
A
Igreja entrou em polvorosa.
Volto
à discussão sobre a milenar instituição.
É
um olhar a posteriori.
Já
disse: a Igreja só entrou na luta contra a ditadura pra valer a partir de 1970.
Relembro,
porque necessário.
Houve
um estopim: no Recife, os terroristas da ditadura sequestraram, torturaram,
castraram, mataram o padre Antonio Henrique Pereira Neto.
Dia
27 de maio de 1969.
Era
assessor de dom Hélder Câmara.
Bateram
na cangalha pro burro entender.
Não
podiam matar dom Hélder, resolveram barbarizar o seu principal assessor.
Mexeram
com um, mexeram com todos.
Crucificaram
um dos seus.
Depois
disso, especialmente a partir de 1970, a Igreja, cuja CNBB passou a contar com
uma equipe de bispos jamais vista por seu compromisso evangélico e
progressista, foi até o fim na luta contra a ditadura.
Até
vê-la ao chão.
Agora,
como já dito: a questão dos princípios morais era outra coisa.
Na
moral, outro território.
E
o divórcio, por dogmático, nada de mexer.
Dom
Jerônimo foi cutucar ninho de vespas.
Em
março de 1975, menos de um mês após a entrevista, a CNBB faz reunião
extraordinária de sua Comissão Representativa em Brasília para tratar
especificamente do assunto.
Em
seguida, publica documento definidor da posição da Igreja face ao divórcio.
"Em
favor da família", o título.
Um
clara resposta a dom Jerônimo.
A
destacar aqui a dimensão do beneditino, seu peso, a importância da sua palavra.
O
verbo e sua força, a depender de onde venha.
Vinha
de um profeta - perigoso profeta.
Mas,
as consequências não ficaram nisso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Everaldo Salvador :A CNBB
reafirmou os dogmas do casamento indissolúvel e contra o aborto. Isso era
previsível. O que mexeu com o brio de D. Jerônimo foi o apoio da Ordem
beneditina à nota da CNBB. Por causa disso, D. Jerônimo renunciou ao cargo de
Prior e viveu os últimos anos de vida quase recluso.
Emiliano José: Everaldo
Salvador Obrigado, meu velho
Ismine Lima: Saudades de
vc. Vc tem dois perfis. Qual é o usado?
Emiliano José: Ismine Lima
Com Fidel
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Emiliano
José
12
de julho 2020
Dom Jerônimo de
Sá Cavalcanti: o profeta ganha asas
O
documento "Em favor da família", da CNBB, não foi a maior dor.
Viria
maior.
A
inundar a alma de dom Jerônimo.
Para
ele, a posição da CNBB era quase natural.
Como
já se insistiu: no campo da política, na luta contra a ditadura, a CNBB tinha
um lado, e era o dos perseguidos políticos, a favor do fim daquele de regime de
terror e morte.
No
campo da moral, tudo continuava como dantes no Quartel de Abrantes.
Então,
nada de novo.
Esperava,
no entanto, alguma solidariedade de sua milenar instituição face às suas
opiniões a favor do divórcio, manifestadas na entrevista dada a mim, publicada
no dia 23 de fevereiro de 1975, no "Jornal da Bahia".
Nada.
Logo
no início do mês de abril, dom Jerônimo renuncia ao cargo de prior de modo
irrevogável "invocando razões de consciência, na plenitude da sua
liberdade", como afirmava.
Era
generoso na despedida.
Fazia
isso "a fim de contribuir para um clima de diálogo, compreensão e
confiança mútua entre os irmãos dos vários mosteiros".
Como
se desse a outra face.
O
calvário dele não cessava aí.
Nos
dias 8 e 9 de abril, o Capítulo Geral dos Beneditinos no Brasil reúne-se no
Mosteiro do Rio de Janeiro, e solenemente declara:
"Quanto
ao divórcio, a Congregação Beneditina segue a linha da CNBB".
Além
de queda, coice.
O
apoio da Ordem Beneditina à nota da CNBB foi um golpe profundo em sua alma.
Seguiu
pregando, defendendo suas ideias, não com a intensidade de antes.
O
quanto pudesse, recluso.
Morre
no dia 25 de janeiro de 1978, aos 64 anos, 44 de vida religiosa, 36 de
sacerdócio, existência dedicada à humanidade, menos de três anos após a matéria
do "Jornal da Bahia".
Enterrado
no próprio Mosteiro de São Bento de Salvador, saudado na partida por dom
Timóteo Amoroso Anastácio, septuagésimo sétimo abade do mosteiro.
O
profeta ganha asas.
Torna-se
eterno.
Deixa
sementes.
Raízes.
Jamais
esquecidas.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de julho 2020
Axé, dom
Jerônimo e dom Timóteo
Chego
ao fim da matéria sobre dom Jerônimo.
A
gente demora pra situar o contexto de um acontecimento.
E
aquela entrevista foi um acontecimento.
De
repercussões superiores, muito superiores ao meu conhecimento de então.
Já
evidenciei isso.
Confesso
uma certa nostalgia em relação aos dois.
Dom
Jerônimo e dom Timóteo.
Uma
terna lembrança.
Não
sou religioso.
Fora
cristão devotado até os 21, 22 anos.
Depois,
a senda revolucionária me levou a outra concepção de mundo.
Agora,
é curioso como me aproximei de figuras religiosas da Bahia.
De
presbiterianos, como Celso Dourado.
Como
o pastor Djalma, batista, cuja partida ocorreu esses dias.
De
muita gente do candomblé.
Figuras
adoráveis.
Rei
França, do candomblé da Mata Escura.
Jaime
Sodré, do Bogum.
Sinha,
da Casa Branca, mais recentemente Isaura, também da Casa Branca, e neste
momento estou lendo o livraço de Renato da Silveira sobre o terreiro mais
antigo do Brasil, a própria Casa Branca.
Makota
Valdina, mestra da Bahia.
Tantas,
tantos, peço desculpas a quem não cito, e devo pedir a bênção a todas e todos,
pelo imenso respeito a essa religião cuja capacidade de acolhimento é infinita,
cuja humanidade é indiscutível.
E
mantive também uma relação intensa com cristãos da Igreja Católica.
O
jesuíta Cláudio Perani.
O
terno e eterno padre Renzo.
O
querido padre Paulo Tonucci.
O
amigo padre Sérgio Merlini.
O
tão solidário padre José Carlos.
Ao
leigo, amigo Joviniano de Carvalho Neto.
E
a dupla dom Jerônimo e dom Timóteo.
Confesso:
fui conhecer melhor dom Jerônimo agora, pesquisando sobre a repercussão em
torno da entrevista feita naquele longínquo 1975, 45 anos depois.
Tinha
uma admiração incontida por dom Timóteo, cuja coragem, desassombro em relação à
ditadura me impressionou sempre.
Não
atinava com a rica história de dom Jerônimo, sempre a enfrentar moinhos de
vento, um Quixote a defrontar com monstros muito reais, dos quais nunca fugiu,
com quem terçou armas até o fim da vida.
Morreu
cedo.
Eu
havia saído da prisão pouco tempo antes.
Não
tive chance de conviver com ele, desfrutar suficientemente de sua sabedoria.
Passado
tanto tempo, junto os dois nas minhas recordações, e vejo quanto foram fiéis
aos melhores valores do cristianismo.
Religiões
podem fazer bem.
E
podem fazer mal.
A
eles, fez muito bem.
Fizeram
da vida um ato de amor.
De
conversão permanente.
Sempre
de braços dados com os perseguidos, com os mais pobres.
Lição
para todos nós.
Bendita
matéria, a de fevereiro de 1975, a me permitir esse reencontro.
Axé.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Aurelio Miguel: E os bispos de
Paulo Afonso , Emiliano .
Emiliano José: Aurelio Miguel
tem muito mais gente. De Paulo Afonso, de Juazeiro. Tem razão.
Jose Jesus Barreto: Belo, Emiliano!
Pra enriquecer mais: Dom Timóteo tocava violão, gostava de andar bem cedo, pés
no chão, na praia. Às vezes no Porto da Barra. O vi, algumas vezes, em dias de
festa de Orixás no barracão do Axé Opo Afonja', sentado numa cadeira ao lado da
Yá Mãe Stella. Ele era feito, filho de Omolu. Pouca gente sabia de suas
incursões pelos terreiros, o Afonja' e a Casa Branca. Uma figura ímpar, de uma
energia e uma espiritualidade fora do comum. Salve!
Carlos Rizério: Salve!!!
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Emiliano
José
14
de julho 2020
Atracação de
navio, parto de onça, hospital de loucos
Seguir
adiante.
A
primeira matéria, com aquela repercussão, acostuma a gente mal.
Claro,
não tive a sensação de hoje.
Fazendo
pesquisa, localizei uma repercussão muito maior da percebida à época.
Não
sabia do penar de dom Jerônimo em consequência dela.
Um
duro penar.
Já
falei disso tudo.
O risco
é acreditar sempre em bola redonda.
Na
vida e no futebol nunca é assim.
Tem
de saber lidar com bola quadrada também.
Único
jeito de aprender a jogar.
Vivendo
e aprendendo a jogar.
Na
editoria geral, vem de tudo.
E
tem uma coisa: disse a Mônica Bichara, hoje minha editora, da preferência nessa
série, correndo já há mais de ano, por contar histórias dos meus
contemporâneos, menos as minhas.
Mas,
falei apenas da primeira matéria, tenho de falar de mais algumas, e depois
chamar novos protagonistas.
Césio
Oliveira me jogou pelos peitos matéria sobre modificações no trânsito, feitas
pela Prefeitura.
Fim
de alguns terminais, entre eles o da Barroquinha, onde se localizava a sede do
"Jornal da Bahia".
Houve
reboliço, técnicos do Detran, como Hernani Santos e Armando Branco, dizendo dos
erros, sobretudo pelo fato de tais decisões não se localizarem numa concepção
mais ampla, a olhar a cidade como um todo - matéria publicada no dia 26 de
fevereiro de 1975.
No
primeiro dia de março, outra matéria sobre trânsito - pretensão de Césio
Oliveira talvez fosse o de me especializar no assunto. Empresários gritando
contra os anéis circulares propostos pela Prefeitura. Iriam substituir os
terminais.
Nesse
mesmo dia, outra matéria minha: o governo do Estado queria muito indústrias de
celulose, mas longe de Salvador. Poderiam prejudicar o patrimônio paisagístico,
o meio ambiente e os recursos hídricos. Ficassem longe da capital.
A
editoria Geral tem dessas coisas: você faz de atracação de navio a parto de
onça, de mosteiros a hospícios, e à época os hospícios existiam.
Trânsito
e fábricas de celulose.
Césio
Oliveira resolveu me dar outra pauta explosiva: ir atrás da realidade
massacrante do Hospital "Juliano Moreira".
Não
tenho guardado o original da primeira reportagem:
"Juliano
Moreira, o depósito de loucos".
Nem
a data exata.
É
do início de março.
Mas,
a repercussão foi grande.
E
aí guardo o original, a suite como chamamos no jargão jornalístico, matéria
publicada no dia 11 de março de 1975, manchete da página 3:
"Hospital
de loucos é Horror e Miséria".
Por
ela, sabe-se do tratamento brutal, desumano, dispensado aos loucos, às pessoas
com transtorno mental.
Mas,
calma: conto amanhã...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Julio Cezar Rocha: Rapaz e aja
história
Mônica Bichara: Esse título de
"minha editora" é uma honra
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Emiliano
José
15
de julho 2020
"Juliano
Moreira": loucura maltratada
Eu
me recordo bem da matéria "Juliano Moreira: o Depósito de Loucos".
Foi
no início de março, ali quem sabe pelo dia 9, 10.
Não,
não posso dar detalhes do texto.
O
original não está aqui nos meus arquivos.
Era
minha vigilante irmã, Picida, a recolher minhas matérias e arquivá-las.
Por
alguma razão, essa escapou.
Recordo
porque, primeiro, inovei e tasquei uma espécie de epígrafe na matéria,
recorrendo a Antonin Artaud, cuja vida foi marcada por longa passagem em
manicômios franceses.
Segundo,
porque entreguei a matéria e logo depois vejo uma jovem, saída da baia do
copidesque, perguntar quem era Emiliano.
Creio
em algum momento já ter contado o episódio.
Não
faz mal.
O
que abunda não vicia.
Era
Mara Campos, a moça.
Tremi,
mas me apresentei, e ela de pronto disse:
-
Ótima reportagem.
Claro,
aquilo, para quem estava começando no jornal, vindo de integrante da equipe
rigorosa de copidesques, foi alentador.
E
logo veio a suíte, a repercussão da matéria, feita por mim:
"Hospital
de Loucos é Horror e Miséria".
O
jornal não alisou.
A
abertura já caía matando: "nem mesmo os mais antigos jornalistas da Bahia
se recordam de algum dia o Hospital "Juliano Moreira" ter sido aberto
à visitação da imprensa".
Era
instituição de muros indevassáveis, de recusas constantes das autoridades em
permitir entrada de jornalistas em suas dependências.
Tanto
o mistério, e as lendas e as verdades se entrelaçavam, difícil distingui-las,
saber onde se iniciava a lenda, onde se ancorava a verdade.
Ouvia-se
de tudo.
Um
cemitério interno.
O
chá da meia-noite, dado pelos médicos mais antigos aos pacientes para
acalmá-los.
Castigos
brutais sofridos pelos loucos, pessoas com transtornos mentais.
Minha
matéria levou a direção do hospital a abrir as portas da instituição.
De
cara, logo depois da abertura, hoje chamaríamos superlead, eu entrava rasgando.
"O
"Juliano Moreira", com os seus 700 doentes, apresenta um aspecto
desolador, longe daquilo que se imaginaria próximo ao ideal de uma casa de
saúde".
E
lia o rosário: instalações precaríssimas, pavilhões absolutamente inadequados,
os loucos vivendo aos farrapos, pedindo esmolas e cigarros a quem por ali
transitasse, os sanitários em petição de miséria, exalando um mau-cheiro
insuportável, ratos transitando com desenvoltura à luz do dia, percevejos
importunando os pacientes, e cachorros passeando pelo pátio.
