#MemóriasJornalismoEmiliano: Navarrinho... uma unanimidade

 

(Navarrinho na sucursal do Estadão em Salvador - Foto: Agliberto Lima)

Não vou dizer que o cara é uma lenda do jornalismo baiano, porque ele está aí bem ativo na literatura, no jornalismo, nas redes sociais, no mundo real....mas que Navarrinho (Carlos Navarro Filho) é um excelente personagem que precisava ser biografado, isso Emiliano José provou com esmero na série #MemóriasJornalismoEmiliano, publicada na sua página do face, diariamente, de 25 de janeiro a 30 de agosto deste ano. 

Isso mesmo, mais de sete meses de doses homeopáticas de uma trajetória das mais brilhantes e reconhecidas da imprensa local. Mas como a série é um exercício de literatura e reportagem do nosso mestre, escritor imortal da Academia de Letras da Bahia, e repórter que não abre mão do faro jornalístico, a história começa bem antes de Navarrinho sonhar em nascer. E bote antes nisso.

Exatamente em 1880, quando o bisavô do nosso protagonista, Jacob Gerbase, foge da pequena comuna italiana de Vibonati, da perseguição da inquisição aos judeus e cristãos novos. Assim a família, já com o nome de Gil-Braz pra disfarçar, desembarca no Brasil. Primeiro no Sul do país, depois na Bahia. Seis filhos e pouca bagagem. Cada filho foi para um lado, importante era garantir a sobrevivência. 

A verve literária de Emiliano transformou a saga dos Gil-Braz numa verdadeira aventura, até chegarmos a Navarrinho. Nascido em Iaçu, terra que adotou também a protagonista anterior da série, Cleidiana Ramos – nem precisa dizer que isso bastou pra o autor recordar Chico Preto.

Emiliano revelou, aqui, várias facetas do jornalista, antes de chegar às redações: jogou bola, foi seminarista, líder estudantil, radialista, vereador em Alagoinhas .....fez “de um tudo”, como se diz. Para surpresa de muitos colegas, inclusive eu, que só o conheciam das excelentes reportagens e livros.

Navarrinho e Emiliano compartilharam as mesmas máquinas de datilografia da sucursal do Estadão em Salvador. O primeiro chefiando, o segundo parecendo pinto no lixo para segurar com unhas e dentes a chance de ouro – ser repórter de sucursal de jornal “do Sul” era status. Nas coletivas se destacavam. Imaginem essa acolhida para um ex-preso político, ainda nos resquícios da ditadura militar? Emiliano sabia que era a sua oportunidade e não ia deixar escapar. Deu sorte. Foi cair justamente nas graças de Navarrinho, até hoje considerado uma unanimidade na categoria. Simpatia, humildade, talento, profissionalismo, generosidade, educação, gentileza, serenidade....todas essas adjetivações foram pescadas de colegas, definindo nosso protagonista nos comentários que também fazem parte desta verdadeira homenagem feita por Emiliano. 

Um obrigada especial aos irmãos fotógrafos, ou melhor artistas da imagem, Agliberto Lima, nosso querido Bel, e Lúcia Correia Lima, que nos presentearam com fotos maravilhosas. Boa leitura a todos


************************************

(Em 1979 na sucursal do Estadão - Foto Agliberto Lima)

Emiliano José

25 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: meus primórdios,

os primeiros chefes a gente nunca

esquece, volta a Iaçu, filho de telegrafista.

 

Hora de enfunar velas em outra direção.

Voltar a proa no caminho de outro personagem.

Ontem, quase melancolicamente, deixei Cleidiana às margens do Paraguaçu, cuidando de Nazinha de Chico Preto, a querida mãe.

Dar outro passo.

Eu próprio tenho de voltar um pouco no tempo.

Aos meus primórdios do jornalismo.

Já revelei, mas o leitor não é obrigado a se recordar.

Chegara à "Tribuna da Bahia" no final de outubro de 1974, recém-saído da prisão.

Desembarquei no "Jornal da Bahia" no dia 21 de fevereiro de 1975.

Voltei para a "Tribuna" em 3 de setembro de 1975.

E aportei no "Estadão" em maio de 1976, embora carteira assinada apenas em 1º de julho.

Morava na Ladeira da Cruz da Redenção, em Brotas.

Chego ao "Estadão" porque o texto agora me leva a Navarrinho.

Os colegas o conhecem assim.

Tive vários mestres nessa fase inicial.

Poderia citar tantos, e ao fazer a listagem, cometeria injustiças.

Destaco, no entanto, três, os mais importantes, mestres e chefes,  conforme fui encontrando-os pelo caminho: José Barreto de Jesus, Césio Oliveira e Carlos Navarro Filho.

Barretinho, na "Tribuna".

Césio, no "Jornal da Bahia".

Navarrinho, no "Estadão".

Já falei dos dois primeiros nessa série, certamente de modo insuficiente, eles merecem muito mais.

Agora, vou dizer de Navarrinho.

Vamos ver se ele me ajuda.

Se encontra tempo pra seu velho repórter de caneta na mão.

Velas enfunadas, ele não tem saída.

Nem eu.

A pauta, desta vez, eu decidi.

Ele, a fonte.

Tentarei encontrar espaço na agenda lotada dele. 

Gozado, ironia da história: dou voltas e a vida me leva de novo a Iaçu, às águas do Paraguaçu.

Vocês se recordam: Cleidiana nasceu em Cachoeira, mas veio menina menina para Iaçu.

Navarro, não.

Nasceu em Iaçu, sertanejo da gema, da caatinga.

Filho do telegrafista do lugar.

Telegrafista filho de italiano e de espanhola...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Sérgio Buarque de Gusmão: Navarrinho...Uma unanimidade...

Cleidiana Ramos: Opa! Iaçu cada vez mais encantada...hehe

Jose Jesus Barreto: Navarrinho foi seminarista, como eu, Seminário Central, onde hj funciona a Católica, na Av Cardeal da Silva. Amigo, mestre, irmão. Jogava bola, centroavante esperto, boa técnica, goleador, enjoado. Foi meu chefe tb no Estadão. Rigoroso, decente, ético. Sempre querido. Boas lembranças, Emiliano.

Emiliano José: Jose Jesus Barreto vai lembrando, Barretinho. De mestre pra mestre.

Carlos Pereira Neto Siuffo: Emiliano José Diante de sua altura, tv fosse melhor ponta. Mas teve Romário,né? Lembro que Oldack era bom goleiro.

Jose Jesus Barreto: Carlos Pereira Neto Siuffo pra ser centroavante e baixinho precisa ter habilidade, corpo plantado e jogar com inteligência. Navarrim sabia.

Jose Jesus Barreto: Como jornalista, repórter era criterioso e exigente com a apuração, ia fundo nas fontes, controvérsias, dúvidas. Nisso aprendi muito com ele.

Mônica Bichara: Que maravilha o novo protagonista desta série deliciosa, Navarrinho é um querido por todos.....curiosa pra saber onde essa prosa vai parar

Emiliano José: calma. Ainda é cedo pra parar.

Mônica Bichara: Emiliano José nem pensar, o bonde está só começando a sair do trilho e sei que tem muitas estações pelo caminho

Emiliano José: Longa estrada.

Graça Azevedo: Vamos de Carlos Navarro! Esperando o novo personagem.

Manoel Barretto: Navarrinho morou também em Alagoinhas.

Jogamos muitos “babas” juntos

Emiliano José: Manoel Barretto morou, sim. chego lá.

Adilson Borges: Grande Navarinho!

Isabel Santos: Navarrinho querido. Nelson Rodrigues que me perdoe, mas existem unanimidades, sim. Este colega é uma delas. Ansiosa para a 'pena' de Emiliano José poetizar mais uma rica história/trajetória do nosso Jornalismo.

Lucia Correia Lima: Compartilhar. P levrar de fato de fotos de loja incendiando na rua Chile

Lucia Correia Lima: Navarro! Sua serenidade e competência de fazer inveja 

------------------------------------------------ 

(Navarrinho com Jorge Amado e Zélia - foto Agliberto Lima)

Emiliano José

26 de janeiro de 2021

Carlos Navarro Filho: unanimidade, chefe

tranquilo, rigoroso, decente, ético,

paciente, um mestre, centroavante enjoado

 

Nos comentários de ontem sobre a abertura em torno da caminhada de Navarro leio lá o de Sérgio Buarque de Gusmão:

Navarrinho... uma unanimidade.

Claro: um ou outro, poucos, podem ter guardado alguma bronca de Navarrinho.

Sei de um, e não falo nome.

E a razão está do lado de Navarro.

Que a maldade dessa gente é uma arte.

Ataulfo Alves está coberto de razão.

Um dos chefes mais tranquilos com que deparei.

Ensinava sem estardalhaço.

Como diria José Barreto de Jesus, um dos repórteres do "Estadão" depois de ter sido chefe de reportagem da "Tribuna da Bahia", Navarrinho era criterioso e exigente com a apuração, ia fundo nas fontes, controvérsias, dúvidas.

Queria tudo explicadinho.

Rigoroso, decente, ético - palavras de Barretinho, subscritas por mim.

Fui de uma notável equipe montada por ele, contemporâneo de Césio Oliveira, Fernando Escariz, Pedro Formigli, Gonzalez Passos, Agliberto Lima, entre outros, e como Barretinho aprendi muito sob sua direção.

Orientação: podíamos tomar furo, dar notícia sem comprovação, nunca.

Saí da "Tribuna da Bahia" pra lá, feliz como pinto no lixo.

Naquele momento, trabalhar numa sucursal era um orgulho.

Não fazia questão de parecer chefe.

Nos tratava como iguais.

Este, o melhor chefe.

Nunca o vi perder a paciência.

Bom humor permanente.

Uma vez ou outra, ao olhar matéria minha, chamava pacientemente, baixinho:

- Zapatilha.

Me chamava assim, diminutivo de Zapata, apelido honroso dado por ele.

E ai dizia calmamente talvez seja o caso de mudar isso ouvir mais uma vez a fonte checar melhor o assunto e ia embora dando lições de muitas estradas já percorridas.

Nunca me senti tentado a contraditá-lo.

Tinha razão sempre - eram palavras de mestre.

Não sabia: era centroavante esperto, excelente domínio da bola, goleador, enjoado - a definição está nos comentários de Barretinho.

Foram colegas de seminário.

Disso certamente falaremos à frente.

Gozado: amanheci pensando em Vibonati, comuna italiana.

Não, não pensem esteja delirando.

Navarrinho tem a ver com ela.

Pensei, sentei à máquina, eita, o passado a me perseguir, comecei a dedilhar, e a prosa mudou de rumo, e prometo amanhã começar com a Itália.

Se não ocorrerem novas tentações.

O mundo está cheio delas.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Tive o privilégio de trabalhar temporariamente com Navarro mais recentemente, mas em assessoria de imprensa. Valeu, Mestre!

Isabel Santos: Sim, esse profissional competente, ímpar tem algo que também cativa muito, a tranquilidade, a serenidade no falar, no agir, no comandar. Por tudo isso, Navarrinho é uma unanimidade entre quem conviveu/convive com ele na nossa profissão.

Mônica Bichara: Concordo, uma unanimidade. Que nesse caso não é burra

Walmir França Kitekuê: É coisa...

Einar Lima: Conheci Navarro no Estadão, onde substituí um colega em férias, se não me engano em 1979. Reencontrei na Comissão Estadual da Verdade, em 2015. Educado, respeitoso, humano. Fácil de gostar. 

-------------------------------------------

Emiliano José

27 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: Vibonati, a pequena

comuna de praias honestas, de muito

turista, onde nasceu um bisavô esperto

 

Antes de enveredar por algum atalho, vamos a Vibonati.

Havia prometido ontem, vou cumprir.

Às vezes, as tentações são maiores.

Hoje, não obstante tenha amanhecido a pensar no Centro do Jornalismo do passado, ali entre a Barroquinha, Rua Chile e Cidade Baixa, doido para revisitá-lo, resisti.

As leitoras, Navarrinho acumula muitas, e os leitores, inúmeros, hão de compreender, senão de imediato, porque tenho de cumprir essa tarefa - é do jornalismo, exigências do jornalismo.

É uma comuna pequena.

Muito pequena.

Pelas fotos atuais, adorável.

Praias saudáveis, muito honestas.

Não estranhem: tenho um amigo muito querido, Venício Lima, notável professor, um erudito, cujo costume é quando experimenta um bom vinho chamá-lo de honesto:

- Este é um vinho honesto - comenta, concluindo o saborear.

Numa licença poética, copio meu amigo.

Sim, honestas, as praias de Oliveto, Torre Villammare e Santa Maria Le Piane - limpas, limpas, assim consideradas em 2018.

Receberam Bandeira Azul da Foundation for Environmetal Education - Fundação para a Educação Ambiental.

Essa comuna de pouco mais de 3 mil habitantes nos dias de hoje, recebe coisa de 15 mil turistas no verão por essas praias tão lindas e tão honestas.

Fica na região da Campania, na província de Salerno.

É interessante observar: tinha 285 habitantes em 1861.

Dez anos depois, já contava com quase 3300 pessoas - uma explosão.

Inicia o século XX, com quase 4 mil habitantes.

E passado um século e tanto, nada de crescer - 3 mil pessoas vivem em Vibonati, já dissemos.

O registro mais velho de nascimento, sempre a partir da Igreja, é o de Biase Marino, de 1838.

Bem, certamente há primórdios de Vibonati, aberto a pesquisadores.

Foi aqui, nessa deliciosa comuna, o nascimento do judeu Jacob Gerbase, bisavô de Navarrinho.

Eu, convivendo anos com ele, jamais atinei com essa ancestralidade, tal a discrição dele.

Sempre falou muito pouco de si mesmo.

Judeu esperto, safo, o tal bisavô.

Quando sentiu a Inquisição bater nos calcanhares...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: um bisavô esperto fugindo da Inquisição, mudando nome

de seis filhos, distribuindo-os

para não morrerem de fome, um avô determinado conquistando moça rica...

 

Jacob Gerbase, bisavô de Navarrinho, sentiu o clima esquentar na pequena Vibonati.

A Inquisição, perdendo fôlego no resto do mundo, ainda mantinha algum ímpeto em terras italianas, e chegava também à esquecida comuna.

Estavam atrás de judeus, cristãos novos fossem.

Viriam pra cima dele e família.

Esperar o quê?

O velho Jacob não contou conversa.

Arrancou a página do livro de registros de nascimento da família na paróquia, providência essencial para não deixar nada nas mãos dos Torquemada italianos.

Juntou as tralhas, poucas, e ganhou o mar.

Na direção do Brasil.

Ali pela década de 1880.

Vinha com pouca bagagem, quase sem dinheiro, e uma renca de filhos, seis.

Aqui desembarcado, judeu esperto, completou as providências para não deixar pistas à Inquisição.

O sobrenome Gerbase foi convenientemente aportuguesado - todos passaram a ser Gil-Braz.

Depois de aportar no Sul do País, acabou na Bahia, onde se fixou.

Na casa do sem jeito, tomou outra providência: saiu distribuindo os filhos.

Poucos contatos, mas tinha-os.

Quem quis, entregou.

Se não tinha condições de criá-los, melhor distribuí-los.

Prático.

O avô de Navarrinho, Carlos Gil-Braz, foi recebido pela família Cerqueira.

Era o terceiro da fileira.

Passa a se chamar Carlos Gil-Braz de Cerqueira - Navarrinho sabe apenas até aí, sobrenome.

Nada mais da origem da família.

Carlos Gil-Braz, têmpera dura, italianinho duro - a existência o ensinara a ser assim.

Não lhe sorrira, a vida.

Então, o que fazer?

Deu o golpe do baú.

Não, não sou eu a dizer: é o próprio Navarrinho, que costuma chamar as coisas pelo nome, não faz arrodeios.

Cercou a moça.

Era jeitoso quando queria, foi pra lá, veio pra cá, uma conversinha, outra, e Júlia  Navarro caiu de amores pelo Carlos.

A família da espanhola morava na rua do Sodré, perto do Largo Dois de Julho.

Família rica para os padrões da época.

Baita casarão, mais tarde transformado no Colégio Sofia Costa Pinto.

Proprietária de fazenda na região de Dias D'Ávila...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

29 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: Júlia foi namorar,

uma fazenda, uma estação de águas,

um Barão, e um filho de Obaluaê

O avô e Júlia.

Avistou Júlia e com ela se casou.

 

Lembrei de Gil e seu Domingo no Parque, linda.

Carlos Gil-Braz se deu de boa.

Família rica, senão milionária.

Aquele casarão em área nobre da cidade - é, naquele tempo, área nobre.

E uma fazenda para veranear - nada de praia, melhores os ares do campo.

Ficava, a propriedade, ali pelos arredores de Dias D'Ávila, ainda muito distante de ser o município de hoje.

A família passava meses por lá - estação de águas, porque lá também tinha disso.

No Rio Imbassaí corriam águas com qualidades terapêuticas, e a lama, dizia-se, tinha virtudes medicinais, a curar doenças de pele.

Daquelas águas, daquelas roças, o avô de Navarrinho desfrutou bastante.

Um casamento de bons frutos, o realizado com Joaquina Júlia Navarro, nome completo da moça.

Curioso, Navarrinho foi atrás da origem da família Navarro.

Bom sempre saber do passado.

Até agora, sem muito sucesso.

Chegou a conversar muito com Valdeloir Rego, cujas pesquisas sobre os Navarro chegaram até a um pomposo Barão do Rio Vermelho.

Barão não de tradição, mas de título comprado, a indicar riqueza, não necessariamente nobreza.

Quem sabe, persistindo nas pesquisas, Navarro consiga mais.

De Valdeloir Rego, falecido em 2001, tornou-se amigo.

Etnólogo, historiador, ogan do Ilê Axé Opô Afonjá, estudioso do candomblé.

Amigo a ponto de conseguir saber, pelo jogo de búzios, qual o orixá de Navarrinho: Obaluaê.

Pode também ser chamado de Omolu ou Xapanã.

Está protegido: é o orixá da cura - cuida da terra e dos homens, e respeita muito os mais velhos.

Os filhos de Obaluaê, fala-se, são capazes de completa abstração de seus próprios interesses e necessidades em prol dos outros - isso está lá no livro de José de Jesus Barreto: "Candomblé da Bahia - Resistência e identidade de um povo de fé".

Tudo a ver com nosso Navarrinho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: Seguindo a trilha...

Emiliano José: Jose Jesus Barreto boa trilha, com sua ajuda..

Walmir França Kitekuê: É coisa..

Diogo Assunção: Kabieleci...   

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

30 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: o avô se virando nos trinta, agente postal telegráfico, aportando em

Aratuípe, deparando com a

Dona das Águas, deslumbrante sereia.

 

É.

Vovô Carlos Gil-Braz se deu de boa.

Achou houvesse encontrado vida fácil.

Mulher de família de posses.

Tempo de veraneio na fazenda de Dias D'Ávila.

Vida boa.

Não sabia como os ricos pensam.

Devia se virar.

Não viver na mamata.

Começaram a deixar claro.

Cedo, cedo acabou a colher de chá.

Fosse constituir família, o fizesse por conta e risco.

Não seria sustentada com a burra espanhola.

Farta, mas não pra ele.

Vá trabalhar, vagabundo.

Dizer, família espanhola não disse, mas pensar, pensou.

Ele entendeu o recado.

Encheu-se de brios e ganhou estrada, buscar do que viver.

Trabalhar, ganhar a vida com o suor do próprio rosto, seguir o preceito bíblico.

Virou APT - agente postal telegráfico.

Era o responsável pelos serviços de correios e telégrafos onde estivesse.

Andou, andou, e chegou a Aratuípe, o avô de Navarrinho.

Era início de século XX.

O local, em seus primórdios, lá pelo século XVI, era Sant´Anna da Aldeia.

Ao chegar no município, descobre tivera recentemente o nome simplificado para Aratuípe.

Em 1891, é também elevado à categoria de Vila.

Vira sede de município.

Justificada a existência de um APT.

Aratuípe pode significar vento sereno ou uma ave pacífica, em tupi-guarani.

Há quem diga referir-se a um cacique ou a uma índia de extraordinária beleza.

Terra cheia de mitos, o maior deles, o da Dona das Águas.

Em tempos imemoriais, João Cirilio, um pescador, ao mergulhar deu de cara com uma sereia, deslumbrante sereia.

Esculpiu a imagem dela, e anualmente ela é levada em procissão até o Toque - foz do Rio Jaguaripe, onde teria acontecido o encontro.

Virou tradição.

Conta-se: naquele tempo, João Cirilio mergulhava, depositava o presente nas profundezas das águas.

Quando saía, enxuto.

Nem uma gota d´água no corpo.

Sim, ficava surdo e mudo por três dias para não contar o que vira lá em baixo.

De histórias de pescador, não se duvida.

Ainda mais quando se referir à Dona das Águas...

Quiserem conhecer mais, podem procurar "Pescadores do Sagrado: A Festa da Sereia como prática cultural no  município de Aratuípe", dissertação de Uberdan Cardoso dos Santos, Uneb.

Nessa terra mágica, em 1914, nasceu o pai de Navarrinho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

------------------------------------------------- 

Emiliano José

31 de janeiro 2021

Carlos Navarro Filho: Aratuípe vai e volta,

maior polo de cerâmica da América

Latina, terra de filarmônica não só de

pescadores, avô paterno de muitos filhos,

avô materno cafuzo, avó materna

filha de portugueses branca como a neve.

 

Os municípios não têm história linear.

Aratuípe foi extinto em 1943.

Parece voltou a pertencer a Nazaré das Farinhas, espécie quase de capital da região.

Mas, três anos depois, 1946, vê restaurado sua condição de município.

Na economia, destaca-se pela produção de cerâmica.

É lá a famosa Feira de Maragogipinho - obras e obras de arte em cerâmica, desenvolvidas pelos artistas locais, expostas anualmente.

Não se sabe se exagero, em terra de pescador pode acontecer algum excesso, nunca mentira: de Maragogipinho se diz ser o maior polo de cerâmica da América Latina.

A Sociedade Filarmônica Lyra Ceciliana de Aratuípe nasceu também em 1914, mesmo ano de nascimento do pai de Navarrinho.

Além de pescadores, músicos.

Era tempo de filarmônicas.

Os municípios se orgulhavam delas.

Se quisermos voltar um pouquinho, falar mais do velho Carlos Gil-Braz de Cerqueira, o avô, não custa lembrar: teve dez filhos.

Do primeiro casamento, seis.

Quatro meninas e dois meninos.

Quando Júlia, a espanhola, morreu, o avô não perdeu tempo: casou-se novamente.

Vieram mais quatro filhos, todos homens.

Brincadeira, não.

Pensar um pouco agora nas origens do lado materno.

O avô materno, nas palavras de Navarrinho, era um cafuzo, bem mulato, cabelo liso.

Nome bem brasileiro: João Alves dos Santos.

A avó materna: Maria Alves Oliveira.

Filha de portugueses, branca, branca, uma alvura só, como a neve, e deslumbrantes olhos azuis.

Como se conheceram, nem Navarrinho sabe.

Mas se conheceram e se casaram.

Quando Carlos Gil-Braz, o avô paterno, morreu, o pai de Navarrinho, Carlos Navarro Gil-Braz, assumiu o serviço dos correios e telégrafos.

Funcionário de múltipla serventia, o chamado APT: escrevia cartas, redigia telegramas, tantos outros documentos, cartas de amor, quem sabe, enviava tudo pra onde o freguês quisesse.

Era um mão na roda...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

1º de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: estudo na capital, avô

morre, o pai assume os correios, mudança

para Iaçu, terra de domínio de coronel.

 

Como quase todo mundo à época, os pais em condições, filhos chegados à idade escolar eram mandados pra Salvador.

Claro: havia a alternativa de Nazaré das Farinhas, um centro bem adiantado, mas o velho Carlos Gil-Braz de Cerqueira preferiu mandar o filho Carlos Navarro Gil-Braz para a capital.

Repetem-se os nomes para não deixar o leitor confuso.

Até porque Navarrinho chama-se Carlos Navarro Filho.

Parênteses.

O pai, em 1945, quando Navarrinho nasceu, foi registrá-lo, e tentava, tentava fazer o escrivão escrever Gerbase, o sobrenome original italiano.

Queria deixar as origens no nome do filho.

O escrivão, nada.

Não conseguia de jeito nenhum.

Perdeu a paciência:

- Tá bem, esquece o Gerbase, põe só Navarro mesmo.

Exigiu, no entanto:

- Mas, por favor não esqueça o Filho porque eu não sou dois.

Bem, mas aqui estamos colocando o carro adiante dos bois.

Voltemos.

Navarrinho situa a morte do avô entre meados dos anos 1920 e 1930.

Não tem certeza onde ele estava quando morreu, se em Aratuípe se em Baixa Grande.

Agente postal telegráfico volta e meia mudava de município.

O certo: em Aratuípe ou em Baixa Grande, o pai de Navarrinho, Carlos Navarro Gil-Braz assumiu o posto de APT.

Ainda não completara 18 anos.

Nessas andanças, foi parar em Iaçu.

Não pensem na cidade de hoje.

Nem nesse nome.

A área tem origem lá pelo final do século XVIIl, pertence mais tarde à Fazenda Sítio Novo, e foi durante largo tempo domínio da família Medrado, e palco de duras lutas entre posseiros e os Medrado.

O povoado começou a crescer quando chegou a ferrovia.

O local se transformou num centro de comércio, de circulação de mercadorias.

Nos anos 1920, os problemas todos eram resolvidos pelo coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado, proprietário da Fazenda Sítio Novo, ao redor da qual se constituiu o povoado.

Resolvia-os como um coronel, e a história conhece os métodos...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

------------------------------------------------- 

( 1 - Navarrinho, Mariazinha, João da Roça Velha, Mariana e Juana 
 - 2 - Goroba batizando uma das filhas de Navarrinho com Mariazinha)

Emiliano José

2 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: pai chegando à Vila

do Paraguaçu para instalar correios,

avô materno e seus 13 filhos,

Mariazinha do Boqueirão

e disposição para o trabalho.

 

Daquela Iaçu, já chamada Vila Paraguaçu, nome recebido em 1934, Navarrinho tem doces lembranças.

Delas, ainda vamos falar.

Narrador tem de tomar cuidado, no entanto, para não colocar o carro na frente dos bois.

Atrapalha o leitor.

Vamos esperar Navarrinho nascer, começar a vida, e então falaremos de infância de estrepolias.

De Nambu e Zabelê, por exemplo.

A curiosidade mata, dizem.

Mata, não.

Dá pra segurar.

Um dia, conto.

Eu dizia ontem a Mônica Bichara das artes do destino.

Ou do acaso, se ele existe.

Havia poucos dias, e eu estava em Iaçu, às voltas com Chico Preto, com Nazinha, e especialmente com Cleidiana Ramos.

Vou atrás de Navarro, e me vejo novamente nas terras dos Medrado, antes mesmo de Iaçu se tornar município, infância de Navarrinho.

E vou conhecendo um pouco mais da história do lugar.

O pai de Navarrinho, Carlos Navarro Gil-Braz, deve ter chegado à Vila de Paraguaçu no iniciozinho da década de 1940 com a missão de implantar o serviço dos correios.

Vai se casar ali.

Com Mariazinha do Boqueirão.

Nela, precisamos parar um pouquinho.

Um mulherão.

De larga, bonita, corajosa história.

Filha de João Alves dos Santos e de Maria Alves Oliveira, já falamos dos dois.

João viveu anos na Roça Velha, pequeno pedaço de terra, de onde tirava o sustento e fazia filhos.

Era um foreiro dos Medrado - ali até onde a vista alcançava e bem mais tudo era dos Medrado.

Já chegou na Roça Velha com dois filhos, e ao longo da vida, Maria Alves teve 13 filhos.

Vingaram 11.

Na roça era assim: necessário fazer filhos.

Pra ajudar na lida.

Só que o casal na primeira fase viu nascer três filhas.

Torcendo pra surgirem braços de homem, necessários na roça, e vinham mulheres.

Mariazinha, no entanto, não desapontou: cedo cedo fazia de tudo, ajudava em tudo, e não deixava o pai sentir falta de braços masculinos, que virão depois.

E o pai ajudou, com sua pedagogia: fosse azar, o de nascer primeiro, então devia de aprender cedo o trabalho pesado.

Capinar, roçar, cuidar das galinhas, tirar leite de cabra, montar, atirar, o diabo a quatro, ele ia ensinando.

Mariazinha, ali pelos quatro anos de idade, já estava ajudando na colheita, e foi aprendendo de tudo um pouco, e rapidamente, e gostava do trabalho, e se aplicava no aprendizado...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Mônica Bichara: Verdade, Emiliano, Iaçu e seus personagens maravilhosos

Adilson Borges: Muito legal  

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

3 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha e sua vida

cheia de arte, como guará mordendo pé de cana, bebendo mel direto da casa da abelha,

pai bravo, nem tanto,

Deus não conta tudo, só o começo.

 

Mariazinha foi ganhando jeito na lida.

Pouco a pouco, foi desvendando os segredos da vida na roça.

Enquanto aprendia as manhas do campo, ia levando vida de criança, cheia de arte.

Criança arteira, dizia-se em séculos de antanho, e nem tão de antanho.

Nos idos de 1923, é Navarrinho o contador dessa história, está lá no livro de contos dele, "Goroba", ela com seus cinco anos, mais os irmãos Joaninha, Nega e Francisco, deitavam no chão e danavam-se a morder os pés de cana.

O pai, quando percebia, mandava cortar aqueles pés mordidos.

- Guarás do diabo - vociferava.

Ludibriar o velho, inocente travessura: podiam então desfrutar daquela doçura.

Doce, muito doce, era o mel de uruçu e manaçaia.

O pai, sério, trabalhador, trazia as casas de abelha do mato.

Botava perto da casa grande.

Usar, só quando necessitasse.

Nada.

Ela e os irmãos não resistiam: iam que nem cobra se arrastando pelo chão.

Mariazinha com um graveto furava a casa das abelhas.

Deitados, ali embaixo, numa fartura e delícia de um lugar de onde só jorrava mel.

Corriam depois a limpar o rosto lambuzado, mel por toda a cara.

Às vezes, pai descobria e o pau comia.

Apanhavam uma vez ou outra.

Havia momentos só de esporro.

Um dia o surpreenderam rindo, depois de uma bronca daquelas.

Fingiram não ver.

Criança, costumam dizer não sei se com razão, tem artes com o cão.

Mariazinha era levada da breca.

Surpreendente, sempre.

Será assim por toda a vida.

A vida no campo, era assim: muito suor, muito sacrifício, o pai reclamando braços na lida diária, trabalho duro.

Mas, não, a existência nunca era monótona.

Mariazinha se sentia parte de tudo, lado a lado com o pai ia vendo o mundo se fazer, os animais crescendo, a lavoura florindo, uma vaquinha outra dando o leite do café da manhã, do queijo fabricado em casa.

Gostou sempre de conversar, desde menina.

Ganhou sabedoria.

Costumava dizer, talvez recolhendo lições de sua longa existência:

- Deus não deixa a gente saber antes a história inteira das coisas. Só o começo.

E queria sempre estar no começo da história.

Assim, construía a sequência e o desenlace.

Mulher esperta, sabida que só o diabo.

Esperta e valente.

Sobre a valentia, ainda vamos prosear.

Tenham calma...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

----------------------------------------------------  

Emiliano José

4 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: o incrível poder

dos Medrado a ocupar toda uma

região, entre a cruz e a Mangabeira,

terra e exploração, cobrança de taxa dos foreiros.

 

Não custa relembrar o poder da família Medrado.

Não na Vila Paraguaçu tão somente.

Em toda a região.

Originários de Mucugê, os Medrado tornaram-se donos de terra a perder de vista, áreas convertidas em municípios mais tarde, e Iaçu é um apenas um dos exemplos.

Tem é tempo isso, esse poder.

A casa-sede da fazenda Sítio Novo foi construída há coisa de 200 anos, a crer, e é pra crer, na dissertação de Cleidiana Ramos, "Os caminhos da Água Grande", transformada em livro.

Na dissertação, ela cravava 180 anos - e o estudo é datado de 1997.

A família despertava temor, medo.

Em Santa Terezinha, município da região, tiveram um poder imenso.

Nele, de um lado tinha uma fazenda dos Medrado.

De outro lado, outra fazenda dos Medrado, chamada Mangabeira.

Essa presença, bem a modo dos coronéis do passado, gerou até ditos espirituosos por parte do povo.

Se o sujeito vivia algum dilema, alguma dificuldade, o povo dizia:

- Você está entre a cruz e a Mangabeira.

O dito indicava: não havia como fugir dos Medrado, tudo era terra deles, mantida a ferro e a fogo, ao menos até quando começassem as lutas dos posseiros da região, bem mais tarde, quando Iaçu já se tornara município, e aí é outra história.

O povo aumenta, mas não inventa.

Quando uma pessoa desejava mal a outra, rogava uma praga:

- A justiça de Santa Terezinha que lhe persiga.

A justiça dos Medrado.

O coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado era o grande potentado da região.

Senhor de baraço e cutelo.

Mandava e desmandava.

Arrendava suas terras aos ocupantes, posseiros.

Acreditava aquelas terras todas como suas, então era muito justo cobrar uma taxa deles.

Não tivessem dinheiro, dessem parte da colheita, e ele com ela fazia dinheiro.

Simples, não?

Agia assim, e se considerava no direito de assim proceder.

Direito divino, quem sabe.

Quem quiser conhecer pouco mais disso, de modo amplo, só dar uma lida em "Coronelismo, enxada e voto", de Victor Nunes Leal, publicado pela primeira vez em 1948, onde fica claro o poder político oriundo da propriedade da terra.

O pai de Mariazinha, o velho João Alves dos Santos, era um desses foreiros.

Pensava: ter de trabalhar de sol a sol, derramar o suor na terra, botar os filhos no jeito, e ter de pagar taxa a quem se considerava dono da terra.

Injusto, mas que fazer?

Tinha filharada pra criar...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Boqueirão, três irmãos cafuzos, três irmãs branquinhas, mascate cheio de conversa, gravidez em noites de lua cheia, casamentos no meio

da roça, as três primeiras filhas...

 

João, o velho João Alves dos Santos, vinha de outras bandas.

Suor em outras terras, já derramara.

Morou no Boqueirão.

Navarrinho rememora a vida do avô e da avó Maria Alves Oliveira.

Coisas curiosas.

No Boqueirão, viviam três irmãos, casados com três irmãs.

