(Ilustração extraída da página LulaLivre em homenagem a Haroldo Lima)
(Jornalista Adilson Borges)
Adilson Borges (jornalista)
Era ele um homem incomum. Apesar da vida legendária, era simples, mais simples do que se podia imaginar. Era curioso como uma criança. E, ouso dizer, tímido. O Haroldo Lima com quem convivi por dois dias, realmente, me impressionou.
Estávamos em 2002, eu era assessor de imprensa da campanha de Jaques Wagner(PT) então deputado federal. Waldir Pires (PT) e Haroldo Lima (PCdoB), candidatos ao Senado. Apesar da derrota do trio, foi uma campanha vitoriosa sobretudo porque ajudou a estabelecer um marco na história brasileira: Lula presidente.
O avião pequeno balançava mais do que um barquinho num mar de tempestade, revirando estômagos e expulsando alimentos. Às vezes, não era mais barco. Eu me sentia como.... se estivesse dentro da barriga de uma baleia enlouquecida. Mais do que uma viagem, aquela ida ao interior foi uma verdadeira aventura, uma odisseia para mim, sem exagero literário.
Mas eu estava confiante, contagiado especialmente pelo entusiasmo de Waldir Pires, que me contou quase toda sua vida neste dia. O avião sacolejava, e ele, bem à vontade, respondia a cada pergunta que fazia quando eu conseguia dominar o enjoo.
Wagner tinha uma estratégia que parecia dar certo: passava gelo no rosto e pescoço. Na verdade, ele esfregava os cubinhos na pele branca que ia se avermelhando, o que me fazia lembrar os pescoços irritados dos galos de briga.
Impassível aos solavancos, Haroldo Lima, calado, fitava a paisagem pela janelinha do rebelde barco aéreo, tranquilo como um Jonas adaptado ao ventre da baleia. Vez em quando, olhava pra mim com simpatia, curiosidade e sorria discretamente.
A primeira vez que ouvi falar dele foi em 1976, quando entrei na Escola de Biblioteconomia e Comunicação, que mais tarde seria a Faculdade de Comunicação (Facom) da Universidade Federal da Bahia. Ele havia sido preso durante a Chacina da Lapa, episódio em que a repressão da ditadura matou três integrantes do PCdoB.
Daí em diante, ouvia seu nome sempre relacionado a coisas épicas. Tal como a fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos, condenado à pena de morte, depois comutada à prisão perpétua, a 30 anos de cadeia e, finalmente, a 16 anos, 6 meses e 25 dias. Theo, então com 18 anos, havia matado um sargento da Aeronáutica ao reagir à prisão em 1970, auge da ditadura militar.
Haroldo participou da organização da fuga, inclusive ajudou a redigir e assinou a carta onde Theodomiro, fadado a mofar ou a ser assassinado na Penitenciária Lemos Brito, explicava por que "empreendeu a busca de sua liberdade".
A nave vai. E meu estômago se contorce.
Sentia-me, feliz, quando o avião pousava e a gente descia em uma cidade. Isso acontecia mais ou menos a cada duas horas. O deputado Walter Pinheiro, que também estava na comitiva, e era o mais gaiato, sempre dizia sorrindo quando a porta abria: "Vá na frente, Adilson. Assim, voce recebe os primeiros aplausos ao sair do avião".
Os apoiadores levavam a comitiva para a principal praça, já apinhada de gente, som de jingles de Lula, e as cenas se repetiam. Wagner e Haroldo Lima, improvisavam discursos a partir de uma estrutura de pensamento. Algo como um músico de jazz que trabalha baseado numa harmonia conhecida. Waldir Pires repetia a fala, versos do compositor Gonzaguinha na música Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)
"O homem se humilha
Se castram seu sonho
Seu sonho é sua vida
E vida é trabalho
E sem o seu trabalho
Um homem não tem honra
E sem a sua honra
Se morre, se mata
Não dá pra ser feliz"
Lembro do gosto salgado da pequena lágrima que não contive no primeiro comício ao ouvir a voz expressiva de Waldir declamando. A letra conhecida crescia em expressão, graças ao talento do ex-governador da Bahia. Ele destacava um ponto aqui, reduzia a voz acolá, apressava, retardava o desfecho, fazendo do discurso uma inesquecível experiência.
No segundo comício, fiquei com raiva não de Waldir por achar que me enganara, mas de mim por não imaginar que um discurso belo como aquele não se descarta. Repete-se a cada comício de cada cidade, igual ao ator que repete texto anos a fio, mas o faz sempre de modo diferente.