O
diretor José Raimundo Caribé de Araújo Pinho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de julho 2030
Papel higiênico
para as convulsões no eletrochoque
"Hospital
de loucos é horror e miséria".
Título
da repercussão de matéria anterior, escrita por mim, sobre o Hospital
"Juliano Moreira", publicada em 11 de março de 1975, reportagem
também de minha lavra.
O
diretor, José Raimundo Caribé de Araújo Pinho, admitia as deficiências do
hospital.
Como
não admiti-las, diante de tantas evidências?
Curioso,
atribuía tais deficiências mais "ao peso da tradição da instituição do que
às insuficiências materiais".
Penso
hoje, e tento entender.
Mas,
melhor ouvi-lo para evitar um raciocínio anacrônico:
-
As condições centenárias da instituição pesam sobre a atualidade. Há cem anos
que o hospital recolhe doentes de todo o Estado no sentido de separá-los da
família e da sociedade.
As
precárias condições dos pavilhões não se constituíam, na opinião dele, em
empecilhos para o trabalho realizado, não obstante reconhecesse falhas.
Reconhecia:
havia muitos pacientes abrigados no hospital muito mais por problemas sociais
do que propriamente por transtornos mentais - o que, por si, constitui um
absurdo, mas isso é dito hoje, passado tanto tempo.
Reconhecia,
não havia como esconder, a aplicação do eletrochoque, e por métodos
evidentemente arcaicos.
Explica-se:
-
Seria mais confortável se utilizássemos anestesia e "curare",
substância que impede a ocorrência das contrações.
Seria.
Mas
nada disso era feito.
Saía
pela tangente:
-
Procuramos assegurar todos os outros requisitos adequados à aplicação do
eletro-choque.
Quais,
doutor Caribé - pergunto.
-
As mandíbulas do paciente são protegidas.
De
que modo? - indago.
-
Com chumaço de gaze ou papel higiênico.
Surpresa
do repórter com o papel higiênico.
E
o diretor reage:
-
Por que não?
Explica
mais:
-
O paciente fica deitado num leito apropriado, com lastro de madeira. E a
proteção da crise convulsiva é feita pelo funcionário encarregado.
Vou
além: mas deve haver pacientes indignados com esse tratamento.
O
diretor explica:
-
A reação violenta dos doentes que porventura se recusam a se submeter ao choque
é controlada por sedativos.
Reflito
hoje, certamente pensei à época: isso é tortura, sem tirar nem pôr.
Sei
o que é o choque.
Soube
na tortura.
Há
médicos, alguns amigos até, a justificar a aplicação dessa terapia, não sei se
devo chamá-la assim.
Nunca
me convenci.
É
tortura.
Nada
justifica tal tratamento.
Andei
pelo pátio no período da tarde...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: De perto, a
crueza da realidade.
Mônica Bichara: Lembro de uma
matéria que fiz tb sobre o Juliano Moreira, visita de comissão de deputados e
imprensa para apurar denúncias. Uma Paciente colou em mim e me seguiu a isita
inteira, alisando meus cabelos. Depois uma subiu em uma pilastra, ameaçando se
jogar, completamente nua, para chamar atenção da comitiva e denunciar a falta
de estrutura.
Alvaro Figueiredo: triste
realidade de um povo sem País
Mônica Bichara: E vários
pacientes vagando completamente pelados, alheios a tudo que acontecia em volta
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Emiliano José
18
de julho 2020
Olhos no
infinito, normal, anormal, loucura, sanidade
Andar
por um território como o do Hospital "Juliano Moreira" não é tão
simples.
E
eu andei naquele 10 de março de 1975, uma segunda-feira.
Você
depara com seus iguais, seres humanos, é verdade.
Mas,
com diferentes.
Eles
o olham como se não o enxergassem.
Ou
seremos nós a não enxergarmos a humanidade deles, dos diferentes?
O
normal e o anormal se confrontam.
Seja
o que for isso.
Lembro
de "O alienista", de Machado de Assis, lido há não sei quantos anos,
no ginásio.
Quem
é louco?
Quem
é normal?
Reflexões.
Passado
tanto tempo, né?
Andava
acompanhado pelo diretor, doutor Caribé.
Havia
olhado com atenção a sala de terapia ocupacional dos meninos, e gostado.
Eu
os vi dirigir-se ao diretor, sorriso contido, mas sorriso, de adolescentes de
15, 16 anos.
Até
o chamavam pelo nome.
Mas,
a enfermaria das meninas me deu susto.
Susto?
Tristeza,
meu real sentimento.
A
maioria das meninas, nuas.
Uma
adolescente de 16 anos, assim.
E
nem aí.
Não
havia constrangimento.
Explodiam
nossa noção de normalidade, civilização, cultura, nenhum mal-estar.
Os
olhares, vazios.
No
infinito.
O
diretor, meio sem jeito, pergunta por que aquilo.
Certamente,
sabia, mas com o repórter ali, faz a enfermeira pagar mico: é porque elas sujam
tudo, doutor, ela se explica, constrangida, tímida, como se surpreendida em
erro.
O
diretor ia caminhando, tentando aparentar normalidade, alguns respondiam aos
cumprimentos dele.
Chegamos
à enfermaria.
Ali
vive, sabe-se lá há quanto tempo, Pedrinho.
Tem
30 anos de idade.
Quatro
de idade mental, de acordo com o diretor.
Essas
avaliações, digo hoje, me incomodam.
Será?
Ou
será nossa métrica, a métrica do mundo normal, a lhe conferir essa idade?
José
Geraldo tem 16 anos, também na área das crianças.
Os
médicos explicam: ele é apenas epiléptico.
Não
sai do hospital por simplória razão: desconhecimento do paradeiro da família.
Quantos
mais assim?
Quantos
não estarão assim nos dias atuais?
Chegamos
ao pavilhão "Adauto Botelho".
Nele,
36 psicóticos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
Jose Jesus Barreto: A linha que
separa a dita sanidade da loucura é apenas imaginária. Não seria a dita loucura
uma forma a mais de ser, um diferenciado existir?
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto Uma linha muito tênue, não Barretinho?
Viviane Andrade Sant Ana: Nossa história
de resistência! Emiliano, você é mais que necessário. Beijos
Emiliano José: Viviane
Andrade Sant Ana Somos. Todos.
Isabel Santos: Passou um
filme agora na minha mente de um dos momentos muitíssimo triste na época de
repórter, que foi fazer uma reportagem no Sanatório Santa Mônica. Ver os irmãos
naquelas condições batei forte no fundo do peito. Se fosse hoje, mais
vulnerável à emotividade, sei não...
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Emiliano José
19
de julho 2020
Um sorriso louco
Andava
sob o sol de março pelos corredores do "Juliano Moreira".
Repórter,
caminhava sob o sol, devidamente ciceroneado pelo diretor, doutor Caribé.
Março
de 1975.
Tempo,
tempo, tempo.
Quando
entramos no pavilhão "Adauto Botelho", ele olha em torno e informa:
são 36 psicóticos.
Ao
leigo aqui, sempre incomodam essas palavras, definições da situação mental de
pessoas, não obstante seja necessário guardar respeito com as conquistas da
ciência.
À
entrada, passo os olhos no salão.
Os
pacientes, escrevi doentes, sentados ou em pé.
Parados.
Não
se mexiam.
Como
se posição de estátuas vivas.
Um
deles, de repente, quebra a monotonia, ou assombro, daquele ambiente de terror
silencioso.
Barbudo,
bem barbudo, pálido, ele sorri.
Um
sorriso forte, não propriamente gargalhada, mas um sorriso intenso.
Como
a pretender lembrar sua presença, lembrando.
Um
ambiente triste.
As
paredes imundas tornavam-no ainda mais triste, lúgubre.
O
sanitário, e eu olho tudo, sujo, sujo, sujo, de onde exalava um mau cheiro
insuportável.
No
dormitório, deparo com um velho cuja magreza me assombra, assombro atrás de
assombro.
Deitado,
com um litro de soro ao lado, a respiração difícil.
A
morte parecia rondar os hospícios, não é verdade?
Falo
isso hoje, não está na matéria.
Na
penumbra, quase escuridão de uma salinha, a assistente social me explica como
os doentes eram tratados, por quais equipes passavam: enfermaria, entrevista de
grupo, exame pelo médico, passagem pela assembleia comunitária.
Ouço
tudo, escrevo na matéria publicada no dia 11 de março daquele distante 1975:
-
A presença dos loucos num estado lastimável, as degradantes condições
materiais, o velho ofegante com o soro ao lado, o sorriso do louco barbudo e
pálido dificultava o entendimento do esquema.
A
assistente social com sua fala tentava humanizar o ambiente.
Difícil.
Entro
na sala de eletroencefalograma e sofro um choque.
Outro
mundo.
Sala
atapetada, moderna, aparelhagem de acordo com os melhores requisitos técnicos.
O
doutor Vital Ferreira de Moraes Sarmento informa: durante o ano de 1974 foram
fornecidos 1200 laudos.
E
nega terceirização dos serviços para clínicas particulares.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Eliana Rolemberg: Que matéria
fantástica! Emiliano, gosto muito de tudo que você escreve, mas essa me tocou
muito profundamente!
Emiliano José: Eliana
Rolemberg honrado. Beijo
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Emiliano José
20
de julho 2020
Meio milhão de
psicotrópicos
O
doutor Caribé, na sala de eletroencefalograma, tenta se explicar.
Não
se aplica a rotina de fazer o exame de raio-x nos pacientes, quando do ingresso
no hospital, procedimento óbvio, recomendado pelos estudiosos, pelos protocolos
médicos.
-
Não chegamos a esse estágio e nem os outros hospitais psiquiátricos que conheço
aqui na Bahia.
Era
o dia 10 de março de 1975, volto a dizer.
Dessa
minha andança pelo "Juliano Moreira" resultará a matéria do dia
seguinte: "Hospital de Loucos é Horror e Miséria".
São
700 pacientes reclusos ali.
Conta
com 34 médicos.
Dentre
eles, um tisiologista, um neurologista, um cirurgião.
Quatro
psicólogas, 14 assistentes sociais, 16 enfermeiras, quatro terapeutas
ocupacionais, seis nutricionistas, três dentistas.
Médicos,
ou são plantonistas, 24 horas semanais de trabalho, ou trabalham diariamente,
quatro horas por dia.
Os
demais profissionais de saúde cumprem horário de oito horas diárias.
Mortes
de pacientes, comuns.
Em
1973, morreram 109 pacientes.
Em
1974, 67.
Há
um consumo descomunal de psicotrópicos, de ação antipsicótica, denominados
neuroplégicos.
Relendo
hoje a matéria, me impressiono: no ano de 1974, mais de 500 mil comprimidos
dessa natureza foram ministrados aos pacientes, lado a lado com uma quantidade
superior a 40 mil porções de remédios injetáveis.
Uma
leitura da situação, passado tanto tempo, me leva a refletir.
Pessoas
quase sonâmbulas, aquela sensação para quem olha de abandono da vida, aquele
olhar jogado no vazio, no infinito, aquele sorriso repentino, aquela nudez das
meninas, tudo isso era uma produção planejada, uma forma de os médicos
enfrentarem os transtornos mentais dos pacientes, forma de jogá-los no torpor
medicamentoso, não se sabe com que critérios.
Muito
provavelmente, a maioria deles mal sabia como encontrar caminhos humanizadores
dos tormentos da alma.
Freud
ou Foucault, restaram abandonados nas estantes.
A
agressão a funcionários e a pacientes, naturalizada, a evidenciar o abandono
dos dois ou de uma pioneira brasileira, a grande Nise da Silveira.
-
A ocorrência de agressões em hospitais psiquiátricos é normal - diz o doutor
Caribé.
Ele
se refere sobretudo às agressões sofridas pelos funcionários.
Imaginar
não houvessem reações diante de um tratamento tão desumano significaria pensar
houvesse desaparecido qualquer vestígio de humanidade naqueles pacientes.
Não
fala das agressões brutais sofridas pelos pacientes.
Há
fugas - e como não haver?
E
revela ser a polícia a prender - apreender - os loucos pelas ruas, levá-los ao
"Juliano Moreira".
Não
era feito por funcionários especializados, como deveria, na opinião dele.
Terminei
o dia, pensativo.
Escrevi
a matéria com responsabilidade, como deve ser.
E
com indignação.
E
tristeza.
Repórter
imparcial é conversa mole pra boi dormir.
A
gente sofre, sente.
Pra
mim, sempre foi assim.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de julho 2020
Vida arrastada
pelas águas
Nessa
nossa prosa, iniciada em maio do ano passado, essas memórias voltadas ao jornalismo,
já havia dito: nem sempre chove na nossa horta.
Repórter
deve estar preparado para a pauta frita e para a quente.
Quem
está na Geral, então, melhor se preparar mais para as frias.
Quentes,
não são tão comuns.
Fria,
o leitor comum deve saber mas ainda assim explico, é aquela matéria do
cotidiano, sem maiores repercussões.
Quente,
aquela cuja repercussão é sempre maior.
Claro:
a fria e a quente dependem do repórter.
O
bom repórter pode transformar a fria em quente.
É
da caminhada do repórter, jornada sempre cheia de surpresas.
Tem
de estar sempre alerta, pronto pra tudo, e preparado para se desincumbir de
qualquer pauta.
Dei
sorte nessa chegada ao "Jornal da Bahia".
Ou,
quem sabe, Cesio Oliveira resolvesse me testar pra valer, e só me jogava pautas
desafiadoras no colo.
Ele
e Fred, Frederico Simões, provavelmente, numa cumplicidade do bem.
Havia
desabrigados na cidade, muitas famílias e seus filhos.
Em
torno de 35 famílias no Barracão da Leste, na Calçada, Cidade Baixa.
Mais
de 60 famílias na Escola "Prazeres Calmon", na Fazenda Grande.
Aglomerados
em precaríssimas condições.
Recebi
a pauta dizendo isso, e pauta sempre vem em poucas linhas, dica para o
repórter.
Completava:
estavam ali em consequências das chuvas do ano anterior, de abril.
Quase
um ano, portanto, vivendo daquela maneira.