Tinham propriedades próximas umas das outras, poucas léguas umas das outras.

Comunidade.

Os três irmãos, João entre eles, caboclos descendentes de tupinambás, negros - cafuzos, denominam-se.

As três irmãs, filhas de um mascate português.

O mascate, em noites de luar, engravidou uma cabocla do Boqueirão.

Foi surgir a lua de novo, dormiu com outra, e não dormiu apenas.

E sumiu no mundo.

Tinha nada a ver com isso, não.

Sabe, né?

Mascate, tão comum à época com aquela mala de couro, grande, grande, parecença com um armazém, de onde saia de tudo, cada lindo tecido colorido vindo das índias a enlouquecer as moças, cada espelho para as penteadeiras, perfume vindo da Oropa, de preferência perfume francês, quer experimentar?, agua de colônia...

Mascate chegava, passava uma temporada, vendia, vendia, namorava uma duas, embaraçava as moças, e ganhava o mundo.

Aconteceu assim no Boqueirão.

Uma das moças embaraçadas teve gêmeas.

Aí, as três irmãs, quase azuis de tão brancas.

E as três, sabe-se lá de que maneira, engraçaram-se com os três irmãos cafuzos, negros.

Belas histórias de amor.

Ali viveu João por um tempo, muitas noites de lua cheia.

Teve as três primeiras filhas, Mariazinha uma delas.

O Boqueirão, o mascate português, os irmãos cafuzos faz o carro passar à frente dos bois por uns instantes.

Prometo voltar depois.

Navarrinho, repórter do "Jornal da Bahia", início de carreira, 1970, 25 anos, é enviado numa cobertura sobre o Projeto Rondon.

Não devia ser ele, mas aconteceu.

Cabia a Fernando Vita, já experiente repórter.

 Não quis.

Se pelava de medo de avião.

Perguntou a Navarrinho:

- Não quer ir, não?

Oxente, como não?

Arrumou umas pecinhas de roupa, socou na maleta, e seguiu viagem.

Aventura, com ele mesmo...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

---------------------------------------------- 

Emiliano José

6 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Projeto Rondon, mergulhando no Brasil profundo, descobrindo índias brancas de olhos verdes, Boqueirão,

Serra do Vitorino, comunidade

autossuficiente, vivendo do que plantavam.

 

E lá seguiu Navarrinho pra Amazônia Legal.

Região de Goiás e Mato Grosso.

Ainda nem se falava em Mato Grosso do Sul.

Selvas e mais selvas.

Estradas e mais estradas, chamá-las assim à falta de outros nomes.

Conhecendo o Brasil profundo.

Brasília havia surgido havia uma década, e estava ainda em curso o processo de integração do Brasil.

Andou mais de trem.

De jeep.

Pouco de avião.

O Projeto Rondon deu o primeiro passo em meados de 1967, quando uma equipe formada por 30 universitários e dois professores de universidades do antigo Estado da Guanabara conheceram de perto a realidade amazônica no então território federal de Rondônia, fim de mundo à época, e não sei se é possível dizer não continue assim até os dias atuais.

A ditadura o abençoou em 28 de junho de 1968, subordinando-o ao Ministério do Interior, chamando-o "Grupo de Trabalho Projeto Rondon".

Em 1970, quando Navarrinho caiu na estrada, transformado em órgão autônomo da administração direta, quando se institui a "Fundação Projeto Rondon".

Em janeiro de 1989, extinto.

É reativado em 2005, por sugestão da UNE.

Navarrinho meteu-se por entre as matas, deparou com tribos, com índios por tudo quanto é lado - como era novo aquele Brasil pra ele.

Pensava: Vita não sabe o que perdeu.

Deu de cara com índias brancas de olhos verdes.

Tomou um susto.

Buscou as origens desses olhos e daquela branquitude.

Europeus desembarcavam naqueles ermos, cheios de curiosidade, olhavam pras índias, não só olhavam.

Mascates, sempre eles.

Malas lotadas de encantadoras quinquilharias nunca vistas naqueles ermos.

Portugueses e árabes, sobretudo.

Engravidavam as índias.

E caíam no mundo.

Na volta, matéria no "Jornal da Bahia" com chamada e foto na primeira página - índia branca de olhos verdes.

Como prometido, volto.

Lá no Boqueirão, principiar do século XX, o avô João Alves dos Santos casou-se com branquinha, filha de mascate português, a avó Maria Alves Oliveira.  

Inevitável a lembrança.

Ia compreendendo a formação do povo brasileiro.

Os três irmãos cafuzos casados com as três irmãs branquinhas filhas do mascate português organizaram uma comunidade na Serra do Boqueirão.

Situava-se em região hoje pertencente ao município de Manoel Vitorino.

Muitos a conheciam como Serra do Vitorino.

Não era atingida pela seca.

Conseguiam a autossuficiência.

O de comer, tiravam da terra.

O leite, das poucas vacas ou das cabras.

Da cana, o açúcar.

Iluminação, da mamona, de onde surgia o óleo para as lamparinas...

Do algodão, as roupas.

Andavam com vestimenta fabricada em casa, chambre, espécie de mortalha, daquelas mais tarde utilizadas no carnaval, e faziam as toalhas, as roupas de cama, tudo.

Não se apertavam com nada.

Sobreviviam.

Pra tudo davam um jeito, sem recorrer a ninguém.

João e Maria viram nascer ali as primeiras três filhas...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Três vezes por ano burro

jumento cavalo no rumo de Jequié,

venda na feira grão e farinha, compra

de chita, açúcar refinado, carne do sertão e miraguaia modo a receber bem as visitas.

 

Ali no Boqueirão viveram João e Maria por bom tempo.

Com as filhas, as primeiras.

Mariazinha, mãe de Navarrinho, na lida.

O velho havia de se virar nos trinta.

Não era vida fácil.

Três vezes por ano, João seguia no rumo de Jequié.

Com os olhos de hoje, estradas atuais, é um pulo, coisa de 40 quilômetros.

Naquele tempo, outra coisa, outras distâncias.

Distante fosse, ele não relutava.

Experiência não lhe faltava.

Na juventude, tirou o pão de cada dia em tropa de burros.

Navarrinho conta tudo isso no seu "Goroba".

João juntava o burro, o jumento e o cavalo, tropa toda, lotava  até mais não poder os alforges e os cestos também chamados caçuás acomodados nos lombos das montarias e tocava em frente.

Parecia um Quixote comandando a tropa para a batalha.

Vender grãos e farinha na feira de Jequié.

Poucos sabem, mas menino menino, ali pelos 10, 11 anos de idade, morei em Jequié, início de 1957, creio, andanças de pai caminhoneiro.

E eu lá ia saber que um dia cidade se acabou em água.

Conta-se isso.

Chicago baiana - dizia-se.

Chicago, quase toda destruída em fogo em 1871.

Jequié, numa terrível enchente em 1914.

Metáforas bíblicas, tornadas reais.

João, com o burro, o jumento e o cavalo, com um dos irmãos e agregados, fazia aquela viagem de quatro a cinco semanas, mais de mês por aquelas veredas e cidades.

Abancava na feira de Jequié com todo o trazido, vendia, não levava nada na volta.

Não levava o que trouxera.

O dinheiro da venda servia à compra de lindas e finas roupas de chita, só usadas em ocasiões especiais, quando dispensavam-se as rústicas vestimentas caseiras.

E alguns outros luxos: um açúcar refinado.

Uma carne de sertão.

Miraguaia, peixes para momentos nobres, para quando recebessem visitas, povo do sertão gosta de receber bem.

Sobrava algum trocado ainda para os momentos de aperto, quando lavoura não respondesse como o desejado.

Mariazinha recebia a comitiva em festa na volta.

Vida era farta ali.

Às vezes, Mariazinha gostava.

Muitas outras, não.

Rotina diária dura...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: O que lá é modo a Aqui é modi

Jorginho Ramos: Pena que não esteja no GRUPO DE RISCO...

Margareth Cunha Lemos: E hj é o aniversário de Carlos Navarro! Parabéns, Navarro!🥂🍾

Jose Jesus Barreto: vero?

Carlos Navarro: Margareth Cunha Lemos Obrigado moça, beijo.

Mônica Bichara: Parabéns, Navarrinho. Pelo aniversário e por essa homenagem em forma de memórias . Jequié também me traz lembranças, foi a terra das minhas férias quando criança, casa de meu avô Manoel Dias e minha tia Amada (nome lindo como ela, costureira de mão cheia)

Carlos Navarro: Mônica Bichara Obrigado, era a feira onde meu avô levava a produção da roça para vender e comprar sal, carne do sertão, coisas que não tinha no Boqueirão. Beijo.

Mônica Bichara: Carlos Navarro meu vô Mané Dias tinha uma fábrica de vinagre, Sabiá. Com mais de 70 anos ele ainda subia numa escadona de madeira pra baldear o vinagre. Eu amava o cheiro, apesar de muito forte era novidade

Adilson Borges: Parabéns ao grande Navarinho!

Carlos Navarro: Adilson Borges Grande Adilson, obrigado velho. 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

8 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: trabalho das crianças,

Mariazinha na lida, debulhar o milho,

bater feijão, guardar abóbora, capinar na roça,

ouvindo o trem, apelo.

 

A vida no Boqueirão era boa.

Havia, havia boa comida, não faltava nada.

Tudo fruto de muito trabalho.

Na roça, nas pequenas propriedades, as crianças começam cedo.

Vivi isso, já contei em outros momentos.

Dei duro muito cedo.

Os pais reclamam os braços infantis.

Não romantizo isso.

Constato.

Mariazinha, a mãe de Navarrinho, viveu essa realidade.

Vida farta - e disso gostava, desfrutava.

Mas dura - e isso, odiava.

Ia tocando, que jeito?

Três irmãs, as primeiras barrigas.

Joaninha, a mais velha.

Em seguida, Nega.

Terceira, ela.

Às três cabia prender e soltar a criação depois de tirar o leite das cabras.

Bater feijão no terreiro.

Debulhar o milho na mão grande.

Encher os paióis de abóbora, batata doce, grãos, mamona seca.

Moer cana.

Virar-se na casa de farinha, descascar mandioca.

Uma verdadeira linha de produção.

Volta e meia, iam pra lida na roça junto com o pai.

Tão pequenas, precisavam das mulas.

Duas.

Tiradas do trabalho pesado para levar as crianças.

Já haviam se acostumado, as mulas:  bastava sol raiar e iam direto pro toco na frente da casa esperar as meninas.

Já havia nascido Francisco.

Com dez anos, ele se mandou mundo afora e a família nunca mais teve notícias.

Uma das mulas, levava Mariazinha e Nega.

Joaninha e Francisco, seguiam na outra.

Vida mansa e dura.

Logo, logo, outro rumo.

O velho João sentiu: uma conversa aqui, outra acolá, nas viagens pra Jequié, numa parada, noutra, o desenvolvimento da região da Fazenda Sítio Novo, depois Vila de Paraguaçu.

João ouviu de longe o apito do trem.

Por onde chegasse, a locomotiva atraía, seduzia...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: a poesia do trem, tem

gente que chega pra ficar tem gente que

vai pra nunca mais, bandeirante do

desenvolvimento capitalista, João ouvindo

o apito do trem e se tocando pra Sítio Novo.

 

Quem não sente saudades de uma viagem de trem?

Até quem não viajou, sente.

Imagine quem viu o tempo e a paisagem passarem pelo vidro da janela, sentiu a escuridão quando no túnel, os abismos passando ao largo.

Todos os dias é um vai-e-vem a vida se repete na estação tem gente que chega pra ficar tem gente que vai pra nunca mais são só dois lados da mesma viagem o trem que chega é o mesmo trem da partida a hora do encontro é também despedida a plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar é a vida desse meu lugar é a vida.

Em "Encontros e despedidas", Fernando Brandt e Milton Nascimento lembram a vida, a poesia, a cultura, os sonhos trazidos pelo trem.

Chegou à Fazenda Sítio Novo, a futura Vila Paraguaçu, depois Iaçu, ali por volta do final do século XIX.

Acontecimento.

O trem tem poesia.

Mas...

Tem a força do desenvolvimento capitalista.

Foi uma espécie de bandeirante desse modo de produção em todo o mundo.

Para o bem.

Para o mal.

É sempre uma revolução.

Foi assim com Sítio Novo.

Cresceu, desenvolveu-se.

Comércio cresceu.

No trem, podia seguir boiada e feijão.

E gente.

O velho João ouviu o apito do trem.

Tinha que ir algumas vezes no ano a Jequié para vender sua produção.

Uma trabalheira danada, pra mais de mês, toda aquela caravana por veredas que até os burros pelejavam pra passar, ir e voltar.

Pensou com seus botões: a vida fica mais fácil com trem por perto.

Chamou a família e deu voz de comando: nós vamos partir, e seja o que Deus quiser.

Saiu de caso pensado, rumo certo: pras terras de Sítio Novo.

Olhou pras terras do que saberá ser a Roça Velha.

Se terra de ninguém, iria ali se abancar.

Mariazinha, vivendo a mudança, as novidades...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

10 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: desbravando o sertão, o bravo João, "Os sertões", ABC do Preguiçoso, preguiça e rompante do sertanejo, chegada a Sítio Novo, olhando o caramanchão...

 

Quando penso na exaustiva e demorada viagem do velho João, o avô de Navarrinho, em busca de novos amanhãs, à frente das carroças, das mulas com seus caçuás lotados, as crianças ora em cima das alimárias, ora a pé, Mariazinha sempre esperta, os cachorros vigilantes, o balido das cabras, a mulher Maria prestimosa com todos, a fogueira acesa às noites quando obrigados a parar, as refeições apressadas, ele sempre atento às veredas, arriscosas, tropeiro mal cochila, há gente maldosa pelos caminhos, quando penso nisso, e penso em meados dos anos 1920, quando essa caravana ganhou estrada em busca do Eldorado Paraguaçu, do Sítio Novo, logo me vem à mente a figura do sertanejo.

Foi ele, o homem dos sertões, o desbravador desse País.

"Os Sertões" é obra insuperável.

Primeiro, por revelar o massacre dos milhares de sertanejos, a destruição de uma cidade inteira, arraial se dizia, 5.200 casas cuidadosamente contadas e destruídas.

É só multiplicar pelo número de moradores de cada uma pra se ver o tamanho da mortandade na cruzada final do exército republicano a 5 de outubro de 1897.

Segundo, e só falo de duas razões para não me estender, pela capacidade de Euclides da Cunha de apreender a personalidade do sertanejo.

Quem não sabe dele, vá lá, e cuidado para não pisar em falso.

Ele pode lhe enganar.

Está ali num canto, quietinho, descansando, refletindo preguiça, assim como o descreve o ABC do Preguiçoso, de Xangai, e de repente é outro, transfigurado, energias adormecidas se revelando de modo surpreendente.

Toda a aparência do cansaço ilude - dirá Euclides da Cunha.

É um bravo, o sertanejo.

João, o velho João, um bravo.

A romper estradas, buscar novos rumos, garantir a vida da família.

Coragem e ousadia.

Andou, andou, e de repente deparou com terra de ninguém, já nas cercanias de Sítio Novo.

Roça Velha, o nome da roça caatingueira.

Ninguém queria, ele quis.

Não havia casa no lugar.

Havia um caramanchão mal ajambrado, quem sabe pouso de viajantes apressados, indigno de moradia de gente, incapaz de abrigar sua família e todas suas tralhas.

Fincar estacas, amarrar as mulas, descarregar, ajeitar as crianças, e meter mãos à obra para construir a casa.

Casa decente, onde coubessem a filharada, ele, a mulher.

E depois, tentar tirar da terra o sustento de todo mundo.

Mariazinha, ali, na espreita, sentindo os novos ares...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: a escolha da Roça Velha,

Maria com saudades do Boqueirão, galo

cantando na madrugada, entre duas

rochas a construção da casa de

sopapo, alegria de ver levantada a nova residência.

 

João acreditou ser ali o seu lugar.

Vá la se saber por quê.

O sertanejo tem dessas coisas:  andando em busca de terra, olha prum lugar, sente o cheiro, o vento sacudindo a vegetação, de cócoras olha o horizonte, pega um bocado de terra nas mãos e deixa escapar entre os dedos, e decide ser ali o lugar de onde vai tirar o sustento dos filhos, onde vai morar, viver.

É uma intuição, fundada no conhecimento, na experiência tirada da longa estrada da vida.

Foi assim com João, avô de Navarrinho.

Passou os olhos demoradamente, examinou o entorno, e decidiu-se.

É provável que a mulher Maria tenha olhado atravessado pra ele.

Quem sabe, Mariazinha, próxima dos oito anos, também.

Tinham vindo de vida farta, boa, e de repente se viam jogadas naquele ermo caatingueiro.

Provavelmente, ao descarregar as tralhas, levar para o caramanchão, Maria sentiu saudades do Boqueirão, mas que fazer?

Era a sina sertaneja, caminhar pelos sertões, ia aprendendo.

Ela e Mariazinha.

João ajeitou a trempe, Maria levou o que podia ao fogo, comeram, e se ajeitaram no caramanchão naquela primeira noite.

Às quatro da manhã, o galo cantou.

Trouxeram o galo, galinhas.

João, antes dos demais acordarem, preparou o café na trempe, olhou satisfeito para os primeiros raios de sol surgindo, e começou a pensar nos desafios.

O primeiro deles, construir uma casa.

Sua família não ia morar numa miséria daquela, aquele caramanchão todo desconjuntado.

Sertanejo tem olhar de arquiteto, do seu jeito.

João olhou: no terreno, havia duas rochas, uma perto da outra.

Nada melhor: levantar a residência entre elas, aproveitando o benefício da natureza.

Casa grande para família numerosa.

De sopapo, pau a pique, como acontecia por todo o sertão.

Dormiam no caramanchão, e durante todo o dia, mãos à obra.

João buscou o madeira fina na caatinga, foi fincando-a no solo, entrelaçando-a na horizontal e na vertical, tudo amarrado com cipós conseguidos por ali mesmo, e depois preenchendo os vãos com o barro amassado, a ajuda de Maria e das meninas, as paredes ganhando forma, consistência.

Trabalho duro pra mais de quinze dias.

Festa, alegria quando viram aquele casarão de chão batido, sala, cozinha, tudo espaçoso, vários quartos, a meninada se fartando, nem saudade do Boqueirão sentiam mais.

Agora todos saudavam: Roça Velha é o nosso lugar, nosso chão...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: com o suor do rosto o pão de cada dia, a casa de farinha sobe num dia, lembranças de um tropeiro, ouvir o galo campina que quando canta muda de cor, moiando os pés no riacho.

 

Ter um lugar.

Um chão.

Uma terra onde lavrar.

O galo cantando na madrugada.

Galinha botando ovos todo dia.

Cabras, e o leite.

Mulas, pra qualquer serviço.

João levantou-se feliz na primeira madrugada depois do primeiro sono sob o novo teto.

Agora, os outros desafios.

Era econômico, seguro.

Mas, restavam poucos vinténs na algibeira.

Carecia botar o mundo pra rodar.

Fazer da Roça Velha um lugar de produção.

De onde, eita vida dura, tirasse o pão de cada dia da família.

Nessa manhã, primeiro café feito ali no fogão da nova casa, ainda sentindo a lenha crepitar, pôs-se a pensar.

Fora assim, né?

Desde os primeiros tempos.

Deus quisera assim.

Disse, está lá no livro sagrado: o homem, com sofrimento, se nutrirá do solo todos os dias de sua vida, com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao solo.

Assim seja, assim será - murmurou, enquanto dava um outro gole na caneca de alumínio, sua preferida.

Bateu palmas, chamou todo mundo, hora de trabalhar.

A Roça Velha estava a uma légua, légua e meia do povoado de Sítio Novo.

Distância quase nada.

Tabaréu tira caminhando sem sentir, como se fosse ali na esquina comprar velas pra alumiar a escuridão ou óleo pra lamparina.

Na parte mais alta do terreno, no topo da Roça Velha, a casa recém construída.

João logo botou mão na massa, era um danado esse avô de Navarrinho.

Convocou adjutório da família e como num milagre num dia subiu a casa de farinha, também ali no topo.

Ao mesmo tempo, ia lavrando a terra.

Fora tropeiro, disso conhecia, e muito, e disso gostava.

Correu mundo tocando tropa de burros lotados de produtos da roça para vender nas muitas feiras por que passou, viu o orvaio beijando as flô, viu de perto o galo campina que quando canta muda de cor, moiou os pés no riacho, oiou coisa a grané - desculpem, Luiz Gonzaga ultrapassa a lógica fria do tempo.

Mas conhecia também de outras manhas, sabedoria não lhe faltava.

A vida tem muitos saberes, e ai de quem não entender isso.

A terra não lhe era estranha...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lis Braga: Que texto lindo, Emil! Deu saudade de Adamastor, meu galo.

Reinaldo Queiroga: Show de texto !!👏⭐⚽    

-------------------------------------------- 

Emiliano José

13 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: mexer com a terra,

conhecer o chão, viver no deserto,

em nome do Pai, obediência dos filhos,

aprendendo de tudo, velha e útil pedagogia...

 

A terra era praia dele, também.

Não conhecia só da vida de tropeiro de burros, não.

Desde cedo, alternara: na estrada e na terra.

Aprendeu os segredos.

Que não são poucos.

Único jeito de aprender: mexendo com ela.

Sentindo seu cheiro.

Vendo como ela reage.

Como a plantação vai surgindo depois de jogada a semente, colocada a muda.

João pensou: quando você visita a Bíblia, e ele visitava sempre, está lá o deserto, e o homem vivendo nele com suas famílias.

Não há nada impossível para os homens crentes no Senhor - era seu pensamento fixo.

Não era sina do homem o trabalho, tirar do solo o seu sustento?

Como não ia transformar aquela caatinga?

Como não ia tirar ali o pão dos filhos?

Ia, sim senhor.

Mão de obra, tinha.

Está certo: eram meninas, e ainda pequenas.

Mas, braços para a lida.

A mulher ainda não havia parido meninos, então as meninas deviam fazer o papel dos filhos homens.

Com ele, não tinha conversinha mole: todos tinham de ajudar, trabalhar duro.

Era um pai.

Tudo girava em torno dele: em nome do Pai.

Naquele sentido antigo: palavra dele era lei, ordem dele não se discutia.

Não, não precisava violência, bater em filhos, nada disso.

Bastava a palavra segura, o olhar severo.

Obediência nascia disso.

Mariazinha, a mãe de Navarrinho, não aprendeu a arrear animais, montar, tirar leite de cabra, atirar, plantar, capinar, roçar, limpar currais, colher não porque seguisse o pai no dia a dia com admiração.

Não.

Fazia tudo por obediência, maioria das vezes bem contrariada mas sem dar um pio, poucas vezes alegremente como quando montava ou quando o pai pegava das armas e a iniciava no manejo delas.

Aprendeu desde cedo o quanto a vida era dura.

Nada vem de mão beijada.

Enfrentá-la requeria coragem, disciplina, capacidade de enfrentar dificuldades.

Vai levar vida afora as lições desse tempo.

Será mãe-pai mais tarde, e daquelas cujas ordens os filhos aprenderam a não discutir.

Para o bem ou para o mal, foi pedagogia aprendida desde a Serra do Boqueirão, seguida na Roça Velha.

A pedagogia do velho João, reconhecerá mais tarde, de boa serventia...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: terra conhece a

mão de quem a toca, proximidade

do rio Paraguaçu, e evem jerimum,

feijão, andu, feijão de corda, mangalô,

macaxeira, verde se espalhando que

nem cobra pelo chão, como Deus

mandou tirava do solo o sustento da família.

 

Essa história de terra ruim é conversa mole pra boi dormir.

Terra conhece quem lavra.

Pode ser ruim, o lavrador.

E se ruim, ela responde mal.

Mas há o conhecedor de suas manhas, de suas artes, seus trejeitos.

E então ela responde bem.

Ao primeiro toque, ela já sabe de quem se trata.

João, o velho João, avô de Navarrinho, pensava assim.

Bastava tratar bem o chão.

Inda mais que a Rocha Velha ficava próxima ao Paraguaçu, rio abençoado, de águas cristalinas, a tornar fértil todo o derredor.

Quando ele olhava praquelas águas e via os peixes cheios de alegria ali dentro, é, ele os via tão límpidas as águas, tinha sonhos de abundância, a água lhe dava essa sensação, como se fosse fonte de alimento - e quem disse não fosse?

Não compreendia muito não: por que aquela terra fora desprezada por tanto tempo?

Por que tanta gente chegou por aquelas bandas, olhou, e desdenhou.

Fez muxoxo.

Não, não entendia.

Foi ele botar os olhos, e ser tomado de bem querer.

E nada houvesse, ouvia lá de cima a palavra de Deus, o homem devia tirar o sustento do solo onde pisava, com o suor de seu rosto.

Depois de construída a casa, lavrar.

Foi meter a mão na terra, e ela responder.

Foi como se a terra dissesse: este, sabe das coisas.

Fez a roça de jerimum - adorava ver a abóbora, o nome vareia, ir crescendo devagarinho, devagarinho, e num dia acordava, ia olhar, e lá estava ela gigante, elas, muitas delas.

Servia pra tudo - a festa mesmo era o doce de abóbora, quando as crianças se fartavam.

As filhas, ali, ao lado, aprendendo a lidar, mexer na terra, Mariazinha junto.

Era de lei - tinha de caprichar na roça de feijão.

Como não?

Suporte da mesa, todo dia.

Sozinho, ou com uma carne de sertão.

Sabia: sem o feijão, meninada não cresce: nele estava o cálcio, ferro, tanta coisa.

Dava gosto ver o verde que te quero verde da plantação.

Não só o comum.

Plantou também o feijão de corda.

O andu, mangalô, outros tipos de feijões, de fácil manejo e muitas utilidades.

Variava, diversificava sua roça.

E como não plantar aipim?

Mandioca, macaxeira, pão-de-pobre, maniva - tantos nomes por esse sertão afora.

De serventia variada na cozinha

E da cozinha, dona Maria entendia, e muito...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

------------------------------------------------- 

Emiliano José

15 de fevereiro

Carlos Navarro Filho: cuidando de roças

e de frutas, maxixe e jabuticabeira,

quixabeira, pinheira, na roça nada se perde, terra arrendada do imenso latifúndio

dos Medrado, xingando de comunista.

 

E ele, o velho João, foi plantando.

Ali era assim mesmo: em se plantando, tudo dava.

E veio o maxixe - há quem adore e quem deteste.

No Nordeste, muito comum, maioria adora.

Bem cuidado, se alastra.

Muita coisa.

Cuidou das árvores frutíferas.

Da jabuticabeira - fazia a delícia da criançada, jabuticaba é delícia, mel.

Da quixabeira - pela fruta e pelas virtudes medicinais da casca.

Dela, surgem remédios caseiros para os rins e para diabetes e serve também para a cicatrização de ferimentos.

Na roça, tudo se aproveita.

Da pinheira - pinha é uma fruta deliciosa e repleta de vitaminas, minerais: cálcio, ferro, potássio, magnésio.

A Rocha Velha pouco a pouco ganhou cara, um novo formato, vida.

Mariazinha, aprendendo, assuntando.

Claro, logo ao chegar, João, o avô de Navarrinho, tomou tento:

aquelas terras não eram terra de ninguém.

Tinham dono.

Desde priscas eras, latifundiários delas se apossaram.

Àquele tempo, e desde há muito, os considerados donos eram os Medrado.

Já se disse: terra a perder de vista.

Roça Velha, dentro do território considerado da família.

O lavrador chegava, metia-se na lida, e apalavrava o arrendamento: um pagamento mensal ao latifúndio, aos Medrado.

O todo-poderoso, à época, era o coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado.

Curiosa a noção dos próprios Medrado: Edgard Medrado, delegado em Salvador durante muito tempo, considerava o pai um "precursor do socialismo".

Isso.

Porque o velho Mourinha, assim conhecido o coronel Manoel Justiniano, arrendava terras.

Está no livro de Cleidiana Ramos: "Os caminhos da Água Grande".

Um socialista explorador, então, não?

Ao mesmo tempo, o tal Edgar Medrado gritou durante comício em Iaçu fosse eu um comunista, eu no palanque ao lado de Roberto Santos, candidato a governador pelo PMDB, em 1982.

Acreditava me xingar - eu até orgulhoso fiquei, negar por quê?

A vida seguia na Roça Velha, terra dos Medrado, lavra do velho João, obrigado a pagar renda...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

16 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: dia de feira, levantar ainda de noite, preparar caravana,

encher os caçuás e alforjes,

e pegar o estradão, um dia inteiro

vendendo, volta antes do por do sol.

 

Era a vida.

João, o velho João, pensava: não fora assim desde que Adão comeu da maçã ofertada por Eva, desde o pecado original?

Tirar do solo o seu sustento?

Foi pecar, comer do fruto proibido, aguente.

Maldição de que não se foge.

E não reclame.

E não houvera sempre os ricos, os donos, senhores da terra?

Pagaria a renda.

Agora, não pisassem em seu calo.

Cuidava daquela roça como se sua.

Cumpria seus tratos.

Então, o deixassem em paz.

Aquela produção toda, desenvolvida por ele e pelos filhos, servia à alimentação da família.

Não precisava comprar nada fora.

Como no Boqueirão.

Não consumia tudo.

A sobra, nem se deva chamar assim, coisa que só o diabo, farinha de mandioca muita e todo o restante, a sobra era vendida na feira de Sítio Novo, no povoado, fervendo cada vez mais, ajudada pelo trem.

Além da farinha e de todo o resto, levava também carne de bode seca, desossada, aberta, parecença de uma grande folha de papel, artes de sertanejo, desejo de muita gente.

Muita gente se ajuntava naquela feira.

Era dia especial.

João, o avô de Navarrinho, levantava antes do galo cantar, muito antes, noite ainda, ali pelas três da manhã.

Acendia a lenha do fogão, começava a preparar o café, chamava Maria, começava a despertar a meninada.

Juntava seus burros jumento e o cavalo, enchia os caçuás, os alforjes até não mais poder, arreunia as meninas, e seguia marcha, correndo o estradão, cobrindo a légua e meia pra chegar ao nervoso e alegre Sítio Novo, mais nervoso e alegre em dia de feira.

Saía antes do sol botar as caras pra valer.

Mariazinha desde cedo preferiu ir montada, ela própria manejando as rédeas da montaria.

Aprendeu muito cedo.

Não era assim uma feira de Jequié, tão conhecida do velho João, aquela coisa gigante, a perder de vista.

Mas, não era uma feirinha.

Povo comprava.

Dinheiro pouco, mas comprava.

A caravana voltava sem produto nenhum, caçuás e alforjes vazios, burro jumento cavalo mais leves, alegres por se livrar do peso no lombo.

Já impunha respeito, a feira.

Fazia barulho em toda a região.

E ao mesmo tempo, ele se lembrava: mais de mês levado pra ir e voltar de Jequié, sacrifício danado quando no Boqueirão.

A jornada agora era um bateu levou: saía de madrugadinha, antes do por do sol estava em casa - maravilha.

Fosse, então: pagava a renda, mas o deixassem em paz em sua Roça Velha.

Não mexessem com ele...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------- 

Emiliano José

17 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: cabra ladino o

velho João, cacimba natural entre

as pedras, lavoura de subsistência

no alto, a criação, cabras, ovelhas,

vaquinhas, requeijão, a caatinga

seca e dura, a explosão com

as águas, verde exuberante.

 

A Roça Velha tinha uma configuração interessante.

As roças de subsistência ficavam também no alto.

Vocês sabem: sujeito experiente, de olhar esperto, aproveita tudo para produzir.

Procura fazer o serviço de forma mais produtiva.

Velho João, o avô de Navarrinho, era desses, cabra ladino.

Logo ao chegar, havia notado: na parte mais alta, jazia uma cacimba natural entre as pedras.

Alimentada por uma pequena nascente e pelas águas da chuva.

Então, era ali: e foi ali o esparramo das roças de subsistência.

Rocha Velha, no entanto, era mais, muito mais.

Maior parte, ocupada pelas criações.

Delas, o velho gostava, como gostava.

E organizou os pastos das cabras, das ovelhas.

E de uma poucas vacas pé duro para o leite, o requeijão da família - quer coisa melhor que isso?

A criançada se deliciava de assistir ao esmero, aos cuidados da mãe, o manejo daquela panela grande cheia de leite no fogão de lenha coberta por um pano, dois dias de descanso até virar coalhada, e aí todos os outros procedimentos, até surgir o bendito fruto das benditas mãos, o requeijão, delícia incomparável.

Roça Velha tinha disso, milagre das criações cuidadas pelo velho João e das mãos milagrosas de Maria.

O velho João levantava cedo, tirava o leite das vacas, dava de comer à bicharada, alisava uma cabra, uma vaquinha, tirava um berne, era só carinho.

Bem, Roça Velha era caatinga.

Vegetação classificada como de savana estépica.

O sertão é caatinga.

Roça Velha, favorecida pela proximidade do rio Paraguaçu, estava na caatinga.

Muita pedra, mandacaru, vegetação não muito densa , grande parte rasteira, pequenas árvores, boa parte do tempo sob a seca, aquele panorama levemente amarronzado, o vento levantando poeira de quando em vez, aqueles redemoinhos, aqueles pés de vento, o diabo vinha dentro deles, e nos povoados era arriscoso levantar as vestimentas das meninas, só ver e elas seguravam a barra da saia pro diabo não atentar, sabiam do vento com suas manhas endiabradas, melhor não facilitar...

Havia a palma, aproveitada para os animais, depois de cortados os espinhos.

Havia pés de licuri.

Seca, aquela paisagem de desilusão às vezes.

É, mas bastasse um pouco de chuva, e a explosão verdejante, a caatinga assumia sua cara exuberante com o beijo carinhoso, sensual das águas.

Era assim a vida na Roça Velha.

#MemóriasJornalismoEmiliano   

--------------------------------------------------------- 

Emiliano José

18 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: vida dura,

alguns gostos de Mariazinha,

montar e lidar com armas,

o pai ensinando, quem sabe um dia...

 

Às vezes, quando falamos da vida de um pequeno agricultor familiar, corremos o risco de dar uma falsa impressão.

Romantizar as coisas.

Não, ali a vida é dura.

Foi ontem.

É hoje.

Não há maldade no pai levado a colocar a filharada na lida.

É a pura necessidade.

Experimentei isso diretamente.

A dureza do pai ou da mãe era parte daquele tempo.

