O cão morde a noite: A humana tortura

Está provado, ninguém entra para a história sem se arriscar. E correr risco nunca paralisou Emiliano José. Muito pelo contrário. Isso fica bem claro com a leitura de “O cão morde a noite”, seu mais recente livro, autobiográfico, que será lançado dia 23 de fevereiro, às 16h30, em live da programação do 31º Festival de Livros e Autores da UFBA (no canal da TV UFBA no Youtube). Honrada, muito honrada em ter sido convidada para participar desse momento, ao lado dele, do reitor João Carlos Salles, da UFBA, e do colega querido Adilson Borges.

Nas 426 páginas ele desencava 28 anos do subsolo da memória, de 1946 a 1974, de Dutra a Geisel. Da infância aos quatro anos de prisão política. A narrativa inclui pesadelos, feridas nunca cicatrizadas. Nem serão. Às vezes ainda sangram e jamais serão estancadas. Digamos que estejam anestesiadas pelo tempo. Mas ele sabe que, mais do que nunca, elas precisam ser removidas dessa noite escura, clareadas, para que não se repitam. Acreditem, tem quem queira cutucar esse cão com vara curta.

Ele ainda era Emilianinho, nas barras da saia da mãe, Maria Aparecida, quando sentiu o peso da responsabilidade, ajudando a sustentar a família até mesmo com trabalho braçal, no campo ou na cidade, pois naqueles tempos o trabalho infantil era realidade aceita pela sociedade. Adolescente, com 14 anos de idade, já estava no primeiro emprego formal, carteira assinada e tudo. Traumatizou, tomou pavor de banco. Ser bancário, nunca mais. Daí para a descoberta da luta, para a revolta contra o arbítrio que golpeava a democracia, foi um pulo. E os riscos só acirrando.



Voltar a estudar foi um divisor de águas. Ler ele sempre leu, tudo que aparecesse pela frente, até bula de remédio. Mas o hoje imortal da Academia de Letras da Bahia, jornalista e professor universitário, ex-deputado estadual e federal, só voltou para os estudos tardiamente. Era o braço direito do pai, Emiliano José da Silva, e não podia se dar a esses luxos.

Como diz o reitor João Carlos Salles no prefácio de “O cão morde a noite”, é biografia, sim, mas também literatura profunda. E eu diria mais, é HISTÓRIA. Uma história que transborda sentimentos variados: admiração, orgulho, calafrio, dor, revolta, arrepios só de imaginar tanta crueldade.

E Emiliano confessa que nunca se atreveu a mergulhar tão fundo nas lembranças. Revirar traumas encobertos pelo esquecimento. Algumas vezes teve que ir atrás de testemunhas, companheiros de prisão, documentação da própria repressão, para resgatar o que a memória apagou. Consciente ou inconscientemente. Não faz muita diferença. Certeza mesmo, cada vez maior, só a de que o ato de torturar é humano. Jamais conseguirei me referir à tortura como desumana depois de ler Emiliano. Tem toda razão, é “demasiadamente humana”.

Assim como humana era a capacidade de resistir, de não abrir o jogo. Sabia que qualquer nome ou endereço que deixasse escapar teria efeito dominó. E resistiu. Fez história.



Chama atenção o reconhecimento da importância das mulheres em sua vida. E não falo de amadas, amantes – não que elas também não tenham tido papel fundamental. A começar de dona Aparecida, sempre pronta a lamber a cria e o defender incondicionalmente. Mesmo quando se viu obrigada a assumir toda a família, enquanto o marido cumpria cadeia. Não como a que o filho viria a enfrentar anos mais tarde, política. Mas por sedução de menor. Enquanto isso outras mulheres entraram em cena, tias e primas que se revezaram no acolhimento à família do conquistador. Lembranças que ele conta com carinho, mas também revelando o quanto foi duro viver de galho em galho sem saber a razão do sumiço do pai. Coisa boa não podia ser, mas isso ele só descobriria bem depois.

Dona Aparecida, lúcida aos 95 anos, nem sabe onde encontrou força e coragem para desempenhar o papel reservado às mães diante da ameaça aos filhos. Foi uma guerreira nos tempos da ditadura. Sequer entendia de política, muito menos dos motivos que levaram Emilianinho à clandestinidade, praticamente um menino ainda, aos 18 anos. Mas não mediu esforços e se jogou pelo Brasil, de ônibus, falando com poderosos pela liberdade do filho.

Delegados, ministros, deputados, militares, advogados, militantes pela anistia....onde existisse uma chance de ajudar o filho, lá estava ela vencendo seus próprios medos. Uma leoa. Visitar o filho na cadeia, depois de seis meses de buscas, não foi fácil. Outra forma de tortura, não tenho dúvida. E ela encarou bravamente.