A
bola caiu no pé, resolvi dar tratos a ela.
Comecei
com a chuva, a matéria.
No
Bom Juá.
Eram
11 horas da manhã de 29 de abril de 1974, chuva fina começou a cair, ninguém se
apressou, "passa logo", mulheres e crianças em casa, "mãe
recolhe a roupa que está chovendo", e todo mundo tocando a vida como se
nada tivesse acontecendo, mas foi crescendo crescendo, moradores das partes
mais baixas começando a sentir o perigo, e das 11 às duas da tarde foi um
inferno, desespero, móveis boiando, crianças no colo, tentativa de salvar o
possível, duas crianças e dois velhos morrem, casas descem dos morros,
lágrimas, gritos no vazio, sem saber a quem pedir adjutório.
Logo
depois da tragédia, as famílias abrigadas, começaram a ouvir as promessas das
autoridades.
Os
desabrigados, esperavam.
Fazer
o quê?
Quem
eram os moradores do Bom Juá?
Formavam,
homens e mulheres, um contingente de subempregados, lutando pelo pão de cada
dia.
-
Às vezes, a gente come hoje e não sabe se terá amanhã - me confessou um dos
trabalhadores.
Algumas
mulheres vendem caranguejos.
Outras,
sacos de papel feitos por elas mesmas.
Ou
frutas, compradas nas redondezas, e revendidas.
Ou
trabalham como domésticas.
Os
homens, se viram nos trinta em caminhões de carga, na venda de bugigangas pelas
ruas, biscates variados.
Seguia
assim, minha matéria, escrita em 15 de março de 1975, publicada no dia
seguinte.
Essas
tragédias em Salvador eram rotina.
A
matéria segue.
Muita
vida e sofrimento.
A
dureza da vida do povo da periferia de Salvador.
Amanhã
tem mais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTARIOS
Claudia Cunha: Como vem de
longe esse sofrimento causado pelas chuvas em Salvador. Aguardando o próximo
capítulo..
Emiliano José: Amanhã, minha
flor.
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Emiliano José
22
de julho 2020
Homens
abandonam, Terezinha sustenta quatro filhos
O
título da reportagem publicada no dia 16 de março de 1975, escrita por mim,
tentava resumir o sofrimento dos desabrigados em consequência da chuva de 29 de
abril de 1974:
"Jogo
político não atenua drama coletivo".
Foram
muitas as audiências.
Um
jogo de empurra-empurra danado.
O
prefeito Clériston Andrade depois de um tempo liberou terreno em São Cristóvão,
nas imediações do aeroporto.
Pobre
é sempre jogado pra longe.
Mas,
no meio do caminho, tinha uma pedra.
O
prefeito não dera recursos para a construção das casas.
Nessa
situação, como vamos construir nossas casas?
Tanta
a pressão, tanto o sofrimento, e o prefeito resolve ceder.
Mas,
prestes a sair do cargo, não conclui a operação, e os desabrigados ficaram ao
Deus-dará.
Naquele
16 de março, a manchete do jornal fora sobre a posse do novo governador,
Roberto Santos.
Os
desabrigados tinham ainda outro temor: o terreno, localizado num baixio, poderia
provocar tragédia semelhante à do Bom Juá se viessem chuvas, e elas sempre vêm.
Caminhava
pela Escola "Prazeres Calmon", na Fazenda Grande, onde havia 60
famílias.
O
primeiro depoimento conseguido por mim foi o de Terezinha Gonçalves dos Santos.
Chegou
chorando muito, trazida por outra desabrigada.
Relutante.
Não
queria falar.
Eu,
com jeito, fui me achegando, devagar, sem pressa.
Ela,
lágrimas diminuindo, acalmou, e foi contando, e como o povo sabe contar as
coisas.
Era
menina de roça, puxava enxada ainda criança, ela e os irmãos, em Sergipe.
Uma
irmã arribou pra Salvador, e ela seguiu atrás.
Seguiu
a sina de tantas: por dez anos, empregada doméstica.
Gosta
de um rapaz, e pimba: um filho.
Logo
depois, o segundo.
Logo
depois, o abandono.
O
companheiro botou o pé no mundo, e ela passa a sustentar os dois filhos lavando
roupa.
A
vida segue, e surge outro amor.
Mais
dois filhos.
Deu
certo não, o sujeito era muito ruim.
E
ela, sozinha, os quatro filhos debaixo de sua asa.
Destino
de tantas mulheres até os dias de hoje.
E
ela nem documento tinha, nenhum.
Uma
freira a orientou a tirar o primeiro documento.
De
modo a poder ser atendida no Hospital das Clínicas, onde os médicos prescrevem
medicamentos e recomendam repouso e boa alimentação.
-
Como? Com quatro filhos para criar?
As
mulheres do Brasil.
As
mulheres de Salvador.
As
desabrigadas da Cidade da Bahia...
#JornalismoMemóriasEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Mulheres com
carradas de filhos abandonadas pelos companheiros, que, no mais das vezes, se
picam no mundo pra "ganhar a vida" é uma dura realidade por todo o
Nordeste. Vivem como se fossem viúvas, e criam a prole no braço, heroínas.
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Emiliano José
23
de julho 2020
Como? A pergunta
sem resposta
Eu
andava por entre os desabrigados da Fazenda Grande.
Abrigados
na Escola "Prazeres Calmon", 60 famílias.
Queria
mais depoimentos para a matéria do dia seguinte, do "Jornal da
Bahia", 16 de março de 1975.
Mulheres,
absoluta maioria ali.
Entabulo
conversa com Valdelice.
Valdelice
dos Santos.
Arribara
do interior junto com uma tia.
Saída
da rocinha do pai.
Pouco
tempo depois, se ajeita com um companheiro.
Pimba:
um filho.
-
O senhor sabe, né? Moça do interior...
Marido
trabalha no pesado, caminhões de carga.
Ela,
cuidava da casa, do filho, e vendia umas bobagenzinhas para adjutorar no
sustento.
A
casinha do Bom Juá, presente da tia.
Caía
todo ano, e eles levantavam de novo.
Com
as chuvas de abril de 1974, teve mais conserto, não.
Já
teve oito filhos.
Fazia
barriga todo ano.
E
lá evem o nono: grávida de nove meses.
Explique-se:
apenas quatro restam vivos.
A
maior, Joelma, tem seis anos, adoentada.
Vida
de pobre não é brinquedo, não.
O
último filho, Luís André, dez meses, pele e osso, cabeça cheia de feridas,
olhar parado, inerte, deitado numa cama suja, incomodado pelas moscas, está
muito doente, febre, sempre. Internado três vezes, e Valdelice foi aconselhada
pelos médicos a procurar um lugar mais adequado para o menino.
-
Como sair daqui? Com que recursos? - ela pergunta, angustiada.
Alimentação
dele precisa ser melhorada, outro conselho.
Valdelice,
perplexa, outra vez.
-
Como?
Ela
própria sente dores por todo o corpo.
Pra
ela, também, aconselharam sair da escola.
-
Como?
A
pergunta fica no ar, na nuvem.
Dura
vida,a dos pobres.
Muitas
vezes, sem resposta.
Por
falta de políticas públicas voltadas para eles.
Cleonice,
outra com quem dei uns dedos de prosa, tem 21 anos, e nunca pôde estudar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara:
Como.....?????? são tantas interrogações que vão ficando pelo caminho. E os
homens, pimba, caiam no mundo, só mais uma mulher pobre, 99% delas negras,
largada no mundo com os filhos debaixo do braço
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Emiliano José
24
de julho 2020
Estudar? Como?
Cleonice
tinha então 21 anos.
Bonita,
bonita.
Foi
com ela os outros dois dedos de prosa, naquele dia 15 de março de 1975 para
matéria a ser publicada no dia seguinte no "Jornal da Bahia".
Andava
pela Escola "Prazeres Calmon", na Fazenda Grande, e entre as dezenas
de desabrigados, deparei com ela.
Nasceu
na Liberdade.
Recordações
de infância, só a partir dos sete anos.
O
resto, apagou.
Cleonice
Santos Nascimento não é uma pessoa alegre, minha constatação.
O
tom da voz é o mesmo, sempre.
Suas
recordações são envoltas em indisfarçável tristeza.
O
pai, e como isso é comum, não?, logo após o nascimento de mais dois irmãos
dela, se escafedeu no mundo.
Mãe
ficou só.
Os
irmãos, ah, não demoraram a morrer.
Domingas
dos Santos, a mãe, como sempre, segurou a onda.
Lavava
pra fora.
Quando
não, vendia frutas.
E
o estudo?
Como?
A
pergunta sem resposta.
Completados
7 anos, a mãe já tivera mais dois filhos de outro pai.
E
ela, no afazer diário de cuidar dos irmãos.
A
mãe, lava roupa todo dia, sustentar os filhos.
Estudar?
Como?
Pensei:
ela pronuncia bem as palavras, fala bem, e não sabe ler nem escrever.
Vida
desperdiçada.
Com
12 anos, toma uma surra violenta da mãe, sai de casa.
Aos
14 anos, fica noiva.
Já
está com quatro filhos, três estão vivos.
Marido
ciumento, se separa.
Desembarca
de mala e cuia no Rio de Janeiro.
Trabalha
em barbearia, isso, barbearia de marmanjo.
Em
novembro de 1973, volta para Salvador, e se abanca no Bom Juá, numa casinha
simples.
Nasce
o quarto filho.
Fornecia
marmita e recebia uma ajudazinha do ex-marido.
Vida
dura.
Pensava
em mudar-se dali quando Deus desse tempo bom...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: A vida real
...
Joaquim Lisboa Neto: Perfilando as
oprimidas
Denilson Vasconcelos: Filme que
cansei de assistir no meu pedaço. E ainda anda em cartaz nos dias de hoje. Dos
males, o menor é um filho, pois para muitas o sexo descuidado, resulta em
sífilis,aids e outras tantas das chamadas dst.
José Ricardo Matos: A vida para os
brasileiros nunca é fácil.
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Emiliano José
25
de julho 2020
O dilúvio do Bom
Juá
Mas,
Deus não deu bom tempo, né Cleonice?
Dizia
ontem sobre o sonho dela de um dia sair do Bom Juá.
Ir
para um lugar melhor.
Escapar
da miséria.
Deus
não deu bom tempo?
O
ser humano tem a mania de culpar Deus por seus desatinos.
Cleonice
era desabrigada, quatro filhos, naquele momento, ela e tantas famílias jogadas
ali na Escola "Prazeres Calmon".
E
Deus não tinha nada com isso.
Era
o resultado da inexistência de políticas públicas de habitação, voltadas ao
atendimento da população mais pobre.
Passava
ano, entrava ano, e os mais pobres sempre empurrados para as encostas e os
baixios, submetidos a riscos enormes, inevitáveis.
A
tragédia do Bom Juá, um exemplo.
Eu
conversava com ela naquele dia 15 de março de 1975, repórter do "Jornal da
Bahia", preparando matéria para o dia seguinte sobre o abandono de tantas
famílias desabrigadas.
Ela
relatou o dilúvio, o desespero, o medo da morte, a água descendo dos morros,
arrastando tudo, levando de roldão as frágeis estruturas das casas de sopapo,
ela tentando salvar alguma coisa dos móveis da casa comprados recentemente, e
quando deu por si já não podia mais sair da casa, um vizinho a retirou nos
braços, a mãe Domingas protegendo o filho Cláudio de apenas um mês. Subiu para
uma parte mais alta, e ficou olhando de longe, sem nada poder fazer.
Era
o dia 29 de abril de 1974, o dia do dilúvio no Bom Juá.
Eram
gritos, pedidos de socorro, lembra Cleonice.
Quando
a chuva diminuiu um pouco, ela desceu.
Deparou,
ela e outras mulheres e homens, com o garoto morto, jogado no barro - Ubiratã,
o nome dele.
Soterrado,
também, o velho Piroca - vivia dos ganhos de uma barraca na Sete Portas.
Morreu
dona Júlia e seu neto, arrastados com casa e tudo.
O
dilúvio do Bom Juá...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Gilmar Santiago: Muito
importante esse registro Emiliano José! Essa não foi a primeira tragédia de
desabamento em época de chuvas que aconteceu no bairro. Talvez pelas
características do bairro que mais parece um vale com encostas na parte alta de
um lado para Fazenda Grande e do outro para o Sai Caetano e até os dias de hoje
quando chove há um registro pluviométrico que aponta ser o bairro um dos
lugares onde cai um maior volume de chuvas na cidade.
Tinha
14 anos quando aconteceu essa tragédia mais anos anteriores a minha própria
família ficou desabrigada em dois momentos distintos em que minha mãe me levou
para morar por um período com o meu avô em Oliveira dos Campinhos em Santo
Amaro. Lembrança também daquela cena durante o primeiro governo de Mário Kertz
na prefeitura quando houve um desabamento e morreram 16 pessoas que ficaram
expostos em frente ao posto médico no fim de linha do bairro.
E
mais recentemente em 2015 na primeira gestão de Acm Neto o desabamento no
Marotinho que faz parte do bairro com cerca quatro pessoas de uma mesma família
que ficaram soterradas com as chuvas.
Emiliano José: Gilmar
Santiago Lembranças de quem viveu na pele. Abraço, Gilmar
Isabel Santos: Muitos
dilúvios, muitas tragédias nessa nossa cidade de todos os santos. Triste,
Emiliano José, mas importante relembrar esses dramas que acontecem em áreas que
continuam vivenciando toda sorte de desassistência, em diversas áreas, como
saneamento básico.
Ana Vieira: Lindo texto
(estou sendo redudante) rsrs. pois o mestre Emiliano escreve sempre lindo. Mas
seria ótimo que essas histórias não continuassem fazendo parte da realidade da
população pobre de Salvador.
Mônica Bichara: Foram tantas
tragédias que cobrimos, mas o cenário sempre o mesmo: barracos e casebres
amontoados em ribanceiras, famílias se equilibrando e contando só com a sorte,
com a providência divina. Muitos escapavam pela solidariedade dos vizinhos, uns
puxando os outros #ninguémsoltaamãodeninguém já naquela época As piores
coberturas, rezava para nunca acontecer deslizamentos de terra em meus
plantões, era desesperador ver o sofrimento das pessoas em busca de parentes e
pertences, bombeiros se atolando e se arriscando, moradores enfileirados
ajudando na tarefa de retirar escombros...O choro molhando as laudas, mas era
preciso engolir e seguir...