Não podemos olhar o passado com o olhar atual.

O velho João, avô de Navarrinho, tinha formação religiosa, rigorosa, cristã, e além disso precisava dos braços das meninas, primeiro, dos meninos depois.

Na roça, se fazia filhos a granel.

Somados, o casal pôde contar 13 filhos vivos.

Brinquedo, não.

João, chegado na Roça Velha, jogou as meninas na lida, as três primeiras a nascer.

Mariazinha, a mais nova delas, ali pelos meados dos anos 1920, cedo cedo viu crescer calos nas mãos.

Nascera em 1918, estava com sete, oito anos quando chegou na Roça Velha.

Dali em diante, foi um aprendizado só.

Tomou ciência de tudo.

Querendo ou não, obediente

E ai não fosse.

Aprendeu a ser.

Relutava em algum momento, o pai lançava um daqueles olhares severos, e ela estava de prontidão, mão na massa, fosse o que fosse.

Gostar, gostar mesmo, montar.

Aprendeu a pegar animal no pasto.

Jogar a manta, a sela, puxar a barrigueira, e depois de um tempo, já um pouquinho maior, sozinha, meter o pé esquerdo no estribo, montar, e sair garbosa, mãos firmes nas rédeas, o animal sentindo o poder da cavaleira.

O pai, não podia negar, sentia um certo orgulho de ver a filha tão segura em cima de um cavalo, de um burro.

Mas, ela tinha outro gosto.

Mexer com armas.

Estranho, não?

Era ver o pai tomar de uma espingarda, de um clavinote, e ela encostava.

Os olhos, brilhando.

E o pai não se fazia de rogado, nesse caso.

Quem sabe, um dia, ela necessite - pensava a sério, esse mundo é cheio de surpresas.

E foi ensinando, e ela aprendeu também a atirar, cedo, cedo.

Menina danada, essa mãe de Navarrinho.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

19 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: a feira, a festa, o

festival de cores e de alegria, Mariazinha

se acostumando e gostando,

enjoando da boneca, os homens já olhando...

 

Era um vai e vem permanente.

Toda semana, dia de feira, antes do galo cantar, o velho João, o avô de Navarrinho, se alevantava, ia pra beira do fogão, fazia o café, e começava logo a bater palmas pra chamar a meninada.

Dia anterior, já havia juntado os produtos.

Preparar os burros, encher os caçuás, organizar direitinho a caravana e cair na estrada, aquela légua e meia.

Sol nascia, ao partir.

Devagar, seguia.

Carecia pressa, não.

Inda assim, dos primeiros a chegar, sempre.

Mariazinha fez disso rotina.

Depois das primeiras experiências, passou a gostar.

Feira é um acontecimento.

Uma cultura.

Encontro.

É comércio.

Festa.

Um colorido só.

Gritaria - não há feira sem gritaria, conversa em voz alta.

Uma briga ou outra, só barulho, esparramo, nada demais.

As frutas, as verduras espalhadas pelo chão, ou nos tabuleiros.

Cada um gritando seu preço, o melhor.

Os tecidos esvoaçantes, a provocar a imaginação das meninas.

Às vezes, até o homem da cobra.

A cidade, o povoado, qualquer aglomeração, pode estar na modorra, aquele paradeiro, nada acontecendo.

E de repente é a feira: muda tudo.

É como se a feira desse uma chacoalhada no mundo.

Como se dissesse acorda pra vida.

Mariazinha, descobrindo pouco a pouco esse mundo, chegou um tempo, enjoada da boneca, começou a se arrumar pra seguir pra feira.

Não tanto porque não tinha tanta roupa.

Botava a melhorzinha.

Um batom, suave, senão pai briga.

Uma flor no cabelo.

Adolescência, cês sabem, né?

Noção já de mulher.

Chegada aos 15 anos, mulher feita diz o povo, não a lei.

Bonita de fazer gosto.

De atiçar, incendiar, iluminar os olhos dos homens, dos mais novos e dos mais velhos.

E naquele tempo, as meninas casavam cedo.

Alguns, sabendo Mariazinha moça de família, de pai rigoroso,  sabiam: chegar perto, se assanhar, arrastar asa pra moça, era arriscoso, perigo chegar ao altar.

Muitos olhavam, mas chegar perto mesmo, não.

E o medo do velho?

Ocorre, no entanto, um porém.

Um dia...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: rio a marcar a vida,

Paraguaçu, e a confundir histórias,

Sítio Novo e Paraguaçu, Mariazinha

vendendo na feira, um olhar

acintoso, invasivo, a mexer com ela...

 

Estava aqui a contar histórias da mulher surgindo, Mariazinha já formosura, cobiça dos homens crescendo, lascívia arrodeando.

Tenho, no entanto, de resolver pendência.

Pendência, cês sabem, não é bom deixar se arrastar.

Deixar, complica.

Já tem algum tempo venho me ocupando de Iaçu.

Vá lá descobrir por que as águas do Paraguaçu me seduziram.

Fui antes até Cachoeira, onde as águas do gigante também correm.

Minha protagonista, durante coisa de quatro meses, foi a quase-freira Cleidiana Ramos, hoje sob o manto dos orixás, filha de Oxum.

Agora, Navarrinho, nascido também à beira do Paraguaçu.

E ainda, no correr da pena, tem chão até ele enxergar o sol.

Não nasceu ainda.

De acontecer, vinha chamando o povoado mais tarde chamado Iaçu como Sítio Novo.

Navarrinho, repórter esperto, experiente, me alertou: soubesse, e sabia desde menino, a antiga Fazenda Sítio Novo era conhecida como Paraguaçu desde o início do século XX.

Passou a chamar-se assim oficialmente por resolução municipal número 3, de 19 de abril de 1922, a completar um século, portanto, ano que vem.

Resolução municipal de Santa Terezinha, município ao qual pertencia o povoado.

Tal resolução chegou a ser aprovada por lei estadual - a de número 1569, de 3 de agosto de 1922.

Tudo das anotações de Navarrinho.

Nas pesquisas de Cleidiana, o povoado ganhou o nome de Vila Paraguaçu em 1934, para em 1954 chegar a distrito.

Creio ser possível compatibilizar as duas visões.

Muito provavelmente, Navarrinho tem razão, num primeiro olhar.

A proximidade do rio levou à consagração do nome, povo batiza e pronto.

Num segundo olhar, também deve ser considerada a opinião de Cleidiana.

Nas últimas horas, me disse ouvir dos mais velhos, com muita frequência, a denominação Sítio Novo, em referência à velha propriedade dos Medrado, sem deixar de ouvir também o nome Paraguaçu.

Tocando em frente.

O leitor já sabe do poder dos Medrado.

Um poder àquela época incontrastável.

Estava Mariazinha nos seus verdejantes quinze anos na feira, à solta, vendendo abóboras, feijão, aipim, farinha de mandioca, carne de bode seca, o diabo a quatro.

O pai à distância, só assuntando, e trocando dois dedos de prosa com amigos.

Tirar os olhos da filha, ah, não tirava não.

Mariazinha, ativa,  atendia com atenção toda a freguesia.

Atendia uma freguesa, outra, outro.

E de repente sentiu um olhar insistente.

Um freguês.

Mexia num produto, noutro, perguntava o preço de uma coisa, de outra.

Parecia não saber o que comprar.

Mas, não tirava os olhos dela, parecia querer arrastá-la para dentro de si.

Um olhar acintoso, incomodava, mexia com ela.

Não, não era desrespeitoso.

Desejoso?...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

----------------------------------------------- 

Emiliano José

21 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha sob cerco,

um Medrado botou os olhos e não mais

tirou, velho João ressabiado, o Medrado

vai pra cima do pai, a resposta não sai de pronto...

 

Naquele primeiro dia de feira, do primeiro insistente olhar, Mariazinha se saiu, continuou a vender como se nada estivesse ocorrendo, sobretudo depois de o velho João encostar, dar dois três dedos de prosa com o homem, parecia conhecido do pai.

Distraiu aqueles olhos.

O avô de Navarrinho, ciente: a filha se fazia mulher, e marmanjo cercava, olhava, e se pudesse mais, mais.

Cuidava da cria.

Mulher.

Mulher jovem.

Mulher bonita.

Então, bom não descuidar.

Teve outra feira, mais outra.

E sem descanso, lá vinha o homem querer comprar, e quase nada comprando.

Era um sujeito bem apessoado, roupa de gente importante, via-se.

Quando descia do cavalo notava-se a bota engraxada, e esporas, rebenque nas mãos, colete, corrente do relógio de bolso à vista.

Sinais de poder.

E já avançado nos anos.

Não tirava os olhos de Mariazinha.

Até que um dia ganhou coragem.

Depois de arrodear Mariazinha, perguntar de preços, e olhar, olhar no fundo dos olhos dela, olhou pros cantos, e viu o velho João, sempre atento, um pouco distante.

Caminhou na direção dele.

Deu bom dia, perguntou da Roça Velha, elogiou a produção, coisa de terra bem cuidada foi dizendo, parecia ao velho João ser um cerca-Lourenço, quase perguntou logo das pretensões, mas esperou com paciência.

Depois de falar de safras, da chegada do trem, das cheias do Paraguaçu, do Nego D'Água, das rezas do padre, de muito enrola-enrola, foi ao ponto:

- João, já tenho alguma idade, está se vendo, não preciso dar muita volta: é sobre essa menina, sua filha.

- Que é que tem Mariazinha? perguntou o avô de Navarrinho, já um pouco ressabiado.

- Preciso que compreenda: quero casar com ela - disse o homem de bota e espora, assim, causando um choque.

João o conhecia.

Era um dos Medrado - como não conhecer?

Levou um susto.

Era um sujeito já acumulado nos anos, de quarenta pra lá, dificultoso pensar pudesse casar com sua filha, tão novinha.

Mariazinha, de longe, só assuntando, desconfiando pudesse ser ela o motivo da prosa, só na encolha.

O velho João, de poucas palavras, pediu tempo.

A um Medrado, não se diz não assim de pronto.

Nem sim, para não parecer submissão.

Deixou o assunto no ar.

E o homem de bota e espora, partiu sem saber de resposta.

Que será, que será?...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

---------------------------------------------------

Emiliano José

22 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: silêncio no retorno,

silêncio em casa,decisão, conversa com Maria, conversa com Mariazinha, resposta ao

homem de botina e esporas, casamento.

 

O velho João não dava uma palavra na volta para casa depois de ouvir o pedido.

Um quarentão pretendia a mão de sua filha.

E um Medrado, da família dona do céu e da terra.

Mariazinha, também um túmulo.

Sabia ser o motivo.

A légua e meia da volta não foi alegre.

Sorumbática, melancólica.

Todo mundo jururu porque o clima pegou a todos.

João chegou em casa, descarregou os burros, o pouco ainda nos caçuás, passou água nas mãos, lavou o rosto, esperou Maria botar o jantar.

Maria não entendia o silêncio.

Não se arriscou a perguntar.

 Antes de dormir, o avô de Navarrinho danou-se a pensar.

Encontrava rumo sempre na palavra de Deus.

Refletiu sobre o destino da mulher.

Na dor, ter filhos.

O desejo a empurrá-la ao marido.

O marido, seu amo.

Ouviu muito isso, da tradição.

Tá certo - era ainda muito nova.

Mas, já mulher.

Surgira um pretendente.

Casar, deveria.

Então, por que não?

Pensou, refletiu, e foi se aprochegando de uma decisão.

E aí, dia seguinte, uma folga, e conversou com a mulher.

Maria, um pouco ressabiada no princípio, ouvindo, ouvindo, se acostumando com a ideia.

Conversaram então com Mariazinha.

Desconfiava.

Pensou: o homem de botina e esporas não estaria olhando daquele jeito não tivesse intenções mais alargadas.

Sentiu os olhos faiscando, e as faíscas eram por ela.

Casar, tinha de casar.

Então, fosse.

Demorou uma semana, duas, e o velho João deu a resposta.

Deixou o homem de botina e esporas feliz da vida.

Parecia estranho, mas um dos Medrado fora buscar para mulher uma filha de posseiro, arrendatário, situação incomum.

Não se sabe se o resto dos Medrado concordava.

Mas, o quarentão não quis nem saber.

E ele e Mariazinha se casaram...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: mundo girou, casada,

se ajeita, passa a morar na Vila do Paraguaçu,

marido morre, os Medrado querem

tomar a casa, ela resiste, e vida segue.

 

Giro de 180 graus.

A vida mudou inteiramente.

Mariazinha, casada com um homem bem mais velho, de posses, formado em faculdade de cidade grande, de família poderosa, a mais poderosa da região.

Havia falado em homem quarentão.

Nada.

Pra lá de cinquentão.

Bem mais velho.

Mas, ela sabia como se virar, como se adaptar.

Se houve a decisão do casório, se virasse nos trinta.

E se virou.

Ela e marido mudaram-se para a vila de Paraguaçu.

Pequena fosse, vida de cidade, bem diferente do dia a dia da Roça Velha.

Era início dos anos 1930, ali por 1933, 1934.

Dona de casa - precocemente adaptou-se.

Os avós, João e Maria, também se acostumaram a não ter a filha por perto todo dia.

E afinal o povoado ficava a légua e meia, um pulo.

Mais conforto, Mariazinha não podia negar.

O homem botou tudo em casa.

Mas, o marido era velho, sabe-se.

E o tempo cobra preço, às vezes cobra mais cedo do que o esperado.

Um ano e meses depois do casamento, ela já se acostumando, não sei se digo gostando, o Medrado bate as botas.

Os pais logo disseram: volte pra Roça Velha, morar com a gente de novo.

Nada: Mariazinha havia se dado bem com os costumes da Vila.

Pequena fosse, vida de cidade.

Quis não.

Bateu pé: daqui não saio daqui ninguém me tira.

Os Medrado, família sovina da porra, quiseram tomar a casa onde ela morava.

E quiseram apesar do desejo manifestado pelo marido no leito de morte: a casa é de Mariazinha e ninguém tasque.

Ela se agarrou no direito adquirido, e os Medrado tiveram de recuar.

Menina do cão - murmurava a família.

Que murmurassem, mas dali não sairia.

E isso era mais um argumento com pai e mãe para não voltar para a Roça Velha.

A mãe de Navarrinho não era brinquedo, não...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: um quintal grande,

uma fábrica de sabão, vizinhança

de narinas sensíveis, reclamações,

dar a volta por cima, fábrica de vinagre, paz na vila.

 

Mariazinha guardava lembranças boas do casamento.

Não fora convivência difícil, não obstante a diferença de idade.

E ela, ladina, ladina, foi se valendo dos conhecimentos do marido.

Aprendendo.

O homem tinha feito faculdade, sabia coisa que só o diabo.

Bom prestar atenção.

Prestava.

Aprendeu muita coisa nova.

Até química aprendeu um pouco.

Voltar pra Roça Velha, nem pensar.

Não se adaptaria mais.

Encontraria os pais quando viessem à vila.

Precisava, no entanto, dar um jeito de ganhar a vida.

Tinha a casa, mas e o de comer?

E as despesas do dia a dia?

Marido, não tinha mais.

Pais, vivendo no limite, dinheirinho curto da produção da roça.

Do casamento, não viera filho, mas tinha despesas, ora sim, senhor.

Meter as caras.

Olhou praquele quintal grande, e pensou pudesse ter alguma serventia.

Teve: ali construiu uma fábrica de sabão.

Fábrica, exagero: uma fabriqueta.

E tome-lhe a produzir sabão.

E arregimentou freguesia: havia a freguesa do sabão massa, a do sabão azul, foi garantindo fidelidades.

Mas há sempre quem bote gosto ruim.

Apareceram vizinhos a reclamar do cheiro de sebo bovino, soda cáustica, tantos outros ingredientes necessários à produção de suas mercadorias. 

Gente chata, invejosa.

Gente pobre mas metida a besta.

Na vila, não havia ninguém rico.

Naquelas paragens, rico, rico mesmo, de poder falar de boca cheia, só os Medrado.

E nem viviam ali.

Restante, no máximo remediado, maioria pobre pobre de marré deci.

Tocou a fábrica por algum tempo, mas recuou.

Briga com vizinho é a pior coisa do mundo.

Mariazinha, a mãe de Navarrinho, resolveu, então, com seus conhecimentos de química, produzir alguma coisa de aroma mais agradável, mais afeito às narinas sensíveis da vizinhança, e de seu caldeirão mágico apareceu uma fabriqueta de vinagre.

Produziu, produziu, e não houve reclamação.

Afinal, vinagre é produto na mesa de todo mundo.

Em paz com a vizinhança.

Parada, não ficava.

Ganhava algum dinheiro, resolvia suas despesas e ainda dava algum adjutório pra família.

Hoje, estaria com folga no campo do empreendedorismo.

Talvez dando cursos.

Pretensiosamente, poderia estar andando por aí, ganhando dinheiro com palestras, uma coaching.

Tanta gente faz isso, não?...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Fiquei fã de Mariazinha🥰, danada de boa de luta.

Isabel Santos: Joana D'arck danada de boa como dona Elza e dona Maria Aparecida. Mulheres exemplos de muita garra e de ternura.

Nadya Argôlo: Êta Mariazinha retada!

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: o vinagre foi pro saco,

o milagre do lambe-lambe, na porta

da igreja as pessoas se aglomerando,

ela entregando as fotos,

os olhos da freguesia brilhando.

 

Não.

Mariazinha não era uma qualquer.

Do vinagre, saltou para o lambe-lambe.

As novas gerações certamente não atinam com isso.

Nem imaginam.

Lambe-lambe era o fotógrafo de rua.

Você ia andando por uma praça, uma rua, um jardim, e de repente deparava com um deles.

Estavam por todo canto do Brasil.

Não tem tanto tempo assim, e ainda era possível encontrá-los por ai, encapuzados, fundidos a caixotes sobre tripés.

Ao que se sabe, ganharam força a partir do final do século XIX.

Realizavam o trabalho com uma câmera-laboratório: uma caixa de madeira com uma lente apoiada num tripé.

Câmera dividida em duas partes: a inferior continha os dois banhos, revelador e fixador, utilizados ao mesmo tempo para o processamento químico de filmes e papéis.

As fotos, e isso encantava a freguesia, eram reveladas no ato.

Quase uma selfie.

O fotógrafo não precisava ir ao laboratório para revelar os filmes.

Coisa de mágico, a magia do final do século XIX, um século cheio de proezas, coisas inimagináveis.

Bom lembrar nesses tempos de tantas invenções - a imaginação humana é criativa desde sempre.

Mariazinha já ouvira falar daquilo, conversara com o marido, havia química pelo meio, mas nunca imaginara um dia despertar para esse milagre.

Um dia, viu um lambe-lambe.

De passagem pela vila Paraguaçu.

Ficou pouco tempo por ali.

Conversou um pouco, bisbilhotou, pediu para enfiar a cabeça naquela máquina estranha.

Encantou-se.

O vinagre foi pro saco.

Com seu tripé, instalou-se na porta da igreja.

Impressionou-se como as pessoas se acercavam daquela geringonça e como desejavam fotografar-se.

Pagavam com gosto, coisa barata.

Pagavam e saíam com os olhos brilhando de entusiasmo ao verem-se ali, reproduzidas, outras e as mesmas pessoas.

A fotografia é magia antiga.

É magia.

E Mariazinha percebeu isso...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: Paraguaçu não tinha vigário, igreja abria de caju em caju,

de quando em quando missa, e aí

Mariazinha fazia a festa com seu tripé, e um dia depara com Carlos Navarro Gil-Braz.

 

Contando assim aligeirado, parece uma vida sorridente, fácil, a de Mariazinha.

Era não.

Igreja, na Vila Paraguaçu, não abria todo dia.

Só de vez em quando.

Missa, só de caju em caju.

A vila não contava com vigário.

De tempo em tempo, aparecia um pra celebrar missa, consolar as almas do lugar.

As almas pedem consolo, as vivas e as mortas- inquietas, as almas.

Aí, então era aquele ajuntamento.

Das carolas, por hábito.

Dos dados à fé, por fervor.

E até graúdos, por conveniência.

Os homens, melhores roupas, chapéu nas mãos.

Mulheres, vestidos abaixo do joelho, véus negros, purgando pecados, houvessem.

Lembram da expressão?

Roupa de ver missa?

Ou roupa de ver a Deus?

Pois é.

Aí, sim: Mariazinha fazia a festa.

Na entrada e na saída.

Era um tal de pedir fotos.

Casais de namorados.

Noivos.

Marido e mulher.

Sujeito montado a cavalo.

Família inteira, filharada sorrindo.

Missa, alegria, alegria.

Ainda assim, quando a igreja abria na entressafra, e abria várias vezes, entrava gente pra orar, as carolas e algumas outras, poucos homens, lá estava ela com seu tripé, a postos.

Inquieta, difícil de esquentar lugar, começa a duvidar do negócio.

Foi nesses afazeres da câmara escura, naquele lufa-lufa maior parte encapuzada, o encontro com o marido.

Com o próximo marido.

Carlos Navarro Gil-Braz.

Já falamos muito da mãe, da mãe de Navarrinho, a vir a ser - logo logo ele nascerá, peço paciência ao leitor, à leitora.

Falamos do pai, antes, assim ligeirinho: nasceu em 1914, vinda dele para Vila Paraguaçu.

Depois da morte do pai, ocupando a mesma função dele.

Agente Postal Telegráfico, homem das comunicações, iniciozinho dos anos 1940.

A passagem do trem por ali exigia isso, um Agente Postal Telegráfico.

Creio já ter dito, mas quem lê não é obrigado a voltar atrás.

O APT era gente importante, ainda mais numa pequena vila.

Pequena, mas fervilhante por conta da Estação Ferroviária.

Cuidava, de modo geral, das comunicações daquele povoado com o mundo.

Até escrever cartas, escrevia.

Além, claro, de enviá-las, recebê-las.

Aos poucos, ele foi se ambientando, e gostando daquela vidinha...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Na vila havia duas otoridades: o coronel e o APT, este é quem escrevia as cartas dos moradores e lia as respostas chegadas pelo Correio. Eu, aos 5 anos já ganhava uns trocados pra comprar rapadura, entregando telegramas.

Emiliano José: Carlos Navarro Tenha calma, você nasce daqui a pouco...

Carlos Navarro: Emiliano José kkk

Sérgio Buarque de Gusmão: Interessante esse "Gil Braz"...Na ancestralidade de Navarrinho cintila a ´História de Gil Braz de Santilhana´, a novela picaresca de Alain René Le Sage?

Emiliano José: Sérgio Buarque de Gusmão Quem sabe...

Nadya Argôlo: Adorando ler as hostórias de Mariazinha...

Carlos Navarro: Emiliano José pois é, quem sabe né?

Mônica Bichara: Navarrinho ainda nem sonha em nascer e já quer adiantar a história, né Emiliano José? kkkkkkk Calma, moço 

--------------------------------------- 

Emiliano José

27 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: o pai, bam bam bam

dali, senhor das intimidades, o escrevinhador,

segunda autoridade da Vila Paraguaçu.

 

Passamos um tempo falando de Mariazinha, a mãe.

Voltamos nossos olhos agora para o pai de Navarrinho.

Em nome do pai.

Mariazinha era levada da breca.

Impetuosa, decidida, metia as caras.

A vida era pra ser enfrentada.

Nada de chororô, nem de mimimi.

O pai, um pouco diferente.

Um pouco.

Também aprendera cedo a enfrentar a vida.

Carlos Navarro Gil-Braz chegou a Iaçu com coisa de 25, 26 anos.

Iaçu, nada.

Vila Paraguaçu.

Iaçu só mais tarde, bem mais tarde.

Já chegou como Agente Postal Telegráfico, o bam bam bam.

O povoado contava com duas autoridades.

A primeira, o condestável e incontestável coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado, dono dali e daqui, de terras a perder de vista, tudo ali era dele.

Era quem mandava.

Prefeito, vereador, delegado, juiz por aquelas bandas, adereços.

A segunda autoridade, ele, Carlos Navarro, pai.

Não era de muita pose, mas chegou com tudo.

O cara chega e já se mete com as intimidades das pessoas.

É.

Chegava a senhora, e dizia:

- Moço, meu marido foi pra São Paulo, e eu tencionava dizer umas coisinhas pra ele, e não sei escrever, o senhor sabe, né?

Ele, atento:

- Será que o senhor pode escrever uma cartinha pra ele, e mandar? - perguntava humildemente.

- Claro - respondia Gil-Braz.

Essa cena se repetia de modo impressionante.

Central do Brasil do sertão.

Grande parte do povoado não sabia ler nem escrever.

Quem sabia, tinha poder.

Ainda mais se fosse também correio.

De vez em quando, chegava uma moça, ressabiada, tímida, cartinha à mão, e perguntava:

- Meu senhor, recebi carta de meu noivo, não sei ler. Eu incomodo se lhe pedir pra ler?

- Não senhorita, leio, com prazer. Não incomoda de jeito nenhum.

Às vezes, ele sofria - era o rapaz dizendo adeus.

Como a dizer isso à moça apaixonada, esperançosa de casório, igreja, véu e grinalda?

Tinha de dizer.

Navarrinho, menino de calças curtas - é, vou dar licença a ele de chegar à cena embora na nossa história não tenha nascido ainda -, Navarrinho com cinco anos de idade já se atrevia a entregar telegramas.

Em troca, o pai lhe dava uns trocadinhos para comprar rapadura, quando ele compreendeu que rapadura é doce mas é dura, mas mesmo dura, uma delícia...

#MemóriasJornalismoEmiliano

---------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de fevereiro 2021

Carlos Navarro Filho: no meio do caminho um Dom Quixote, um Gil Braz do século XVIII, esperto, amigo do rei, rico, e o Gil-Braz do Paraguaçu, esperto também, diligente, e Navarrinho recolhendo vinténs para a rapadura.

 

Juro: fiquei curioso.

Sérgio Buarque de Gusmão andou perguntando não houvesse alguma influência ancestral recolhida pelo pai de Navarrinho, de sobrenome Gil-Braz.

Nos comentários.

Fui perguntar por aí.

Afinal, quando um Buarque indaga, é bom saber, tentar saber.

Viria lá de muito antigamente, a influência, ou os fluidos ancestrais, houvesse.

A História de Gil Braz de Santilhana é contada por um escritor francês, de nome Alain René Lesage.

Primeira edição, 1715.

Tem parentesco literário com Dom Quixote, disseram-me.

Um jovem no início da vida vai estudar na Universidade de Salamanca.

Acaba coagido a ajudar bandoleiros.

Dizem coagido.

Esperto que só a porra, termina amigo do rei.

E o melhor, rico.

Termina a vida gozando a fortuna num belo e confortável castelo.

Sérgio Buarque de Gusmão há de corrigir os erros dessa passagem rápida.

Após saber dessas coisas, tive a tentação de adquirir o livro.

Desisti: são quatro volumes, e a lista de prioridades da mesa de cabeceira é grande.

Talvez, dessa ancestralidade, Carlos Navarro Gil-Braz, o pai de Navarrinho, tenha recolhido a esperteza, sabedoria para enfrentar a vida, nunca uma esperteza capaz de dar rasteira em ninguém.

Amigo do rei, jamais.

Rico, ah, ah, nunca.

Chegou no povoado de Paraguaçu para começar do zero a instalação do serviço de correios.

Não existia nada.

Meteu mãos à obra, e logo logo o serviço estava funcionando.

Esperto, nesse sentido, era.

E diligente.

Navarrinho, o filho, logo ao entrar na história, me corrigiu:

- Não, meu pai não me dava dinheiro quando voltava da entrega de telegramas.

Nada.

Ia ligeiro, apertando o passo com suas pernas curtas de cinco, seis anos, chegava na casa, batia na porta, e entregava.

Não, não pedia nada.

Não ficaria bem.

Entregava, e esperava alguns segundos, não muito pra não dar na vista.

Normalmente, a pessoa, agradecida, ia buscar algum vintém.

Pouco fosse, permitia-lhe comprar um pedaço de rapadura, delícia da vida.

Mas, eu já avisei: não nasceu ainda.

Terá de esperar mais um pouco para falar com mais desenvoltura aqui nessa história.

É o protagonista, mas às vezes mesmo o protagonista, e por sê-lo, deve ter paciência, e depois falar à vontade, e terá muito para contar...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Sergião é amigo e foi colega no Estadão. Com ele eu e Popoia conhecemos jambu e tacacá, em São Paulo, lá nos anos 70. Um dos melhores jornalistas que conheço e após a redação revelou-se um grande e estudioso intelectual.

Emiliano José: Carlos Navarro Como você percebeu, conhecedor de prováveis antepassados seus...

Mônica Bichara: É cada uma... a criatura nem nasceu e já quer dar palpite 

-------------------------------------------- 

Emiliano José

1º de março 2021

Carlos Navarro Filho: Gil-Braz, deixa a vida me

levar, bom de conversa, amizades políticas,

terno de linho branco, chapéu Panamá quando

andando por Salvador, dizia-se

ser homem esquentado paradoxalmente.

 

Carlos Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, era homem de metro e setenta, metro e setenta e cinco por aí.

Nem tão alto, nem tão baixo.

Navarrinho, como eu, sairá baixinho.

Aliás, havia quem nos desse como muito parecidos.

Acho não.

Muito responsável, mas ao mesmo tempo um pouco Zeca Pagodinho, o nosso Gil-Braz.

Deixa a vida me levar vida leva eu sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu.

Enfrentava de peito aberto a vida, mas qualquer coisa desse errada, ele não caía em desespero.

Aos trancos e barrancos. seguia em frente.

Meu coração é nobre, foi assim que Deus me fez - parecia ouvir muito antes a canção de Zeca Pagodinho.

Bem falante, bem relacionado, cultivava amizades políticas, não era trancado em si mesmo.

Era da boa política, em sentido amplo, sem nunca ter sido político propriamente, nem querer.

Da boa vizinhança.

De políticos, lembre-se de Régis Pacheco.

Com ele fez amizade antes mesmo dele se tornar governador.

Talvez o tenha alcançado ainda como prefeito de Vitória da Conquista, cargo ocupado por ele até 1945.

Em 1950, se elege governador, assume em janeiro de 1951.

Dele, sei alguma coisa.

Waldir, sobre quem escrevi biografia de dois volumes, será secretário de Pacheco com 24 anos de idade.

Mas, sabe-se, Gil-Braz cruzou com Pacheco também pelos bares da vida na capital.

Sabia construir e cultivar amizades, com os de baixo, com os de cima.

E chegando à Vila de Paraguaçu, rapidamente formou um amplo círculo de amigos.

Sujeito popular.

Navarrinho, quando nascer, vai nos contar.

E soube: gostava muito de andar bem vestido.

Terno de linho branco, com ele mesmo.

Não dispensava um chapéu.

De feltro.

Ou Panamá.

Chapéu compunha a indumentária masculina à época.

Uma elegância só.

Esse luxo todo, claro, reservava para as viagens a Salvador, muito comuns.

No comum dos dias, vestia-se de modo simples, nunca descuidado.

Nada de terno.

Uma calça cáqui, camisa de manga comprida, ou mesmo de manga curta.

Curioso: dava impressão de ser esquentado...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

2 de março 2021

Carlos Navarro Filho: sangue italiano

com espanhol não dá boa coisa, pai

estourado,  Gil-braz violão e cavaquinho na mesa do bar de Policarpo, Navarrinho

lavando a jega, pai voltando pra

casa no meio da tarde, enrolando Mariazinha.

 

Navarrinho, nas memórias ainda não escritas, mas faladas por aí, costuma dizer, para referir-se ao pai: sangue italiano misturado com espanhol, não dá boa coisa.

Só podia sair um sujeito esquentado, meio estourado, não engolia desaforo.

Ele, Navarrinho, admite ser também assim.

Aí, concordo não.

Taí um sujeito paciente.

Reage: é mas se chega no meu limite, sai de baixo.

Pode ser.

Ainda não vi.

Ele, o pai, não tinha a paciência de Navarrinho.

Por qualquer coisa, explodia.

Mas, depois esfriava, as coisas se ajeitavam, não arrumava inimizades.

Era do fuzuê.

Do botequim.

Do violão.

Do cavaquinho.

Com ele mesmo. 

Terá tido a chance de beber da fonte de Waldir Azevedo, cujo sucesso na discografia começou no início dos 1950, embora já tivesse despontado havia algum tempo?

Não se sabe.

Das memórias faladas de Navarrinho, ouvi:

- Eu chegava da escola, minha mãe ia logo dizendo vá no correio pegar seu pai pra ele não sair fazendo farra por aí.

Claro, o leitor há de me alertar: você não está colocando o carro à frente dos bois?

Afinal, Gil-Braz e Mariazinha sequer se casaram.

Verdade.

Perdoem, mas agora carece completar.

Navarrinho chegava nos correios, o pai o recebia sorridente, pegava o filho pelas mãos, e seguia direto pro bar de Policarpo.

Era amigo dele, o Policarpo.

Bar na rua principal, rua da estação.

Gil-Braz colocava Navarrinho em cima do balcão, e sorrindo dizia:

- Pode comer o que quiser, pedir o que quiser.

Era cocada, gasosa de limão grande da Frateli Vita, lavando a jega.

Uma festa.

Nem se lembrava das recomendações da mãe.

O pai sentava, violão ou cavaquinho à mão, a roda se abria, ele e os amigos a cantar e beber, e ali pelas três horas da tarde, três e meia, lá ia Navarrinho puxado pela mão para casa.

Chegavam, mãe emburrada, puta da vida, Gil-Braz, embalado pelo álcool, sorrindo, conversa mole, amaciando a mulher, pedindo desculpas, não vai acontecer mais, sempre assim, e isso se repetia inúmeras vezes...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

3 de março 2021

Carlos Navarro Filho: bom de conversa o nosso

Gil-Braz, Mariazinha sempre cedia,

um dia espingarda de passarinhar,

de resto homem do diálogo, até do

hospital olhando as meninas passarem, escrevia cartas de amor para a mulher, um sedutor.

 

É.

A mãe era brava.

Mariazinha estourava por pouca coisa.

Mas Gil-Braz, o pai de Navarrinho, tinha conversa doce, mel puro.

Mariazinha cedia, sempre.

Depois da bronca, conversinha mole dele, colocava o almoço, tarde fosse, quando ele voltava de seu cavaquinho, de sua viola, do bar do amigo Policarpo.

Navarrinho olhava, na sua inocência, e ia aprendendo.

Os olhos cresciam de admiração pelo pai.

Bravo, mas um coração do tamanho do mundo.

Não tinha inimigos.