A irmã Picida, também Maria Aparecida, foi outro elo poderoso da corrente. Dessas que nunca soltam a mão, aliada de todas as horas. Também amava ler, mas teve que atrasar os estudos – “mulher não precisa estudar”, sentenciou o pai. Depois ela descontou o atrasado e se revelou a memória da família, sempre socorrendo o irmão na tarefa de revolver o passado. Casou com um ex-companheiro de cadeia de Emiliano, Denilson Vasconcelos, um dos ajudantes a montar o quebra cabeça das memórias reveladas no livro, desde 2016. Mas o destino não permitiu que ele estivesse aqui para o lançamento.

(Emiliano e a irmã Picida)

Uma professora de história, Ivone, teve papel decisivo na formação política de Emiliano José, despertando “sintomas de pensamento de esquerda”. Noções do Iluminismo, Revolução Francesa, Marxismo....e o estudante secundarista foi ganhando visão crítica, repensando crenças conservadoras adquiridas no seminário católico. Foi nascendo aí o líder estudantil e bancário, preso a primeira vez em 1968 apenas por panfletar no desfile militar do 7 de Setembro, já recrutado pela AP – Ação Popular.

Aos 23 anos, em 1970, desembarca em Salvador. Não mais Emiliano, Pedro Luiz Vian. Clandestino, é recebido por Carolina/Cleuza, até hoje uma grande amiga, companheira do também ex-preso político José Carlos Zanetti (o casamento deles foi na Galeria F da Lemos Brito). Um suporte indispensável ao forasteiro, na casa da mãe dela no bairro da Saude.

Entre as mulheres que se destacaram na rede de proteção a Emiliano na Bahia, a advogada Ronilda Noblat, defensora solidária dos presos da ditadura, ao lado dos indispensáveis Jaime Guimarães, Ignácio Gomes e Pedreira Lapa. Forte também a presença da namorada Mércia, mãe do filho Téo, que nasceria poucos meses após sair da cadeia.

“O cão morde a noite” revela, ainda, o quanto de amadorismo existia na resistência à ditadura. Inclusive a armada. Segurança, quase zero. Muitas vezes valia mais o 6º sentido. E ele livrou Emiliano de grandes riscos antes do fatídico 23 de novembro de 1970, quando caiu de vez nas mãos tenebrosas dos ditadores.



E é o próprio autor quem observa e eu concordo plenamente: não podemos esquecer “do quanto de horror, de tortura, de mortes, de desaparecimentos a ditadura significou”.

DITADURA NUNCA MAIS

(Emiliano com o uniforme da Galeria F da Penitenciária Lemos Brito)

Comentários

  1. Doida pra ver esse lançamento, pelo livro, maravilhoso, o autor, esse querido imortal escritor da porra , e as participações da minha comadre e de Adilson. Não canso de elogiar suas postagens minha âncora, mas esse texto seu aqui tá especial. Emiliano deve estar ainda mais encantado com as suas postagens aqui no blog.

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  2. Por falar em postagens, ando sumida aqui, pq estava me virando entre os trabalhos domésticos, por causa pandemia, os trabalhos do ganha pão e me dedicando ao meu livro Entrelinhas e afetos, que tá saindo agora. Mas voltarei a dar maior atenção ao nosso querido Pilha, que em março fará 12 anos! Um adolescente já!

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    1. Seu livro é outra delícia que já tive a honra e o prazer de provar

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  3. Não sei o que mais me emocionou: o livro (que estou lendo aos pouquinhos, pela beirada, lambendo os dedos pra demorar de acabar) ou se esta resenha, grávida de emoção. Cumádi, tu broca dicumforça! Vixe, tomara que o Magnífico não leia este comentário. Se ler, vou morrer de vergonha por baixar o nível. Parabéns, Emiliano e demais envolvidos. Mas o cheiro especial é pra minha cumádi Moniquinha delícia, por este texto fodástico.

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    1. Contenha-se, Jaci.
      Tem crianças no Pilha Pura! hahahahah

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    2. Mas, sério mesmo, brigadão Jaci. Eu TB fui lendo em doses homeopáticas pra durar mais tempo. Saboreando o texto do mestre

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  4. Legal, Monica (sem acento, acho o som mais carinhoso).

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  5. Que maravilha, amiga/cumádi. Um show de resenha. Tamb`´em estou lendo o livro em doses homeopáticas, me emocionando pra caramba, e aumentando/ampliando/crescendo...minha admiração por esse meu grande amigo de tanto tempo. Estou vivenciando emoção em dose dupla, e aguardando com muita expectativa o dia do lançamento para ouvir vocês quatro, especialmente um pouco mais do nosso querido Imortal. Só aplausos, querida editora.

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  6. Estou procurando mesmo livros bons para ler, com certeza vou comprar o seu.
    Já vou dando logo Parabéns Moniquinha, porque sei que vem coisa boa.
    Muito Sucesso!!!
    Beijos minha flor!😘🌹
    Colada na live!!



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    1. Nilda, querida, vale à pena a leitura, é uma aula de história. Mas não é meu não, é do jornalista e escritor Emiliano José. Só estou divulgando e recomendando. Bjos, obrigada pela presença aqui no blog. Bjoca em Peu

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