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Emiliano José
26
de julho 2020
Filho morto
Morreu
dona Júlia e seu neto.
Era
Cleonice Santos Nascimento falando do dilúvio do Bom Juá.
Hoje,
me despeço de Cleonice, com alguma nostalgia.
Há
matérias cravadas no coração do repórter.
Esta,
uma delas.
É
o fim do relato sobre reportagem publicada pelo "Jornal da Bahia, mais de
45 anos passados.
Era
duro ver a menina com tantos filhos, 21 anos tão somente, submetida a tantas
provações, a miséria, dureza de vida, tristeza estampada no rosto, sorriso raro
e tímido.
E
ela naquele 15 de março de 1975, voz embargada, me conta a morte de Cláudio, o
último filho, nascido um pouco antes do dilúvio.
Nem
ano tinha.
Quase
andando já.
Cabelos
compridos, bonito, puxou a mãe.
Em
fevereiro de 1974, adoece.
Estava,
ela e tantas famílias desabrigadas, na Escola "Prazeres Calmon".
Vomitando,
vomitando, a mãe dela dizendo mau-olhado, vai à LBA, no bairro do Garcia.
Dão-lhe
um pacote de soro e comprimidos. A disenteria continuava, ela no desespero. A
mãe insiste e ela leva Cláudio para ser rezado na Liberdade. Depois da reza,
aconselhada, dá chá de bananeira para interromper a diarreia. Nada.
Dia
17 de março, vendo o quadro se agravar, pega um táxi e busca o Pronto Socorro
Getúlio Vargas, no bairro do Canela.
Os
médicos lutam para salvá-lo.
Nada.
Com
11 meses, o menino partiu.
Dor,
indescritível.
Com
um novo companheiro, os três filhos, sonha, ainda sonha: um emprego, médico
para os filhos, coisa pouca, não pensa em enriquecer.
Escapar
do destino de hoje comer enquanto alimenta a dúvida se amanhã terá alimento.
Quer
o mínimo.
Quantas
Cleonices choram filhos mortos?
Quantas
sentem a fome rondando?
Quantas,
no meio da miséria, a morte espreitando?
Quantas
pedindo o mínimo?
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Geraldo Lula Junior: Quantas...?
Não
era para estarmos assim. Nosso país..., nosso povo simples e sofrido....
Jaciara Santos: Quantas
Cleonices estão perdendo a batalha para a covid-19?
Isabel Santos: Pois é,
Jaciara Santos, ainda essa triste situação. É muito angustiante.
Mônica Bichara: Pensei nisso
tb, Jaciara Santos, esse drama agora multiplicado por milhares ao mesmo tempo.
Injusto, muito injusto
Einar Lima: E o drama
maior é que o quadro de 2020 é igual ou pior que o de 1974.
Joao Henrique Coutinho: Einar Lima
Incomparavelmente mais grave, atualmente.
Isabel Santos: Isso mesmo, Einar
Lima e João Henrique, acrescentando o índice de violência na região, que vai
deixando lares vazios, principalmente de seus adolescentes. Muito triste.
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(Jorge Almeida, Macarrão)
Emiliano José
27
de julho 2020
Minha Nossa
Senhora do Bom Parto, me ajude!
Olho
pra trás, minhas matérias de chegada ao "Jornal da Bahia", e elas vão
se encadeando.
A
de 25 de março de 1975, era sobre a saga de parir.
Ontem,
falava da morte de Cláudio, aos 11 meses.
"Ter
filhos passou a ser uma aventura infernal".
Este,
o título da reportagem sobre ter filhos em Salvador.
Se
a minha memória estiver boa, foi provocada por uma visita de alguns estudantes
de Medicina em minha casa, na Ladeira da Cruz da Redenção, em Brotas, revelando
as dramáticas condições das mulheres pobres quando da hora do parto, entre
eles, creio, Antonio Jorge Fonseca Sanches de Almeida, Macarrão, hoje cientista
político, que da Medicina ele quis distância.
Falei
com Cesio Oliveira e fui a campo.
Pense
numa misera.
Pense
e multiplique quanto quiser.
Maternidade
"Tsylla Balbino", mais de 18 mil partos em 1974, mais de 23 mil
internamentos, mulheres parindo nos bancos de espera, nos sanitários, na sala
de espera, muitas delas entrando na maternidade em lágrimas e aos gritos,
"minha Nossa Senhora do Bom Parto me ajude", "seu doutor, me
ajude", uma súplica só, às vezes parindo imediatamente, e só então se
acalmando, pedindo pra dar uma olhada na criança, o milagre da vida.
Na
rede particular, é bom comparar, no ano de 1974, não chegaram a ocorrer mais de
mil partos em contraposição aos 18.046 da "Tsylla Balbino".
Foram
36 mil crianças nascidas em 1974 em Salvador, metade na "Tsylla", a
outra metade praticamente nos próprios do INPS, entre os quais o Hospital
"Manoel Vitorino".
A
concentração de renda também aparece aqui.
Parir
é difícil.
Para
as mulheres pobres, muito mais.
Não
devia dizer, estou tratando daquela época, mas digo: ontem e hoje.
A
esmagadora maioria das grávidas chegadas à "Tsylla Balbino" era
subempregada, empregadas domésticas, desempregadas, quase nenhuma casada
formalmente, e aparentam dez anos a mais pela dureza da vida ou pelo grande
número de filhos.
Catalogadas,
a maioria, como indigentes.
Pré-natal,
grande parte nem sabia da existência.
Se
sabia, não tinha dinheiro pra condução.
Ao
chegarem, são atendidas por "aspirinas".
Assim
eram conhecidos os aspirantes dos segundo, terceiro e quarto anos de Medicina,
trabalhando na maternidade, embora não reconhecidos pelo doutor José Maria
Magalhães Neto, diretor do hospital.
Por
conta da inexperiência dos "aspirinas", muitas mulheres são mandadas
para o banco de espera já à beira do parto.
Acabam
parindo no meio da sujeira, com todos os riscos decorrentes.
Reportagem
de peso, diríamos nós.
Mas,
paro por aqui.
E
sabem por quê?
Lembrei
agora: no dia da publicação da matéria, é, no mesmo dia, 25 de março de 1975,
eu chegava esbaforido ao hospital "Manoel Vitorino", um dos próprios
do INPS, em Nazaré, levando Mércia, minha mulher então.
Teo,
meu filho, nasceu nas primeiras horas daquele dia.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Na Tsyla, as
adolescentes, mães. Filhos sem pais, basicamente.
Isabel Santos: Assim,
continua. Tenho uma amiga que mensalmente leva enxovais para várias
maternidades públicas. Tem mulheres que chegam para parir praticamente sem nada
para o bebê. As enfermeiras ficam na expectativa desses enxovais, e muito
agradecidas. O problema é decidir quem vai receber quando o número de enxoval é
insuficiente, no dia.
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Emiliano José
28
de julho 2020
Dom Jerônimo e o
silêncio
Viajando
pelos arquivos organizados por minha irmã, Maria Aparecida, vou descobrindo é
coisa.
Logo
no dia 1 de abril de 1975, matéria sobre os seringalistas baianos, "Jornal
da Bahia".
Falavam
em financiamentos morosos e insuficientes, reajustamentos irreais, dificuldades
de comercialização em função da concorrência malaia, preços injustos, ausência
de subsídios, lentidão do Banco do Brasil na liberação de contratos - a velha
cantilena.
Ameaçavam:
se as reivindicações não fossem atendidas, erradicariam os seringais.
O
Brasil era produtor de menos de 1 por cento da produção mundial de borracha.
Falavam
até em segurança nacional: mais de 86 por cento da produção mundial de borracha
estavam nas mãos nas mãos de quatro países orientais, todos encostados à China.
Viro
a página, e deparo com dom Jerônimo.
Ele
e seu tempo de silêncio.
-
Há certos momentos em que o silêncio fala muito mais do que as palavras. Há
tempo em que se deve falar tudo e existe a hora de não se falar nada.
Com
essa sabedoria, reagia à minha pergunta no dia 3 de abril daquele ano quando
perguntei sobre sua renúncia ao cargo de Prior do Mosteiro de São Bento.
Ocupava
o cargo havia dez anos.
A
renúncia era parte óbvia da repercussão da entrevista dada a mim, e publicada
pelo "Jornal da Bahia" em 23 de fevereiro daquele mesmo ano.
Já
dissemos: a Igreja não gostou da posição dele, defendendo o divórcio, e nem os
beneditinos.
A
Igreja e as Ordens têm artes - a do silêncio, uma delas.
Sabem
lidar com a palavra, isso sabem.
E
sabem ser o silêncio um bólido de milhões de sentidos.
Suplanta
a palavra, muita vezes.
-
Mas, houve pressão para a renúncia? - pergunto?
-
Minha decisão foi de livre e espontânea vontade - ele responde, conforme foi
publicado pelo "Jornal da Bahia" do dia 4 de abril de 1975.
Eu
insisto:
-
Mas, apesar de ter sido de livre e espontânea vontade, houve pressões para sua
renúncia?
Dom
Jerônimo, pensa alguns segundos, e com sua voz suave...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COEMNTÁRIOS
Luciana Mandelli: viva! melhor
seriado da pandemia...aguardando.
Emiliano José: Luciana
Mandelli 😘
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Emiliano José
29
de julho 2020
Dom Jerônimo, a
sabedoria das palavras, a grandeza do silêncio
Repórter
é figura incômoda.
Pergunta
muito.
Se
não perguntar, não é bom repórter.
Eu
seguia perguntando a dom Jerônimo, naquele dia 3 de abril de 1975.
Ele
já havia me dito: a renúncia ao cargo de prior do Mosteiro de São Bento fora de
"livre e espontânea vontade".
-Sim,
dom Jerônimo, mas houve pressões ou não? - insisto, repórter incômodo.
Um
monge beneditino não fala à toa.
Ainda
mais um como ele, experiente, e com o dom da palavra.
E
da sabedoria.
Pensou
um pouco e respondeu:
-
Não confirmo nem desminto a existência de pressões.
Pensou
mais um pouco, e foi além:
-
Uma das acusações que pesa sobre mim é que falo muito aos jornalistas.
Sem
dizer, vai dizendo.
-
Eu defendo que os homens tenham o direito de defender os seus princípios e
direitos de maneira livre.
Falo
nos rumores segundo os quais uma das áreas de pressão estariam no interior da
própria Ordem Beneditina, cujas manifestações teriam aparecido em recente
reunião dos beneditinos no Rio de Janeiro.
Outra
vez, me lança um olhar suave, pensa um pouco, e reage:
-
Pode ser e pode não ser.
-
E pressões da alta hierarquia da Igreja Católica, particularmente do cardeal
Eugênio Sales, um árduo defensor do casamento em sua forma atual?
A
pausa, o breve silêncio, a resposta:
-
O momento é de silêncio.
Como
falava com seu silêncio, não é?
Dom
Norberto Santana foi nomeado como substituto de dom Jerônimo.
O
prior é uma espécie de administrador do Mosteiro, o segundo cargo após o abade,
cargo ocupado então por dom Timóteo Amoroso Anastácio.
Dom
Timóteo negou pressões sobre dom Jerônimo.
Preferiu
o silêncio também quando perguntado sobre as razões apresentadas por dom Jerônimo
para renunciar.
E
informou: a carta de renúncia não podia ser divulgada.
Tratava-se
de um assunto interno da Ordem.
Os
dois eram amigos, parceiros de ideais.
Cada
um a seu modo, exerceu papel essencial no combate à ditadura.
E
desenvolveram pastorais cheias de amor pela humanidade.
Matéria
publicada no dia 4 de abril de 1975 pelo "Jornal da Bahia" levava o
sugestivo título:
"Tempo
de silêncio para D. Jerônimo".
Fecha
o pano.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de julho 2020
Ministro de
Geisel e a distribuição de renda
Redistribuir
a renda no País significa aumentar efetivamente os salários dos trabalhadores e
não apenas utilizar os mecanismos já existentes como PIS, FGTS e outros.
O
Brasil é um País dependente. É necessário disciplinar a atuação das
multinacionais no País, permitindo investimentos apenas em áreas que interessem
ao desenvolvimento nacional.
O
País está caminhando para reduzir sua dependência ao lutar para a criação de
uma tecnologia própria.
Não
fosse o desenvolvimento das grandes empresas estatais, só haveria grandes
empresas estrangeiras no Brasil, e isso poderia provocar uma ruptura nacional.
Constituir
uma CPI para investigar a ação das multinacionais e sua interferência em
território nacional é um ato de rotina, pois tanto o Senado dos EUA como a ONU
têm se preocupado com o assunto.
Todo
esse pensamento foi publicado em matéria do dia 18 de abril de 1975, no
"Jornal da Bahia", feita por mim.
Não
foi formulado por nenhum petralha - a figura petralha nem existia.
Também
não foi expresso por nenhum comunista - estivesse solto, por acaso.
Nem
por nenhum parlamentar do Grupo Autêntico do MDB.
Nada
disso.
Tudo
foi dito por um ministro do ditador Ernesto Geisel.
Severo
Gomes, da Indústria e Comércio, em entrevista coletiva, logo após a Conferência
Brasileira de Seguros e Capitalização, realizada em Salvador, não deixou por
menos.
Disse
tudo aquilo e mais.
É
necessário atentar para a renda direta do trabalhador.
Quem
estiver na faixa do salário mínimo, não aufere os benefícios do
desenvolvimento.
A
estrutura de renda do País está ligada ao tipo de desenvolvimento industrial
dos últimos anos, baseado nos setores de bens de consumo duráveis, aos quais
somente uns poucos têm acesso.
Necessário,
na visão dele, dinamizar os setores de bens de consumo básicos como têxtil,
calçados, medicamentos e outros bens acessíveis às camadas mais pobres.
Fosse
hoje, e o governo Bolsonaro o rotularia de quê?