E isso é sinal de sujeito capaz de conviver, cidadão.

Teve uma vez, única: o filho testemunhou-o fora de controle.

Um bêbado sobre um cavalo, sabe-se lá equilibrando-se como, passou a todo galope tirando um fino danado em Navarrinho e na mãe, sentados à porta da casa.

Mariazinha levantou-se, contou pra Gil-Braz, ocupado dentro de casa.

Não contou conversa: tomou da espingarda de passarinhar, e saiu atrás do sujeito, disposto a matá-lo.

O passarinho sumiu.

Felizmente.

Resumo da ópera, colhido nas memórias faladas de Navarrinho: o pai era um sedutor.

Dos bons.

Teve à mão uma carta dele, enviada do Hospital das Clínicas, onde esteve internado por dois anos - internação a ser contada melhor à frente.

Carta enviada a Mariazinha.

Falava das tantas moças bonitas passando, ele olhando da balaustrada do hospital, e se desmanchava, não por elas - garantia.

Por Mariazinha - só penso em você minha morena, a mais bela de todas, e Mariazinha quase sentia as lágrimas dele cheias de saudades...

Tivesse tempo e atenderia a indicação de Sérgio Buarque de Gusmão.

Conhecer a história de Gil Braz de Santilhana - creio haver alguma influência ancestral nessa capacidade de sedução do pai de Navarrinho.

Coloquei o carro adiante dos bois.

Resta casar Mariazinha e Carlos Navarro Gil-Braz.

Narrador, às vezes se perde.

Especialmente quando há personagens sedutores pelo caminho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Sérgio Buarque de Gusmão: "Navarrinho olhava, na sua inocência, e ia aprendendo"...aprendeu muito bem...

Emiliano José: Sérgio Buarque de Gusmão Como chefe e amigo, sei. O resto... só os orixás...

Jose Jesus Barreto: com Mariazinha e um pai 'safado' desse tinha de dar um Navarrinho, né?

Paulo Pereclis: Gil Braz e Tia Mariazinha Meus Amores Meus Tios Navarrinho Meu Querido Primo 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

4 de março 2021

Carlos Navarro Filho: em nome do pai,

fortes lembranças apesar das surras,

admiração, trabalho duro na fase

inicial, missa, um tripé no meio

do caminho,  moça encapuzada,

e de repente um rosto, espanto, susto.

 

A lembrança do pai ainda emociona Navarrinho.

Apesar de também não se esquecer das boas surras.

Dá boas risadas ao falar delas.

O tempo.

Para alguns, pensar isso nos dias de hoje levaria a uma condenação àquele tipo de, chamemos assim, pedagogia.

Navarrinho não pensa dessa maneira.

Menos das surras, e mais do afeto, do carinho, dos estímulos recebidos, são as lembranças do Pai.

Conviverá pouco com ele, até os oito anos, morrerá cedo.

O suficiente para admirá-lo, tê-lo como referência essencial na vida.

Vamos ao encontro de Mariazinha e ele.

Carlos Navarro Gil-Braz chegara havia pouco tempo à Vila Paraguaçu.

E chegou sem tempo pra pensar em nada.

Toda suas energias, voltadas para a implantação do serviço de correio.

Trabalhava feito um mouro, como se dizia à época.

À noite, nada de farras.

Era chegar em casa, desabar.

Dormia feito um padre - sem pecado.

Quando diminuiu o ritmo, começou a olhar pros lados.

A vila era movimentada.

O trem, indo e vindo, ajudava.

Era gente partindo, gente chegando.

A vida se dava na estação e em torno dela, razão da existência daquela vila, desde o fim do século XIX.

Tinha olhos para as moças, e não eram poucas.

Um dia de domingo, missa.

Botou a melhor roupa.

Terno de linho branco, tremeluzindo.

Ele mesmo passara a ferro.

Chapéu de feltro.

Sapato engraxado, de brilhar, que disso entendia.

De rezar, não era.

Ou ao menos não tão frequentemente.

Mal não faria, um pai-nosso fosse, uma ave-maria, nem precisava uma salve-rainha.

E missa, era missa.

Ponto de encontro, fazer amizades, nem em namoro pensava.

Missa, naquele tempo, era acontecimento.

Da devoção, mas também tantas outras coisas - e delas, os padres não gostavam muito de saber.

Na entrada, prestou atenção ao tripé.

No lambe-lambe em frente da igreja.

Cuidando, percebeu tratar-se de mulher.

Na saída, viu o rosto da moça, até ali encapuzado sob aquela estranha geringonça.

Ah, para que a moça foi despontar na sua frente assim, de repente, sem avisar nem nada?

Espanto, susto...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de março 202’

Carlos Navarro Filho: olhos incendiados,

a hora do espanto, Niemeyer e Pedro Tierra,

namoro, querendo casar, à espera do padre, subindo ao altar.

 

Aqueles olhos.

Ele olhou, ela sentiu.

Espanto.

Dos dois.

A vida é feito de espantos - a afirmação é de Oscar Niemeyer, o sábio.

Tão sábio que ultrapassou a casa dos 100 anos.

Pedro Tierra, o poeta, me lembrou novamente isso esses dias, numa roda de conversa, chamada também de live.

Os espantos alegram a vida, são a poesia dela.

Os dois, Gil-Braz e Mariazinha, se olharam, e houve o espanto.

O milagre do encontro.

A Gil-Braz, aqueles olhos afiguravam-se como olhos de ressaca, arrastavam-no irresistivelmente.

A Mariazinha, os olhos de Gil-Braz traziam paz e fogo, ela não sabia definir a predominância de um e de outro.

Gil-Braz cercou a moça.

Elegantemente.

Esperou se desvencilhasse, daquele entra e sai da geringonça, sem tirar o olhar dela, e quando ela se preparava pra ir embora, deitou falação.

Suavemente.

Um Don Juan.

Nem precisava tanta prosopopeia.

A ela, bastaram os olhares, a trazer-lhe tanta paz e tanto fogo.

Foi ligeiro: namoro começou logo ali, dois dedos de prosa, e resolveram casar.

Combinaram: primeira visita do padre à cidade, e subiriam ao altar.

Os dois não cabiam em si de felicidade.

Ele, primeira vez, a alegria da primeira vez.

Ela, segunda.

Frustrada no primeiro casamento, agora queria ter filhos.

Rapaz novo, com esse não haveria erro.

Combinaram com a senhora que cuidava da igreja, disseram das santas intenções.

Deixasse anotado o casório para não haver dúvidas.

E um dia, padre chegou.

Nem demorou tanto.

No altar da igreja da Vila do Paraguaçu, os dois fizeram juras de amor eterno, cuidar um do outro sempre, e o padre eu os declaro marido e mulher e autorizou o beijo, o primeiro beijo na boca, que Gil-Braz era sujeito muito respeitador...

#MemóriasJornalismoEmiliano

-----------------------------------------------------

Emiliano José

6 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Gil-Braz e sua conversa

sedutora, despedida de solteiro já casado,

viola minha viola, boas rodadas de bebida,

madrugada alta, chegada em casa, Mariazinha

chateada, culpando os amigos, beijos, e a noite foi quente.

 

Enfim casados.

Mas nada de enfim sós.

Gil-Braz, e eu não me canso de lembrar de Sérgio Buarque de Gusmão e de seu esperto Gil Braz de Santilhana, finda a cerimônia, ainda várias pessoas por ali, chama Mariazinha de lado, meu amor amor da minha vida vou fazer uma comemoraçãozinha com meus amigos assim coisa de bota fora despedida de solteiro um pouco atrasada cê sabe né se não faço pessoal fica de cara amarrada é costume por aqui convém respeitar.

Mariazinha, já com alguma experiência, nova mas curtida pela vida, olhou pra ele ressabiada.

Mas pensou com seu botões: melhor aceitar.

Primeiro dia de casamento.

Não ia estragar.

- Vá. Eu lhe espero.

Recebeu outro beijo na boca.

Caloroso.

Carlos Navarro Gil-Braz não era brinquedo, não.

Tinha ancestral de respeito, de boa linhagem.

E aí ele foi pra farra.

Viola minha viola.

Pouca gente, os mais próximos.

Uma esbórnia das boas.

Brito, da Estação.

Policarpo, do bar.

Rubem, dos correios.

Arlindo Guarda-Fio.

Os convivas do dia-a-dia.

Não faltou bebida.

Nem cantoria.

Juntou mais gente, muita alegria, Vila Paraguaçu soube.

Gentilmente, havia deixado Mariazinha em casa.

Garantindo não demoraria.

Demorasse, saberia como dar jeito quando chegasse.

Chegou em casa madrugada alta, espírito animado por muitas doses, Mariazinha acordada, chateada, ele logo culpando os amigos pela demora, queria sair não deixavam, cobriu-a de beijos, ela sorriu, cedeu, e a noite foi quente naquele início de 1942...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha conhecendo

o marido, homem de bem, mais qualidades

que defeitos, muitas barrigas, muitos filhos.

 

Mariazinha deve ter refletido logo ali naqueles primeiros dias: será um casamento feliz.

Do que ouvira, do que sabia, Gil-Braz era sujeito do bem.

Tem um defeito, diziam: adora uma farra.

Nada demais: tocar uma viola, juntar amigos, beber uma coisinha.

Isso não fazia mal a ninguém.

Cuidasse dos filhos, e já seria bom o casamento.

Fosse ameno, carinhoso, melhor ainda.

Soubesse amar, paraíso.

Trabalhador, isso já sabia - rigoroso com seus afazeres, como poucos.

Trouxesse o pão de cada dia, ótimo - trazia.

E foi conhecendo-o, sentindo-o, e vendo as tantas qualidades dele, a compensar os poucos defeitos.

Sentiu: esse será um casamento duradouro.

Foi.

Durou dez anos, e só terminou porque Carlos Navarro Gil-Braz partiu precocemente - vamos contar isso mais adiante.

Filhos, vieram, e não foram poucos.

Navarrinho, o primeiro.

Nasceu em 1945 - enfim veio à luz.

Depois, Dalva.

Em seguida, Marina.

Na sequência, Gilson e Tuca.

Jurandir veio ao mundo e morreu com menos de um ano.

Mariazinha ainda daria a luz a Salvador - o Goroba, título de um livro de contos de Navarrinho.

E por fim, Eduardo, o caçula.

Um atrás do outro, conta Navarrinho, já podendo falar, por já nascido.

Minha mãe, de oito barrigas, seis filhos, 95 anos neste 2021, completados em novembro do ano passado, sempre bem humorada, lúcida, costuma brincar "eu era igual igreja de São Bento um fora outro dentro". Amanhã deve tomar a segunda dose da vacina contra o covid, em São Paulo, onde mora.

Mariazinha não foi diferente.

Foram nove barrigas.

Vingaram sete.

Foi vida de milhões de mulheres por esse Brasil afora, sertões, fundões, mares e favelas: fazer e criar filhos, desdobrarem-se em mil, amor e cuidados, a casa nas mãos, muitas vezes sem o marido, fugido, morrido, matado.

Ainda é, um outro Brasil, mas ainda acontece muito.

Com Mariazinha foi assim.

Cedo, cedo, viu-se sem Gil-Braz, não por fugido, mas por morrido. enfermidade o levou, novo, novo, 38 anos.

Leitor vai reclamar e vou pedir paciência.

Conto, não se avexem...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

8 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha casada

mas muito ligada aos pais, eles iam à

Vila, ela ia à Roça Velha, e um dia

quebra-facas de Mourinha aparecem

na terra de João, traziam recado de Mourinha...

 

Narrador carrega a ilusão de mandar na escrita.

Manda não.

Até porque os personagens estão ao lado, atentos.

Não deixam ninguém dormir.

Imaginei pudesse falar do casamento, do nascimento da criançada, do primogênito Navarrinho, a fileira dos sete, então seguir adiante.

À noite, tentando conciliar o sono, um cafuso João, me alerta.

Mariazinha, me sacode.

Antes do nascimento de Navarrinho tem história pra contar.

Cobrança dos dois.

Tenho de concordar.

Volto, então.

Casaram.

Carlos Navarro Gil-Braz e Mariazinha, levando a vida, morando na Vila Paraguaçu.

O velho João Alves, a mulher Maria Alves, pais de Mariazinha seguiam tocando a Roça Velha.

Volta e meia, os dois apareciam na cidade - é, podia ser chamada assim a vila em contraposição à Roça Velha.

Mariazinha, de vez em sempre, os visitava, saudades deles e da vida na roça.

Muito ligados.

Estava o velho João numa segunda-feira do início dos anos 40, ali por 1943, 1944, cuidando do eito, bem próximo à morada da Roça Velha, e ouviu um tropel de cavalos.

Foi logo ver o que era.

Dois cavaleiros.

- Bom dia, seu João, disse um deles, sem tirar o chapéu  e de modo um pouco áspero.

- Bom dia - respondeu o velho João, no mesmo tom.

Não desceram dos cavalos.

- A que devo a razão da visita? - perguntou João, ainda mantendo a educação.

- Nós estamos aqui a mando de Mourinha - disse um deles, prenunciando trovoada, voz de quase ameaça, modo a desagradar o velho João.

O leitor deve se lembrar, mas em todo caso, vamos recordar: Mourinha era o nome do mandachuva, do coronel, do dono de terras até onde a vista alcançava e bem além.

Nome de batismo: Manoel Justiniano de Moura Medrado.

Era ouvir esse nome, e as pessoas tremiam.

Coronel, chefe de todos os Medrado, inclusive do antigo marido de Mariazinha, que Deus o tenha.

João os conhecia bem.

Sabia conviver, admitiu até o casamento de Mariazinha com um deles.

Afinal, a terra era de Mourinha - assim ele proclamava.

Respeitava, mas nunca de modo a baixar a cabeça.

E não tremia à toa.

- E  que mal pergunte, Mourinha os mandou aqui para quê?

João perguntava por perguntar.

Sabia mais ou menos qual o recado trazido pelos quebra-facas do coronel...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de março 2021

Carlos Navarro Filho: capangas chegando

com aviso de incêndio, Mourinha dando

ordem para a produção de pó de palha

de licuri, isso ou cinzas, um fogaréu,

coronel não estava para brincadeira

Sabia, ele sabia a pretensão de Mourinha.

 

Mas, queria ouvir.

Olhava pros dois quebra-facas.

Por lá também chamavam capangas.

Melhor assim - pistoleiros, mais pesado.

Ancestralidade indígena, cafuzo todo, os olhos do velho João, avô de Navarrinho, vigiavam tudo.

Um viera num cavalo manso, sela arrumada, sujeito meio amuado, jeito de quem só espia, não dá palavra, só assunta.

Com esse, bom ter cuidado - pensava João.

O calado, sempre mais astuto, perigoso.

Outro, parecia mais esperto, de montaria imponente.

O cavalo, seguro no freio pelo cavaleiro, resfolegava o tempo todo, batia as patas no chão, nervoso.

Impressionava pelo porte.

O nervosismo talvez se explicasse também pelas esporas do cavaleiro.

As marcas estavam lá, nas virilhas da montaria.

Ao lado de cada sela, pendia uma espingarda - conhecia armas bem.

Não era homem de assustar com pouca coisa.

Vida era uma só.

Arma era coisa de homem - só assustava quem não fosse.

- O que o Mourinha quer mesmo?

Maria, a mulher, na soleira da porta da casa da Roça Velha, tensa, preocupada.

Tinha ciência sobre Mourinha.

Gente  perigosa.

Perversa.

E conhecia o temperamento do marido.

Quieto, calado, mas não mexessem com ele.

Não dava coisa boa.

Quando João perguntou de novo, o mais adiantado, o falante, de cavalo baio arisco, pigarreou, não se sabe se de tanto cigarro de palha ou de nervosismo, da tensão no ar, e disse:

- O senhor precisa passar a produzir pó de palha de licuri - imperativo, grosseiro.

- Quem está dando essa ordem? - o velho João perguntou, fingindo inocência.

- A ordem é de Mourinha - disse o quebra-faca, agora com voz  ainda mais arrogante.

- E se eu não fizer isso? - arriscou o velho João, esticando a corda, conscientemente.

- Ou faz pó de palha de licuri ou vamos tocar fogo em tudo - disse o capataz, olhando em volta, decidido.

- Tudo isso aqui vira um mundaréu de cinzas - completou.

Depois disso, esperava assentimento.

Ninguém se dispunha a enfrentar Mourinha.

Ninguém?...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

10 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Brasil do latifúndio

e dos coronéis, domínio pelo terror e

medo, velho João indignado com ousadia

dos capangas, o Diabo que venha em pessoa,

não mande recado por quebra-facas, viesse.

 

Talvez seja difícil pensar no Brasil de quase 80 anos atrás.

Sobretudo o Brasil dos fundões.

Dos sertões.

Não passara tanto tempo assim desde a matança de Conselheiro e seus seguidores camponeses.

Os coronéis desses ermos eram senhores da vida e da morte.

Infundiam medo.

Terror.

O domínio deles Brasil afora era exercido pelo medo, pela violência, pela força das armas.

Mourinha era uma dessas figuras.

Talvez coubesse como personagem de "Coronelismo, Enxada e Voto", clássico sobre o fenômeno do latifúndio, de Victor Nunes Leal, amigo de Waldir Pires, defenestrado do STF por não ter concordado com o AI-5.

Difícil pensar aquele País onde nos sertões os coronéis ainda mandavam, embora houvessem perdido poder no conjunto da Nação, caminhando para se industrializar.

Mourinha tinha certeza de seu poder, de seu mando.

Considerava impossível não ser obedecido.

Tinha razões para pensar assim.

Não conhecia bem o velho João Alves dos Santos, avô de Navarrinho.

Ouvira aquela fala imperativa do capanga mais falante, do cavalo mais elegante, das esporas brilhantes, e achara um desaforo, um desrespeito.

- Como? - pensou, de si para si.

- Se eu não obedecer, vão tocar fogo em tudo? - repetia intimamente.

Tinha de confessar: o sangue ferveu.

Sangue cafuzo não é brinquedo, ancestralidade forte.

- Como é que um sujeito vem à minha casa, à porta da minha casa, fazer uma ameaça dessas?

Tudo isso passou pela cabeça em poucos segundos.

Deu uns dois passos adiante, aproximou-se do cavalo elegante quase amistosamente, lentamente, sem tirar os olhos do quebra-facas, alisou a bela crina do baio a resfolegar, a montaria se aquietando parece gostando do carinho, o capanga sem entender aquilo, e aí olhou nos olhos dele, e disse:

- Deixa eu lhes dizer uma coisa: quero que vocês dois voltem, e digam ao Mourinha que não mandem mais vocês  aqui não.

Os dois, particularmente o do cavalo elegante, olhos esbugalhados, impressionados com a ousadia.

- Vocês são tão pobres como eu - acrescentou, num tom de lamento, sem altear a voz.

E mandou o recado, subindo o tom:

- Digam a Mourinha pra ele mesmo vir tocar fogo.

Os dois sentiram a determinação, a autoridade moral do velho João, a voz segura, sem qualquer hesitação, olho no olho.

Matar ali o velho, não iriam.

Seguiram de volta.

O velho João viu cavalos e cavaleiros a galope sumirem no horizonte, levantando poeira.

- O Diabo que viesse em pessoa, não mandasse recado - murmurou João.

Entrou em casa, junto com a mulher, morta de preocupação.

A semana começara quente na Roça Velha...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de março 2021

Carlos Navarro Filho: preocupação, insônia

do velho João, inquietação da mulher Maria,

o zum-zum-zum na Vila, movimentação

dos puxa-sacos, solidariedade silenciosa

de muitos, jagunços se movimentando,

Mariazinha tomando as dores do pai.

 

O velho João, avô de Navarrinho, foi dormir preocupado aquela segunda-feira.

Sabia: a resposta dada aos quebra-facas fora quase uma declaração de guerra.

Uma afronta.

Mas, como não dar aquela palavra?

Aprendera com seus pais: homem pode perder tudo, tudo mesmo, e a vida às vezes carrega o vivente para uma situação dessas.

Perder tudo, sim.

Menos a honra.

Essa, inegociável.

Isso o levou a dar aquela resposta.

Demorou pra conciliar o sono, ele desacostumado à insônia.

Percebeu a inquietação de Maria.

E tinha certeza de sua solidariedade, não obstante o medo, natural.

A notícia correu pela Vila do Paraguaçu como um rastilho de pólvora.

Não havia quem não soubesse da resposta do velho João.

Os puxa-sacos de Mourinha, defendendo-o.

E esperando a merecida lição no posseiro da Roça Velha.

Como afrontar assim o padrinho de todos nós? - perguntavam.

Vocês sabem: puxa-saco há em qualquer lugar.

Subservientes, também.

Servidão voluntária está espalhada por aí.

Mas, há gente boa, solidária.

Havia lá na Vila.

Gente ao lado do velho João.

Preocupada com ele.

Essa gente não falava muito, só assuntava.

Que ia fazer?

Não ia dar murro em ponta de faca.

Torcia para que nada acontecesse ao lavrador da Roça Velha.

Afinal, vivera em paz ali, de sol a sol, por longos 11 anos.

Era uma sina.

Trabalhar duro, pagar a renda do dono das terras, ver sobrar pouco para dar de comer à família.

Tinha sido essa a sina do velho João até ali.

E agora, bastava uma palavra mais forte, e as pessoas iguais a ele na Vila viam os capangas se armando, prontos para desalojá-lo da terra.

Nas primeiras horas da quinta-feira da mesma semana correu o zum-zum-zum: jagunços de Mourinha iam desocupar a Roça Velha naquele dia.

À bala.

Mariazinha soube.

Tomou as dores.

Como não tomar?...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Um cavalo, uma espingarda debaixo da saia, uma caixa de cartuchos, Mariazinha na estrada

pronta para enfrentar jagunços de

Mourinha, João da Roça Velha e as

lembranças dos últimos 11

anos, transformando aquela

terra em lugar bom de se viver.

 

Mariazinha estava casada fazia dois anos.

Não se enganara: Lalinho era excelente marido.

Carlos Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, era chamado assim por ela.

Vocês não sabem por quê?

Nem eu.

Esses apelidos surgem de repente da intimidade de marido e mulher.

Gostava muito de Lalinho.

Infelizmente até ali não tivera filhos.

Tentaram.

Mas, dois abortos espontâneos naqueles primeiros dois anos de casamento haviam impedido.

Navarrinho será o primeiro e ainda não havia nascido nesses dias tempestuosos da investida de Mourinha contra o velho João.

Quando soube de capangas se arrumando, muito cedo, foi pro quintal, arriou o cavalo, meteu o pé esquerdo no estribo, montou, e seguiu pra Roça Velha.

A galope.

Conhecia os caminhos, atalhos, veredas, por onde foi ninguém a interceptaria.

Sob a saia, a espingarda 20 de caça, de uso de Gil-Braz.

No alforje da sela, uma caixa de cartuchos.

Se era pra resolver na bala, fosse.

Atirar, sabia, desde menina.

Nada de avisar o marido.

De si para si, já montada, murmurou:

- Eles não sabem com quem estão se metendo.

Indignada, com muita raiva, continuou:

- Se botar meu pai na rua, esse coronel não vai gostar do que vai ver.

E completou:

- Lalinho depois que resolva com ele.

João, o João da Roça Velha, assim conhecido de tão ligado era à terra, passara aqueles dias, desde a segunda-feira, refletindo sobre a vida.

Quando levantou naquela quinta-feira, sol ainda não havia surgido.

Vida longa ou curta, há de ser vivida com dignidade - pensava.

Cor de bronze, bronzeado ajudado pelo sol dos sertões, terceira geração de tupinambás, baixinho.

Gostava de exibir os muques para netos e bisnetos, adquiridos no trabalho da roça e na lida de levar mula de tropa mundo afora.

Vida dura, a da Roça Velha.

No Boqueirão, muito melhor.

Mas, na Roça Velha havia passado os últimos 11 anos.

O lugar agora parecia coisa de gente.

Dava gosto de viver.

E foi necessário muito trabalho, suor derramado até chegar a isso...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

13 de março 2021

Carlos Navarro Filho: a hora e a vez, ouvindo

tropel de cavalos velho João pensa,

providenciando carne de mocó ou de preá,

sanguessugas chupando o sangue da perna

de Mariazinha, óleo de licuri pra

alumiar a escuridão, maldade da sussuarana

 

Ao levantar-se, deixar Maria ainda dormindo, o velho João, enquanto toca fogo na lenha do fogão, começa a preparar o café, rememora a vida.

Como se carecesse.

Como se fosse a hora e a vez dele, sensação.

Como se ouvisse o tropel dos cavalos do coronel se aprochegando.

Nesses momentos, a vida passa como num filme.

Mourinha não havia de perdoar a palavra dura, tinha ciência disso.

Então, bom rememorar, a vida é esse amontoado de lembranças, amontoado a nos tornar homens.

Era como se mexesse num velho caçuá, a remexer em tanta coisa.

Aquela terra, agora sob a mira dos clavinotes de Mourinha, foi cavucada com muito esforço.

No começo, foi tudo difícil.

Todos trabalhando, as meninas também.

Era o sol raiar, e caminho da roça.

Carne, a de caça.

Tomava da espingarda de socar, e se criançada ouvia tiro, sabia:

feijão com farinha vai ter reforço de mocó ou de preá.

Mourinha não deixava criar boi - só bode e porco.

Perverso.

Vinham saudades do Boqueirão, onde havia todo tipo de carne.

Corria assim a vida.

Mariazinha, a filha, sofria com a colheita do arroz. O charco infestado de sanguessugas grudando nas pernas, sem chance de tirá-las, e saindo depois de empanturradas do sangue novinho.

O licuri é nativo, nasce por aí.

Pela vontade de Deus, esparrama-se pelo mundo.

Além do coquinho, delícia da garotada, permite a feitura do óleo a encher as lamparinas e alumiar a noite escura.

E com esse óleo, feito por Maria, a mulher, avó de Navarrinho, o velho João movia os dois motores de meio cavalo, adaptados na moenda de cana e na casa de farinha.

E Mourinha agora inventara outra serventia pro licuri, só para desfrute dele.

Perversidade.

Pensava, o pensamento parecia coisa à toa, lembrança e lembrança.

E será, que será?

Os homens de Mourinha já estão a caminho? - perguntava-se à beira do fogão, madrugada, noite ainda daquela quinta-feira.

Tinha ido, nos dias anteriores, azeitar as armas.

Tivesse precisão, não lhe faltariam.

Estavam ali, a postos.

Ele e as armas.

Viessem.

A hora e a vez.

Se medo não tivera de onça, da pintada ou da preta, de homem iria ter?

Abateu algumas para proteger seus cabritos, garantir vida à criação.

Pensou na sussuarana - muito malvada.

Mata e não carrega - apenas chupa o sangue quando está saciada.

Lembrou de pronto de Mourinha, nem sabe por quê.

Parece destino da humanidade: quanto mais o sujeito tem, mais quer.

Medo, não aprendera.

Àquela altura da vida, não aprenderia mais...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de março 2021

Carlos Navarro Filho: pó de licuri a nova

moda de Mourinha, pagamento da renda

no final de ano, chegando o plástico,

desaparecendo a gamela de madeira,

velho João resistindo, Mariazinha

na estrada, recordações da Roça Velha.

 

O velho João, músculos ainda enrijecidos pelo trato da terra, a cabeça atormentada pelas memórias indo e vindo, pensava no licuri.

- Que diabo era aquilo de querer obrigar posseiro a parar tudo e só produzir pó de palha de licuri?

E o resto?

Tinha de produzir.

Para ele e para vender na feira mode a juntar algum dinheiro.

E juntar para no final do ano entregar tudo ao coronel Mourinha.

Dinheiro, dinheiro mesmo, todo o amealhado, era pra ele.

Agora vinha com essa...

Levantou a caneca esmaltada já desgastada pelo uso, tomou um gole de café, ouviu o cantar do galo chamando a todos, viu os primeiros raios de sol começando a invadir o chão de terra batida da cozinha.

Contava-se por tudo quanto é ermo naquelas bandas, nas terras arrendadas por Mourinha, as ordens chegavam e deviam ser cumpridas: todos deviam produzir pó de palha de licuri, coronel único comprador, ditava o preço, e ai de quem tentasse vender a terceiros.

O posseiro perguntava pra que diabo servia aquilo, e não tinha resposta.

Ordem de Mourinha - e ponto.

Alguns poucos souberam: o pó de palha seria cozido em alta temperatura, transformado em celulose e depois em galatite.

Era o sabido, comentado, sem comprovação de verdade.

A galatite era matéria-prima para fabricar copos e bacias de plástico.

Sumiriam nas asas do tempo as velhas gamelas de madeira.

E os tantos utensílios esmaltados ou de cobre.

Com ele, não.

Mourinha fosse tratar disso com outros, os conformistas, os do reino do sim senhor.

Respeito sim, nunca faltou.

Submissão, nunca.

Mariazinha saiu da Vila Paraguaçu a galope, cedo, cedo, espingarda e cartuchos a tiracolo.

Pai não iria ficar sozinho.

- Mexeu com pai, mexeu comigo - ia repetindo, diminuindo o galope nas veredas.

O pai passara por poucas e boas para tornar a Roça Velha local habitável.

Ouvira falar de menina naquela coisa de terra de leite e mel como terra da felicidade.

Nem tanto - teve tempo de odiar mel, tanto mel na Roça Velha.

Lambuzava-se de mel no chá, no café, com farinha, no mamão, na abóbora, no aipim, chega um dia enjoa, vira remédio.

Roça Velha lhe trazia lembranças de um tempo duro, e simultaneamente feliz.

Foi testemunha do vigor, da força do velho pai.

E agora queriam fazer guerra com ele?

Querem?

Vão ter.

Apertou o passo, exigiu da montaria...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

15 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Por entre atalhos

e veredas segue Mariazinha,

morando no bem-bom, consciência

culpada, encontra família sã e salva

pronta para a guerra, pai, medo nenhum...

 

Era só legua e meia.

Parecia mais.

Obrigada a seguir por atalhos, procurar veredas, afastar a galharia do caminho, Mariazinha tinha de puxar a rédea da montaria, segurar a marcha, nem trotar às vezes podia, cavalo só no passo.

Quando a estrada se abria, galope.

Desde o casório, do primeiro, sentia alguma culpa.

Morava no bem-bom, casarão na rua principal da Vila do Paraguaçu.

Marido Medrado providenciou casa grande,  parecia quase palácio quando se olhava o restante das residências.

Família Medrado ainda tentou tomar depois da morte do marido Medrado, ela fincou pé nos seus direitos, dali não arredou pé.

Até cavalo cabia no quintal espaçoso, e foi dali sua partida aquele dia para encontrar o pai, guerrear ao lado dele, carecesse.

Tão bem instalada, e os pais lá na Roça Velha, naquela vida dura.

Um pouco de consciência culpada.

E além de queda, coice.

Mourinha agora quer fazer maldade contra o pai.

Nada.

Mexeu com ele, mexeu comigo.

O velho João foi dar milho às galinhas, e pensava: além de tudo a seca miserável, assolando tudo, ele devendo um ano de arrendamento.

E pobre é o diabo: dívida o incomoda, muito.

Rico, não.

Chega a divertir-se com dívida.

Sabe rolar, sempre.

João, avô de Navarrinho, andava angustiado pela dívida.

E vem lhe pedir pra produzir só pó de palha de licuri?

Mariazinha, meia hora de galope, trote e passo, chegou à Roça Velha.

Encontrou a família, sã e salva.

É, sã e salva, mas entrincheirada.

A postos para a batalha.

O pai chamara quem tivesse condições de luta.

Por toda a manhã, se preparou.

Sabia vinha guerra.

Se vinha, melhor aprontar-se. 

Curioso, pensava, quase surpreso com ele mesmo:  medo não tinha.]

Nenhum.

Viver é do risco, sempre.

E ninguém fica pra semente...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

16 de março 2021

Carlos Navarro Filho: terreiro lá de casa não se

varre com vassoura varre com ponta de sabre

bala de metralhadora, as espingardas e clavinotes ainda não cuspiram fogo, Gil-Braz vai atrás do coronel para exigir explicação sobre desocupação da Roça Velha.

 

Amanheci com cantiga brava na cabeça.

Sei por que não.

O terreiro lá de casa não se varre com vassoura varre com ponta de sabre e bala de metralhadora como a noite traz o dia com tristeza ou com demora terá quem anda comigo sua vez e sua hora o que sou nunca escondi vantagem nunca contei fugir nunca fugi nunca abandonei meu chão.

Talvez a frase: nunca abandonei meu chão.

Talvez pensando no velho João.

Imaginando a batalha da Roça Velha.

Fogo cuspindo das espingardas e clavinotes sangue avermelhando as águas do Paraguaçu.

De um lado, pistoleiros de Mourinha.

De outro, o velho João e filhos e filhas.

Mas, tenham calma, minhas senhoras e meus senhores.

Leitores, sei, são impacientes.

Hão de ter paciência.

Chega a hora.

Ainda não.

Batalha vem depois.

Lá na Vila de Paraguaçu, logo Mariazinha pegou estrada na direção da Roça Velha, chegou gente correndo atrás de Carlos Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho:

- Acode, seu Carlos, acode. Dona Zinha saiu esbaforida a cavalo pra Roça Velha.

Gil-Braz só então deu-se conta de tudo o que corria no breu das tocas, e disparou na direção da casa do coronel Mourinha.

Falemos um pouco de poder.

Na Vila do Paraguaçu havia duas autoridades.

Uma, a do coronel, pela tradição e força das armas.

Outra, a do homem dos correios.

Funcionário público federal, chefe dos Correios e Telégrafos.

Respeitado por entre tantas coisas ser o escrevinhador das cartas locais, guardador de segredos de muita gente, inclusive de pessoas da família do coronel.

Autoridade conquistada na manha, na delicadeza. mas autoridade.

E não é qualquer coisa ser um guardador de segredos.

Chegou à casa do coronel, indignado:

- O senhor pode me explicar, coronel Mourinha? Vão desocupar a Roça Velha na bala?

Mourinha engatou um veja bem, confirmou a escaramuça, mas jurou de pé junto jamais ter autorizado a desocupação da Roça Velha.

Como o uso do cachimbo faz a boca torta, coronel é coronel, sacou das armas de latifundiário, de dono de todas aquelas terras, Roça Velha incluída:

- Não posso deixar de dizer ao ilustre telegrafista: seu sogro está devendo dois anos de arrendamento e se a notícia espalha ninguém mais vai querer pagar.