Na cidade que pernoitamos, acho que Jacobina, o comício acabou bem tarde. Fomos ainda a uma churrascaria, comemos mais do que talvez deveríamos. Apesar de bebermos menos na comparação com a comida, Haroldo parecia se sentir mais à vontade. Conversamos sobre política, claro, sobretudo possibilidades da vitória de Lula, que pesquisas já apontavam.
Espantava-me a importância que ele parecia dar a minha opinião. O grande estrategista ouvia minhas opiniões com uma atenção que eu jamais imaginara. Inquiria, contraditava, concordava, mas sobretudo puxava a prosa para um ponto de vista no qual eu me convenceria - eu mesmo não ele - de que poderia haver outra explicação.
Na manhã seguinte, acordei cedo no hotel. Dormira pensando em minha família, especialmente em meu filho Chico, que à época tinha 4 anos. Era muito bom vê-lo acordar com a alegria dos meninos felizes.
Desci para o café, e para minha surpresa Haroldo já estava lá quase terminando o repasto. Fez sinal, para aproximar-me. Sentei ao seu lado, e no quebra-jejum, continuamos a conversa da churrascaria como se não houvesse sido interrompida.
Falamos sobre perspectivas de uma candidatura à prefeitura de Salvador da então vereadora Olívia Santana, que hoje, 25 de março, faz aniversário. Concordamos que era legal uma mulher negra e combativa como Olívia governar uma cidade tão negra como a capital baiana, mas sabíamos das pedras no caminho deste projeto.
Com a mesma curiosidade e atenção, perguntava sobre como se deu minha formação política. Ficou especialmente feliz por saber que tínhamos um amigo comum, o jornalista Pedro Augusto, que militou no PCdoB até morrer afogado na orla de Salvador em janeiro de 2006; que minha mulher, Marília Pessoa, então presidente do Conselho Regional de Assistentes Sociais da Bahia (Cress-BA), era ligada ao PCdoB, e que eu tocava violão e compunha. Aí, a conversa mudou para poesia.
Estávamos tão à vontade que pensei em dizer que, na Escola de Comunicação, eu me referia a ele como "Reverendo Moon" quando queria sacanear Pedro Augusto, meu doce amigo que faria 70 anos neste 28 de março. Mas calei, não sei por quê.
Por que fiquei inibido? Ou, simplesmente, por que Wagner apareceu, cabelo molhado, rosto vermelho do esfregão da toalha, e sentou com a gente para o café da manhã?
Hoje logo cedo eu comentava com a minha filha Nana sobre Haroldo Lima, ressaltando a importância política dele na luta contra a ditadura e em defesa da democracia e da soberania nacional. Foi quando me lembrei de um episódio ocorrido também num aviãozinho desses usados em campanha eleitoral. Foi em 1994. Lá estava eu no clube do bolinha, entre os grandes da política baiana de resistência. Integrava a assessoria de comunicação do então candidato a governador Jutahy Magalhães, que era do PSDB, mas fechou com Lula candidato a presidente. Eu sempre acompanhava as viagens de Jutahy e suportava bem os saculejos desses teco-tecos. Mas nesse dia em que a nave foi difícil. A nave estava repleta dos pesos pesados da política baiana anti-carlista. Levava nada menos que Waldir Pires e Zezéu Ribeiro, candidatos ao Senado, Haroldo Lima, deputado federal (candidato à reeleição), o ex-governador Roberto Santos e o ex-ministro Sérgio Gaudenze, então coordenador da campanha. E euzinha aqui, oreia seca no meio dos cabras. O teco-teco sacaneou, sacudiu tanto entre as nuvens quentes das duas da tarde, que fiquei zonza. E pra dizer do meu desconforto brinquei com Gaudenzi pedindo pelarmordedeus manda parar o avião que eu quero descer. Riram muito. Tenho a foto dessa viagem. Quando eu achar vou postar.
ResponderExcluirEssa joaninha tem cada história!
ExcluirQue história massa, Joaninha. Também passei uns sufocos em campanha política nesses aviões pequenos, affffff a gente descia sempre como sobrevivente. Parabéns pelo texto lindo, Adilson, principalmente por nos relembrar três queridos que não estão mais aqui: Haroldo Lima, Waldir Pires e Pedro Augusto. E obrigada por escolhe o Pilha para essa homenagem
ResponderExcluirEu é que agradeço, mais uma vez ,pela boa e rápida edição Monica (sem circunflexo). Bj
ResponderExcluirEu é que agradeço, mais uma vez, pela boa e rápida edição, Monica (sem circunflexo). Bj
ExcluirPra vc serei sempre Monica hehehe
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