Até
a ditadura esteve à frente, bem à frente do ideário bolsonarista, ao menos
quanto às propostas de desenvolvimento...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Césio Oliveira, chefe de reportagem de Emiliano no JBa)
Emiliano José
31
de julho 2020
Cesio Oliveira,
um grande chefe
Não
consigo recuperar a origem das pautas.
Vou
olhando o arquivo implacável, organizado por minha irmã, Maria Aparecida nessa
primeira fase, e deparo com matéria de duas páginas - "Bahia: frustrações
de um modelo econômico", de 27 de abril de 1975, no "Jornal da
Bahia", como vocês sabem.
Seguramente,
foi um trabalho de cão.
Quem
sabe, eu tenha sugerido a Cesio Oliveira, e ele tenha topado.
Deve
ter dito "vá em frente".
Quem
sabe, tenha me caído nas mãos estudos a me animar a tal matéria.
A
Seplantec era povoada de comunistas, e produzia trabalhos da melhor qualidade.
Fui
atrás da Associação Comercial, da Federação das Indústrias, pesquisei a PNAD,
fui atrás de fontes as mais variadas, para chegar a essas duas páginas,
primeira matéria minha dessa dimensão no "Jornal da Bahia.
E
produzi essa matéria-referência - não temo chamá-la assim, pois é um
diagnóstico econômico social bastante amplo, e quem se dedicar a ler tal
material nos dias atuais poderá ter pontos de partida interessantes para
compreender a nossa evolução até os dias atuais.
É
o tipo de matéria a lhe tirar do cotidiano do jornalismo, muito dado, por suas
características intrínsecas, a cuidar de fatos isolados, não contextualizar.
Aqui,
pude fornecer um quadro mais amplo da economia e da sociedade baiana, indicando
características, potencialidades e obstáculos do desenvolvimento econômico,
suas carências sociais profundas, o desemprego, o subemprego, os baixos
salários, a maioria da população vivendo em precárias condições, o
desenvolvimento do setor de serviços.
Foi
um belo teste.
Eu
ia marcando pontos, me afirmando como repórter maduro, depois de seis meses
apenas de ingresso na profissão.
Sei,
não esqueço, registro: Cesio Oliveira é o grande responsável por isso, confiou
em mim, apesar do meu noviciado.
O
bom chefe é assim: confia no taco dos seus comandados.
Dos
melhores, o nosso grande Cesio.
Eternamente
grato.
Na
primeira parte da matéria...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Cesio
Oliveira, como bom chefe de reportagem que era, soube reconhecer o bom
jornalista "no arriar da mala". E deu corda, régua e compasso....
quer dizer, boas pautas
Emiliano José: Mônica Bichara
Barretinho, foi o primeiro. Chegou a usar a expressão quando leu minha primeira
matéria: jogador a gente conhece no arriar das malas".
Mônica Bichara: Emiliano José
sorte a sua q além de ser bom teve o apoio de dois feras no começo
Emiliano José: Mônica Bichara
tive ótimos mestres. O outro, Navarrinho.
Mônica Bichara: Emiliano José
só fera
Jose Jesus Barreto: Emiliano José
sim , Navarrinho, exemplar.
Lucia Correia Lima: Fico pensando
sobre o ponto triste do JORNALISMO ter perdido tantos talentos para a
publicidade e o marketing político. A força da grana. Entendendo claro
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Emiliano
José
1º
de agosto 2020
Desenvolvimento
é para o lucro,
não para gerar
empregos.
A
edição da matéria de duas páginas do "Jornal da Bahia", de 27 de
abril de 1975, escrita por mim, deu destaque, primeiro, ao material sobre a
indústria, ao situá-lo à esquerda, no alto, sob o título "Não houve o
propalado desenvolvimento regional".
Discuto,
aqui, a partir das fontes e dos estudos consultados, o processo de
industrialização vivido pela Bahia, cujas características centrais são, naquela
quadra histórica, primeiro, a indústria se afirmar como o polo dinâmico da
economia, e segundo, apresentar-se mais como um segmento da indústria sulista
do que fruto de um desenvolvimento regional.
A
meta da industrialização estava longe de ser alcançada, apesar desse dinamismo.
O grosso da produção do setor é originário principalmente da pequena empresa.
Além disso, muitos setores ainda se utilizam de tecnologia superada e a
participação do setor na renda interna da Bahia chega no máximo a 15 por cento,
se considerado o ano de 1974.
Só
para se ter uma ideia da evolução, atualizo números: hoje, passados mais de 45
anos, a indústria chega a pouco mais de 22%, a agropecuária a quase 7% e
serviços 70%.
E
fui retratando, na matéria, o nosso desenvolvimento, ou subdesenvolvimento.
A
Bahia estava situada em oitavo lugar quando o assunto era indústria, atrás até
mesmo de Santa Catarina e Paraná, no ano de 1974.
Foi
a partir do final dos anos 60, com o Centro Industrial de Aratu e o Polo
Petroquímico, a deflagração do surto de desenvolvimento industrial, tardiamente
recolhendo o impulso da implantação da Petrobras no Estado.
Havia
uma constatação: cerca de 70% do poder de decisão do setor industrial
encontravam-se nas mãos de grupos econômicos do Centro-Sul ou de
multinacionais.
Havia
os pessimistas.
Dificilmente,
o modelo de industrialização em andamento possibilitaria um desenvolvimento
autossuficiente, chegando a um parque industrial produtor de bens de consumo
duráveis.
Havia
os moderadamente otimistas.
Como
o notável Rômulo Almeida, para quem a industrialização de base daria
sustentação a todo o processo de diversificação industrial e agrícola do
Nordeste.
Sabia,
Rômulo sabia: o desenvolvimento nordestino ainda tinha pés de barro face à
dependência de insumos e máquinas provenientes do Centro-Sul, como ele
acentuava.
Um
modelo obviamente excludente, concentrador.
Ao
lado do setor industrial dinâmico, restavam um setor tradicional, vivendo
crises constantes, como indústria têxtil, construção civil, couros e peles,
alimentícia, entre tantas, e uma agropecuária decadente.
E
daí?
Era
quase essa a pergunta de Liberato de Carvalho, chefe do escritório da Sudene na
Bahia:
-
O desenvolvimento tem por fim o lucro, não solucionar problemas de emprego.
Cruel,
e verdadeiro.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Emiliano José: Resumo de uma
parte. Interessante olhar pro passado, não? Abraço
Jovino Alberto Pereira: Cadê a segunda
parte?
Emiliano José: Jovino Alberto
Pereira é série. Amanhã tem mais...
Jovino Alberto Pereira: Ok... Que bom
poder olhar para trás e ver que estávamos enxergando a realidade.
Mônica Bichara: Uma aula, de
jornalismo e economia 👏👏👏
Cely Barbosa: Eta cabra bom!
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Emiliano José
2
de agosto 2020
Fortalecimento
do latifúndio, expansão da fronteira agrícola, expulsão de posseiros
O
segundo texto, no alto da página dupla da reportagem publicada no dia 27 de
abril de 1975 no "Jornal da Bahia", escrita por mim, era sobre a
agricultura: "As causas do eterno ciclo das crises".
A
agricultura, então, era responsável por 40% da renda interna do Estado. Era
apontada como vítima do modelo de desenvolvimento "pouco harmônico"
em andamento.
Envolta
em crises permanentes, não dava sinais de modernização e o grosso de sua
produção estava voltado para o mercado externo.
As
culturas voltadas para o exterior contribuíam, em 1974, com quase 90% das
exportações do Estado, o cacau responsável por 54% do total.
A
estrutura agrária permanecia inalterada há décadas.
O
minifúndio predomina: 300 mil propriedades.
O
latifúndio chegava a 68 mil propriedades, abrangendo, no entanto, 70% da toda a
área ocupada.
Pouca
gente com muita terra, muita gente com pouca terra e muitíssima gente sem terra
- era a constatação de um estudo da Federação dos Trabalhadores da Agricultura
- Fetag.
Havia,
então, a expectativa de expansão da fronteira agrícola, com iniciativas
voltadas à pecuária e ao polo madeireiro.
Tanto
uma quanto outra provocavam a desorganização da pequena propriedade, expulsão
de milhares de posseiros e pequenos agricultores, violência no campo.
As
lavouras voltadas ao mercado baiano viviam em permanente crise, e o Estado era
obrigado a valer-se da importação de produtos de outros estados.
A
produção de arroz, por exemplo, sofreu um declínio de mais de 26% entre 1967 e
1972, e a Bahia era obrigada a socorrer-se da produção do Rio Grande do Sul,
Minas Gerais e Maranhão.
O
setor agrícola apresenta um baixo índice de mecanização.
O
Estado contava com apenas 1418 tratores.
O
total, no Brasil, era de 153 mil tratores.
A
energia elétrica era praticamente desconhecida no campo.
Das
612 mil propriedades agrícolas da Bahia, somente 565 contavam com energia elétrica.
O
advogado Virgílio Barros de Sá, da Fetag, é duro em seu diagnóstico:
-
O que se convencionou chamar de desenvolvimento econômico no meio rural não
passou de aumento fragmentário e caótico de patrimônios particulares, com o
inevitável fortalecimento de resíduos oligárquicos e recentemente
robusteceram-se grandes concentrações capitalistas, inclusive as de âmbito
internacional.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jovino Alberto Pereira: Essa foi a
segunda parte e acabou?....fiquei com vontade de quero mais....mais que isso,
fiquei com a sensação de que o texto não acabou... Tem mais não?
Emiliano José: Jovino Alberto
Pereira já no ar...
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Emiliano José
3
de agosto 2020
Marcas do
passado iluminam o presente
É
curioso essa volta ao passado, olhando matéria de mais de 45 anos atrás, do dia
27 de abril de 1975, no "Jornal da Bahia".
A
evolução atual vem de lá, não?
Mas
não é nosso tema aqui.
A
terceira matéria, na página dupla, sob a retranca "Serviços" leva o
título "Setores básicos não acompanham expansão".
Eu
começava analisando a expansão do setor serviços, impulsionado pela
industrialização e pelo desenvolvimento do turismo.
Essa
expansão do terciário, no entanto, estava longe de responder às necessidades do
desenvolvimento industrial.
A
economia baiana ressentia-se de uma sistema de transportes minimamente
razoável.
Pela
falta de integração entre ferrovia, navegação e rodovia, e pela precária
infraestrutura instalada. A navegação, quase desprezível. O sistema
ferroviário, um dos piores do País. E o sistema rodoviário ressente-se da
ausência de uma rede de estradas alimentadoras à malha federal.
Um
retrato em branco e preto: até 1973, dos 6 mil quilômetros de estradas
estaduais, apenas 782 quilômetros eram asfaltados.
Nas
estradas federais, outro quadro, também não tão animador:
dos
6.235 quilômetros, apenas pouco mais de 50% são asfaltados.
Turismo,
crescendo, passando de 1% de participação na renda bruta do Estado em 1969 para
pouco mais de 3% em 1973.
Comércio,
dois extremos.
O
pequeno, feiras livres, camelôs, principais fontes de abastecimento das camadas
mais pobres dos grandes centros urbanos e do interior, com fraca rentabilidade
e notória incapacidade de absorver modernas técnicas de conservação e higiene
dos produtos.
O
grande, representado pelo que eu chamava "luxuosos e requintados
supermercados" voltados à classe média e alta, se expandia, evidenciando o
processo de concentração.
Representado,
também, por uma nova aparição: os shopping centers, "destinados a um
diminuto mercado de elite".
O
setor de serviços, chamado de terciário no economês, apresentava assim uma
situação desigual, ou, como diria hoje, um desenvolvimento desigual e
combinado: uma parte moderna, se desenvolvendo, e outra, ainda majoritária, a
tradicional prestação de serviços, com base em autônomos, os camelôs, as
empregadas domésticas, os alfaiates, sapateiros, pequenos comerciantes, a
absorver uma enorme quantidade de mão de obra, mal conseguindo garantir a sobrevivência
dos trabalhadores envolvidos.
O
tempo passou, muita coisa mudou, e olhar o passado, insisto, pode ajudar a
pensar o presente.
Mas,
isso não está na minha matéria.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de agosto 2020
Força de
trabalho: desrespeito a direitos elementares
Em
reportagem de página dupla, cabe é coisa. A "Bahia: frustrações de um
modelo econômico" era o título, "Jornal da Bahia", 27 de abril
de 1975.
A
quarta parte tratava da força de trabalho.
Bom
lembrar dos encontros com fontes, com amigas como as professoras Inaiá Carvalho
e Marúsia Jambeiro, ambas do Centro de Recursos Humanos da Universidade Federal
da Bahia.
Agricultura
absorvia a maior parte da força de trabalho, seguida de perto pelo setor
serviços, "particularmente em suas atividades marginais de pouca
produtividade".
Inaiá
dizia de um desequilíbrio intenso no mercado de trabalho, muito desemprego e
subemprego, um elevado grau de subaproveitamento da força de trabalho.
Mão
de obra majoritariamente não qualificada, baixa participação feminina, jovem.
Apresenta
alta taxa de dependência - uma pequena parte sustenta um número grande de
pessoas.
Marúsia
mostra o êxodo rural como alimentador do desemprego e do subemprego, além de
criar um grande contingente de reserva de mão de obra.
Havia
um total de 5 milhões e 300 mil pessoas em idade ativa na Bahia, 2 milhões e
700 mil empregadas, 50% do total apenas, portanto.
Atividades
agrícolas ocupam 1 milhão e 500 mil trabalhadores, 1 milhão dos quais dedicados
à lavoura de subsistência.
Mão
de obra urbana, 1 milhão e 200 mil pessoas, concentrada principalmente no setor
serviços, coisa de 90 por cento, onde preponderam atividades do pequeno
comércio, ambulantes, autônomos os mais variados.
Indústria,
emprega apenas 133 mil pessoas.
Do
total da mão de obra baiana, apenas 1 milhão de pessoas são remuneradas
exclusivamente em dinheiro, e dessas 680 mil ganham no máximo um salário mínimo
e o maior contingente recebe menos.
Dos
2 milhões e 700 mil pessoas empregadas no Estado, apenas 390 mil têm carteira
assinada, 373 mil nas cidades.