Que soubesse, era um ano de atraso, não dois.

Fosse quanto fosse, era razão pra resolver a coisa na bala?...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Cleidiana Ramos: Esse Mourinha é o mesmo Justiano de Moura Medrado? E olhe que na segunda onda de batalha ele era tido como mais "ameno" que o filho ...imagine.

Emiliano José: Cleidiana Ramos o mesmo

Cleidiana Ramos: Emiliano José ...olha só!

Carlos Navarro: Era o próprio, o conheci. Eu muito criança. Lembro que não era brabo, o filho Raul também não. Mas Mourinha era muito duro e cercado por gente ruim. Edgar um dos filhos era o cão em figura de gente.

Carlos Navarro: O nome correto é Justiniano.

Cleidiana Ramos: Carlos Navarro, pois é. Quando fiz a entrevista com alguns dos posseiros eles sempre diziam que o velho era mais ameno e Edgar....tinha um que o chamava de "demônio"....se recusava a citar o nome dele..Edgar entrevistei algumas vezes. A melhor foi quando pude contar a ele, finalmente, que Vladimir Pomar estava vivo....o choque dele foi algo digno de nota hehehe....

Cleidiana Ramos: A digitação me traiu na hora de me referir ao nome do coronel, mas "Mourinha" é realmente novo..rsrs..o povo que entrevistei sempre dizia "o coronel Moura", ou "seu Moura"....por isso fiquei a princípio se era o mesmo.

Carlos Navarro: Cleidiana Ramos era muito "seu Moura", mas a verve de escritor do nosso Emiliano criou o Mourinha (aliás meu pai o chamava assim) porque ele era pequeno. Quanto a Edgar era delegado importante aqui em Salvador e foi se queixar a minha mãe, que morava na Joana Angélica, defronte ao convento da Lapa, por causa da denúncia que fiz por uma das muitas sacanagens que fez com posseiros lá.

Carlos Navarro: Eles se conheciam desde adolescentes e Mariazinha deu um passa fora nele, dizendo que se quisesse fosse me procurar. Por sorte não veio porque eu era um moleque ousado.

---------------------------------------------- 

Emiliano José

17 de março 2021

Carlos Navarro Filho: se entrega Corisco, não

me entrego não, não sou passarinho pra viver

lá na prisão, Guerra do velho João, Guerra do

Licuri, Mariazinha apeando do cavalo 20

nas mãos, Maria José suplicando pra ir

embora, João preparando as armas de

fogo, e as brancas afiadas, carecesse.

 

Músicas andam apertando minha mente.

E elas surgem não sei de que mundo.

Não decifro totalmente os recados.

Encantados do sertão saberiam responder.

Eu não.

Penso na perseguição.

Ouço o grito:

- Se entrega, Corisco!

A resposta:

- Eu não me entrego não!

Porra nenhuma:

- Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão.

- Se entrega Corisco!

Porra nenhuma:

- Não me entrego ao tenente não me entrego ao capitão eu me entrego só na morte de parabelo na mão.

É, mais fortes são os poderes do povo.

Por que Sérgio Ricardo e Glauber Rocha vem me atazanar o juízo?

Desconfio: é a Guerra da Roça Velha, é a luta do velho João.

Chamo assim: Guerra da Roça Velha?

Ou Guerra do Licuri?

Sei não, o leitor vai decidindo, e  eu toco a história.

Naquela quinta-feira, ainda era manhã e o velho João viu poeira na estrada.

Pensou no pior.

Nada: um cavaleiro só.

Não carecia apreensão.

Mourinha só anda de bando.

E se tem de mandar fazer maldade, só manda bando.

Esperou e viu: era Mariazinha.

Desceu de um pulo só do cavalo, a 20 nas mãos:

- Que faz aqui? - perguntou o pai.

Por perguntar, já sabia.

- Sua guerra é minha guerra - disse a filha.

Comandante de tropa, o velho João, avô de Navarrinho, juntou o batalhão e as armas.

Não era grande o arsenal: duas espingardas de socar, uma de dois canos destinada a matar onça e qualquer outro bicho grande, uma calibre 32.

Carecesse, levava ainda quatro facões Solinger amolados a capricho nas noites anteriores, e seis foices, também tinindo no corte.

Faltou bala, tem arma branca, de boa serventia quando escasseia a munição.

Maria José, a mulher, rogava rogava vamos embora de vez ao menos vamos salvar a vida de nossos fiinhos cê sabe jagunço não perdoa quando vem destrói tudo não deixa nada em pé nem ninguém pra contar história Deus nos livre guarde vambora João.

O velho João, preparando armas, nem ouvia, não queria ouvir...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

18 de março 2021

Carlos Navarro Filho: prepare o seu coração pras coisas que eu contar, velho João

e a insônia, evocações das tropas

de mula, morte de onças, lágrimas

no meio da noite, certeza da batalha

no porvir, levantando-se pronto pro embate.

 

Hoje, o coração amanheceu em disparada.

Prepare o seu coração pras coisas que eu vou contar eu venho lá do sertão e posso não lhe agradar aprendi a dizer não ver a morte sem chorar e a morte e o destino tudo estava fora de lugar na boiada já fui boi mas um dia me montei o mundo foi rodando nas patas do meu cavalo as visões se clareando até que um dia acordei agora sou cavaleiro laço firme braço forte de um reino que não tem rei.

O velho João e sua encruzilhada provocam rememorações, embaladas pela música.

Na noite de quarta para a quinta-feira, demorou pra dormir, pensando no dia seguinte.

Já soubera das movimentações dos homens de Mourinha.

Pegar no sono, um custo.

Gozado: pensou nas tropas de mula, nos longos trajetos levando mula pra lá e pra cá, dormindo no mato, vigilante, olhos semiabertos modo a vigiar onça atrevida, bicho qualquer, noites de estrelas.

Aquelas paradas, conversas, a trempe improvisada para preparar a xepa.

Nas viagens do Boqueirão para Jequié, ida e volta, coisa pra mais de mês.

Vida dura, mas boa.

Não, nunca tivera desavenças mais sérias.

Quando houve, enfrentou sem precisão de armas.

Agora parece fosse exigir.

Dormiu, mas no meio da noite, bem antes do galo cantar, e por mais de uma vez, levantou-se.

Preocupar-se, fosse sozinho.

Deixasse Maria dormir sossegada.

Não incomodasse os filhos.

Descobriu-se chorando.

Bom fosse só.

De primeiro, assustou-se.

Depois, deixou-se chorar.

Uma boa sensação.

Adulto, nunca mais conhecera isso, lágrimas.

O que estava feito, feito estava.

Na vida há coisas sem volta.

Carece só enfrentar.

Os homens de Mourinha iam bater em sua roça.

E a ele carecia defender a família.

Destino de homem.

Já matara muita onça pra defender a criação, os cabritos.

Refletiu: homem também pode tombar pelo trompaço de balas.

Podia ser ele.

Mas podia também ser os homens de Mourinha.

Levantou pronto pro embate.

As lágrimas já tinham sucumbido...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

19 de março 2021

Carlos Navarro Filho: velho João acuado,

sabendo chegada a hora, escolhendo

campo de batalha, preparando localização

do exército, pontos de tiro, demora,

esperança na desistência de Mourinha

 

Penso no velho João.

Avô de Navarrinho, horas decisivas.

Lembro de meu pai, sentado à beira da cama, revólver na mão.

Lá na Fazenda Cascavel, em Monte Alto, São Paulo.

Eu ali na casa dos seis, sete anos.

À espera de alguém, não sei quem.

Viesse, pronto para o embate.

Sentia a tensão dele, e ao mesmo tempo, a disposição para o que desse e viesse.

Ninguém.

Bem, o velho João tinha certeza da vinda dos homens de Mourinha.

Levantou-se naquela quinta-feira sentindo-se uma fera acuada.

Acuado pela mulher, Maria, cuja pretensão era pegar todas as tralhas filharada gato cachorro cabrito galo galinha e sumir na estrada certeza do estrago de jagunços quando chegam.

Acuado por Mourinha, os capangas certamente a caminho.

Acuado.

Experimentado, acostumado a olhar trilhas, divisar montes, adivinhar matas, sentir bicho bravo chegando, sabia localizar-se nos terrenos.

Não carecia ninguém lhe ensinar sobre lugar de combate.

Guerra quando chega melhor saber como fazer.

Se eles vinham, bom ficar na espreita, e em um bom sítio para guerrear.

Primeiro, precisava ficar nem tão longe nem tão perto da casa mode a poder recuar de maneira segura, carecesse.

Escolheu um lajedo logo adiante, do lado direito da estradinha de roça que subia para a casa da família.

Dali podia olhar o horizonte, mais ao longe, perceber a chegada dos malditos, viessem, e meter bala, guerra é guerra.

Na guerra, importante é perceber a movimentação do inimigo.

Com ele, seu exército: as duas filhas, Joaninha e Nega, e Francisco, o filho homem, novo mas em condições de combate - naquelas condições não podia dispensar quem pudesse combater.

E mais naturalmente, Mariazinha, importante reforço chegada da Vila Paraguaçu, filha a valer por muitos homens.

Ele, Mariazinha e Francisco ocuparam o lajedo do lado direito.

Joaninha e Nega, do outro lado, morrete mais alto, mais bem protegidas das balas dos capangas.

O sol subia, chegava a tarde.

O velho João não ouvia nenhum tropel de cavalos, nada de poeira subindo na estrada.

É curioso o coração dos homens: aquela demora aguçou uma ponta de esperança no velho João.

Talvez um milagre, e Mourinha, quem sabe, tivesse desistido...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de março 2021

Carlos Navarro Filho: velho João ainda esperançoso na desistência, mas exército

de prontidão Joaninha Nega Francisco Mariazinha pronto para o combate, espingardas embaladas facões e foices afiadas, rezando o santo rosário, poeira na estrada, chegada a hora, jeito mais não.

 

O velho João olhava olhava o horizonte.

Não via se alevantar poeira nenhuma a denunciar a chegada dos capangas de Mourinha.

Acendeu-se uma chama em seu coração.

Quem sabe, o coronel tivesse desistido daquela empreitada.

Quem sabe, tivesse resolvido deixá-lo quieto na Roça Velha, abandonado aquela idéia do pó de palha de licuri.

Quem sabe, quisesse conversar ao invés de simplesmente impor pela força das armas a sua ideia.

E quem sabe não ocorresse a Batalha da Roça Velha.

De qualquer modo, estava ali com seu exército.

Seguro morreu de velho.

Joaninha, a filha mais velha, beirando ali quem sabe pouco mais pouco menos os 26 anos.

Nega, nascida logo após, 24, 25 anos.

Mariazinha, a terceira, 22, 23 anos.

Francisco, chegando à idade adulta, coisa de 18 anos, já em condições de pegar em armas.

Velho João, Mariazinha e Francisco de um lado.

Joaninha e Nega, do outro.

Chegassem na estrada os capangas, chumbo.

O velho João, com espingardas e facões.

Joaninha e Nega, com as foices.

Mariazinha, com a 20 trazida da Vila.

Aquela espera deixava a todos à beira de um ataque de nervos.

Nessas situações, o vivente quer logo o desenlace.

Fosse guerra, viesse logo.

Numa hora dessas, quando carece proteção, bom apelar ao bom Deus e à Virgem Maria mode a pedir licença pra continuar nessa terra.

Os cinco pegaram a rezar o terço.

O santo rosário embalava o espírito, aumentava a fé, revigorava a disposição para o combate.

Joaninha dedilhava o rosário, puxava as ave-marias e os pai-nossos, e todos a acompanhavam em voz alta, como era do hábito sertões afora.

De repente, o velho João, avô de Navarrinho, pediu silêncio, fez parar o santo rosário, aguçou os ouvidos.

Ao longe, um tropel.

Olhou com atenção, e viu poeira se alevantando distante.

Não era poeira de um só cavaleiro.

Só não sabia quantos.

Chegada a hora.

Jeito mais não....

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Angelica Rodrigues Oliveira: Estimado Imortal, que honra ouvir seu discurso de Posse! Um belo e profundo livro pesquisado com afinco. Nascendo uma nova biografia 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

21 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Grande Sertão, releitura,

viver é perigoso, na boca do trabuco, no

té-retê-retém, no sertão Deus se vier

que venha armado, o pavor, a tremedeira, a volta a si mesmo, ordem de combate, espingarda mirando inimigo.

 

Sei não, mas já ouvi, isso ouvi: acaso existe não.

Fui atrás de "Grande Sertão Veredas".

Reler.

Besteira esse negócio de reler, não corresponde.

Chamamos assim por hábito.

É tudo novo quando você pega o livro novamente.

Acaso nada: foi o velho João e sua história, seu momento de tomar das armas, passar óleo nas espingardas, afiar facas e foices, esperar o momento de terçar.

Olhe, foi botar os olhos nas primeiras linhas, e deslumbramento.

João, avô de Navarrinho, podia dizer com o velho Rosa: viver é muito perigoso, falar do perigo que é viver.

Desejar a chegada de um tempo em que não se usa mais matar gente.

Podia concordar com Guimarães Rosa: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar.

O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.

Deus mesmo, quando vier, que venha armado.

Ou dizer chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más partes, aí, é na boca do trabuco: é no té-retê-retém.

Rosa é poesia e verdade.

Vieram com guerra contra ele, contra o velho João, agora teria de ser na boca do trabuco.

Era o diabo com sua cara feia, no meio do redemoinho.

Ouviu o tropel, viu a poeira alevantando no horizonte, cavaleiros chegando, quantos não sabia, olhar não alcançava.

Não sabe por que, não sabe se Deus se o Diabo, ora, ora, ele sempre cheio de coragem até ali sem um pingo de medo, não sabe de onde veio aquele pavor.

O rumor crescendo, tropel barulhento, e o pavor.

Não se entendia.

O corpo não se governava.

Começou a tremer.

De repente, a pernas travaram, duras que nem pau.

Os olhos estáticos, parados, fixados na pedra.

Os filhos, seu exército, assustados, percebendo o estado do pai: que fazer sem o comandante?

Fosse Deus fosse o Diabo, foi passagem rápida.

Voltou dono de si.

O pavor, levado pelo vento.

A tremedeira, virou pó.

Mercê de Deus.

Voltou a comandar.

Persignou-se, e gritou, ouvindo o galopar dos cavalos bem próximo:

- Mariazinha, Joaninha, o primeiro tiro eu dou.

- Vocês só atiram depois de mim.

Filharada sentiu firmeza, era o velho pai.

Gozado, batalha próxima, e  a filharada sentiu tranquilidade - o pai no comando, tudo daria certo.

Velho João apontou a espingarda de dois canos para a curva da estrada onde os capangas de Mourinha iam aparecer...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: suspense da porra, véi!

Emiliano José: Jose Jesus Barreto o bom taí, véi...

Jose Jesus Barreto: parecendo a novela radiofônica "Jerônimo, o Herói do Sertão ", da minha infância. com o Moleque Saci. lembra?

Emiliano José: Jose Jesus Barreto muito

Emiliano José: Jose Jesus Barreto tá lá na memória...

Isabel Santos: Jose Jesus Barreto ha,ha,ha...gostava dessa novela. Boa lembrança, que estava esquecida na minha memória. Só Emiliano José mesmo para reavivar tantos momentos marcantes. Essa história de Navarrinho tá danado de boa😘😘

Joaquim Lisboa Neto: O Rosa que empurrou Osório a publicar Porto Calendário, aí o pau quebrou, o comunista santa-mariense montou no Jabuti, prêmio! 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

22 de março de 2021

Carlos Navarro Filho: quieto no canto

e aparece uma guerra, quando o diabo desponta não se recusa peleja,

Maria mulher de ouro, Mariazinha

chamando a guerra pra si,

o tropel se aproximando, hora chegando.

 

Eu digo, sou eu João Alves dos Santos a seu dispor, de mim não procurei guerra.

Vocês são testemunha.

Estava bem quieto no meu canto quieto plantando colhendo cuidando dos cabritos vendendo coisa na feira pra pagar renda.

Me suficientava.

Pensava enquanto olhava pra curva da estrada onde os capangas de Mourinha deviam despontar.

Nesses momentos, quando a vida parece por um fio, o tempo corre corre feito o demo velocidade sem conta.

E às vezes parece parar.

Abre espaço pra pensar.

A espingarda de dois canos em ponto de bala.

Estava quieto sem mexer com ninguém quando vieram os homens de Mourinha como se pudessem me dar ordens.

Podem não.

Por isso, estou agora aqui no meio de guerra.

Vocês sabem: não busquei.

Se veio, seja.

Quando o diabo aparece, não cabe recusar peleja.

Pensou: cavaleiros devem ter diminuído o passo, quem sabe assuntando terreno.

Em guerra de sertão, ninguém entra de peito aberto.

Olha antes, tiro pode vir de qualquer lugar.

Pensamento na mulher.

No tanto de súplica dela para partir, todos ganharem estrada, falando no tanto de maldade dos homens de Mourinha.

Ele negando, firme e triste ao mesmo tempo.

Mulher como Maria não se encontra à toa não, digo, isso digo a vocês por verdade verdadeira, dou testemunho.

De fibra, coragem, daquelas de nunca faltar.

Do Boqueirão até os dias de hoje, ela ali, na boca do fogão, na arrumação da casa, na limpeza do quintal, nas conversas da noite a me guiar a vida.

E me deu esses fiim todos, alegria da existência, e cuidou deles como ninguém, educou cada um, deu lições de caráter a todos.

Nunca, nunca faltou.

De ouro.

Por isso, triste quando disse vou pra guerra homem não hesita quando ameaçado se fraquejar deixa de ser homem.

Sabe: ela está em casa, coração na mão, o rosário girando girando ave-maria cheia de graça pai-nosso que estais no céu...

Acredita: oração desvia bala.

E ele ali, o olho na curva da estrada, só esperando pra puxar o gatilho.

Pensou nos filhos: não sabe o que seria a vida sem eles.

Estava ali pronto para uma batalha sem destino certo, e eles ali, as meninas e o menino, sem relutar, dispostos a matar e a morrer junto com ele, uma graça do Senhor meu Deus.

Tem de confessar, e aqui é confissão, não é para todos ouvirem: impressionou-se mesmo foi com Mariazinha.

Despencar-se da Vila do Paraguaçu, largar o conforto de sua casa, nem avisar marido, munir-se de 20 e de cartuchos, chamar a guerra pra si, como se dela fosse, dela sendo agora.

É certo, pai, mãe costumam dizer: amam os filhos de modo igual.

Pode até ser, mas naquele momento, o avô de Navarrinho não escondia uma ponta de orgulho por aquela filha, mais do que uma ponta.

Valia por dez homens, aquela menina.

Agora, o tropel parecia mais próximo, a hora e a vez...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de março 2021

Carlos Navarro Filho: memória desanuvia, Dércio, os primeiros dias na Roça Velha,  partida  do irmão pra João Amaro, ele se segurando com os filhos, falta de um braço para as armas, cavalos chegando, chumbo,

e a desorganização da quadrilha capangueira

E de repente o tropel dá um descanso.

 

Capaz: capangas parando, na espreita, sentir terreno.

Mais e mais rememorar.

Alembrar.

Chegou na Roça Velha, e bote tempo nisso, com o irmão Dércio.

Soube precisava conversar com coronel Mourinha.

Conversou arrendou 200 tarefas de terra serviam pra nada era o dito e ele olhou as duas nascentes e meteu as caras.

Pra ele, servia

Pra ele, o irmão e os fiim.

Lembra de tudo isso acariciando a espingarda de dois canos, na espreita.

Naqueles primeiros dias as meninas dormiam na tarimba de varas de araçazeiro.

Adultos, no chão de barro batido.

Como é bom alembrar, como se a vida voltasse.

A vida é construção.

A gente só percebe depois do construído, não no fazimento.

Por isso, como é bom a memória, deslumbra, desanuvia.

Isso tudo navegou pela mente, como num sonho, por mode do irmão Dércio.

Como seria bom estivesse aqui - pensava.

Armas ao meu lado.

Homem como eu no combate aos homens de Mourinha.

Foi embora pra João Amaro, cercanias, espécie de vila-matriz dessas terras.

O velho João já com sete filhos não quis acompanhar o irmão.

Na Roça Velha tinha água e arrumava jeito de dar de comer à família.

Agora, sentia falta.

De mais um braço para fazer uso de armas, que disso Dércio sabia, não soubesse de tantas outras artes.

Importa não, jeito já se deu, os filhos aqui ao lado farão o combate comigo - pensava o velho João, tentando esquecer a ausência de Dércio.

Velho João, avô de Navarrinho, agora ouviu o tropel bem ali, pertinho, pertinho.

Já virado fera, nem pensava em família nem terras nem ninguém nem nada.

- Se os miserave aparecê vão comer é chumbo, tão querendo, apois seja.

Puxou o cão do gatilho e esperou.

Galope, os homens de Mourinha vinham a galope, de bando.

Já se sabia: dariam ao velho João o prazo de uma semana para juntar suas tralhas e pegar estrada, ir embora, e não estragasse os roçados, os pés de licuri, as nascentes d'água, deixasse tudo no zelo.

Vinham assim de galope, os capangas.

De repente, um tiro, um estrondo batendo nas pedras, de ricochete, os cavalos estancando, relinchando, empinando, o ataque capangueiro se desorganizando.

Chumbo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de março 2021

Carlos Navarro Filho: e tem inicio a Batalha da Roça Velha, velho João mete bala, carrega e recarrega velha espingarda, Mariazinha e sua 20 vai gastando caixa de cartuchos, Joaninha atira, fogo cerrado, os capangas apavorados.

 

O velho João estava virado no estopô do cabrunco.

Viu o tropel, os cavalos, capangas montados, poeira.

Bala.

Chumbo.

Tá certo: ele queria um tempo em que não se usasse mais matar gente.

Melhor seria.

Mas não o quisessem fazer de besta.

Não quisessem lhe botar cangalha.

Seu lombo não era pra isso.

Mourinha quis.

Dá certo, não.

Atirou.

A bala ricocheteou nas pedras, aquele estrondo de arrepiar.

De arrepiar os cavalos e os homens.

Todo mundo quase morrendo de susto.

Que capanga é brabo enquanto não sente chumbo chegar perto.

Chegou, bate medo.

Cavalos empinando, alguns.

Recuando, outros.

Cavaleiros sem controle das rédeas.

Um dos homens caiu.

Deu de cara com espinhos de cabeça-de-frade.

Soltou um grito de assustar almas do outro mundo, rosto ensanguentado emoldurado por espinhos, de dar dó.

Silêncio - capangas aparvalhados.

Esperavam não aquela reação do velho João, mormente o soubessem valente.

Mas, na bala...

De repente, capangas atiraram de volta, dois tiros de carabina resvalaram na pedra ali ao lado do velho João, que a mode de Corisco, gritou:

- Vamos morrer todos aqui mas eles não tocam fogo na minha casa.

E ele, o avô de Navarrinho, pedia a bucha a Francisco para voltar a recarregar a espingarda.

Mariazinha não para de atirar - não precisa recarregar a sua 20, ia gastando sua caixa de cartuchos, potência de fogo maior.

Valia por dez homens - murmurava o pai, preparando a velha espingarda pra outro tiro, e logo mandou fogo de novo.

Joaninha, do outro lado, também atirava.

Os capangas, apavorados:

- Que porra é esta?

- Como esse velho foi juntar tanta gente?

Valente perde a valentia diante de fogo cerrado.

Se puder, galopa de volta, corre, nem se preocupa ser chamado covarde.

Jagunçada parou de atirar.

E ouviu-se um grito...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Joana D'arck: Vixe! Tô aflita aqui.

Emiliano José: Joana D'arck é a intenção....

Mônica Bichara: hahahaha Joana D'arck tá se achando a própria Joaninha na Roça Velha

Joana D'arck: Mônica Bichara abestada😜🤪 

------------------------------------------ 

Emiliano José

25 de março 2021

Carlos Navarro Filho: um grito de medo sob o sol, pedido de paz, mais fogo, velho João dá ordem de cessar, venceram a Batalha da Roça Velha, capangada bate em retirada, rabo entre

as pernas, nem passa pela rua principal.

 

Um grito.

Daqueles: de medo.

Fácil distinguir o grito quando ele é de medo.

E uma voz, de súplica:

- Seu João, pelo amor de Deus e de todos os santos, nós viemos em paz.

O avô de Navarrinho, assuntando, esperando conversa rolar.

E o capanga prosseguiu, ainda com voz cordata, bandeira branca:

- E quero lhe dizer Seu João: estamos com um homem ferido. Precisamos cuidar dele.

Mariazinha atirou, Joaninha sequenciou.

Porra nenhuma.

Querem é bala.

As duas não davam por menos.

João da Roça Velha decidiu dar a trégua, não atirou mais, sossegou Mariazinha e o resto da tropa.

Que fossem.

Cuidassem do ferido.

Não queria era tocassem fogo em sua casa.

Não fazendo, podiam voltar em paz.

- De mim, de pé e feliz. Homem, se é homem, não verga com ventania, forte seja - murmurou, enquanto sentava na pedra, alisando a espingarda de dois canos, de tanta serventia, e preparava lentamente um cigarro de palha a lhe acalmar o espírito naquela hora.

Mariazinha, orgulhosa - de si e do velho pai.

Avisara: mexam com ele não, dá ruim.

Joaninha, lembrando da vida - nunca imaginara estar numa guerra, assim, a quente, bala pra lá e pra cá, satisfeita com a experiência. Susto não tomaria mais na existência depois dessa.

Francisco, pensando: dei de ser homem, estreei, estreia forte, guerreando.

Os homens do coronel, capangada toda, ligeiro ligeiro correndo arrumaram os arreios, meio desalinhados com os tombos dos cavalos, apertaram as barrigueiras, peitoral, rabicho, colocaram o ferido na montaria, e voltaram pra Vila Paraguaçu, a galope, o ferido que aguentasse, exército do velho João podia vir no encalço.

Todos iam tensos, preocupados.

Não era notícia boa a ser dada ao coronel.

Empreitada fracassada.

E o ferido, cara deformada, quase perde um olho.

Deu ruim, né?.

Na chegada, mode a não dar na vista ao povo daquela tropa derrotada e carregando ferido, capangas nem entraram pela rua principal da Vila Paraguaçu.

Foram direto à casa da fazenda, uns quatro quilômetros adiante, na beira do Paraguaçu.

Falaram primeiro com Inácio, o capataz...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de março 2021

Carlos Navarro Filho: capangas queriam vingança, tocar fogo em tudo, conversa

com coronel Mourinha, repetem a proposta de ir à Roça Velha expulsar velho João e família, queimar tudo, mas com exército bem maior,

o velho está bem armado, pronto pra refregas.

 

No caminho pra casa da Fazenda, no passo, não no galope mais, os capangas conversavam.

Queriam vingança.

Voltar à Rocha Velha e ensinar ao velho João com quantos paus se faz uma canoa.

Juntar uns 15 homens armados até os dentes, chefiados pelo coronel Mourinha, ou pelo capataz Inácio.

Tocar fogo em tudo.

Expulsar o velho João e toda sua descendência.

Um deles ponderou:

- Ele pode resistir novamente.

O mais falante, logo adiantou-se:

- Se resistir, morre ele e a família.

É, longe, depois de terem saído corridos, rabos entre as pernas,  pareciam valentes.

Chegados à sede da fazenda, procuraram Inácio, o capataz.

Logo, foram à Casa Grande, contar ao coronel Mourinha, a parte mais difícil.

Na entrada, um tapete de ferro, todos tirando o barro das botas.

Capangada toda, chapéu embaixo do braço.

Ali, na Casa Grande, não se entrava com chapéu na cabeça.

Do respeito.

O coronel, circunspecto, cara amarrada, sombria.

Decerto pensava mando homens meus expulsarem um velho de uma roça, de roça minha, e eles voltam aparlemados, derrotados, esses pacóvios, e eu tendo que resolver esse angu de caroço.

Ouvia:

- Coronel, fomos emboscados por pelo menos 15 homens, uma fuzilaria dos diabos, todos bem armados com clavinotes e armas de repetição, um exército de assustar.

O coronel, assuntando.

- E aí reagimos, metemos bala, mas não teve jeito. Um dos nossos se feriu, e tivemos que bater em retirada.

- Hum, hum - reagia o coronel, ressabiado.

- Com todo respeito coronel, rogamos ao senhor: vamos montar um exército e expulsar aquele matuto atrevido, queimar as casas, dar exemplo. Temos de ir com muitos cabras porque o velho está cheio de armas e gente.

Mourinha decerto pensava: tudo agora ficou mais difícil. Velho João é respeitado, filha já foi casada com um aparentado meu, agora com segunda autoridade da Vila, derrota tornada pública, e esses palermas vem me pedir outra guerra, e talvez não tenha jeito mesmo.

Carlos Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, soube da desgraceira na Roça Velha, e foi correndo dialogar com o coronel.

Diálogo difícil...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Cleidiana Ramos: Gente..eu aqui besta com mais esse enredo da minha Iaçu-Macondo...

Emiliano José: Cleidiana Ramos essa terra né brinquedo, não...

Isabel Santos: Emiliano José Parece que não mesmo rssssss 

----------------------------------------- 

Emiliano José

27 de março 2021

Carlos Navarro Filho: duas autoridades

em confronto, diálogo sereno e duro,

coronel querendo informar ao governo

de ataque traiçoeiro, pai de Navarrinho reagindo, contrapropondo negociar

retirada com a família, Mourinha

refletindo sobre os riscos de nova guerra.

 

Soube e saiu ligeiro para encontrar-se com o coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado.

Gil-Braz, pai de Navarrinho, era autoridade na Vila Paraguaçu.

Sujeito respeitado.

Por chefe dos correios.

Por escrevinhador das cartas de todo mundo.

Guardador de segredos.

Por simpatia.

Pela capacidade de diálogo.

Coronel Mourinha o respeitava.

Não era bobo nem nada, melhor respeitar um homem daquele.

Pelo ofício e pelo prestígio na Vila.

Coronéis não agiam só na tora, no tiro.

Verdade, verdade Gil-Braz não sabia das reações do velho João, não sabia de guerras, e foi surpreendido com o sumiço de Mariazinha pela manhã, correndo atrás de refregas.

Agora, sabendo de tudo, ou de parte, tinha de se haver com o problema.

Nada de Pôncio Pilatos.

Jeito era entabolar conversação com o coronel.

Nele estava a chave da solução, existisse.

Sentaram, na casa de Mourinha.

Gil-Braz sentiu eletricidade no ar, tensão ao máximo.

O coronel não mexia um músculo da face.

Carranca fechada.

Mourinha, primeiro a falar:

- Preciso que o senhor me passe um telegrama ao governo.

Gil-Braz assentiu:

- Em que termos?

- Relate ter havido um ataque traiçoeiro a mim e aos meus homens, que por pouco eu próprio não fui morto, e que aqueles trabalhadores albergados sob minha responsabilidade só reagiram ao fogo depois de atacados, em legítima defesa.

Ia dar sequência, mas Gil-Braz, homem de bons modos, da boa política, mas muito seguro de si, interrompeu o coronel:

- Eu vou lhe pedir licença, com todo respeito: assim o senhor me ofende, eu nunca faria isso. O senhor sabe disso, e compreende, tenho certeza. Se o senhor quiser conversar, estou aqui para isso, mas não nesses termos.

O coronel tomou um gole do copo d'água ao lado, pensou alguns segundos, e reagiu:

- Quero que o senhor então apresente contraproposta. Se de boa serventia, retiro a proposta do telegrama ao governo.

Gil-Braz, matutou um pouco, e contrapropôs:

- Eu vou à Roça Velha, e negocio a saída com a família.

O coronel pensou, olhou fundo nos olhos do telegrafista, percebeu seriedade, refletiu sobre a desgraceira de nova guerra, do desgaste para sua imagem, do custo de juntar tantos homens, tantas armas, de sequer saber direito se ia derrotar o velho João tão bem armado nessa segunda investida, a gente sabe como guerra começa nunca como termina, de saber o povo comentando sobre ataque a uma família com quem já tivera ligações de parentesco, ou quase, e então...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de março 2021

Carlos Navarro Filho: guerreia não guerreia,

confia não confia, afinal compromisso

no fio do bigode, não tem guerra,

família sai da Roça Velha, dívida

será perdoada, Gil-Braz no

galope pra conversa com velho João.

 

O coronel Mourinha no devaneio guerreia não guerreia confia não confia intermináveis segundos.

Gil-Braz, ali, sentado, à sua frente, esperando decisão.

Sentindo o excesso de devanear, que o pensamento é sempre uma coisa à toa mais ainda quando devaneia, ousou:

- E então, coronel Mourinha, como ficamos?

- Estamos de acordo. Vou confiar no senhor. Deixe de lado a mensagem ao governo.

O pai de Navarrinho respirou aliviado.

O clima desanuviou.

Mourinha ainda deu corda pra conversa.

Garantiu: não tinha dado autorização para desocupar a Roça Velha.

A rapaziada dele havia entendido errado.

Não faria isso com o velho João, de tanta consideração.

Gil-Braz ouvindo, diplomata, bom de política, sem acreditar.

Dizer, não ia.

O coronel voltou ao ponto:

- Dou passo atrás no telegrama, mas só porque estou recebendo garantia de que o senhor resolve o problema.

- Resolvo - garantiu Gil-Braz.

- Se o seu sogro sair em uma semana, esqueço tudo e perdoo a dívida.

Alguma compensação, pensou Gil-Braz.

O coronel tentava continuar na diplomacia:

- E eu procedo assim, tenha certeza, em consideração ao senhor, que é funcionário federal de sobremaneira inteligência, a quem reservo o maior apreço.

Um aperto de mãos, compromisso no fio do bigode, e Carlos Navarro Gil-Braz tomou da montaria e seguiu a todo galope pra Roça Velha.

Velho João e filharada nem haviam saído ainda da trincheira.

Ficaram ali, parados, meio abobalhados.

Na memória, ainda o poeirão levantando, os capangas correndo de volta para a Vila do Paraguaçu, silêncio em torno depois de toda aquela fuzilaria.

Nem haviam se animado a voltar para casa, ali tão próxima, e viram o tropel.

Francisco, olhava, nem conseguia articular palavra, apontava a estrada, medo fosse a capangada no retorno, guerra recomeçando.

Mariazinha deu um grito:

- Fica tudo quieto. É o meu marido.

Todos sossegaram.

- O que ele vem fazer aqui, meu Deus, podia ter levado tiro. Será que não conhece o caminho do Canto da Pedra?

