Porque se chamavam homens
Também se chamavam sonhos
E sonhos não envelhecem
(Clube da Esquina, de Lô Borges)
Um momento delicioso que a pandemia da Covid-9 deixará marcado em mim, foi o prazer de ter lido o último livro, lançado em março deste ano, do querido amigo e colega Emiliano José - a sua autobiografia, ‘O cão morde a noite', que me proporcionou uma abundância de emoções. Estou escrevendo esta resenha ouvindo Silvio Rodriguez, renomado cantor cubano. Afinal, a música de resistência entremeia o tempo todo o lindo, poético e forte relato de um menino que nunca deixou de sonhar; um menino de garra, lá do interior de São Paulo, que viveu a beleza e as agruras da roça, e conseguiu transportar as montanhas das dificuldades sem perder a persistência e a ternura. Nunca desistiu do Saber, e, por meio da leitura, buscou ver o mundo com o olhar da Esperança, sendo hoje um Imortal (tomou posse, no dia 20 também deste mês, na Academia de Letras da Bahia, assumindo a cadeira nº 1 do historiador Luís Henrique Dias Tavares).
Que orgulho desse menino que passou por todas as intempéries sociais para sobreviver, quando criança e adolescente. Adulto jovem, atravessou a tempestade aterrorizante, estúpida da ditadura militar, pois sonhou e batalhou por um País justo, igualitário...Período vivenciado por ele com muita garra e ética, e que é contado no livro de forma minuciosa.
Apesar da dureza enfrentada num período tão obscuro, ele traz leveza ao texto, muitas vezes em tom poético, com bom humor, e sempre externando o sentimento de gratidão a todos com quemconviveu. É muita riqueza de detalhes. Pensei que tivesse lido quase tudo sobre a ditadura. Ledo engano. Ampliei meu conhecimento e me entristeci mais ainda. Acho que até para Freud fica difícil explicar/entender esses anos horrendos da repressão no Brasil. 'Ditadura nunca, nunca, NUNCA Mais!'.
O livro de Emiliano fala de amor, dor física, tristeza da alma, resiliência, superação, amizade, determinação, alegrias, garra..., resumindo, um poço de sentimentos que só a imaginação do leitor, num olhar calmo e atencioso, será capaz de entender a verdadeira dimensão do que dizem as linhas das 426 páginas.
Dentre as tristes recordações da época da ditadura, a memória fresca ao lembrar praticamente de todos os companheiros com os quais conviveu, nos tempos em que foi torturado, no Forte do Barbalho, e na prisão, na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, ambos em Salvador. Enfatizo aqui o orgulho dele (e nosso também, pela coragem) de nunca ter delatado um companheiro, apesar das torturas, até mesmo as impensáveis, que sofreu.
E olhe que não foi fácil resistir. Enquanto lia o livro, me perguntava: como pode? Como conseguiu depois de tantos maus tratos?... Um momento do relato até hoje deixa-me com lágrimas nos olhos. Foi quando Emiliano teve que comparecer à sala do seu torturador, no Forte do Barbalho, depois de tantas barbaridades sofridas nas sessões de tortura, sem camisa (não lhe deram direito a essa peça do vestuário), a calça amarrada com um barbante, no lugar do cinto. "Calço meu sapato marrom esportivo sem cadarço, que vai me acompanhar pelos quatro anos de prisão; ajeito a calça Lee, dou o nó devido no barbante que a sustentava, camisa, sem".
Neste momento da leitura, volto àquele tempo e me vi o acolhendo, com um abraço afetuoso, cheio de carinho de uma irmã em humanidade. Como o faria a sua aguerrida mãe, dona Maria Aparecida, que batalhou como uma leoa para tirar o filho da prisão. Um exemplo de mulher, até hoje, com seus 94 anos, cheia de vitalidade, mesmo depois de ter engendrado tantas lutas. No livro, Emiliano a define como "a andarilha solitária" por "percorrer os gabinetes, conversar com os advogados, chegar a ministros do STM, isso tudo em longas viagens de ônibus".
O mais impressionante de tudo isso, é que ela "nunca havia enfrentado a esfera pública, topado com os negócios do mundo e nem sabia o que era uma ditadura". Viva dona Aparecida, referência para nós, mulheres, em especial para aquelas que não fogem à luta, dentro ou fora do círculo doméstico.
A consciência socialista aflorou no escritor por volta dos 22 nos anos. Vinha-lhe a experiência dos tempos de criança, quando vivenciou pobreza profunda, "de quase fome", muitas vezes, tendo só o chuchu ("prato da resistência") para se alimentar. A carne, quando o pai conseguia comprar, era "bem dividida" com toda a família.