No
campo, carteira assinada é exceção.
Um
quadro geral de superexploração do trabalho, de desrespeito aos mais
elementares direitos trabalhistas.
Nos
dias atuais, sob o governo Bolsonaro, estamos assistindo a volta acelerada
desse desrespeito, mas é conversa pra outra hora.
O
desenvolvimento social do Estado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de agosto 2020
As precárias
condições de vida do povo
Vem
de longe a tradição, e não custa relembrar.
O
processo de desenvolvimento em curso naquela metade da década de 1970 na Bahia,
marcado pelo esforço da industrialização, não gerava desenvolvimento social.
Abro
assim a quinta e última matéria da página dupla do "Jornal da
Bahia}", de 27 de abril de 1975.
O
capitalismo no Brasil nunca guardou qualquer relação com preocupações sociais,
e os governos voltados a enfrentar o problema da concentração de renda e da
miséria sempre foram vítimas de golpes, e o último exemplo foi o de Dilma, mas
esse é comentário atual, e não cabe ir adiante.
Volto
à matéria. O título: "População carece do mínimo de bem-estar".
Um
déficit habitacional de 270 mil domicílios.
Eram
1 milhão de 300 mil pessoas carecendo de habitações decentes, superlotando as
residências existentes e vivendo sem acesso a serviços básicos - água, energia
elétrica, instalações sanitárias.
Dos
1 milhão e 378 mil domicílios do Estado, apenas 13% estavam ligados à rede de
abastecimento de água.
Adicionando-se
os que se abastecem de de poços ou nascentes, chega-se a um total de 20% de
domicílios com suprimento de água.
Somente
3% das habitações estavam ligadas à rede geral de esgotos e somente 23% contam
com energia elétrica.
Daqueles
1 milhão e 378 mil domícilios do Estado, 476 mil eram "rústicos ou
improvisados" - ou seja, predominavam paredes e coberturas de taipas,
sapé, madeira não apropriada, materiais de vasilhames usados e piso de terra
batida.
A
Bahia contava 2 milhões e 800 mil analfabetos, 2 milhões concentrados no campo.
Do
total de alfabetizados do Estado, 3 milhões e 100 mil concluíram ou cursam o
primário, 500 mil estão no ensino médio, e apenas 71 mil terminaram ou fazem
curso superior.
Mais
de 50 por cento das crianças em idade escolar, de 7 a 14 anos, não estão
estudando.
No
ensino médio, somente 20% da faixa potencial, 1 milhão e 431 mil pessoas,
frequentam a escola.
Triste
quadro.
Triste
Bahia, oh, quão dessemelhante...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: E mais. Com o
desenvolvimento tecnológico, aquela mão de obra barata vinda da falta de
planejamento familiar dis pobres, depois da má distribuição de renda, agora é
totalmente desprezada, marginalizada ao cubo
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Emiliano José
6
de agosto 2020
Rômulo Almeida,
fontes, tensão, amizades.
Como
temos insistido ao longo dessa série sobre o Jornalismo, quem passa pela
Editoria Geral está sujeito a chuvas e trovoadas, e aí é coisa boa, e a tempo
bom, e aí é calmaria, sinônimo de coisa ruim.
Matéria
boa é a explosiva.
A
da rotina, rotina.
Repórter
não gosta.
Mas
deve levá-la adiante.
Faz
parte da linha de produção.
Cai
no colo matéria sobre a pesca na Enseada dos Tainheiros, onde um acidente com a
CQR tinha poluído toda a área.
O
delegado da Sudepe, Edvaldo Severiano, queria o fechamento da fábrica.
Não
deixava por menos, não queria conciliação: era a espécie humana em risco, e
para a saúde não existe meio termo - era o que dizia.
Matéria
de 10 de maio de 1975, "Jornal da Bahia", como vocês sabem:
"Delegado da Sudepe defende fechamento".
Logo
depois, dia seguinte, e eu devia estar preparando essa reportagem havia vários
dias, longo trabalho sobre multinacionais.
Foi
provavelmente quando começou a minha relação com o grande Rômulo Almeida.
Já
contei, creio: nossa relação tornou-se tão sólida, a ponto de quando não tinha
tempo dizia escreva você sabe como penso, e nunca deu errado.
Um
ser humano especial e cujo papel na história do Brasil ainda não está
devidamente dimensionado.
O
assunto das fontes rende.
É
uma relação tensa.
Você
faz amizades, besteira dizer o contrário.
E
caminha no fio da navalha.
Pode
desagradar a fonte amiga.
Fiz
várias amizades ao longo de minha trajetória jornalística, e nunca houve
rompimento por conta desse exercício profissional.
O
gancho do meu texto, e gancho é parte do jargão jornalístico, algum fato a
sustentar a reportagem, o gancho era a instalação da CPI das Multinacionais na
Câmara Federal.
Sempre
acho um exercício rico essa revisitação do passado, insisto sempre nisso.
Impossível
compreender o presente sem olhar para trás.
Releio
a reportagem de 11 de maio de 1975, do nosso "Jornal da Bahia", e
noto a similitude com os dias atuais, consideradas, claro, as mudanças
experimentadas pelo mundo.
Os
EUA eram donos da Terra, senhor dos mares, do céu e das terras, mais ontem do
que hoje.
A
China não ganhara a importância de hoje.
Ainda
existia URSS.
Observações
de hoje.
Rômulo
Almeida dizia: o desenvolvimento através das multinacionais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTARIOS
Jose Jesus Barreto: grande figura
humana, extraordinário pensador, mestre. Sempre admirado Rômulo Almeida.
Mônica Bichara: Claudia
Correia
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Emiliano José
7
de agosto 2020
O poder de mando
das multinacionais
É,
naquele tempo, naquela matéria de 11 de maio de 1975, no "Jornal da
Bahia", mais de meia página, o grande Rômulo Almeida dizia custar muito
caro ao Brasil o desenvolvimento via o caminho das multinacionais.
Direta
ou indiretamente, o País pagava muito pelo capital que entrava, e o
desenvolvimento estimulado por elas não contribuía para a formação de quadros
brasileiros.
Dava
de barato que na fase anterior, de substituição de importações, a empresa
estrangeira ainda pudesse ter representado algum progresso, mas esse momento
havia passado.
Desenvolvo
a análise das multinacionais.
Detinham,
como detém, um poder extraordinário.
Os
EUA, principal centro de origem.
Elas
têm o mercado, e não a nação, como fundamental.
Embora,
como já dito, os EUA concentrem a esmagadora maioria delas.
Com
números da época, 187 conglomerados controlavam, através de dez mil
subsidiárias espalhadas mundo afora, aproximadamente 80% de todos os
investimentos norte-americanos no exterior.
As
filiais das multinacionais norte-americanas na América Latina controlavam quase
um terço da produção industrial da região.
Um
número restrito de empresas estava em condições de ditar de uma sala de Park
Avenue os termos de produção, as taxas de expansão, as políticas de exportação,
os padrões de consumo, tudo, medidas capazes de afetar substancialmente as
economias e os modos de vida de um número considerável de países.
No
Brasil, tinham um papel essencial para o modelo de desenvolvimento calcado num
mercado restrito e no incentivo às exportações.
E
os EUA tinham um interesse muito especial pelo Brasil, pois nada como a
tranquilidade de uma ditadura: dos 1,6 bilhão de dólares a serem investidos na
América Latina em 1975, 1,4 bilhão ficaria em nosso País.
Muita
coisa mudou nesses últimos 45 anos, mas o poder das multinacionais só cresceu.
Pra
quem tinha saído da prisão havia pouco mais de seis meses, era um bálsamo poder
escrever matéria como aquela.
Agora,
ainda não era assinada.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Emiliano José: Ranieri Muricy
Barreto
Ranieri Muricy Barreto: Emiliano José
e a tendência se confirmou, a maior parte dos ativos, da Europa também, fora do
país sede, possibilitando remessas líquida de lucro!
Leonardo Urpia: E quando
tentamos a construção de uma indústria nacional, com encadeamento, pesquisa e
desenvolvimento próprios, a partir do desenvolvimento de um marco regulatório
que estimulava o conteúdo local, mesmo permitindo o consórcio com
multinacionais, tomamos o golpe de 2016 !
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Emiliano José
8
de agosto 2020
Salvador: sob
escombros e à beira do precipício
Olhando
pra trás, penso na produção jornalística, no trabalho duro dos repórteres.
Produção
de conteúdo reclama suor, dedicação, horas de campo, e depois de redação.
No
dia 11 de maio de 1975, ao rever arquivos, deparo com três matérias minhas
publicadas no "Jornal da Bahia".
A
das multinacionais, com nosso Rômulo Almeida, já falada.
E
mais duas: "Número de vítimas ainda desconhecido", sobre tragédia na
Rua do Julião, e "Morro do Cabrito vive em clima de apreensão".
A
primeira, provavelmente, estava sendo feita havia dias, e foi desovada naquele
dia.
As
outras duas, pautas do dia 10 de maio.
Jornalista
não pode esquecer: é trabalhador como outro qualquer.
Incluído
numa linha de produção.
Assalariado.
Claro,
trabalho intelectual, mas trabalho.
E
a separação entre trabalho manual e intelectual dá muito pano pra manga, e
ainda mais no tempo da sociedade do conhecimento, mas aí já estou avançando o
sinal.
Voltemos
ao leito.
No
Julião, na madrugada, alvenarias cedem, caem sobre três antigos prédios, mata
algumas pessoas, deixa dezenas ao desabrigo, desespero, hospitais, o escambau.
O
momento mais emocionante da matéria foi o salvamento o salvamento de Nivaldo
Alves de OIiveira.
Das
9 às 12,30, três dedicados bombeiros tentavam salvá-lo, tirá-lo do meio dos
escombros, sob uma pedra de algumas toneladas.
Cavavam
com a mão para abrir um buraco e chegar a Nivaldo, com quem conversavam sempre,
ele de cócoras mão esquerda entre as pernas orientando a ação dos bombeiros.
Até
sobre futebol conversavam:
-Sou
Bahêa - disse Nivaldo, do fundo do buraco.
Repetiam:
"nós vamos salvá-lo".
Ferido
nos ombros, pés, joelhos, foi retirado.
A
enfermeira tremia muito quando ele saiu, e o tranquilizante preparado por ela
não foi necessário.
O
bombeiro Dilson Gomes de Sá, ao ver Nivaldo saindo dos escombros são e salvo,
desmaiou.
A
matéria do Morro do Cabrito: é a história de vestir um santo e deixar o outro
nu.
Do
morro, tirava-se material arenoso para aterrar Alagados, em obra dirigida pelo
governo do Estado. Mais de 1.500 pessoas em desespero. Indenizações irrisórias
e não pagas, paralisações de construções e de obras assistenciais, casas
correndo o risco de serem tragadas pelo precipício formado com retirada da
areia.
O
povo de Salvador sofria, viu?
Sofria?
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de agosto 2020
Petrônio
Portela: a ditadura e seu discurso.
Não
canso de dizer o quanto é importante a revisitação do passado.
Leio,
releio, agora, matéria feita por mim, retratando opiniões do senador Petrônio
Portela, presidente nacional da Arena.
A
entrevista coletiva, dada no Palácio da Aclamação, foi no dia 16 de maio de
1975.
O
título do dia seguinte, do "Jornal da Bahia": "Portela não
confirma mudança ministerial".
Importa
mesmo, nessa revisitação, olhar o discurso daquele momento.
-
Um país em desenvolvimento não deve buscar a implantação da democracia
clássica, com seus dogmas já superados pela realidade.
O
senador defendeu a manutenção do AI-5, colocou-se a favor das eleições
indiretas para governador e minimizou a vitória do MDB em todo País nas
eleições do ano anterior.
Dizia
não haver qualquer política de distensão:
-
Isso pressupõe uma tensão que não existe.
Dava
voltas para justificar a ditadura:
-
Precisamos ter instituições de acordo com a nossa realidade, evitando
reproduções de modelos de outros países.
A
Europa, lembrada por ele próprio, como cenário de democracias clássicas, vivia
"sob o assédio de forças dissolventes , sob permanente ameaça".
Assim,
concluía, o AI-5 ainda era uma necessidade para o Brasil.
Nada
de supressão do decreto 477, cujo conteúdo limitava profundamente a
participação política dos estudantes:
-
Não queremos a participação daqueles que pretendem subverter a ordem vigente.
Pluripartidarismo?
Nem
pensar.
A
ditadura parecia serenamente estabelecida.
Vivia-se
um momento de início da retomada das mobilizações da sociedade civil, ainda
incipiente.
Ganhariam
velocidade no final da década.
Dez
anos depois, a ditadura terminava.
Ali,
naquele 1975, Petrônio Portela era homem forte.
Eu
amadurecia como repórter.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Cely Barbosa: Nesse momento
é tb o passado, esse temível e vergonhoso, que nos espreita. Boa lembrança,
Emiliano. Pena que só os mesmos percebem isso. Não à toa, vemos agora a
pontuação do Bolsonaro. Ando muito descrente do que podem ou querem ou investem
ou superam as forças (?) progressistas desse país! O medo mora em mim
Emiliano José: Cely Barbosa
Beijo, minha flor
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Emiliano José
10
de agosto 2020
Emprego, meio
ambiente, latifúndio, pecuária
e índios: velhos
problemas, até hoje não resolvidos
Vida
de repórter não para.
Sigo
a estrada.
O
desenvolvimento não pode ser apenas econômico.
Os
frutos dele devem se estender a amplas parcelas da população.
Era
essa a fundamentação do plano para mobilização, treinamento e alocação de
recursos humanos em andamento no Estado, explicado pelo diretor do Departamento
de Mão de Obra da Secretaria de Trabalho e Bem Estar do Estado, Jorge Lessa
Guimarães.
Sabia,
e dizia: o Polo Petroquímico pode ter poucos efeitos para o conjunto da mão de
obra local se ela não estiver tecnicamente preparada para ser aproveitada.
E
isso valia para outros setores, inclusive para a agricultura.
A
matéria da página 4 do "Jornal da Bahia", sob o título
"Desenvolvimento não apenas econômico", é do dia 18 de maio de 1975.