Mariazinha desce a ladeira correndo, Gil-Braz apeou, e subiram conversando:

- Onde seu pai conseguiu tantos homens e tantas armas pra botar a jagunçada pra correr?

- Era o pai, Joaninha, Nega, Francisco e eu. Nenhuma alma a mais.

- Disseram ao coronel que eram mais de 10 homens, tudo de clavinote na mão.

As lendas depois das batalhas.

Bem, agora era a parte mais difícil.

Conversar com o velho João.

Gil-Braz, acerto feito, tinha de dar um jeito...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

29 de março 2021

Carlos Navarro Filho: Gil-Braz negocia com

o sogro a saída da Roça Velha, o velho João

imerso nas recordações da existência, noites

levando mulas, lavoura do Boqueirão, feira

de Jequié, lavra na Roça Velha, feira

da Vila do Paraguaçu, e enfim acordo aceito.

 

O velho João ouvia.

O genro Gil-Braz expunha razões.

A mulher Maria atenta, e sempre assentindo.

Queria isso, Maria: sumir dali.

Dissera desde antes, mas não adiantou.

O marido quis a guerra.

Quem sabe, agora.

João da Roça Velha ouvia.

Era capaz de ouvir, prestar atenção, e deixar o pensamento voar.

O genro explicava depois daquela guerra arriscosa se desenrolara conversa complicada com Mourinha  e ele fechou acordo com o coronel.

Ouvia, o velho João.

Na cabeceira da mesa grande da cozinha, os filhos arrodeando, o corpo atarracado se acomodando na cadeira, olhos fixos em Gil-Braz, pai de Navarrinho.

Acordo seguinte: em uma semana, o velho pegaria todas as tralhas, e ganharia estrada.

Abandonaria a Roça Velha depois de tantos anos de suor derramado.

Pensou na dureza da existência.

Olhou para as mãos enquanto ouvia: um calo só, tanta enxada, tanta foice, tanto facão.

Viu-se na estrada, levando tropas de mula, noites e noites.

Na lavra, no Boqueirão.

Na feira de Jequié.

Na lavoura da Roça Velha.

Na feira da Vila do Paraguaçu.

Dura a vida, sempre.

E agora: rua.

Um conforto, tinha: não se rendera.

Não saía com o chapéu embaixo do braço.

Filhos lembrariam dele sempre como um homem, nunca como um covarde.

E isso é o que se deixa na vida: dignidade, honradez.

Dessa herança, suas filhas, filhos, podiam se valer, quisessem, fossem capazes, cada um sabe de si.

Ouviu ainda o genro dizer:

- Seu João, o acordo ainda previu o perdão dos dois anos de arrendamento atrasados.

Consolo, apenas isso.

Concordou.

Não tinha direito de sustentar outra beligerância de armas na mão envolvendo a filharada.

E afinal, pensou, apesar de mais de uma década sobre as terras da Roça Velha, não eram terras dele.

Era o destino dos despossuídos.

Havia de dar outro passo, encontrar outros caminhos.

Gil-Braz não podia se dizer feliz com o resultado.

Havia tristeza no ar, inclusive de Mariazinha, a inquieta mulher dele.

Mas, partiu aliviado.

Sua palavra, em jogo.

Avisar ao coronel do cumprimento do acordo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

30 de março 2021

Carlos Navarro Filho: o pensamento a cavalo,

o fascínio de Gil-Braz pelo velho João,

admiração e compaixão, diferença do

homem da terra e do homem urbano,

mundo não era justo não, informa

coronel Mourinha, trato cumprido,

caminhão alugado para mudança.

 

Não apertou o passo da montaria.

Nada de galope.

Cumprir aquela légua e meia, pouco mais pouco menos até a Vila Paraguaçu, refletindo.

Andar a cavalo, passo a passo, era momento para o pensar.

O velho João não lhe saía da cabeça.

O sogro o fascinava com sua história sertaneja.

A palavra curta, a voz de barítono, a pose de patriarca, sem esforço.

Autoridade natural.

Nascida da lida com a terra, visceral, vinda da ancestralidade indígena e negra.

Gil-Braz saiu da Roça Velha com dois sentimentos a lhe atazanar o juízo: admiração e compaixão.

Admiração pela coragem, destemor, a defesa da família e da honra, homem incapaz de se vergar frente às ventanias, armas nas mãos fosse preciso, vida em jogo pouco importava, destemor.

Compaixão, talvez um sentimento quase ingênuo: dureza a vida do sujeito cujas raízes fincadas na terra lhe são subtraídas a todo momento pelos donos dela, aqueles considerados donos.

Era injusto - sujeito se embrenha nos matos, desbrava territórios, lavra o terreno, tira dali o sustento de si e dos filhos, embeleza o lugar de árvores e frutos, e um belo dia vem o dono e o expulsa.

De nada vale tanto suor.

Pensava em si, no reverso.

Era homem urbano, não obstante urbes pequenas, como esta Vila do Paraguaçu agora, dominada por Mourinha, com quem se encontraria dali a pouco.

Nascera filho de telegrafista, continuava telegrafista, homem das modernagens desde cedo.

Outras raízes.

Sentia agora o conflito da cidade e do campo.

Via de perto a violência do coronelismo - era assim chamado, e

ele assim sentia.

Capangas querendo expulsar o velho João à bala.

Era justo não.

O mundo não era justo.

E ele quase chegando na Vila, quase frente a frente com Mourinha.

Informou ao coronel, de autoridade para autoridade:

- Trato feito, trato cumprido. Conversei com o sogro. O senhor aguarde uma semana. E a Roça Velha estará desocupada.

O coronel recostou-se na cadeira, satisfeito.

Gil-Braz, o pai de Navarrinho, foi atrás do único caminhão daquelas paragens.

Alugou e colocou à disposição do velho João...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------

Emiliano José

31 de março 2021

Carlos Navarro Filho: vida virada, preparar

a mudança, enfardar tudo, juntar bicharada, móveis, panelas, tudo, deixar nada pra

trás como queria Maria, velho João

pensando o quanto gostava daquele

lugar, raízes fincadas durante uma

década, duas viagens de caminhão

pras terras do primio Odoniel, em João Amaro.

 

Velho João havia concordado.

Jeito não.

Fez o bom combate, negou fogo não.

Aceitar o acordo, seja.

Outra virada na vida.

Acostumado já com reviravoltas.

Esta, inesperada, não foi de querença própria.

Maria, a mulher, já se despachara a embalar coisas, encaixotar.

Se mudança, e mudança era, fosse.

Filharada toda na liça.

Parece simples, mas não é.

Tantos anos passados, e tanta coisa se acumula.

Eram os móveis, as roupas, as panelas, os bules, as xícaras.

O oratório.

O quadro de Nosso Senhor Jesus Cristo na parede.

E haviam de pensar no animais - galo, galinhas, gato, cachorro,  cabras, os cabritos.

João ainda olhava pras plantações, a florir.

Por instantes, nuvens passam por seus olhos.

Gostava dali.

Não por acaso  ficou o nome associado ao lugar: João da Roça Velha - olha como são fortes os laços.

Não podia negar: coração apertado.

- Você se apega ao lugar, finca raízes, vai se tornando uma coisa só, ele e a terra, ele e tudo o construído, ele e tudo que a mão dele plasmara - pensava.

Aqueles currais, aquelas plantações, as árvores de frutas, os animais...

Até as águas, até o Rio Paraguaçu, tudo uma coisa só, uma unidade carinhosamente vivida por mais de uma década, nem não é pouca coisa.

Mas, subitamente voltava à realidade, expulsava aquela estranha melancolia.

Quase se sacudia de modo a não lhe perturbar o espírito.

O que tem remédio, remediado está - antiga lição, aprendida desde cedo.

Melancolia é sentimento perigoso, capaz de desarrumar almas.

E ele precisava estar inteiro, desperto, em pé, sem vacilação.

E os braços fortes seguiam arrumando as tralhas e colocando-as no caminhão arrumado pelo genro Gil-Braz, pai de Navarrinho.

De vez em quando, chamava um dos filhos pra carregar um ou outro pertence, quando sozinho não dava conta.

Era é coisa, um mundo - nem parecia, mas era.

Já tudo enfardado, partir.

Já havia predestinado: ia primeiro no rumo do primo Odoniel.

Também era posseiro em terra de Mourinha - e quem não por aquelas bandas?

Se abancaria ali, e sabia seria bem recebido, até pudesse pensar em outro destino.

Em João Amaro, as terras do primo.

Sorte fosse tão perto.

Em alguns momentos, quis aconselhar Maria, a mulher: deixa algumas coisas aí, é tralha demais.

Nada, Maria nem não queria falar disso - deixar nada, nadinha, levar tudo na mudança, tudo tudinho, danou-se.

Nisso, território da casa, o velho João não se dava por capaz de mandar.

Ela virava fera, e ele, cordato.

Foram duas viagens pras terras de Odoniel, caminhão sempre lotado.

Nem olhou pra trás quando o caminhão arrancou na última viagem.

Risco de fraquejar, lacrimar, e não queria.

Homem não chora.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Triste partida !

Emiliano José: Artur Carmel setembro passou outubro novembro...

Artur Carmel: Emiliano José Tô acompanhando com muito gosto...

--------------------------------------------------------  

Emiliano José

1º de abril 2021

Carlos Navarro Filho: na casa do primo,

inquietação, pega o trem rumo a São

Paulo, assalariado, Paraná logo depois,

ele e filhos trabalhando nas lavouras

de café, determinação de um dia

voltar, novamente na Serra

do Vitorino, depois saudade Iaçu.

 

Chegou ali na casa do primo Odoniel.

Muito bem recebido.

Família toda agrupada.

Passou alguns poucos anos por ali.

Começou a se inquietar.

Homem que é homem não se dá bem em permanecer no encosto.

Tinha braço, tinha força, saúde, não havia de depender de ninguém, malgrado amizades do parente.

Por aquelas terras, caminho não havia mais.

Tudo era do Mourinha.

Não por escolha dele os dois agora eram inimigos.

Não podia propor ocupar terra nenhuma dele mais.

Terra do primo em João Amaro, era coisa pouca.

Não dava pra sustentar duas famílias.

E já se sentia incomodando.

Melhor arribar.

Ouviu falar de São Paulo, todo mundo ouvia falar.

Pobre, quando a coisa apertava pelas bandas nordestinas, pensava em partir, e voltar quando Deus desse bom tempo.

Nem sempre Deus se alembrava, nem sempre o pobre voltava.

Quase 1950.

Tomou o trem, baldeou em Monte Azul, e seguiu então pra São Paulo.

Família toda de junto.

Demorou pouco.

Dava sustento, não.

Segue para o Paraná.

Café fervia na região.

Ele e os filhos, assalariados das lavouras de café.

Não era fácil para um homem acostumado a ter a terrinha, cultivá-la, não obstante pagando renda, e depois vender seus braços para o fazendeiro, assim direto, vender os seus e os dos filhos.

Mas, era da necessidade.

De comer, ele deu à família - ainda lhe restavam forças.

Não, acabar a vida por ali, distante de suas raízes, ia não.

Muita gente, muita mesmo, ia e nunca voltava a ver a terra natal.

Determinou-se de um dia voltar.

Prometeu a si mesmo, jurou de pé junto.

Houvera de cumprir, mais cedo mais tarde.

Voltou a passar por São Paulo.

Sabe-se lá como, teve um sitiozinho em Poá.

E quando a saudade apertou de não mais aguentar, voltou à região da Serra do Vitorino, nas proximidades do Boqueirão,  como vai contar Navarrinho no seu "Goroba".

Queria ao menos sentir o cheiro daquelas terras, respirar o ar daquelas matas, imaginar-se tocando tropa de mulas por aqueles sertões, acendendo fogueiras em noites enluaradas, embrenhado nas estradas onde carroça não passava seguindo pra Feira de Jequié levando produtos da roça pra vender...

Como não viver mais essas imaginações?

Sonhos, a gente só vive se tiver ousadia.

Teve.

E reviveu, revirou raízes, se embebedou de origens...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

2 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: personagens intrusos

querendo tomar o lugar do protagonista,

cuidado com os Chico Preto, cuidado com

João da Roça Velha, saudade espécie de

velhice então acumular muita, convite

de filha para roça em Rondônia, partiu.

 

Vocês sabem de cor e salteado: o protagonista dessa história é Carlos Navarro Filho.

Não é o pai: Carlos Navarro Gil-Braz.

Não são os avós: Carlos Gil-Braz de Cerqueira ou João Alves dos Santos.

Só uma pequena questão: Navarrinho ainda não nasceu.

E assucede seguinte: há personagens cujo procedimento é de não pedir licença, ir invadindo a cena, dane-se o protagonista.

Sei não: águas de Iaçu parecem ter esse efeito.

Já me disseram desse feitiço, ou se preferirem, encantamento.

Lidei com um desses personagens tem pouco tempo: o pai de Cleidiana Ramos: Chico Preto.

Queria seguir contando história dela, e o pai, surgia assim, num átimo, derrubava todo o pensar, e pronto, tinha de seguir com ele até cansasse, e ele sempre demorava a cansar.

Cleidiana Ramos está aí, jovenzinha jovenzinha, pra não me deixar mentir.

Ontem imaginei estar chegando ao fim com a trajetória de João Alves dos Santos, avô materno de Navarrinho.

Lá de tempos ancestrais, ele irrompe.

E não com esse nome de batismo.

Vem como João da Roça Velha, rebatizado ali em Iaçu, ou nas paragens da antiga Vila Paraguaçu, berço do futuro município.

Seguiu vida como João da Roça Velha.

Chamei-o velho João até aqui.

Quase por hábito.

Não tinha dimensão da tão longa existência.

Passou dos cem anos, um a mais.

E nem de tantas peripécias, idas e vindas Brasil afora.

Só agora, prosa vai prosa vem com Navarrinho, e coisas vão se revelando.

E tenho de pedir licença pra contar um pouco dessa trajetória, sob pena de ser incomodado, porque personagem é bicho traiçoeiro, ataca a noite, atrapalha o sono, brinquedo não.

Depois de passar pela Serra do Vitorino em viagem de saudade, ele e a mulher, talvez quem sabe começasse a considerar o dito de Guimarães Rosa ser toda saudade uma espécie de velhice, matada aquela saudade voltou ao sítio de Poá, em São Paulo, que daquela rocinha não se desfez não.

Contece: estava na paz em Poá, e a filha Ana, ah não me perguntem idade dela que de filhos contados o velho João teve 13, dos que se sabe, a filha Ana, enfiada em terras de Rondônia, é, isso, lá nas lonjuras de Rondônia, ali, logo ali onde o vento faz a curva, desbravadora feito o pai, resolve chamá-lo para acompanhá-la.

Velho?

Nem tanto.

Se toda saudade é uma espécie de velhice, haveria ainda de acumular muita saudade para completar a existência, um carro de boi de saudades, um caminhão, ou dois.

Não contou conversa.

Partiu Rondônia.

Aventura pelas estradas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: E nada de Carlos Navarro nascer, né Emiliano!😂😂😂

Emiliano José: Joana D'arck sem agonia. Comecei tem três meses. Cedo demais, né? Prematuro, tá bem. Mas, de três meses? ...

Mônica Bichara: Cleidiana Ramos, óia Chico Preto querendo (?) invadir também a história de Navarrinho.....Falou de Iaçu ele aparece

---------------------------------------------- 

Emiliano José

3 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: seguindo para Rondônia,

avião, ônibus, caminhão, barco, afunda no

trabalho, resolve voltar pra Bahia, segue

para Itaetê, faz sua lavourazinha, animais

começam a comer, pede espingarda de

presente, ganha, e passa a meter

bala nos bichos, fuzuê formado.

 

Navarrinho estava em São Paulo quando houve o convite de Ana para o velho João se embrenhar nas matas de Rondônia.

Quem sai aos seus não degenera, e a filha andava fazendando por aquelas lonjuras.

Como o pai reclamava do paradeiro ela disse então vamos pro Norte que lá tem muito a fazer.

Um terno cinza-claro foi o presente de Navarrinho para João da Roça Velha - assim viajaria nos trinques.

Viajou de avião até Salvador, todo enfatiotado, já com o terno, todo cheio de gracinhas com as comissárias de bordo, parecia um jovem cheio de vida.

Ana veio de Rondônia, encontrou-se com ele na capital baiana, e ganharam estrada, de  ônibus até o Pará.

De lá, seguiram de todo modo que se há pra viajar: carona aqui ou acolá, caminhão, barco, até chegar à fazenda de Ana, perdida naqueles ermos.

Tudo normal, não?

Lembrar apenas que o velho João já estava com mais de 80, em torno de 85, 86 anos.

Muita idade no lombo pra fazer uma viagem daquela.

E ele, nem aí.

Chegou inteiro a Rondônia.

Meteu os braços no trabalho, desbravando matas.

Passou coisa de quatro anos por lá, na foice, no machado, na enxada.

Resolve voltar para a Bahia.

Ana o leva até o Pará.

De lá, segue sozinho, de ônibus - já com 90 anos nas costas.

Em Salvador, encontra com um filho, Leo Bambu - o menino tinha 44 filhos, três mulheres morando na mesma rua, todas cuidando de uma renca de moleques, mas essa história não será contada agora sob risco de perdermos o rumo.

O próximo destino foi Itaetê, na Chapada Diamantina.

Leo Bambu comprou pra ele uma pequena casa, com uma boa área, nas redondezas da cidade - uma morada nem totalmente urbana, nem totalmente rural.

Velho João da Roça Velha olhou praquele quintalzão, e fez sua roça.

Colhia, e ia  vender na feira da cidade, num carro de mão.

Uma vez pede a Navarrinho uma espingarda de presente - queria passarinhar.

O neto não se fez de rogado - deu o presente: uma espingarda 32, de cartucho, moderna.

Ele não havia contado da missa metade.

Os animais dos vizinhos rompiam a frágil cerca do pequeno terreno, e comiam a plantação dele.

Com a espingarda, começou a meter bala nos bichos.

- Que porra de virem no meu quintal e comer minha lavoura?

Matou um bocado de animais.

Os vizinhos, querendo comer o fígado dele.

Mariazinha, mãe de Navarrinho, um dia chega a Itaetê e encontra o fuzuê formado...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

4 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: outra guerra do velho João, descem policiais para resolver a situação, prendo e arrebento o grito, simulação de paz, volta a guerra, o pai vem pra capital,

Abrigo do Salvador, e João dana a cantar

as colegas de hospedaria, Navarrinho

compra presentes para jogo de sedução.

 

Mariazinha chega em Itaetê e vai tentando entender a situação.

Ela ia uma vez por mês lá.

Pouco a entender.

Ele tinha se arretado, e metido bala nos animais dos vizinhos, e não queria muita conversa.

Era ver um porco, um cabrito bulindo em suas hortaliças, e bala, um corpo estendido no chão.

Afinal, mantivessem a criação presa, não a deixassem solta pra destruir sua plantação, ganha-pão com o que se distraía naquele outono da vida.

- Mas, meu pai, estão aí fora querendo lhe matar.

- Que venham, aqui não falta chumbo - dizia o velho João, acariciando a 32 carregada, a caixa de cartuchos do lado, presentes do neto Navarrinho.

A mãe desesperada informa Navarrinho, e ele se movimenta de modo a contornar a contenda - velho João era dos que dava um boi pra não entrar numa briga, uma boiada para não sair.

Conversa com João Laranjeira, respeitado delegado, amigo, pede ajuda.

O policial não relutou:

- Deixa comigo. Eu resolvo.

Manda uns cinco ou seis policiais, de Itaberaba pra Itaetê.

A pequena cidade nunca vira tamanho contingente.

Tudo pra solucionar a guerra do velho João da Roça Velha.

Os policiais deram grito pra todo lado, foi um tal de prendo e arrebento, espanaram a vizinhança toda, deixem o velho em paz, não bateram nem prenderam ninguém, mas ameaçaram que só a porra.

Os vizinhos recuaram, quietinhos em suas casas.

Parecia a paz.

Nada.

Foi a polícia sair, e eles voltaram mais virulentos ainda.

Queriam a cabeça do velho João.

Mariazinha compreendeu não haver outro caminho: pegou o pai, meteu no ônibus, e o trouxe para a casa dela.

Fim daquela guerra.

Logo depois, para que ele ficasse mais confortável, passa a morar, por iniciativa dos filhos e pedido dele, no Abrigo do Salvador, em Brotas, bairro da capital.

Navarrinho obteve autorização das freiras para que ele fizesse uma pequena horta, e ali passou quase dois anos.

Não se aquietava: já viúvo, cantava as suas colegas de hospedaria, dizia de sua intenção de casar novamente e desfiava o modelo de mulher pretendida: tivesse cabelo comprido, trabalhadeira, e não bebesse.

Esta, a princesa.

Vivia a pedir a Navarrinho lhe comprasse presentes para seu jogo de sedução: sabonetes, perfumes, talcos, espelhos.

Um dia surgiria a princesa de seus sonhos, havia várias candidatas...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de abril

Carlos Navarro Filho: João da Roça Velha não

encontra noiva, Ana o convida para ir pra

Eunápolis à falta de ter encontrado noiva

no Abrigo, ele não reluta, como não se fazia

mais mulheres como antigamente melhor

aventurar lá pelas bandas do Sul, não

importavam os 101 anos, seguiu viagem, morreu no ônibus.

 

Ele lá alvoroçado à procura da noiva, e reaparece Ana.

A de Rondônia.

Filha de espírito tão agitado quanto o do pai.

Gostou não de ver o pai naquele asilo:

- Zinha, meu pai não vai morrer aí nesse asilo, preso desse jeito.

Conversou com o velho João, e perguntou:

- Você não quer ir comigo pra Eunápolis?

Virada da breca, Ana agora havia conseguido terra naquele Sul da Bahia.

Eunápolis fora uma espécie de terra de sem lei.

Área de desbravamento.

Chamaram o local durante algum tempo de "o maior povoado do mundo" antes de virar município, gente chegando de todo canto do País, terra e madeira, pistolagem não faltava por aquelas bandas.

Ana sentara praça ali.

Parece gostava mesmo era das chamadas zonas de expansão da fronteira agrícola.

O pai topou - mais aventuroso do que o abrigo.

Quem sabe encontrasse uma noiva lá pelas bandas do Sul.

No abrigo, não obstante os penduricalhos distribuídos, os muitos presentes à guisa de sedução, não apareceu noiva nenhuma, até porque não achava uma de cabelos compridos, trabalhadeira e inteiramente avessa ao álcool, é,  não se faziam mais mulheres como antigamente.

Estava no frescor dos seus 101 anos.

Viajou com Ana, ônibus leito.

O coletivo partiu às 22 horas.

Quando estavam passando por Feira de Santana, quase meia noite, Ana reclamou do pai.

Pediu falasse mais baixo.

O vozeirão dele incomodava os demais passageiros.

João da Roça Velha fez um muxoxo, e dormiu.

Às cinco da manhã, Ana o sacode:

- Pai, pai, acorde, estamos chegando.

Não acordou.

Estava morto.

Ana carregou consigo muita culpa vida afora: o médico havia recomendado fosse pegar no Abrigo do Salvador os remédios usados por ele para o coração.

Ela não lembrou.

Partiu o velho João da Roça Velha.

Mais de um século de uma vida pra não esquecer.

Dele, Navarrinho lembra amiúde, e sempre com alegria, porque há um sem número de estrepulias a contar, e algumas guerras.

Além de muitos filhos, deixou também doces e divertidas lembranças...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Isabel Santos: Que maravilha. Um mundo histórias. Um privilégio, hein, Navarrinho? Bj. Lembrando aqui que conheci Eunápolis quando era um povoado, na década de 80. Não foi a trabalho, mas numa feliz aventura! rsss

Carlos Navarro: Isabel Santos Já era uma grande cidade Bel.

Graça Azevedo: Carlos Navarro Fiquei encantada com a história do seu avô!

-------------------------------------------- 

Emiliano José

6 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: João da Roça Velha

produto de um século, lida com a terra e

aprendiz depois mestre de ofícios,

fazedor de seu mascavo, voltando de

Rondônia, sem tostão no bolso pedindo

ajuda no templo, fabricando bancos para a igreja...

 

Com ele, foi embora um tempo.

João da Rocha Velha é sinal de um século.

Do homem nascido e vivido nos sertões.

Do sujeito levado a aprender de tudo.

Primeiro, na lida com a terra.

Lembro longe longe Milton Nascimento e Pena Branca e Xavantinho.

Debulhar o trigo forjar no trigo o milagre do pão e se fartar de pão decepar a cana recolher a garapa da cana roubar da cana a doçura do mel se lambuzar de mel afagar a terra conhecer os desejos da terra fecundar o chão.

Era tudo no braço, enxada, foice, machado, arado no máximo, na mão grande ou puxado a burro.

E sabedor de ofícios.

Homem a se suficientar de tudo, nada de comprar na feira, ou quase nada.

Nem roupa.

Tudo feito em casa. 

Navarrinho, embebido de lembranças do avô, recorda: já morando na cidade, por força da idade, não queria de modo nenhum o açúcar refinado.

Queria o demerara.

E muitas vezes, ele próprio dava um jeito de produzir o demerara, ou açúcar mascavo.

Refinado, dizia, não presta, faz mal à saúde.

Talvez por isso chegado aos 101.

Um dia, vinha de Rondônia, de volta das lonjuras das terras de Ana.

De ônibus, carona, qualquer jeito.

Chegou em Petrolina, e viu-se sem único tostão no bolso.

Procurou uma igreja.

Afinal, era casa de Deus, onde os necessitados pedem socorro.

Entrou, explicou pro padre a situação.

Conversa vai, conversa vem, até dos evangelhos falaram, do Jesus marceneiro, e o sacerdote descobre: o viajante entendia de carpintaria e de marcenaria.

Ora, ora - todos os móveis das casas do velho João haviam nascido das mãos dele.

Disso sabia e como.

Assim, mão lava a outra: o padre necessitava de bancos para a igreja, ele, de dinheiro pra seguir viagem.

Ficou um tempo por lá, até encher o templo de bancos.

Até envernizar, envernizou.

Fiéis, satisfeitos.

O padre, feliz.

Terminado o serviço, dinheiro suficiente para seguir para Salvador, partiu.

Aperto, só para quem não tinha disposição para o trabalho e não tivesse ofício - costumava gabar-se.

Disposição, tinha de sobra.

Ofícios, sabia de montão.

E por isso, nunca houve situação da qual não se safasse.

Filhos, netos, descendentes podem se orgulhar e celebrar a cada sucesso: quem sai aos seus não degenera.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: sentindo falta do velho

João, Mariazinha do Boqueirão, Navarrinho

quase nascendo, ano de 1945, bendito ano

do fim da Segunda Guerra Mundial, fim da ameaça do nazi-fascismo, a custar a vida de mais de mais de 80 milhões de pessoas.

 

É curiosa essa relação entre personagem e escriba.

Amanheci pensando nisso.

Já havia me habituado ao velho João da Roça Velha.

É como se ele cheirasse a sertão, sertões, bravuras, tudo de que me afeiçoo, tudo de meu bem-querer, estrepulias, guerras.

Inda mais lendo relendo Rosa e seu grande sertão suas veredas.

O senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada.

Esquisitices do sertão, coisas só de domínio do sertanejo, e de Guimarães Rosa.

E do velho João da Roça Velha.

Queria prosseguir com ele, velho João.

Mas, partiu.

E os encantados pedem respeito.

Melhor não mexer.

Voltam quando dá na telha.

Sou levado a retornar a Mariazinha.

Levou nome de Mariazinha do Boqueirão.

Morreu com quase 100 anos - gente danada de longeva, tal pai, tal filha, e quem sabe, tal filho, tal neto, Navarrinho gosta de pensar nisso e nos séculos pela frente, que os orixás o abençoem, ele já abençoado, filho de Obaluaiê.

Retornar só para dizer por enquanto das proximidades do nascimento de Navarrinho - afinal, temos adiado esse nascimento.

Adiado, não.

Outros personagens, último o velho João, se meteram na história, e o nascimento dele foi ficando para trás.

Nossa história nessas preliminares, já vai chegando a três meses, e nada dele nascer.

Encruado.

Mas, chega o dia.

Nasceu em 1945.

Ano bendito.

Simbólico.

Não é qualquer coisa nascer no ano do fim de um tormento.

Da segunda guerra, iniciada em 1939 com a invasão da Polônia por Hitler.

Estima-se a morte de entre 75 a 85 milhões de pessoas nesse tsunami.

Terminava o pesadelo nazifascista.

Uma espécie de primavera se iniciava. Será um período, logo após a Segunda Guerra, de melhorias para a humanidade.

Pelo avanço do socialismo e pela afirmação do chamado Estado de Bem-Estar Social, ao menos neste caso tomamos a Europa como exemplo.

Não é qualquer coisa nascer num ano assim, de uma nova alvorada, promessa de novos tempos.

E Mariazinha do Boqueirão, também conhecida como Zinha, via nascer o primeiro filho, depois de dois abortos espontâneos...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

 

COMENTÁRIOS

 

Milton Pinheiro: Muito belo...

Mônica Bichara: Nasceeeeeeeeu!!!!!!! Seja bem-vindo a esse mundo, Navarrinho Carlos Navarro

Isabel Santos: Na expectativa dessa trajetória e do seu relato pela 'pena' poética do nosso Imortal. Vivaaaaaa!

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

8 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: casal acostumando-se

à Vila Paraguaçu, paz com os Medrado,

muitas barrigas, muitos filhos, uma rua

larga, a rua do nem não tinha nada,

poeira, o diabo na rua do meio do

redemunho, Navarrinho e a grandeza do mundo.

 

Navarrinho nasceu.

Para imensa felicidade de Mariazinha.

E do pai Carlos Navarro Gil-Braz.

Mariazinha acostumou-se: será uma fileira de barrigas até o marido morrer - foram dez, vingaram sete.

Seriam mais não fosse a morte prematura de Gil-Braz, nem quarenta anos completados.

A cada ano, religiosamente, uma barriga.

Tinha falha, não.

Minha mãe, com 95 anos nesse momento, costuma lembrar-se de suas barrigas - igreja de São Bento, uma fora, outra dentro.

Assim, Mariazinha.

Os dois gostavam da folia - quero dizer, para que não confundam, não incorram em maldades, interpretações indevidas: a folia de ver os filhos nascer.

Foram-se amoldando mais e mais à Vila Paraguaçu.

O velho Medrado continuava a respeitar a autoridade de Gil-Braz.

Não queria mais refregas com a família - a experiência com a guerra da Roça Velha fora uma dura lição.

O velho João fora embora, melhor cultivar a paz.

A vila, movimentada naqueles anos 40, início dos 50 do século passado.

Movimentada, mas uma vila.

Movimentada pelo trem, os chegados e os partidos.

Dia a dia, silêncio, rua vazia.

Uma rua de terra batida, ligando a ponte, no rio, à Estação do trem de ferro.

Rua larga, e mais larga ficava tornando-se quase praça ao se aproximar da igreja sem deixar de ser rua.

Nem não tinha nada: não tinha coreto, não tinha bancos, não tinha jardins.

Nem não tinha casais passeando, nem se via casais namorando.

Quisesse namorar, namorasse em casa, junto dos pais, era tempo de muito respeito.

Nem não tinha aposentados com seus tabuleiros de dominó.

Tinha vez parecia fosse um deserto, noves fora os dias de missa, quando todo mundo se engalanava com sua melhor roupa pra rezar e se amostrar quem sabe namorar, que  naquele dia Deus perdoava.

A Vila era apenas um largo de terra.

Uma poeira de cegar gente, cuidado não tomasse.

E os perigosos redemoinhos, quando o diabo vinha junto, escondidinho.

Que me desculpem, mas estou vidrado em Guimarães Rosa:

"O diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças - eu digo. Pois não é ditado: "menino - trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes..."

O diabo na rua no meio do redemunho - Guimarães completa, e disso Navarrinho se lembra, menino, menino, sem saber de diabo, mas daquele estranho vento se ajuntando e dançando voluptuosamente pela rua larga levantando poeira, assustando e deslumbrando, dando vontade de seguir viagem rodopiando pelo mundo, mundo mundo estranho belo mundo mal descoberto ainda.

A Vila Paraguaçu lhe aparecia grande, grande, cheia de mistérios...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho ainda não tinha idade para conhecer os mistérios da Rua do Cref, a zona, meretrício, território da tentação, a assustar a sociedade de bem da Vila do Paraguaçu, o tráfico de mulheres, homens carecendo de raparigagem.

 

Não chegou porque tempo ainda não era de conhecer os mistérios da Rua do Cref.

Navarrinho os desvendará mais tarde, não ali naquela rua, nem naquela vila.

O largo, o grande largo, ia se estreitando, e voltava a ser rua, dos fundos da igreja até a ponte.

A sociedade local, os homens e mulheres de bem, é, tem sempre gente a se considerar assim, não gostavam nada nadinha daquela rua.

Era uma zona.

A zona.

O meretrício.

As donas de casa, casadas de aliança e tudo, ficavam iradas só de ouvir falar.

Era rua da perdição.

Ali morava o demo, o Cramulhão, o Coisa-Ruim.

Território da tentação.

Botava os homens tudo a perder.

Orgias e pecados.

Não é que os homens quisessem, elas tentavam explicar em suas conversas de comadres - com seus lábios de carmim cruéis tentadores, suas pernas à mostra duras e belas, os seios insinuados, às vezes mais, empinados, elas tentavam seus maridos e às vezes mais do que às vezes eles cediam não se contentavam com o material caseiro ainda em bom estado sabem homens são fracos não resistem às tentações e o diabo está sempre aí para atentar e mulher é o diabo...

Os homens simulavam o desagrado deles com a rua durante o dia, e de noite afundavam a cara nas casas da rua do Cref, famosa desde o início da Vila.

Era o centro principal de raparigagem da região.

Lá nos inícios, os tropeiros chegavam trazendo mercadorias para enfiar no trem e logo logo começaram também a trazer mulheres, algumas desembarcadas ali mesmo, a fazer a vida ali na rua do Cref.

Outras com destino a Salvador, tantas outras seguindo pra Cachoeira de onde eram distribuídas para municípios do Recôncavo, Sul do Estado, e Bahia afora, quase todas elas meninas meninas virgens virgens, mercadoria procurada, desejada, rentável.

Contam, e não se duvide: muito do desenvolvimento de Sítio Novo, depois Vila Paraguaçu, mais tarde Iaçu, teve a ver com o tráfico de mulheres, com essas meninas sem pai nem mãe sem eira nem beira só o corpo pra vender jogadas no mundo a peso de ouro, ao menos para os traficantes.