Em 1º de Maio de 1968, ano considerado por ele "extraordinário”, nascia o Emiliano revolucionário. Foi "luminoso", o marco da "minha existência" - uma comparação, mesmo não sendo religioso, à Estrada de Damasco. Ele tem até um hino particular, a música Viola Enluarada (de Marcos e Paulo Sérgio Valle), que cantarolava já na clandestinidade. "Minha canção de luta, de vida, esperança, luta armada, flerte com a morte, drible na solidão".
(Emiliano com a irmã Picida)Não vou dar mais spoiler. Deixarei você ler para degustar essa leitura que fui fazendo, inclusive, em decorrência de muitas demandas, de forma homeopática, curtindo cada detalhe. Concluí durante um voo para Santa Catarina, no dia 10 de março, depois do lançamento oficial.
'O cão morde a noite' me trouxe boas recordações de figuras que foram muito importantes na vida dele e também na minha - apesar de nós não nos conhecermos nesta época - como os padres Paulo Tonucci, pároco da Fazenda Grande do Retiro, com o qual convivi, muito aprendi e mantenho gratidão eterna, e o padre Renzo, atuante no mesmo bairro e na Capelinha de São Caetano, e que muito ajudou aos presos políticos.
(Isabel Santos e Emiliano José no lançamento da biografia do ex-governador Waldir Pires)Na verdade, nem queria falar muito da trajetória política de Emiliano. Valeu a pena conhecer mais profundamente essa sua realidade porque há informações que desconhecia sobre a ditadura e tudo o que ele vivenciou, com pormenores.
Amei mesmo foi conhecer a história da criança - o Emilianinho -, de destino errante (quase uma vida de cigano, com a família mudando de locais de moradia inúmeras vezes), que amava os livros, montar cavalo ("a vida com os cavalos iluminava tudo"), brincar com os primos. Do menino que aos 12 anos começou na lida cuidando de porcos, tirando água do poço, descarregando carro de entulho, cortando cana, construindo cercas na roça.
Naninho (assim também era chamado), foi engraxate, office-boy, bancário, um quase seminarista, fã de Elvis Presley, professor de História, e seguindo, seguindo...até chegar ao jornalismo, à Escola de Comunicação da Ufba, onde fez mestrado e doutorado, lecionou e se transformou num escritor de textos primorosos, nos brindando com 15 livros. E ainda tem a modéstia de afirmar que, se não aprendeu a escrever bem, está tentando até hoje. Veja só. Mais uma vez, Viva Emiliano, “un hombre sinciero” (parodiando José Martin e Chico Buarque). (Emiliano com o filho Teo, em 1975 - Foto de Milton Mendes, também ex-preso político citado muitas vezes no livro e colega de início de carreira no jornalismo)*O livro foi publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba
Massa, Bel. Bj
ResponderExcluirNão sei quem merece mais parabéns: o escritor ou a comentarista. Na dúvida, rendo-me à grandeza de ambos e festejo a felicidade de tê-los próximos ao coração. E a edição de Mônica (Bichara) mais uma vez um primor de delicadeza. Só gente boa! 😍😍😍
ResponderExcluirO fiz no face, ontem à noite, depois de ficarmos 'zapeando' até tarde rssss, mas não postei aqui a minha gratidão `à minha amada amiga/irmã/comadre Monca (Monica Bichara) pelo carinho em publicar a resenha no Pilha, numa edição tão linda, de tirar o chapéu. Não tem pra ninguém. Simplesmente, amei. Beijo no coração, querida e generosa colega.
ResponderExcluirBrigadaaaaaaaaaaaaa, Adilson e Jaci, meus 'zamôres'. Elogio de vindo de vocês, textos primorosos, é de deixar qualquer um com 'a bola toda', rssss Beijos e Beijos
ResponderExcluirUau! Ganhei o dia com esses elogios
ResponderExcluirBelas palavras merecem belos elogios! Amei o texto Dinda! Parabéns, Mônica! Essa dupla sempre foi longe!
ResponderExcluirVi que meu texto não foi identificado. Um beijo de Amina! ;)
ExcluirValeu, Amina, sua dinda arrasou
ExcluirMinha Dinda linda, brigadaço, pela leitura e elogio. Assim, fico toda cheia rssssss. Te amo.
ResponderExcluirDona Isa que comentarista maravilhosa, me deixou com vontade de ler essa história real e interessante viu, grandes beijos.
ResponderExcluirSuelem.
Depois de um comentário desse, amiga, que me deixou emocionada , resta-me adquirir o livro do grande Emiliano!
ResponderExcluirParabéns Bel, Mônica e Emiliano!
Beijo no coração querida!