Devastação
das reservas florestais, impotência do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento
Florestal (IBDF), dificuldades para garantir a permanência dos indios Pataxós
no Parque Nacional de Monte Pascoal, foram alguns dos assuntos tratados pelo
presidente do IBDF, Paulo Azevedo Berutti, em entrevista coletiva.
Foi
um lamento só: não tinha dinheiro suficiente, funcionários escassos, as
determinações permissivas do Código Florestal, a pecuária extensiva levando
tudo de roldão, as florestas indo ao chão.
À
época, qualquer proprietário podia desmatar 80% das reservas florestais de sua
área. Um índice razoável, na opinião dele, seria 50%, como acontecia na
Amazônia.
Na
manhã do mesmo dia da entrevista, Berutti encontrou-se com o antropólogo Pedro
Agostinho, da UFBA, defensor da permanência dos Pataxós no Parque Nacional de
Monte Paschoal.
Agostinho
informou-lhe que a antropóloga Maria Rosário Gonçalves de Carvalho passaria
seis meses entre os índios, estudando seus hábitos e costumes, e Berutti gostou
da ideia.
Agostinho,
Maria Rosário e depois Maria Hilda Baqueiro Paraíso serão minhas fontes
essenciais sobre a questão indígena na Bahia.
A
matéria "IBDF reconhece que é fraco ante devastação", de 19 de maio
de 1975, evidenciava o secular problema do meio ambiente, da incapacidade do
governo no enfrentamento dos empresários agrícolas e do latifúndio e, também, a
violência contra os índios, questões até hoje pendentes, e agravadas, como
sabemos, sobretudo sob o governo Bolsonaro.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jovino Alberto Pereira: Destruíram a
mata Atlântica... Vão destruir a Amazônia...
Jose Jesus Barreto: Jovino Alberto
Pereira vão destruir? A Amazônia vem sendo destruída há décadas
Jose Jesus Barreto: Antigos
problemas. Tão atuais.
Isabel Santos: Jose Jesus
Barreto Pois é, Barretinho. Parece que paramos no tempo. Chego até a pensar que
involuímos quando se trata das questões do meio ambiente. São tantos disparates
contra a Mãe Natureza, que dói no âmago. Ela chora, chora...
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Emiliano José
11
de agosto 2020
Profetas e
discípulos
Ainda
em maio, volta a discussão sobre dom Jerônimo de Sá Cavalcanti.
Os
leitores, alguns ao menos, têm acompanhado a polêmica.
Em
fevereiro, fiz entrevista com ele, publicada pelo "Jornal da Bahia",
23 de fevereiro de 1975.
Defendeu
o divórcio.
Um
escândalo.
Escarcéu
na Igreja Católica.
Reação
da CNBB.
E
dos próprios beneditinos.
No
início de abril, o religioso renuncia ao cargo de Prior do Mosteiro de São
Bento de Salvador, ocupado por ele havia dez anos.
Muito
pano pra manga.
Maio
caminhando para o fim, e dom Basílio Penido desembarca em Salvador.
Presidente
da Congregação Beneditina do Brasil, vinha em visita canônica, realizada
rotineiramente de três em três anos, como explicava.
Viajava
pelo País com o objetivo de promover a unidade dos diversos mosteiros,
conquanto enfatizasse a autonomia de cada um deles.
Em
rápida coletiva, voltou ao assunto dom Jerônimo para insistir na tese da
renúncia dele por "livre e espontânea vontade".
Não
tergiversou: era a favor da resolução do CNBB, mantendo a posição da Igreja com
relação à indissolubilidade do matrimônio, "uma coisa inerente ao direito
natural".
A
Igreja tem posição clara contra o divórcio - reafirmou.
A
opinião de particulares, outra coisa.
Pluralidade
de pensamento, nada a ver:
-
Para ser católico é preciso ter unidade de pensamento.
Dom
Jerônimo continuava silencioso.
A
matéria publicada pelo "Jornal da Bahia" em 22 de maio de 1975:
"Penido: Saída de D. Jerônimo foi livre".
Mais
tarde, dando aula na Faculdade de Comunicação da UFBA (Facom), logo depois de
ter escrito "As asas invisíveis do padre Renzo", orientei dois alunos
nos trabalhos de final de curso, cuja relação com o episódio de dom Jerônimo me
parece clara, indiretamente.
O
de Paloma Varón, de 2001, "Rumo à Terra Prometida: a trajetória do Grupo
Moisés", em parceria com Francisco Cláudio.
E
o de Everaldo de Jesus, "Por amor aos meus irmãos: Dom Timóteo: Profeta da
Bahia", em parceria com Regina Bandeira, de 2002.
O
Grupo Moisés tinha em dom Timóteo seu profeta e foi muito importante no combate
à ditadura.
O
trabalho de Everaldo e Regina tem sequência agora, com Everaldo produzindo
dissertação na área de História da UNEB sobre o próprio dom Timóteo.
Paloma
anda pela Europa tem tempo, agora em Paris, e eu não sei o caminho tomado por
seus estudos, hora dessas me informa, nos comunicamos pelas redes sociais.
Bons
frutos.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de agosto 2020
Submissão ao
imperialismo
Olhando
para trás, nem imagino como surgiu a pauta.
Ouvir
Pedro Barreto, chefe do escritório regional da Hidroservice na Bahia e Sergipe.
Parecia
matéria fria.
Esquentou.
O
homem meteu o pau nas multinacionais, defendeu mudança na legislação para
dificultar a entrada de capitais estrangeiros no País, uma lei mais rigorosa
para disciplinar a remessa de lucros.
Foi
além: propunha redistribuição da renda, reformulação dos critérios relativos ao
salário mínimo e legislação restritiva do automático aumento de preços quando
da majoração dos salários.
Multinacionais
querem lucros crescentes, uma visão contrária ao desenvolvimento harmônico do
País.
Quando
for necessária a entrada de capitais estrangeiros no País, o caminho seria
optar por pequenas e médias empresas - era o que defendia.
Parecia
ignorar a fase vivida pelo capitalismo, do predomínio absoluto das grandes
corporações econômicas, o chamado capitalismo monopolista.
Defendia,
ainda, a ampliação do mercado interno.
Mas,
era crítico da, para ele, crescente estatização vivida pelo País.
Concorda
com a participação do Estado em setores de baixa rentabilidade e pesados
investimentos - a velha cantilena da chamada burguesia nacional.
Barreto
deve ter misturado suas opiniões pessoais com os do grupo.
Dia
seguinte, se a minha memória estiver boa, e não garanto, andou telefonando para
o jornal para um "veja bem", "não tinha sido bem assim".
Não
houve desmentido, até porque eu tomava muito cuidado para ser fiel às minhas
fontes.
A
matéria foi publicada pelo "Jornal da Bahia", no dia 25 de maio de
1975, sob o título "Atuação das multinacionais prejudica política
salarial".
Professor
da UFBA, do lnstituto de Geociências, supervisor do Grupo Visão na Bahia,
Sergipe e Alagoas, Barreto expressava o pensamento, grosso modo, de uma
burguesia liberal, defensora da mais absoluta liberdade ao capital privado, com
alguma restrição ao capital estrangeiro, e contra a presença do Estado na
economia.
Não
se pode nem falar, e estou adiantando opinião, não é mais a matéria
propriamente, de uma burguesia nacional, sonho dos crentes nesse mito,
inexistente no Brasil.
Nosso
desenvolvimento econômico não contou com a burguesia. Nossos capitais sempre
preferiram o atrelamento ao capital internacional.
Vem
de longe a submissão ao imperialismo.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de agosto 2020
Alagoinhas,
1975, e o impeachment:
ataque à
soberania popular
Minha
primeira missão como enviado especial.
Destino:
Alagoinhas.
Pauta:
tentativa de impeachment do prefeito Judélio Carmo, do MDB.
Dessa
cobertura, três matérias no "Jornal da Bahia"
A
primeira, dia 28 de maio de 1975: "Judélio critica omissão do governo:
impeachment".
A
segunda: "Câmara decreta impeachment de Judélio Carmo", de 29 de
maio.
A
terceira: "Juiz de Alagoinhas seria até parente de Murilo
Cavalcanti".
O
quadro era de evidente tensão no município, como constatei logo ao chegar.
Aquele
impeachment, foi, quem sabe, um dos primeiros dos muitos ocorridos depois em
nossa história.
Era
manobra da oligarquia Azi, representada principalmente por José Azi da Silva,
um dos homens mais ricos do município segundo Carmo, destinada a recuperar o
poder perdido na eleição anterior.
Azi
tinha Murilo Cavalcanti como aliado no esforço golpista.
O
argumento era a aprovação do orçamento sem a aprovação da Câmara, e a resposta
do prefeito era o de estar obedecendo jurisprudência firmada pelo STF - o
orçamento havia expirado e ele não podia mais governar com base no de 1973.
A
manobra era política - argumentos, se arrumam.
Conhecemos
isso.
Houve
um reboliço de bom tamanho.
O
MDB, com suas insuficiências, com um comando adesista na Bahia, ficou em
silêncio. Mas, houve a voz forte, não obstante solitária, da Ala Jovem.
O
advogado Adelmo Oliveira, falando pela juventude do partido, criticou duramente
a tentativa.
Mostrava-a
como iniciativa destinada a acobertar "caprichos pessoais" e proteger
"interesses insaciáveis de oligarquias".
Criticava
também a posição considerada ambígua por ele do governador Roberto Santos.
Uma
prática antidemocrática, energicamente repelida pela Ala Jovem, como dizia
Adelmo Oliveira.
O
senador Orestes Quércia, presente ao julgamento, dizia do abalo sofrido pelo
processo de distensão anunciado pelo presidente Ernesto Geisel com aquele
procedimento de dirigentes arenistas do município.
A
fala de Judélio Carmo durante a sessão do impeachment, Câmara lotada, durante
duas horas, emudeceu seus adversários pela consistência, delirantemente
aplaudido.
De
nada valeu.
Dez
votos a favor do impeachment, apenas três contra.
Jeferson
Vilanova, presidente da Câmara, assumiu a Prefeitura.
Advogados
famosos foram acionados, Yon Campinho e Thomas Bacelar, mas sem sucesso.
Um
golpe contra a soberania popular, como tantos outros.
Para
mim, uma bela experiência jornalística.
Seguia
aprendendo, sob a batuta de Cesio Oliveira...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de agosto 2020
Rui Santos e a
demorada transição à democracia
O
jornalismo, em períodos ditatoriais, há de buscar brechas.
Certamente,
era esse o pensamento de um Cesio Oliveira ao me indicar para entrevistar o
senador Rui Santos, da Arena.
Se
não era um dissonante, não fosse propriamente um dissidente, começava a dar
sinais de inconformismo com algumas posições dominantes, não obstante tomasse o
cuidado de reafirmar o seu apoio essencial ao regime autoritário.
Era
entrevista exclusiva.
O
título da matéria do "Jornal da Bahia", de 5 de junho de 1975,
parecia apenas uma repercussão sobre o recente impedimento do prefeito de
Alagoinhas: "Rui Santos acha primarismo o impeachment de Judélio".
Ia
muito além.
Claro,
falou do assunto, gancho para o lead.
-
O impeachment é um instituto sério para ser proposto com razões sólidas, e não
com objetivos de ordem meramente política.
Defendeu
a distensão proposta por Geisel, o monopólio estatal do petróleo, e considerou
que o decreto 477, que limitava a liberdade dos estudantes, "caiu em
desuso".
Estava
convencido do restabelecimento, brevemente, de um regime aberto à participação
livre dos cidadãos, inclusive com a volta integral do habeas-corpus, suspenso
pelo AI-5.
Esse
restabelecimento não foi tão breve, como a história demonstrou.
Só
veio ocorrer dez anos depois.
A
derrota fragorosa da Arena nas eleições do ano anterior tinham como causas, na
opinião dele, as divisões na Arena e o aumento constante do custo de vida.
Defendeu
os direitos humanos, e manifestou a convicção de que todas as violências que
ainda possam existir "não contam com o apoio do presidente Geisel".
Até
certo ponto, podemos dizer hoje.
Geisel
disse, logo ao assumir, declaração revelada mais tarde pelo jornalista Élio
Gaspari, ser necessário "continuar a matar", e assim a ditadura o fez
contra tantos adversários políticos sob sua Presidência.
Rui
Santos era um intérprete, podemos dizer passado tanto tempo, visto com os olhos
da história, um homem de Geisel - fazer a transição lenta e gradual, sob o
tacão militar.
Essa
distensão só ganhará velocidade com a pressão popular, principalmente a partir
do governo Figueiredo.
Não
saiu nem como os militares queriam.
Nem
como a desejada pelos setores populares desejavam.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jovino Alberto Pereira: Sabia que Rui
Santos era casado com irmã de minha vó Lourdes? Todos os anos no aniversário
dele íamos ao sítio perto de Feira de Santana... Comia muita goiaba, carambola,
siriguela... Tudo colhido do pé e saboreado na hora... ainda quentinha e cheia
de vida as referidas frutas... DELICIOSAS.
Emiliano José: Jovino Alberto
Pereira Sabia, não. Olha só..
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Emiliano
José
15
de agosto 2020
Alagoinhas:
cidade sitiada
Alagoinhas
deu foi pano pra manga.
E
não foi pouco, não.
Alagoinhas
e o impeachment do prefeito.
No
dia 1 de junho de 1975, matéria minha, o "Jornal da Bahia" estampava
título: "Deputado considera impedimento de Judélio Carmo golpe de
canalhas".
O
deputado federal Hildérico Oliveira (MDB) definiu o impeachment provocado pela
família Azi e por Murilo Cavalcanti, como um golpe baixo e próprio de canalhas.
Um
golpe a dificultar "a tentativa de revigoramento politico" em
andamento do País.
O
impeachment era o esforço de elementos incapazes de ganhar eleições, e cujas
pretensões era chegar ao poder pela força.
Eram,
como dizia, oligarquias locais desacostumadas com a prática da democracia e
habituadas a conquistar o poder por quaisquer meios.
As
casas do deputado Jairo Azi e do vereador Crisanto Borges em Alagoinhas estavam
fortemente protegidas pela polícia.