Carecia uma zona de raparigagem em qualquer lugar.

Gozado, falo de qualquer coisa, e Guimarães Rosa me cutuca - é como se me dissesse, se está falando de sertões, deixa comigo.

Riobaldo, nas horas vagas, quando não estava ensinando letras a Zé Bebelo, também procurava o lugar aonde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinquenta.

E Zé Bebelo aprovava:

- Onde é que já se viu homem valer, se não tem a mão estadas raparigas? Ond'é?

Pois é, ond'é?...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: rua do Cref era a ZBM.

Paulo Mascarenhas: No Prado, minha terra, era chamado de "fovoco" (leia-se fôvôco)...

Jose Jesus Barreto: um bom e sonoro nome para a muvuca do ofício

Aécio Pamponet Sampaio: Jose Jesus Barreto , em minha terra, o brega tinha nome sugestivo: Vai-quem-quer ! Ganhou até poesia do modernista feirense Eurico Alves, que foi Pretor (espécie de Juiz-Substituto) lá (em Macajuba, não na Rua do Vai-quem-quer...) na década de 30.

Jose Jesus Barreto: "Vai quem quer" é ótimo. Fui um bom querente.

Arnaldo Mariano Mariano: Em Barreiras , era Céu Azul.

Arnaldo Mariano Mariano

A primeira blenoragia, curada por Dr Haroldo, quando aplicava Benzetacil, sempre dizia, quando tava no bem bom não se lembrava e agora ,ai, ai, Dr Haroldo. 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

10 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: Cleidiana Ramos

e Chico Preto, tempo já de Edgar Medrado,

na Vila Paraguaçu feira livre  e missa os acontecimentos, transporte bestas

de carga, rememorações de Macondo.

 

Já andei muito pela Vila Paraguaçu quando Cleidiana Ramos me levou pelas mãos tem pouco tempo.

Ela e Chico Preto, o pai.

Com ele, o velho Chico Preto, estivera por lá umas tantas vezes.

E depois quando falava da filha em minhas histórias, ele se intrometia e rolavam muitas aventuras, ele já encantado, e isso pouco importava, ele não descansava.

Era já cidade, bem maior, diferente dos tempos da soberania exclusiva do velho coronel Medrado.

Já era época do mando de Edgar, o filho, o cujo a me chamar de comunista num comício de dr. Roberto Santos, candidato a governador em 1982.

Já noticiei tudo isso, quando falava da querida Cleidiana.

Não desconfiava voltasse a Iaçu, e voltasse mais no tempo, tempo de vila.

Vila Paraguaçu.

Iaçu, só fui saber agora, é terra de voltar sempre se beber da água do Paraguaçu.

Eu bebi.

Nesses velhos tempos, Navarrinho já nascido, a feira livre era o grande acontecimento, além da santa missa, quando o padre dava as caras todo paramentado e distribuía os santos sacramentos.

Todo mundo cheio de reverências e orações pai nosso e salve-rainha quando padre mais velho.

As moças, inquietas, alvoroçadas, sussurrando, sorrindo discretamente quando algum sacerdote mais novo.

A feira livre tomava o sábado e parte dos domingos.

Era como uma cobra grande arrastando-se por todo aquele chão, o rabo chegando lá muito longe na estação, tudo espalhado, exposto no chão sobre esteiras de licuri - se quiserem, chamem ouricouri, tanto faz.

Havia as carnes de bode e de caça, o feirante espantando as moscas abanando as mãos, gritando preço baixo, não perca, oferecidas sobre estruturas rústicas, cambaleantes, de varas de cerca unidas por amarras de cipó.

Tudo coisa daquele mundo antigo, tão bonito de se ver, tanta saudade de sofrer.

Ah, a farinha de mandioca, torradinha torradinha, chegava dar água na boca, em caçuás de couro, os mais chiques, ou de cipó trançado e forrado com tecido grosso, sempre acondicionados em cangalhas trazidas no lombo de mulas e jumentos.

Não é preciso dizer mas digo: tudo o chegado àquela feira, tudo o encontrado lá, e era muita coisa, vindo de perto ou de longe, um quilômetro ou muitas léguas, suportado no lombo das bestas de carga.

Tão úteis, tão necessárias as bestas.

Casas de adobe e de taipa enchiam a rua principal e as duas ruas secundárias.

Gente feliz, contudo e apesar de tudo - pobreza também encontra meios de achar felicidade.

Teve momento, tempo passado quando escrevi sobre Cleidiana Ramos, chamei Iaçu de Macondo.

Mais Macondo ainda, a Vila Paraguaçu.

Muita parecença.

Lembro novamente de "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez.

Ali, naquela Vila Paraguaçu, como diria Aureliano Buendía,  sabedoria só valia a pena se fosse possível se servir dela para inventar uma nova maneira de preparar o feijão.

Não servisse para isso, nem não servia pra nada não...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Navarrinho nasceu finalmente, mas ainda tá enrolado nos panos feito charuto, né Emiliano?

Emiliano José: Joana D'arck leitoras são apressadas... Ele, não

Artur Carmel: Ô Mil, tire-me uma dúvida.. A Vila Paraguaçu à qual v. se refere é a mesma Iaçu, ou seria aquela no cruzamento da BR116 com a 242 ? Grato.

Emiliano José: Vila Paraguaçu, antes Sítio Novo, será a futura Iaçu. Cleidiana Ramos, nossa querida colega, escreveu livro sobre o município, Navarrinho, também, na ficção, "Goroba'. Nessa série, com Cleidiana e Navarrinho vou tentando revelar essa nossa Macondo.

Artur Carmel: Conheço Iaçu, João Amaro, beira do Paraguaçu...Caatinga lindíssima! Quando andei em Itaberaba- Viva Itaberaba !!, na adolescência, pegava um baba na serraria "da estrada de Iaçu" !! Vlw , Mil !!

Mônica Bichara: Eitcha que Iaçu tem lugar de honra nessas memórias, tem é história 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: a cultura da Vila

do Paraguaçu, viajando nos troles,

uma boa conversa, uma boa pinga,

Guinho da pensão chibungo macho

que só a porra, Marina Marina você

se pintou,  anjos e monstros da

noite nas histórias das parteiras.

 

Então: sabedoria ali não era coisa só de letrados, havia letrados também e alguma utilidade tinha.

Serventia diária, da boa, era aquela de saber preparar o feijão, a galinha de molho pardo, o bode bem temperado, o peixe pescado ali no Paraguaçu, a de lavrar a terra, tirar o leite da vaca, amansar mula, fazer os móveis da casa...

Cultura, é, cultura é isso.

Vila Paraguaçu.

Era assim, ser tão assim.

Era a vila dos funcionários da Leste e dos Correios, os guarda-fios Arlindo e Torquato viajando nos troles trilhos afora inspecionando  postes e cabeamento do telégrafo do trem.

Depois das longas viagens, uma reconfortante parada na porta do APT dos Correios, o sereno amigo Gil-Braz, para dar dois dedos de prosa, jogar conversa fora, e beber uma pinga das boas, que ali não escasseava, alimento da alma.

Havia o Guinho da Pensão, afável afável no trato com todos, um doce de pessoa, fera, lhe pisassem nos calos, precursor da luta LGBT e que mais.

Gritava para quem quisesse ouvir:

- Sou chibungo, sim, mas muito macho sim senhor. Quem quiser testar, venha dentro que seguro.

Houve "estrangeiros" a levarem surras memoráveis - achavam poder dormir na hospedaria e sair sem pagar, pensando fosse fácil proceder assim com o chibungo, grave engano.

A vila do Paraguaçu passou a gostar dele, arquivar preconceitos.

Mais: começou a admirá-lo: vozeirão de tenor, intérprete sofisticado de Caymmi.

Um violão o acompanhava, sempre - o de Gil-Braz, pai de Navarrinho, amante da boa música, da boa farra.

Marina morena Marina você se pintou Marina você faça tudo mas faça um favor não pinte esse rosto que eu gosto e que é só meu Marina você já é bonita com o que Deus lhe deu...

Gil-Braz tomou intimidade com Marina através do tenor, nunca mais esqueceu a música,  tanta a paixão a ponto de uma das filhas carregar a poesia no nome.

Paixões, no futebol: Flamengo e Fluminense - os dois times locais.

Essa Macondo era habitada também por caiporas, mulas-sem-cabeça, pelo saci-pererê, anjos de chifres e pés redondos, onças, monstros revelados pelos mais velhos, pelas velhas parteiras, a suscitar medos e fantasias na criançada.

Nela, nessa vila perdida no tempo, era um hábito: contar histórias ao anoitecer, lindas, poéticas e às vezes, aterradoras, capazes de provocar sonhos, viagens nas nuvens, ou pesadelos na noite escura.

Olhando assim, com olhos de quem ver, com saudade, não é impróprio dizer um privilégio viver ali nessa Macondo.

Atrevo-me a contar história vivida por Navarrinho, ali pelos seis anos de idade, no bucólico ambiente da Vila do Paraguaçu.

Pedir calma a Joana D'arck, a mais agoniada das comadres, porque vou dar uma parada, e amanhã, tenha certeza, volto à lida, dura e doce lida da escrita, e volto com afeto e com ternura....

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: cultura sim, o fazer criativo do povo. Viva.

Artur Carmel: Será que Navarrinho conheceu o médico Rodrigo Burgos ?

Carlos Navarro: Não lembro Carmel. O único médico que conheci em já Iaçu, foi que era prefeito quando voltei há coisa de 40 anos pegar documentos para o meu casamento. Era gente boa, tinha um filho já rapaz, mas infelizmente não lembro os nomes.

Artur Carmel: Vlw !

Cleidiana Ramos: Oh Emiliano José ...lembranças de Seo Guinho da Pensão. Maravilhoso. Um senhor cozinheiro e valente pra defender o exercício da sua sexualidade. Homofóbico não se criou nunca debaixo das suas barbas e do porrete sempre preparado pra quem se metesse a besta. Adorando as histórias do conterraneo de Iaçu-Macondo, Carlos Navarro ...

Carlos Navarro: Cleidiana Ramos Você é bem mais nova, mas vivemos em um lugar onde sonhos e realidade se misturavam na imaginação das crianças, provocadas pelos mais velhos contadores de histórias.

Jose Antonio Reis: Sou seu fã!

Emiliano José: Jose Antonio Reis honrado

Jose Antonio Reis: Emiliano José sou um soldado, seu. Sempre alerta!!

Jose Antonio Reis: Emiliano José a honra é toda minha!

Conrado Matos: Genial Emiliano Jose. Parabéns. 

------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: o jovem farmacêutico

Pacífico mais tarde Chico Preto dando carona

à meninada em sua bicicleta, comerciante

Severiano surpreende valente querendo

valer-se da esposa dele, um tiro na testa,

Navarrinho mergulhando no

Paraguaçu, surras do pai, cego Nambu.

 

O menino olhava tudo, mal apercebia, mas apercebia, e o tempo vai juntar as coisas, as compreensões, e ia abraçando aquela vila, como fosse sua, como quase um brinquedo.

Havia os comerciantes, Navarrinho conhecia muitos.

Umas quantas vezes, entregava correspondência pra eles de ordem do pai, recebia centavos, comprava pedacinhos de rapadura, adoçava a vida.

A criançada gostava mesmo é de um personagem a ser mais e mais querido conforme o tempo passasse.

Então todo mundo o conhecia como Pacífico da farmácia - jovem, jovem, nem 20 anos ainda, já cuidando de remédios.

Andava de bicicleta pela vila, e não regateava carona pra molecada, aboletada no quadro ou no bagageiro.

Uma simpatia só - mais tarde será Chico Preto, mais tarde prefeito, mais tarde pai de Cleidiana Ramos - paro por aqui senão ele ocupa espaço e não quer mais sair.

Saber mesmo da vila?

De outros comerciantes?

Só mais um.

Manoel Severiano cuidava quase amorosamente da loja de confecções dele.

E amorosamente da querida esposa.

Não se conhecem todas as circunstâncias, mas um dia surpreendeu um pé-de-pano metido a valente dentro de sua casa se engraçando com sua mulher, ninguém sabe até onde foi nas engracias com a esposa.

Morreu ali o pé-de-pano, no pé da cama.

Uma bala só, na testa.

Ninguém ousou censurá-lo - e quem era besta?

Com uma semana, arrumou os panos de bunda, juntou toda a família, inclusive sua santa esposa, e nunca mais se teve notícia dele.

Honra lavada, sim, mas melhor não dar vazão à língua das pessoas, melhor sumir.

Menino, diabo!

Era o que mais se ouvia em relação a Navarrinho.

A vila volta e meia o surpreendia em traquinagens.

Contrariava a proibição de mergulhar no rio Paraguaçu.

Os pais tinham medo fossem as crianças engolidas por vorazes sucuris.

E quem sabe fossem levadas pelo Nego D'Água.

Ele, nem aí.

Tomou mais de uma surra do pai pelos mergulhos.

Vivia pelos becos, correndo descalço.

Era ousado, disposto a travessuras perigosas.

Uma delas quase lhe custa a vida.

Foi com o cego Nambu.

Essa, a promessa de ontem, feita a Joana D'arck, como disse a mais agoniada das comadres, justo ela, escritora de entrelinhas e afetos, sabedora da impossibilidade de domar palavras.

Ainda não foi hoje, Joaninha.

Escapou a chance.

Amanhã, sem falta, conto a história de Nambu, o cego, e de sua mulher, Zabelê - em nossa Macondo-Paraguaçu, casos abundam, e travessuras de Navarrinho, ainda mais...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Cleidiana Ramos: Que linda essa terra fica. Olhem Lourdinha Brito e Rosangela Maia ...aproveitem as anteriores sobre mais de Iaçu agora na trajetória de Carlos Navarro ...😀

Rosangela Maia: Muito bom!

Mônica Bichara: Xiiiiiiii se der corda Chico Preto se aboleta aqui e não sai mais da história de Navarrinho. Né Cleidiana Ramos? Kkkkkkk Joana D´Árck depois que virou escritora quer até adiantar o nascimento de Navarrinho.... vê se pode...  

Joana D'arck: Mônica Bichara kkkkkkkk... imagina, já querendo me meter na história duzotro. E esse Navarrinho parece que vai render mais história do que todas já contadas aqui. Tô gostando!

------------------------------------------ 

Emiliano José

13 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho e

preferência de traquinagens em sábado

de feira, gosto por atazanar vida de Nambu

e Zabelê, o cego e sua guia andavam

duas léguas pra chegar à Vila aos sábados, pediam farinha feijão o que pudessem aos fregueses, levanta a saia da mãe que tu vê...

 

Devia correr o ano de 1950.

Navarrinho, nem completados os seis anos.

Traquino, traquino, passava a vida infernizando quem pudesse.

No fazimento de traquinagens, tinha especial preferência pelos dias de feira.

Gosto, gosto  mesmo era o de atazanar a vida de Nambu e Zabelê.

Vida dura, a do cego Nambu e de sua companheira, sua guia Zabelê.

Moravam num casebre, duas léguas distava da Vila Paraguaçu.

Em João Amaro.

No sábado, Nambu bastava ouvir o galo cantar, sempre às quatro da manhã, pra dar um cutucão na mulher.

Nunca falhava, o galo.

Nem ele.

Café ralo, um aipim no máximo como complemento, e pegavam a estrada.

Garrava no braço da mulher, e os dois seguiam viagem, apertando o passo.

A pé, não havia outro modo de se conduzir.

No sertão, quem é rico anda em burrico quem é pobre anda a pé - cancioneiro do velho Luiz Gonzaga.

Todo santo sábado haviam de fazer vida de pedinte, dura profissão, ô, por que não seria?

Nem eram de pedir dinheiro.

Povo não gostava muito.

Melhor fosse clamar aos passantes, às mulheres donas de casa, aos homens,  à freguesia toda, lhes dessem um pouco de farinha de mandioca, um feijão qualquer, andu servia, alimento de modo a matar a fome.

Mais fácil, povo recebia melhor esse pedimento, nem se via cara feia quando pediam assim.

Dinheiro, gente leva cobra no bolso e cobra risca picar e se pica dói, se tem veneno pior...

As vestimentas, andrajosas.

Queriam o quê, vocês?

Estivessem nos trinques pedindo esmolas?

Maltrapilhos, tecidos mal e mal a lhe cobrirem os corpos esquálidos, magreza de dar dó.

Dava pro gasto do afazer aqueles tecidos.

Uma pinga, nem se diga boa pinga, não podia faltar.

A garrafa já vinha de providência segura desde João Amaro no bocapiu de Nambu.

Quem guenta uma vida daquelas, escuridão e miséria, sem uma cachaça?

Se o cristão já bebe por qualquer outro motivo, se não tiver inventa, inda mais se acossado pela fome, miséria, e no caso de Nambu, a impossibilidade de ver o mundo.

Sem ela, a mardita cachaça, como segurar esse rojão?

Pergunta do poeta, do mundo Brasil.

Navarrinho passava pelos dois, chegava bem perto, e gritava:

- NAMBU E ZABELÊ.

Zabelê, irritada, respondia em alto nível:

- Levanta a saia da mãe que tu vê.

Repetia isso, o menino levado da breca, várias vezes durante o sábado de feira, os dois já tomados por sonhos avançados da pinga, Zabelê sempre evocando as partes da mãe, inocente em casa cuidando da comida do marido e das crianças, Navarrinho entre eles, pobre Mariazinha.

Num desses dias de feira...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: mergulho no rio,

olhando os peixinhos, maginando próximas travessuras, Nambu e Zabelê, a cuia

jogada ao chão, faca amolada ao

sol do meio-dia, Navarrinho

desembestado, medo de ser sangrado...

 

Navarrinho vinha andando pela feira naquele sábado.

Nem camisa não tinha não.

Um short mal ajambrado, e só.

Antes de sair de casa, bem cedo, pensou:

vou pronto pro mergulho, Paraguaçu me espera.

Viu aqueles peixinhos na fundura do rio, procurou o Nego D´Água tão afamado não achou, e saiu, água escorrendo, logo seco, pronto pra caminhar pela feira.

Garrou maginá próxima travessura.

Aproveitou pegou uma banana na barraca de dona Maria e saiu correndo ela nem se lixando já sabia das manias do menino, diabo de menino.

Lá distante, viu Nambu, sentado, cego ceguinho.

Ao lado, Zabelê, essa sempre com olhos de águia, com a cuia de farinha utilizada para arrecadação dos poucos centavos caídos ali força boa vontade de uma ou outra boa alma, que por ali havia, não tantas.

Ah, pra quê...

O diabo na rua no meio do redemoinho.

Aquela visão o animou.

É como tentação, todo ente sabe como funciona.

Não deixaria de mexer com os dois, gritou tanto mais alto pudesse:

- NAMBU E ZABELÊ.

Zabelê respondeu:

- Levanta a saia da mãe que tu vê.

Achou pouco: passou, deu um safanão na cuia de farinha.

Voou cuia e as moedinhas se espalharam pela rua, desaparecendo por entre as barracas.

Maldade pura do moleque - cês sabem, moleque adora maldade, crueldade, é diversão.

Zabelê já havia suportado muitas provocações do menino.

Só respondia apelando aos recantos escondidos da mãe dele, de forma pouco educada.

Naquele dia, suportou mais não, os olhos tornados fogo.

Deixou o cego Nambu à própria sorte, e apesar de tomada por muitas doses da cachaça, ou por causa delas, saiu correndo atrás de Navarrinho, cujas pernas curtas ganharam insuspeitada velocidade.

Não seria nada ela atrás dele, não fosse a faca aparecida de repente nas mãos da fera, sacada do califon cor da pele, levada ali para urgências, aquela era uma, apois não era?

Não, não riam não.

Zabelê transformou-se em fera.

A faca de sete tostões nas mãos dela brilhava ao sol do meio-dia, ameaçadora.

Parecia um facão amolado, faquinha coisa nenhuma.

E ela, assemelhava não: era um dragão soltando fogo pelas ventas.

O coração do menino, aos pulos.

Nunca sentira o coração assim tão acelerado, e ela logo ali, Zabelê faca amolada, medo de ser sangrado...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: O sadismo de nossa infância... 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

15 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: corrida de atleta, Zabelê

nos calcanhares, faca amolada risca sangrar,

o curto longo caminho até o quintal da casa,

o pulo pela janela, acolhimento da mãe,

indenização do pai a Nambu e Zabelê,

a inapelável surra de relho curtido de

couro cru, palavra como cura, terapia não.

 

Enquanto corria, Navarrinho, nos seus imberbes cinco, seis anos, pensava não devia ter provocado a fera.

Não obstante, era só brincadeira, refletia.

Não era causa de faca amolada.

Nem não era motivo de não sangrar ninguém.

Não, inda mais ele menino daquele jeito muita vida por viver e queria viver muito, pudesse.

Gozado: corria corria e tudo parecia lonjura.

Zabelê parecia atleta não saía dos calcanhares  olhava de soslaio via a faca rebrilhando contra o sol.

Não zombem não: ela parecia parecia mesmo um dragão imenso contra ele tão pequenininho tão inocente nunca quis fazer mal a ninguém, Nossa Senhora estava aí para provar e comprovar.

A casa dele era perto da feira, sabia.

Parecia.

Corria corria.

Aarrodeou pra disfarçar.

Inda derrubou coisas das barracas pelo caminho.

Adiantou pouco: Zabelê no cangote a faca a meio metro riscava encostar sangrar chamou até Deus Nosso Senhor à causa.

Pediu perdão pelos pecados - que o salvasse daquela vez, prometia se comportar escapasse, rezar centenas de pai-nossos, já sabia dessas penitências.

Entrou pelo quintal da casa com Zabelê e a faca já a menos de meio metro quase quase riscando a carne fresca das costas.

Ela a bruxa nos gritos te pego diabo pra você nunca mais mexer com quem tá queto vai se divertir agora no quinto dos infernos...

Salvou-se: pulou a janela, e viu-se dentro da casa a mãe o que foi meu filho venha cá...

Zabelê, meia volta contrariada, enfiou a faca na capanga, não, no califon cor da pele, e voltou para Nambu já no desespero, apalpando ao lado, sem encontrar amparo, consolo, e chamava chamava Zabelê Zabelê sem ouvir resposta.

Gil-Braz, pai de Navarrinho, soube de tudo:

- Quanto foi o prejuízo? - perguntou a Zabelê.

Pagou com juros, como do bom procedimento, inda mais se tratando de um cego e sua acompanhante.

Comprou dois quilos de farinha, perguntou quanto de moeda se perdera, e Nambu e Zabelê acabaram saindo no lucro.

Chegando em casa, foi uma pinga só.

Dois dias de pura cachaça.

Em casa, outra pedagogia.

Gil-Braz tinha seus métodos.

Nunca ouvira falar de Paulo Freire nem de qualquer outra modernagem na educação dos filhos.

Navarrinho se recorda, como fosse hoje, ainda dói que o corpo guarda, tem memória: uma surra a caráter, de relho fino, couro cru.

Zabelê não lhe cortou.

Conseguiu escapar.

Do relho de Gil-Braz, não.

Tão forte a recordação, tão forte.

Capaz de provocar conto.

Melhor escrever que dói menos - isso tudo está contado, de outro jeito no "Goroba", de autoria de Navarrinho.

Escritor, jornalista, driblam os traumas assim, dão seus pulos.

Evitam psicanalista, psicólogo, terapeuta, essas coisas.

Quando conseguem...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Tadinho de Navarrinho. Lá em casa também o couro cantava no lombo dos danados. Era de currião. Mas eu só levei uma lapada na perna uma vez que fiz mal criação com painho.

Graça Azevedo: Eu era a única menina cercada por 3 meninos. O pau cantava igual pros 4.

Da cintura pra baixo o cinturão de mainha não fazia distinção!

Emiliano José: Curioso: as mainhas normalmente batiam mais. Meu caso, ao menos.

Graça Azevedo: Emiliano José Ficavam em casa, cercadas por "anjinhos"! E com o ônus de: a mãe não educou!

Mônica Bichara: Fui premiada então, nada de surra. Valeu mainha (hoje seria aniversário dela, a pessoa mais doce desse mundo)

------------------------------------------- 

Emiliano José

16 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: saudade sempre

espécie de velhice, saudades do pai,

estranha melancolia, saudade do que

não foi, gostaria de ter compartilhado

a vida com ele, morte prematura, a mãe Mariazinha assumindo ainda mais

as rédeas da casa, com renca de filhos.

 

Você amanhece tomado pelo seu personagem.

Ainda mais se amigo.

Ontem, falava das travessuras.

De como criança adora arriscar e quando se arrepende não dá mais pra voltar atrás.

De como Navarrinho escapou de Zabelê e de sua faca afiada.

De como teve de encarar o relho de couro cru do pai.

Lembro outra vez de Guimarães Rosa, por quem ando tomado, "Grande sertão: veredas" nas mãos.

Toda saudade é uma espécie de velhice.

E isso não é lamento.

A saudade é um acúmulo, amor pelas coisas boas, pelo ofertado pela existência.

Navarrinho tem saudades do pai, a quem amou.

Fala dele como fosse um Quincas Berro D'Água, o incrível personagem de Jorge Amado.

Do bom humor, da tolerância, da entrega à mulher Mariazinha, mais chefe da casa do que ele.

Da viola, dos bares da vida, da imensa capacidade de construir amizades.

De seu fascínio por Dorival Caymmi.

Da capacidade de negociação - só lembrar da mediação em torno da Guerra da Roça Velha.

Se você conversar com Navarrinho hoje perceberá um tom de melancolia, será isso?

Talvez sofra reprimendas dos freudianos pelo uso da expressão.

Uma espécie de estranha saudade - a de não ter vivido mais tempo com o pai.

Saudade do não vivido - sobre essa ainda não li em Guimarães Rosa.

Também uma espécie de velhice?

Como gostaria.

Sair por aí com ele pelos bares da vida, ouvir mais das sabedorias dele, beber na fonte de uma viagem alegre, saber de uma existência de bom navegador, deixa a vida me levar, ando devagar porque já tive pressa, sua capacidade de sedução, a viola na mão...

Perdeu tudo isso.

Talvez o grande ficcionista sinta essa lacuna - gostaria de traçar as verdades dessa vida, e não pode, porque de um pai, de um Quincas Berro D'Água, de um pai desse tamanho, você só pode falar se tiver conhecido pra valer, durante muito tempo, um tempo capaz de sedimentar histórias.

E ele o perdeu cedo, cedo, o pai nem aos quarenta anos ainda havia chegado, vitimado por um aneurisma na aorta abdominal, não obstante muito bem cuidado no Hospital das Clínicas durante dois anos.

Agora, comando de Mariazinha do Boqueirão.

A ela, fazer o luto, e tocar o barco pra frente.

Se antes ela já era, a expressão é de Navarrinho, o "homem da casa" por decidir tanta coisa, até por guerrear, carabinar contra os Medrado, com a morte do marido tornava-se a única responsável, e com aquela renca de filhos...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Saudade do não vivido é o que sentimos agora com esse confinamento prolongado até sabe Deus quando.

Mônica Bichara: Mulher forte retada essa Mariazinha do Boqueirão, né brinquedo não. É o que se chama de mulher de fibra, pau pra toda obra.

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

17 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha do

Boqueirão, energia até o fim da vida,

trovões, raios, relâmpagos na despedida,

lição de nunca se apavorar diante de

obstáculos nunca esquecida por Navarrinho.

 

Com Mariazinha do Boqueirão, a mãe, Navarrinho conviveu longamente.

Ela só foi deixar a vida perto de encostar em um século.

Queria não.

No hospital, últimos dias, reagia, reclamava, a animar os filhos, esperançosos com aqueles sinais de vitalidade.

Ainda dava ordens, conselhos, consolava, e a filharada adulta ouvia atenta, e queria obedecer, possível fosse, por muito tempo ainda.

Dizia fico aqui no máximo sete dias.

E tagarelava, e ria, divertia-se com as travessuras dos netos e bisnetos, contadas pelas filhas, filhos.

No oitavo dia, partiu.

Queria não, mas fez a derradeira viagem.

Navarrinho, no seu primeiro "Goroba", não inventa nada, apenas conta - agora, romance com mesmo título deve chegar às minhas mãos próximas horas, como prometido.

Na manhã da partida, a natureza reagiu.

Desabou tempestade da grossa.

Um ribombar de trovões, um riscar sem parar de raios, relâmpagos.

Salvador inundada.

Quando de repente veio a estiagem, aquele cheiro de terra molhada, surgiram as formigas de asas, tanajuras, igualzinho igualzinho àqueles lindos tempos de festa, e  ela no meio, menina menina, lá no Boqueirão, aquele reino feliz.

Costumava dizer das manias de Deus: Ele não deixa a gente saber antes a história  das coisas, só o começo.

Partia, e sabia deixar muita coisa a ser contada.

Navarrinho chorou.

Triste, mas não com desespero.

As lágrimas reconheciam não apenas a longa vida.

Eram revelação da tristeza, mas também de orgulho.

A mãe lhe deixara lições nunca desaprendidas.

Sobretudo especialmente nunca abaixar a cabeça diante das dificuldades.

Saber afrontá-las, enfrentá-las, seguir em frente.

Esse lema carregou vida inteira.

Não se assombrar quando obstáculos se apresentassem.

Lembra-se hoje dessa mãe, pouco mais de 30 anos e sete filhos nas costas, chorando quando o marido morreu.

Viu-a erguer-se, enlutada, e encarar a vida.

Olhou para o passado, com saudades, sim.

Gil-Braz: bom homem, bom marido, bom pai.

Mas, não estacionou lá.

Caminhou...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Nossa, Emiliano! Deu vontade de abraçar Navarrinho

Emiliano José: Joana D'arck espera um tiquinho...

Carlos Navarro: Joana D'arck obrigado, beijo Joaninha

Isabel Santos: Dizem que neste momento, quando chove, é pura benção! Emocionante, Emiliano José. Beijo, Navarrinho, Carlos Navarro.

Carlos Navarro: Beijo Bel.

Mônica Bichara: Quanta emoção. Verdade Joana D'arck , abração Navarrinho 

---------------------------------------- 

Emiliano José

18 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: sertões, segredo da vida só é descoberto aos poucos, sabedoria sertaneja, Deus é traiçoeiro vem vindo ninguém não vê, a renca de filhos, Mariazinha e

a certeza de novo começo, hora de partir.

 

Andei.

Andei muito por Bahia afora.

Tropecei foi em gente.

Boa e má.

Gente boa, muito mais.

Teve tempo quando ia pra zonas conflagradas de pistoleiros e grileiros gente me aconselhando andar armado.

Nunca botei arma na cintura.

Acreditava acredito: a política, essa força civilizatória, me protegia.

Estou vivo.

Gostei mesmo em demasia foi dos sertões onde pisei.

Por eles, me apaixonei.

Por isso, Iaçu me emociona.

João da Roça Velha, me comove.

Mariazinha do Boqueirão me leva de novo pros sertões, como Chico Preto havia feito, como Cleidiana o fizera, essa gente do Paraguaçu.

Bonito ouvir Mariazinha dizer Deus não deixa a gente saber antes a história das coisas, só o começo.

Sabedoria sertaneja.

Ela sabia, quando o marido morreu: estava num novo começo.

A linguagem sertaneja é nítida, mesmo pareça obscura para quem não goza de um pouquinho de intimidade com ela.

De minhas paixões, releio leio nesse momento Guimarães Rosa.

Aproximo Mariazinha e Riobaldo, o narrador de "Grande Sertão: veredas".

Conversando com o interlocutor, ele pede paciência.

"O senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro".

Os dois, Mariazinha e Riobaldo, cada um a seu modo, diziam a mesma coisa.

Mariazinha ia caminhar pelo mundo com aquela renca de filhos, da missa ainda não sabia metade que Deus não lhe contara.

Riobaldo também segredava a propósito: Deus é traiçoeiro, vem vindo, ninguém não vê, ele faz é na lei de mansinho, assim é o milagre.

Só sabia do começo, conforme lições do Altíssimo, e depois viria o milagre, ela ajudando, faria por merecer.

E o novo começo era fora dali.

Era hora do adeus à Vila Paraguaçu, às aguas do rio, à Roça Velha.

Tem de saber quando partir, mesmo pareça tempo escuro.

Aprendera isso, lições do pai, velho João.

Aos poucos, o caminho clareia, conforme Riobaldo.

Quando Gil-Braz morreu estava grávida de sete meses: logo nasceria Eduardo, o último.

Na memória, a fileira: Navarrinho, Dalva, Marina, Gilson, Tuca, Goroba e agora Eduardo.

Jurandir, nascido logo depois de Tuca, morreu com menos de um ano.

Dois abortos, e nesse casamento não houve ano sem barriga, produção em série, ininterrupta...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

19 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha e lembranças de uma vida agitada, o telegrama, Gil-Braz à beira da morte, trem com todos os filhos,

não houve tempo, testamento, amigo

de farra ganha chapéu, Navarrinho

ganha caneta Parker 51 e relógio de

ouro pra só receber quando com 10 anos.

 

Os personagens vão chegando, se tornando íntimos, conversando, provocando.

Eles nos animam, evocam.

Ao pensar nessa fase de Mariazinha do Boqueirão, de sua encruzilhada, sou remetido à minha infância, ali pelos 10, 11 anos, quando também mamãe se viu sozinha com cinco filhos, eu o primogênito, vagando por entre casas de vários tios, Rio de Janeiro, Cachoeira Paulista e São Paulo, bem acolhidos não obstante amontoados, para só depois meu pai reaparecer, família se reagrupar, e a gente mergulhar em dura vida de roça.

Curiosas essas lembranças, essas semelhanças de histórias.

Conto mais não.

Vocês podem ler "O cão morde a noite", lançado recentemente, onde conto tudo isso, tim-tim-por-tim-tim.

O personagem aqui é Mariazinha.

Sem lenço nem documento.

De sua vida anterior, só carregaria lembranças.

Ah, ricas lembranças.

Do Boqueirão, régua e compasso, os primeiros passos.

Da Roça Velha, onde aprendeu a montar e a atirar, onde fez guerra, atirou em gente pra defender o pai, da Vila Paraguaçu, onde foi lambe-lambe, fabricou sabão e vinagre, conheceu e amou e casou com Gil-Braz, onde chegou antes a ter outro rápido casamento com um Medrado, que cedo morreu.

Tinha era história pra contar, chegada aos 30.

Volto um pouco.