O
clima continuava tenso no município.
Judélio
Carmo e a família resolveram fixar-se momentaneamente em Salvador devido aos
riscos de segurança daquele momento na cidade.
A
Comissão Executiva Estadual do MDB, em reunião no dia anterior, dia 31 de maio,
expulsara o vereador Crisanto Borges pelo fato de ele ter votado a favor do
impeachment.
A
atuação adesista do vereador foi muito acintosa, levando a uma Executiva ainda
de natureza situacionista, sempre ao lado do governo, a decidir-se pela
expulsão.
Ney
Ferreira, presidente do partido e líder do adesismo, estava presente à reunião.
Os
leitores sabem: o afastamento do prefeito acabou confirmado.
Era
uma conjuntura ainda de muita defensiva da oposição no Estado, um MDB
enfraquecido, um Judiciário absolutamente controlado pelas forças
situacionistas, e o golpe do impeachment se confirmou.
Na
sequência, passo a passo, o MDB, depois PMDB, se fortaleceria, sobretudo após a
volta de Waldir Pires em 1979, e ganharia as eleições no Estado, com a
memorável vitória do próprio Waldir, em 1986, mas essa é outra história.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de agosto 2020
A voz do
Império: armas nucleares, presença
americana na
América Latina,
Salvador Allende,
multinacionais e domínio
Desde
sempre, os EUA foram contra as armas nucleares.
Nas
mãos dos demais países do mundo.
Nas
deles, tudo bem.
Pudessem,
e teriam o monopólio delas.
Inauguraram
com Hiroshima e Nagasaki a era nuclear.
Deixaram
o mundo sob a Espada de Dâmocles da bomba atômica.
Depois,
viram a URSS também fabricar a sua bomba.
E
mais alguns países.
Estou
olhando para o título de matéria do "Jornal da Bahia" de 6 de junho
de 1975, escrita por mim: "Brasil sem armas nucleares".
Cobri
conferência do professor Michael Morris, da Universidade Johns Hopkins, na
Faculdade de Fillosofia e Ciências Humanas da UFBA, sobre as relações dos EUA
com a América Latina.
Olhem
a preciosidade, destacada por mim no lead, a nitidez da fala de Morris:
-
Gostamos muito da continuidade do crescimento econômico de um Estado
conservador como o Brasil, mas não gostaríamos que esse desenvolvimento fosse
até a obtenção de armas atômicas.
Observem:
a fala do Império não é contida, cuidadosa.
É
direta, prescritiva.
O
chamado Clube Atômico, composto pelo seleto grupo de países detentores da
bomba, deve continuar fechado, segundo ele.
Dava
recados aos militares.
Os
EUA desconfiavam algum flerte da ditadura com a ideia de ter a bomba.
Melhor
ir deixando recados.
Foi
uma conferência interessante.
Cheia
de sinalizações.
Situação
internacional de transição, evidenciada pela pluralidade de centros de poder,
declínio relativo do poderio dos EUA, mudança da política exterior
norte-americana, sobretudo flexibilização na relação com o mundo socialista,
além de mudanças com relação à América Latina.
Na
região, confessava, o país vivia um dilema: de um lado, os EUA pretendiam
reduzir seus compromissos na região, e de outro, pretendia manter o mesmo grau
de domínio anterior - "não se pode dizer que esquecemos da guerra
fria".
Falava
na política de não-intervenção, mas desnudou-se quando questionado sobre a
participação do país no golpe chileno:
-
Adotou-se a tática de criar problemas para o governo de Allende.
Discorreu:
Allende não era amigo dos EUA, "tínhamos que fazer algo para
molestá-lo".
Que
metáfora, hein?
Molestá-lo?
Um
banho de sangue.
As
multinacionais cometiam abusos na América Latina, reconhecia.
Ainda
assim, nada de serem controladas pelos países da região.
Melhor,
na opinião dele, estivessem sob uma legislação globalizante a garantir seus
interesses.
A
voz do Império.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de agosto 2020
João Mangabeira,
socialismo democrático,
convicções,
ousadia e coragem
O
jornalismo pode ser um caminho de rico aprendizado.
Se
você souber aproveitar.
Eu,
nessa fase inicial, coisa de oito meses de profissão, um novato ainda, ia
bebendo na fonte do dia a dia, descobrindo tesouros, valendo-se de escassos
conhecimentos, acumulando tantos outros.
De
repente, apareceu João Mangabeira.
Os
restos mortais dele chegaram à Bahia, trazidos do Palácio Tiradentes, no Rio de
Janeiro, guardados, a partir dali, na Faculdade de Direito da UFBA, ao lado da
urna de Teixeira de Freitas.
Matéria
de 24 de junho de 1975, do "Jornal da Bahia": "Restos de
Mangabeira já são de sua gente", escrita por mim.
Muitas
personalidades na cerimônia enaltecendo a grande figura: Raul Floriano,
Virgílio Mota Leal, o filho Francisco Mangabeira, para quem o pai considerava a
liberdade como necessidade e possibilidade de todos.
Nele,
segundo o filho, abrigava-se a ideia do socialismo democrático e humano, com
economia planificada, respeitador das liberdades pessoais, direitos da
consciência, das propriedades privadas não monopolistas sujeitas sempre ao bem
comum, aos legítimos direitos dos trabalhadores de todas as condições.
Foi
uma comovente solenidade.
Mangabeira
revisitou-me quando escrevia a biografia de Waldir Pires, sobre quem ele
exerceu poderosa influência, a partir do discurso dele como paraninfo da turma
da Faculdade de Direito, dia 8 de dezembro de 1944.
Waldir
ainda estudante do Colégio Central, segundo clássico.
É
um episódio emocionante.
Um
discurso para a história.
Um
socialista, um homem de coragem, a enfrentar prisão e a nunca abrir mão de suas
convicções.
Aconselho,
para não arriscar uma digressão longa, a leitura do primeiro volume de meu
livro.
Senão
todo, ao menos o capítulo "A formação do pensamento", entre as
páginas 261-296.
Quem
quiser o livro, mando autografado.
Posso
até falar aqui de Mangabeira, a partir do livro.
Mas,
só a pedidos.
Leitor
é exigente, e nem sempre gosta de digressões...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jorginho Ramos: João
Mangabeira influenciou várias gerações de homens públicos na Bahia. E sempre se
manteve fiel a seu dogma: Socialismo com Liberdade.
Emiliano José: Jorginho Ramos
Perfeito, Jorginho
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Emiliano
José
18
de agosto 2020
Acordo
Brasil-Alemanha sobre energia nuclear,
reação dos EUA,
riscos mortais da poluição,
viabilidade da
construção da bomba atômica
O
jornalismo foi para mim, também, uma estrada de construção de amizades.
Naquele
junho, conheci Roberto Max de Argolo.
Entrevistei-o.
Geofísico,
chefe do Laboratório de Geofísica Nuclear da UFBA.
A
matéria, publicada no dia 22 de junho de 1975, no "Jornal da Bahia"
levava o título em letras garrafais: "Estados Unidos reagem à ameaça a
seus interesses".
Argolo,
poucos dias depois, certamente ele nem desconfiava, será preso na esteira da
chamada "Operação Radar", ofensiva contra o PCB, cujo saldo trágico
foi o assassinato na tortura de pelo menos duas dezenas de dirigentes do
partido País afora.
Na
Bahia, a repressão prendeu em torno de 80 militantes.
Argolo,
na entrevista, dissecava a pressão desencadeada pelo EUA contra o acordo
nuclear Brasil-Alemanha, apontando para a perda do mercado de reatores e para
uma posição política tipicamente imperialista, de quem não quer permitir a
chegada de outros atores ao seu quintal - era este o tratamento do Império à
América Latina.
Considerava
o acordo com a Alemanha um avanço.
Fosse
com os americanos, não haveria qualquer transferência de tecnologia.
Crítico,
falava do grave perigo da energia nuclear.
Não
fora encontrada ainda nenhuma solução para os enormes riscos da liberação dos
resíduos radioativos.
Riscos
mortais.
Ao
entrarem na cadeia alimentar do homem, os resíduos, se assimilados pela água,
pela terra, por plantas ou por animais, causam câncer ósseo, destruição das
células e a morte, e não podem ser jogados ao mar, nem enterrados.
E
a bomba atômica? - perguntei.
-
A bomba atômica depende apenas de uma opção política e de recursos econômicos.
A tecnologia não é mais um segredo impenetrável.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Luiz Brasileiro Brasileiro: Emiliano, por
onde anda o profº Roberto Argolo? Faz tempo que não o vejo nem tenho notícias.
Emiliano José: Luiz
Brasileiro Brasileiro Tempo não o vejo. Vou procurar.
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Emiliano José
19
de agosto 2020
Ditadura,
juventude, participação política
Era
1975.
Juventude
asfixiada.
Ditadura.
O
senador Petrônio Portela conclamava a juventude a ingressar na Arena, partido
dele.
E
ainda prometia bolsa de estudos a quem quisesse se filiar ao partido
governista.
Esse
o gancho da matéria do "Jornal da Bahia", 19 de junho de 1975,
"Jovens querem liberdade para atuar politicamente", escrita por mim.
O
sobrevoo sobre o passado envolve reencontros, descobertas.
Essa
matéria me possibilitou conhecer Sérgio Santana, vereador pelo MDB, de quem me
tornei amigo.
Jornalismo,
dizia ontem, possibilita também fazer amizades.
Besteira
excluir eventuais fontes do rol de amigos.
O
vereador também será preso na violenta "Operação Radar", deflagrada
em todo o País contra o PCB.
Em
dias próximos, ouvi Roberto Argolo e ele, dois dos mais de 80 presos na Bahia.
Também
ouvi o jovem aluno de Ciências Sociais, Ildes Ferreira, representante
estudantil no Departamento de Antropologia da UFBA, mais tarde ativo militante
nos movimentos sociais, vereador e secretário em Feira de Santana.
Nos
deixou recentemente.
Sérgio
Santana, um dos coordenadores da Ala Jovem do MDB, lembrou da subestimação por
parte da Arena da capacidade da juventude acreditando na ameaça representada
por dispositivos autoritários, assustou-se com a vitalidade dos jovens, com
participação decisiva nas eleições de 1974, e agora tentava uma jogada
destinada a atrair os estudantes, inglória, na opinião dele.
A
juventude havia dado um potente sinal de participação política, ao votar
maciçamente no MDB nas eleições de 1974, rompendo com o desencanto dos anos
anteriores.
Acrescentou:
a proposta de bolsa de estudos para estudantes pobres evidenciava traços de
corrupção eleitoral, além de reconhecer implicitamente o caráter elitista do
projeto da Arena de privatizar a Universidade.
Ildes
Ferreira era mais duro ainda.
Depois
da última derrota eleitoral, a ditadura estaria tentando de todas as maneiras
contar com a participação dos jovens. Esquecia a legislação repressiva em
vigor, capaz de tirar qualquer motivação para a participação nos partidos
existentes.
Ari
Guimarães, chefe do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, era claro: as condições para a participação da juventude só
viriam com uma efetiva distensão política.
Se
ela não viesse, muitos jovens se veriam "desviados para a contestação
absoluta".
A
UNE renasceria, quatro anos após, na Bahia.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Devanier Lopes: Muito bom
Carlos Pereira Neto Siuffo: Conheci bem
todos os personagens, Ildes (de Feira de Santana), Sérgio e Ari Guimarães foi
meu professor de Direito Constitucional.
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Emiliano José
20
de agosto 2020
Onde Andará
Aurelita, acadêmica de renome
internacional,
balconista de uma Secretaria
de Educação
cheia de apadrinhamentos?
Onde?
Onde
andará Aurelita?
Não
sei como ela surgiu.
O
faro de Cesio Oliveira deve ser responsável por isso.
Ou
o de Frederico Simões de Santana, Fred, grande pauteiro.
Egressa
de Ciências Sociais da UFBA, curso de Especialização em Planejamento Educacional
na Universidade de Louvain na Bélgica, estágio de observação do Sistema
Educacional dos Kibutz em Israel, Aurelita dos Santos Anastácio era naquele
junho de 1975 balconista da Secretaria de Educação.
Isso,
com toda essa formação, atendente de balcão.
Querem
saber mais sobre essa balconista?
Participou
da criação do Centro de Estudos Brasileiros no Museu da Bahia I, no Japão.
Da
Biblioteca Afrânio Peixoto, na Universidade de Estudos Estrangeiros em Kioto.
Da
constituição do Museu da Bahia II e da Biblioteca Afrânio Peixoto, no Instituto
Ibero-americano em Berlim.
Balconista.
Onde
andará Aurelita?
Ela
avaliava a educação profissional, na conversa comigo: está fadada ao fracasso
porque não há professores, condições técnicas e materiais.
Uma
visão crítica e qualificada sobre a Educação no Estado.
A
superlotação das salas de aula e a ausência de planejamento, apontadas como
fatores agravantes da crise pela qual passava o ensino médio na Bahia.
Fala
com admiração do trabalho do professor Luiz Navarro de Brito à frente da
Secretaria de Educação, desconsiderado por outras administrações.
Formação
de grupos privilegiados - as famosas panelinhas -, utilização de mecanismos
político-partidários para a proteção de alguns funcionários, outros fatores
negativos da Educação no Estado.
Isso
levava a uma subutilização dos recursos humanos da própria Secretaria e
perpetuava a permanência de pessoas incapazes em cargos importantes.
Eram
constantes as transferências ilegais de nível, decorrentes de apadrinhamentos
políticos.
As
perseguições, constantes, e o clima de intriga, permanente.
Está
tudo em minha matéria do "Jornal da Bahia", de 15 de junho de 1975:
"Estado discrimina a gente de valor".
Ela,
valendo-se de seu currículo, tentou insistentemente ascender.
Nunca
conseguiu.
Seguia
atendente de balcão.
Onde
andará a balconista Aurelita?
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
José Carlos Barreiros: O Brasil tem
muitas Aurelita, que são preteridas por falta de apadrinhamento. Quantos e
quantas incompetentes estão ocupando cargos públicos ou não, enquanto pessoas
capacitadas são ignoradas.
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Comentários
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