Na Vila Paraguaçu, Mariazinha recebeu um telegrama: Gil-Braz não estava bem.

As condições de saúde haviam se agravado.

Não havia trem todo dia pra Salvador.

Dia seguinte, com seis filhos a tiracolo, seguiu para a capital.

Se era despedida, todos deviam estar presentes.

Trem atrasou - acontecia.

A família só chegou em Salvador um pouco depois da meia-noite.

Chamou um carro de praça foi para o bairro do Uruguai, onde morava a irmã mais velha de Gil-Braz.

Madrugada já, a triste notícia: o marido havia morrido, a família acabara de ser informada.

O aneurisma na aorta abdominal estourou, e isso depois de dois anos sob os cuidados dos melhores especialistas, e ele se foi.

Já se disse, creio, ter sido um estudante o autor da descoberta do aneurisma, mas já era tarde.

Foi um fim doloroso.

Os médicos fazendo transfusão, ele dizendo vou esperar Mariazinha

Chegou um momento de pedido dele próprio: parem de fazer transfusão de sangue porque não adianta, eu não vou me recuperar.

Já havia feito o testamento.

O chapéu, de tanto zelo, para um amigo de farra, com quem teria bom uso.

A caneta Parker 51 e o relógio de ouro, para o filho mais velho

Com uma recomendação: só entregar  as duas preciosidades a Navarrinho quando ele completasse 10 anos.

Mais não tinha pra distribuir.

Nunca acumulou.

Deitou e morreu logo depois da meia-noite, quando Mariazinha desembarcava do trem com a filharada...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Ruy Espinheira Filho: Você está escrevendo as memórias, Emiliano José, ou é ficção? Um abraço, Ruy Espinheira Filho.

Emiliano José: Ruy, meu velho, trajetória de Navarrinho, no começo, ainda. Abração. 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: embolados numa garagem dividindo espaço com um

carro, seis filhos outro na barriga, dá

à luz, volta à Vila Paraguaçu, os

Medrado haviam invadido casa dela...

 

A casa de Tia Mariinha, irmã de Gil-Braz, no bairro do Uruguai, era pequena.

Como caberia duas famílias?

Já disse: vivi situação semelhante, quase na mesma idade de Navarrinho.

Está lá, em livro recente, "O cão morde a noite", lançado pela Editora da Universidade Federal da Bahia.

Sei bem dessa situação.

Não era apenas Mariazinha - carregava consigo aquela renca de seis filhos, e um prestes a nascer na barriga.

Foram para a casa de outra irmã de Gil-Braz, na Ribeira, praia do Bogari.

Era uma casa grande.

E contava com uma garagem também grande.

Adivinhem?

Família alojada na garagem.

Não foi arranjo fácil.

Havia dois carros na casa, um foi deslocado para a rua de modo a caber os visitantes.

Quando o carro entrava na garagem, o espaço ficava muito reduzido para aquele tanto de gente.

E foram meses nessa desconfortável situação.

Mariazinha teve o último filho, recebeu um dinheiro por conta da morte do marido e começou a pensar no rumo a dar à vida dela e das crianças, e agora era ela e mais ninguém a dar rumo.

Gil-Braz, dois anos de hospital, sempre se preocupava com o dia seguinte.

Sabia da morte próxima.

Disse a Mariazinha:

- Quando eu me for, fique entre Salvador e Alagoinhas.

Argumentava: são cidades próximas, as crianças vão precisar de escola, e na Vila Paraguaçu não há ensino ainda.

Porque as duas cidades?

Tanto pelo ensino quanto pelo trem, talvez.

Mariazinha tomou do trem, e partiu de volta para a Vila Paraguaçu.

Ela, o recém-nascido Eduardo, e Navarrinho.

Os outros a esperariam na garagem.

Ia fazer o rito de despedida.

Chegou e virou no estopô do cabrunco.

Os Medrado não dormiram no ponto.

Coronel é coronel: invadiu a casa dela e transformou-a numa pensão.

Casa grande.

Ali ela morou anos, resultado do primeiro casamento com um Medrado, dela por direito.

Tão grande a casa a ponto de mais tarde tornar-se um dia sede da Prefeitura. 

Além de queda, coice... 

#MemóriasJornalismoEmiliano

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

21 de abril 2021

Carlos Navarro Filho: casa ocupada, dureza

do coronelismo, os Medrado sentiram-se

donos do poder absoluto na Vila do

Paraguaçu sem a presença de Gil-Braz, Mariazinha arrebanhou o que era dela,

juntou os filhos na pequena casa

ao lado, e logo depois partiu de volta

para Salvador em busca do destino.

 

Fácil, né não.

Não é mesmo.

Mariazinha desembarca do trem na Vila Paraguaçu, Eduardo no colo, dois meses, Navarrinho ali pelos oito anos ou menos, a dor no peito pela morte do marido, coração ainda aos pedaços, e quando chega em casa, pensando chegar em casa, sua casa, está ocupada.

Virou pensão, assim sem mais nem menos.

Compreendeu, se ainda precisasse, sem carecer de teoria, a crueldade do coronelismo.

Marido morreu, casa veio da família mesmo, então nos apossemos do que é nosso - mais ou menos esse o raciocínio dos Medrado quando ocuparam a casa.

Gil-Braz era uma espécie de contrapeso ao poder do velho Mourinha.

O coronel, pela força da tradição, e das armas, carecesse.

Gil-Braz, pelo cargo nos correios, o Agente Postal Telegráfico.

Pela singular característica de guardador de segredos.

Escrevinhador de todo mundo, homens e mulheres sem leitura, leitor de cartas de amor, escritas de desilusões, e tantas coisas mais levadas agora para o túmulo, tudo recolhido por ele com muito zelo, respeito por todo aquele povo, nunca ninguém soube de nada, quase um sacerdote.

Ganhou autoridade.

Os Medrado, com a morte dele, não tinham mais ninguém de contraponto na Vila.

Por isso, viram a casa vazia, passar o tempo, um, dois meses, e então saltaram pra dentro, e fizeram dali pensão.

Mariazinha do Boqueirão chegou na velha casa, entrou, viu a sala grande ocupada por vários comensais, hora de almoço na pensão.

Sentiu: perdera seu lar.

Não haveria retorno.

Estava com o filho Navarrinho, Eduardo de dois meses no colo, uma amiga da vizinhança junto, e foi aos gritos dizendo tudo a ser levado, pertences dela, quadros, lembranças, sua cultura, sua vida espalhada por aquela casa, cujos aposentos não desfrutaria mais, os hóspedes assustados, sem saber direito qual a razão da confusão, as paredes restaram nuas, nem uma foto, nenhum santo, nenhum Sagrado Coração de Jesus.

Ficou alguns dias numa casinha ao lado, de propriedade dela, não mais de dois quartos.

Passada uma semana, decidiu: não tinha mais nada a fazer na Vila de Paraguaçu.

Página virada.

Pegou o trem, com sua pequena tralha, mais Navarrinho e Eduardo, e partiu para Salvador.

Parecia tudo desabar: marido fizera a grande viagem, filho recém-nascido, mais seis, tudo em suas costas.

Fosse.

Do velho João da Roça Velha recebera lições de nunca temer desafios.

Mundo mundo vasto mundo a ser enfrentado...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

22 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha a velha

estação os que partem os que ficam,

guerras e poesias nas lembranças, pela

frente adversidades e mais outra, o trem

vira, segura Eduardo pelos pés, Navarrinho

só com alguns hematomas,

voltam para a garagem da Ribeira.

 

Tomou do trem destino Salvador.

Eduardo no colo.

Navarrinho, o homem da família, oito anos, ao lado.

Pela janela, ouvindo o resfolegar do trem, íntimo dela aquele barulho sincopado da locomotiva, olhou para a Vila e um mundo de boas lembranças ocupou a mente, a velha estação, uns partindo, outros chegando.

Levava tudo isso com ela.

As guerras e as poesias.

O mundo tem guerra e tem poesia.

Sertão tem as duas.

Arranca, o trem, aquele barulhinho gostoso, lento, e depois ganha marcha, ritmo.

Navarrinho olhava para a mãe, os olhos dela acompanhando a paisagem passar.

Era cedo pra ele pensar nas tragédias da vida, mas tragédia não espera idade pra acontecer, e ele começava a encarar a dureza do mundo.

Mariazinha seguia com o espírito preparado para enfrentar as tantas adversidades pela frente.

Não sabia: ainda no caminho, outra.

O trem virou.

Isso mesmo - parecia aquele momento na vida definido como tempestade perfeita.

Havia um trecho da ferrovia entre a Vila e Cachoeira, muito perigoso.

Local de encostas, precipícios.

Linha férrea construída costeando montanha.

Nesse local, já próximo a Cachoeira, o trem vira.

Por sorte, o vagão onde vinham Mariazinha, Eduardo e Navarrinho, quando o trem virou, bandeou pro lado esquerdo, o da montanha, não o do precipício.

Outros dois vagões de passageiros e de cargas tombaram no precipício.

Navarrinho não recorda do número de mortos nesse desastre, mas não foi pouca gente.

Eduardo, com poucos meses, estava numa mesinha existente entre um banco e outro, deitado, dormindo.

Quando o trem virou, ele deslizou, e Mariazinha num átimo, instinto de mãe, ainda conseguiu segurá-lo pelos pés, e salvá-lo.

Uma queda poderia matá-lo.

Navarrinho viu o mundo rodar, caiu pra lá e pra cá, parecia redemoinho, alguns hematomas, nada grave.

Quando refez-se, olhou pra mãe, e ela restava abraçada com Eduardo, protegendo-o.

A bagagem, todo o recolhido da Vila, pensada para dar feição à nova residência, perdeu-se por inteiro.

Restou uma solitária bacia, usada no banho das crianças.

Inútil, porque reduzida a uma sanfona, todinha amassada.

Inútil, vírgula.

Mariazinha desamassou-a cuidadosamente, e continuou a usá-la, tal a relação afetiva com a bacia, banhos e mais banhos em Eduardo.

Da garagem da Ribeira, a família seguiu para Pojuca...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: chegou certa de sair

da garagem, família de Gil-Braz querendo

emprestado o pouco dinheiro recebido

pela morte do marido, compra casa em

Pojuca e resolve: Navarrinho vai ser padre

Mariazinha viajou de caso pensado.

 

No trem, antes do tombamento, imaginava já a nova casa em Pojuca.

Decidira-se pela pequena cidade por recomendação de Gil-Braz.

O marido defendia ser aconselhável morar entre Salvador e Alagoinhas - já falamos disso, havia escolas para a meninada, ficar em Paraguaçu dava não, estou repetindo para maior facilidade do leitor, desobrigado de voltar atrás.

Da garagem da Ribeira, seguiria então para Pojuca, onde compraria uma casa.

Desembarcou e de pronto começou a desamassar a bacia virada sanfona no desastre do trem, coisas da cultura, do apego.

A bacia restou como o símbolo de um tempo, assemelhado a um casco de tartaruga mal comparando, marcas irremovíveis, espécie de paisagem lunar, a virar mar para Eduardo quando nos banhos.

Eu disse: comprou uma casa em Pojuca.

Nada na vida é simples.

Se família pode ser mão na roda, muitas vezes é, pode também ser complicação.

Bastou receber o dinheiro dos Correios pela morte do marido, e os famíliares da parte de Gil-Braz cercaram-na avidamente, a pedir empréstimos.

Juravam de pé junto: pagariam centavo a centavo.

Bateu pé.

Já tinha ciência do mundo, de seus segredos, e dos riscos para a alma quando o dinheiro entrava pelo meio.

Empresto não - repetia enquanto arrumava malas, vestia a filharada, e se bandeava na direção de Pojuca.

Estabelecendo-se lá, afastou-se inteiramente da família Gil-Braz.

A convivência depois da morte do marido a convenceu dessa necessidade.

Quando Navarrinho concluiu o primário, ali pelos dez anos, Mariazinha resolveu: vamos fazer do primogênito um bom padre.

As beatas com quem convivia a estimulavam.

Terços nas mãos, lembravam a Mariazinha quanta honra era ter um filho padre.

Era uma bênção para a família - contar com um sacerdote, a liderar o rebanho de Nosso Senhor Jesus Cristo.

E Navarrinho, encaminhado para o Seminário da Piedade, em Salvador.

Estava destinado a salvar almas, o filho de Mariazinha e Gil-Braz.

Que Deus o iluminasse...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: Não teria sido o Seminário Central da Bahia, secular, na Federação/ Cardeal da Silva? Fomos seminaristas juntos, lá. Confirme. Abrs. Curtindo cada episódio.

Emiliano José: Vou tentar saber

Jose Jesus Barreto: falei com ele há pouco. Realmente (eu não sabia) passou quase um ano, primeiro, pelo convento dos Capuchinhos, na Piedade, mas a diligente mamãe não gostou e logo ele foi parar no Central, secular... onde hoje é a Católica (Cardeal da Silva). Foi então que nos encontramos, pré-adolescentes. Tá correto, pois. Abrs

Emiliano José: chefes...

Jose Jesus Barreto: quem tem chefe é índio (em filme de cauboi) e trem (no tempo do Maria Fumaça) rsrsrsrs

Emiliano José: vcs dois foram, dos bons, se preferir, mestres. Homenageei os dois no meu discurso de chegada à Academia de Letras da Bahia.

Jose Jesus Barreto: eu acompanhei, tava ligado ... vc nervoso, a brigar com o copo d'água a todo instante. rsrs. que seja imortal, pois, enquanto dure. rsrsrs

Jose Jesus Barreto: já vestiu o fardão? tás bem acompanhado, de Ruy Espinheira e mestre Flori. E Juarez Paraíso, um monstro das artes.

Emiliano José: abraço

Emiliano José: muito bem acompanhado

Jose Jesus Barreto: emoções fortes pro coração surrado. aguente.

----------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho destinado a ser padre, famílias pobres berço de sacerdotes,

no passado monjas clarissas entravam em

conventos a preço de ouro como no

Desterro durante Colônia, patriarcado

manteve-se predominante na Igreja Católica.

 

Navarrinho destinado a ser padre.

Nós o conhecemos.

Daria certo?

Vocês, de escassa fé, se acalmem.

Quem sabe.

Simbora.

Nada de colocar o carro adiante dos bois.

De colocar gosto ruim nas coisas.

Necessário acompanhar nosso protagonista.

Havia concluído o primário, trancos e barrancos, na Vila do Paraguaçu.

Mãe pensou: bom ter um filho padre.

Tinham razão as carolas: seria muito bom.

Honra danada, orgulho.

Ampliemos um pouco o olhar: por muito tempo, séculos, a Igreja Católica foi abrigo de muitos filhos de famílias pobres Brasil afora.

A instituição ia buscar entre as famílias de trabalhadores os sacerdotes, buscavam freiras também.

Claro, se quiserem, mas só vamos dar uma palavrinha: houve tempo em que os senhores dominantes na Colônia pagavam fortuna para suas filhas ingressarem em conventos.

Como no caso do Convento Santa Clara do Desterro, em Salvador, fundado em 1677.

Os endinheirados queriam suas filhas monjas clarissas.

Coisa de status.

Não era só isso.

O convento foi um pródigo banco para eles: as abadessas recebiam o dinheiro recebido para garantir a honraria às moças de fino trato, e o emprestava aos poderosos a juros  bem abaixo do mercado.

Paremos por aqui.

Um trabalho jornalístico sobre o Convento Santa Clara revelaria coisas do arco da velha - ao menos é o que dizem alguns historiadores.

Voltemos aos padres - tem tempo os homens constituem o centro do poder na Igreja Católica.

Nada abalou essa tradição,

Ela sempre necessitou de sacerdotes.

E ia, vai, buscá-los entre os mais pobres.

Os candidatos entravam nos seminários, avaliava-se a existência ou não da vocação, e a vida seguia em frente - continuavam no seminário ou voltavam pra casa depois de algum tempo.

Mariazinha, com um time de futebol de salão em casa deve ter pensado: uma boca a menos.

E depois, orgulho da família.

Todo paramentado, celebrando a missa, oficiando casamentos, batizando, homem de Deus.

Belo, belo destino.

Chegava a ter visões antes de dormir, sonhava com aquela pompa toda, ela mãe toda orgulhosa é meu filho.

Navarrinho foi primeiro para o Convento dos Capuchinhos, na Praça da Piedade.

Cursar o ginásio.

Um amigo, padre José Carlos, até hoje na Capelinha de São Caetano, mesma paróquia de Padre Renzo Rossi no passado, me explicou as diversas fases de um seminarista...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: nas barbas do

profeta, primeira professora a gente

jamais esquece, experiência nos

Capuchinhos, admissão para o ginásio

em Alagoinhas, perde o ano por

falta, novamente ideia de

seminário, quem sabe ali um cidadão...

 

Padre José Carlos, com sua barba de profeta, me revelou: o seminarista passaria pela iniciação, correspondendo ao ginásio, pelo postulantado, noviciado e depois faria então Filosofia e Teologia e aí estava pronto o sacerdote.

Esse, o destino de Navarrinho.

Será?

A ver.

Ontem, pretensiosamente avancei sinal, pretendendo conhecer bem Mariazinha, a gente vai escrevendo, pensa tornar-se íntimo da personagem.

Ouvindo o filho, percebi erros.

E do jornalista, exige-se rigor.

Ainda mais se o protagonista foi chefe dele.

Há um fato: Navarrinho foi parar no seminário.

Mas voltemos um pouco e façamos as correções.

O primário, Navarrinho não terminou na Vila Paraguaçu.

De lá, lembra-se de Alzira: a primeira professora a gente jamais esquece.

Concluiu-o, no entanto, em 1954. em Pojuca - Mariá, o nome da professora.

A mãe, diferentemente do que arrisquei dizer ontem, não era tão entusiasta assim de ver o filho padre.

Até porque primogênito, arrimo da família, destino de primeiro filho, senti isso na pele.

Mas, as beatas da igreja, vendo Navarrinho tão dedicado ajudando missa, insistiam - por que não manda o menino pro seminário?

Mariazinha acabou convencida, e ele desembarcou no Convento dos Capuchinhos, na Piedade.

Era o ano de 1955, dezembro, chegou com enxoval e tudo.

Passou o ano de 1956 lá.

Mariazinha já se mudara para Alagoinhas.

Nas férias, final do ano, Navarrinho chega em casa numa palidez assustadora, e Mariazinha, mãe decidida, sentenciou: você não volta mais para aquele seminário, estão lhe matando.

Não voltou nem pra pegar o enxoval.

No ano de seminário, Navarrinho ia percebendo não ter vocação, aquilo era um arranjo pouco promissor.

Na volta para Alagoinhas, faz admissão, e passa a cursar o ginásio, 1957.

Cursar?

Cabulava todas as aulas, acabou perdendo o ano por falta, virado no capeta.

Outra vez: sacerdotes e seminaristas da igreja acabaram convencendo Mariazinha de mandarem o filho pro Seminário Central, secular, não mais vinculado a uma ordem monástica.

Muito mais pra encontrar uma trilha a levá-lo a ser um cidadão do que por qualquer pieguismo ou convicção religiosa.

Fim de 1957 quando chega com sua pequena mala no Seminário Central, na Federação...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------ 

Emiliano José

26 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho volta ao ensino católico, Seminário Central da Bahia, primeiro ano ginasial, excelente ensino, de Latim ao Francês, excelente aprendizado,

mas nem pense em bom aluno.

 

Mariazinha não era carola.

Mas sabia: seminário podia colocar Navarrinho nos eixos.

Era essa a intenção dela.

O menino passou o ano na rua em Alagoinhas, só queria saber de aprontação, de futebol, deu uma banana para os estudos.

Um ano perdido - nada de seguir adiante com o ginásio.

Seminário, tentou uma vez.

Não deu porque ela própria o retirou dos Capuchinhos.

Agora, pálido ou não, ficaria  por lá.

Aprender com a vida.

Sentir a disciplina da Igreja Católica, boa nisso.

Mãe, sempre tem esperança.

Navega no sonho.

Alimenta ilusões.

Chegado ao Seminário Central, na Federação, dá de cara com José Barreto de Jesus, mais tarde meu chefe na "Tribuna da Bahia", e depois repórter do próprio Navarrinho, no "Estadão", jornalista de mão cheia.

E com o irmão dele, Eloi Barreto de Jesus, atualmente professor de Filosofia na Universidade Estadual de Feira de Santana.

Os dois, seminaristas como ele, dando os primeiros passos.

Ali, Navarrinho passa dois anos: 1958 e 1959.

Não encarava o seminário como um lugar especial.

Via-o como uma escola qualquer.

Não o animava qualquer vocação sacerdotal.

Tá legal, ele ajudava missa, por influência de Mariazinha - não era carola, mas ia todo domingo à missa, levava os filhos, e isso o tornou um coroinha, mas nada de vocação.

Ele foi constatando a qualidade do ensino do Seminário Central, na real na real um dos centros mais avançados de Educação do Estado na época.

Nada das disciplinas anteriores fora aproveitada.

Era primeiro ano ginasial mesmo.

E já no primeiro semestre tome-lhe Latim, Francês, Grego, brinquedo não.

Variada, a formação:  Canto Orfeônico, História, Português, Geografia, Matemática.

Bom, bom demais - Navarrinho considera um privilégio ter aprendido Português estudando Latim: um luxo.

Pegou gosto por escrever dali.

Ali nascia o jornalista, o escritor.

Desconfiava, não, mas nascia.

Aprender, aprendia - professores bons, e rigorosos.

Mas, dizer bom aluno, peraí - a distância é grande.

Foi não...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: a melhor coisa do seminário pra gente, na época, era mesmo jogar bola. tinha o ping-pong, jogo de botão, mas o baba era renhido.

Graça Azevedo: Eu aprendi latim.    

----------------------------------------------- 

Emiliano José

27 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: mundo seu destino,

foi mandado embora, queria ficar mais,

o ensino era bom, não deixaram,

adolescente, descobre mulher não

ser o diabo, frutas verdes, as minas.

 

Navarrinho tocava a vida.

Tinha de ser, fosse.

Teria boa herança, isso teria.

Mas, sem grande dedicação.

Muito menos vocação.

A meta dele não era Deus.

O mundo, vasto mundo, seu destino.

Verdade, verdade, querem saber mesmo?

Navarrinho foi convidado a sair da instituição.

Não era boa ovelha.

Quem sabe, contaminasse o resto do rebanho.

Tem leitura sobre esse convite.

Chegava a adolescência, a descoberta da mulher, e mais: ela, a mulher, não era o diabo.

Ao contrario, era bonita de se ver, e de namorar, e de tudo mais.

Recorda: de batina, andando nas ruas, e as senhoras ou as meninas mexendo com ele e com seus colegas, e ouvindo mulher tem intimidade com o diabo, e ele não sabe a razão mas as loiras sobretudo eram as mais endiabradas, ao menos no olhar dos sacerdotes, tão austeros.

Adolescência, desejo cresce, quem tem vocação fica, quem não tem, vai embora.

Ele, nas cercanias dos 15 anos, fogo, fogo, se mandou, ou foi mandado embora.

Na verdade, se juntou fome com a vontade de comer.

Melhor assim: satisfeitos a instituição ao se livrar de um adolescente danado da breca e sem vocação e ele, Navarrinho, ao se desfazer daquela amarra, e assim cair no mundo.

Ele, no fundo, no fundo, interessado na qualidade do ensino, ficaria mais.

Mas, os sacerdotes não admitiram mais a estadia dele, o menino era o diabo em figura de gente.

Admite: a vida na instituição era boa.

Ficava no meio de uma quase floresta.

Frutas de montão.

Os seminaristas tiravam as frutas das arvores, verdes, verdes, e enterravam em buracos convenientemente cavados, elas logos amadureciam, e faziam a delicia deles. 

Chamavam aqueles buracos de minas.

Quando sentiam vontade, iam caladinhos em busca das minas, e se refastelavam.

Você quer vida melhor?

E a joia da coroa: o futebol...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Nunca imaginei Carlos Navarro de batina 🤪

Emiliano José: Joana D'arck pois já esteve: a marrom, dos Capuchinhos, e a preta, secular. E as minas gritavam à passagem dele..

Carlos Navarro: Não me complique companheiro.

Mônica Bichara: Verdade, Joana, essas memórias revelam é coisa

Emiliano José: Carlos Navarro vc não tinha culpa...

Emiliano José: A batina é que assanhava as minas..

Isabel Santos: Joana D'arck fiquei aqui imaginando que batina não seria mesmo a vibe de Navarrinho rssss. Serviu para alvoroçar corações, mas a trilha já estava traçada., para o bem do Jornalismo.  

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: minas e minas, frutos maduros, evitar confusões, a imensa floresta, verde que te quero verde, um velho calção de banho, um bonde pra passear

 

Ontem, falamos de minas.

Eram os esconderijos feitos na terra para amadurecer os frutos verdes tirados das árvores da imensa floresta a circundar o Seminário da Federação, onde Navarrinho estudava naquele final dos anos 1950.

Volta e meia, ele e os coleguinhas saíam alvoroçados atrás das minas para saciar o desejo incontido pelos frutos maduros.

Como palavra é bicho indomável, sujeita sempre a muitos sentidos, bom não deixar margem a dúvidas.

Não confundam com as minas alvoroçadas à passagem dos rapazes de batina pelas ruas de Salvador.

Nada disso.

Aí, nas ruas, eram as minas querendo colheita, dando asas à imaginação, que a batina aguça.

Navarrinho, no quesito, era sério.

Quisesse alguma coisa com as minas, melhor sair do seminário.

Tanto fez, e foi expulso.

Livre para as minas.

As outras minas, de frutas maduras, ficassem pros queridos colegas, José Barreto de Jesus entre eles - mais tarde, ele também vai sartar de banda, buscar outros ares e minas fora do seminário.

Retidas na memória todas aquelas lembranças.

Navarrinho ainda vê o imenso vale, a imensa floresta, verde que te quero verde verdes ventos verdes ramas García Lorca a animá-lo nas rememorações.

Lá embaixo, no fundo do vale, passava a linha do bonde - é tem tempo isso, havia bonde, é outro século.

Uma vez por mês, a moçada saía do Seminário da Federação e ia pra Ondina.

Ia para a Bacia das Moças.

Chamava-se assim o lugar onde ia tomar banho de mar.

Outra vez, as moças...

E eles, os seminaristas, todos de camiseta branca e calção azul.

As minas, estivessem observando, não viam muito - os calções largos iam até os joelhos.

Prudência dos sacerdotes.

Não, ele não lamenta a vida no Seminário.

Era boa.

Contudo e apesar de tudo, não havia tédio.

Havia coisas chatas - onde não há?

Mas, noves fora as rezas e outras obrigações, alegria, alegria.

Ele faz uma radiografia dos grupos do seminário...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------

Emiliano José

29 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: recordações do autor,

Navarrinho novatos maiores e curso final,

missa em latim, revolução de João XXIII mais tarde.

Seminários.

 

Andei muito por corredores e salas de um deles.

Camilianos, em São Paulo, Jaçanã.

No fundo, um ótimo campo de futebol.

Atrás do seminário, a Igreja de Santa Terezinha, frequentada assiduamente por mim.

Defronte à igreja, a fábrica Darling - as duas, igreja e fábrica, sobrevivem, estão lá para quem quiser ver.

Aquelas redondezas foram o palco de minha adolescência e chegada à idade adulta.

Era um leigo em busca de conhecimentos sobre o cristianismo.

Fiz amizades.

Até hoje, converso com Augusto Zago, padre então, vigoroso nos seus 83 anos.

Fui descobrir melhor a ordem agora, pesquisando, em busca de minha origem de militante de esquerda.

Em "O cão morde a noite" conto tudo isso e muito mais.

Aqui, o protagonista é Navarrinho, no Seminário Central da Federação.

Ele faz um diagnóstico dos grupos.

Havia a molecada, os chegados assim assustados, novatos.

Navarrinho nem chegou assim porque já havia passado pelos Capuchinhos.

Já era quase veterano de batina.

Chamados de menores - o pessoal do ginásio.

Depois, os maiores.

Iriam cursar o correspondente ao curso superior.

E então, passada essa fase, os estudantes do chamado Seminário Maior, curso de Teologia, caminho para o sacerdócio.

Faz conta: à época, pra tornar-se padre, o jovem havia de ralar por 13 anos.

Carga pesada.

Dava pra ele não.

E tem mais: latim corria solto - missas, orações, diabo a quatro, tudo em latim.

Eita: esse diabo a quatro escapou, os mais piedosos podem se persignar, e ganharão o reino dos céus.

Mais tarde, a Igreja vai perceber a necessidade de se aproximar dos mais pobres, dos excluídos, e orientar fossem os atos litúrgicos realizados nas línguas locais.

João XXIII foi o papa a modificar uma porrada de coisas na Igreja Católica, inclusive a missa em latim.

Mexeu com tudo.

Tentava situar a Igreja na contemporaneidade de modo a abrir-se para o mundo, para a sociedade, para a relação com outras crenças.

Defendeu a paz, os direitos humanos, distribuição de renda.

Uma revolução.

Tudo isso aconteceu entre 1962 e 1965, com o Concílio Vaticano II, convocado por João XXIII, e concluído por Paulo VI, sucessor dele.

No tempo de Navarrinho, tinha disso não.

Era o latim comendo no centro.

Tradição...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Mônica Bichara: O LIVRO NASCEU - Gente, hoje é um dia especial para essa série histórica de Emiliano José. Cumprimos a promessa feita ainda em 2019 e hoje nasceu o primeiro volume de #MemóriasJornalismoEmiliano, em e-book, já em pré-venda na Amazon. O lançamento será dia 11 de maio, com uma live comemorando os 2 anos da série, que continua ativa com crônicas diárias e dezenas de personagens. O 1º Vol. "Balança mas não cai" conta os primeiros passos de Emiliano no jornalismo, redações da Tribuna da Bahia, Jornal da Bahia e sucursal do Estadão. Mas ele vai mudando de protagonista e ainda nos deve a continuidade da sua trajetória. O livro reproduz o formato que editamos no blog Pilha Pura, criado por Joaninha Joana D'arck, agora também escritora, autora de "Entrelinhas e afetos". Inclui fotos (a da capa é de Agliberto Lima - brigadão, Bel) e comentários dos seguidores desta página do face. Estou muito feliz por fazer parte desse processo (o prefácio é meu, olha o tamanho da responsa)

Agliberto Lima: Viva! Parabéns Mônica.

Joana D'arck: uhuuu! Grande feito. parabéns Emiliano José e Mônica Bichara! Obrigada pela referência à minha pessoa, mas o mérito é seu!👏👏👏

Mônica Bichara: Ajudem divulgando, compartilhando, comprando e lendo "Balança mas não cai"

Vander Prata: Parabéns, pelo trabalho, Mônica Bichara!

Mônica Bichara: Obrigada Vander, mas só fiz organizar. O mérito é todo do nosso escritor

Vander Prata: Mônica Bichara nisso concordamos. Valeu você!

Lucia Correia Lima: Parabéns Parabéns Parabéns. EXCELENTE contribuição à História da Bahia

Artur Carmel: Joao XXIII "abriu" a igreja para o povo...

Isabel Santos: Maravilha 👏👏👏👏Parabéns de novo, queridos Emiliano José, fazendo essa linda história, e Mônica Bichara, a grande editora. Muitos vivas, miga/comadre. Beijos, beijos. 

----------------------------------------- 

Emiliano José

30 de abril de 2021

Carlos Navarro Filho: volta a Alagoinhas,

as minas deviam aguardar ansiosamente,

frustração, elas nem tchum...

 

Latim, tradição, tudo.

Navarrinho lembra de muita gente com quem conviveu no seminário.

Não cita nomes, por cuidado.

Vai lembrar de uns, esquecer doutros.

E aí ofende.

Vocações, mais tarde, vai constatar: eram escassas.

Vai deparar com juízes, desembargadores, gente egressa do seminário, lastreados no excelente ensino recebido ali.

Padres, poucos.

Relação a se manter, apenas José Barreto de Jesus, e pelo fato de terem se encontrado nas lides jornalísticas, chamado por ele para compor a equipe do "Estadão".

Navarrinho volta pra Alagoinhas.

Imaginou um retorno em grande estilo.

Agora, livre para as minas.

Sonhava em colher frutos maduros, à espera dele, não mais as mangas do seminário, mas as minas mesmo.

Afinal, era um ex-seminarista chegando à sua terra, com toda aquela aura.

Desembarcou com essa expectativa.

Quebrou a cara.

As minas, antes tão alvoroçadas atrás dele naquele conturbado ano de ginásio, nem aí.

Ele não entendeu: nem olhavam pra ele.

Nesses primeiros dias, ainda navegava em lembranças do seminário.

Lembrou de dois irmãos, amigos: moravam em frente.

Vizinhos do seminário.

Apareciam por lá.

Importante mesmo era a irmã deles.

O interesse dos embatinados era nela.

Bonita - pense numa mina bonita, de fechar quarteirão.

Pensou?

Era ela.

Navarrinho não dá os nomes deles, nem o dela.

Deles, abre os apelidos: Tagarela e Tagarelinha...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

1º de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Corações em fogo,

uma serenata no final da tarde para

a irmã de Tagarela e Tagarelinha,

aventuras de seminário,

o banho gelado às cinco da manhã

Navarrinho é cuidadoso.

 

Não vai abrir os nomes de Tagarela, irmão mais velho, e nem o de Tagarelinha, o mais novo.

Nem o da bela irmã.

A mina incendiava corações, atiçava a imaginação dos embatinados, testosterona em alta.

Raramente tinham mina nas proximidades.

Fosse pra olhar, já era consolo.

Como a família morava bem em frente ao seminário, puderam desfrutar da presença da  mina.

Ela, na dela.

Certamente, percebia o olhar daqueles seminaristas ávidos.

Sentia os olhos de fogo.

Poderosa.

Mas na dela.

Não ia se abrir.

Os irmãos, de olho.

E não ficava bem, complicação.

Os meninos não desistiam.

E cercavam-na em grupo.

Morena, bonita, exuberante na sua adolescência, motivava a meninada a românticas serenatas.

Encostavam no muro, a casa logo em frente, final da tarde, à capela, sem qualquer instrumento, cantavam as mais românticas músicas da época.

Conseguiam afinar as vozes, um modesto pero entusiasmado coral.

Ela, a irmã de Tagarela e Tagarelinha, ouvia enternecida, sem dar na vista, nem para os irmãos, nem para os pais.

Navarrinho e seus cúmplices cantavam nem tão alto que pudesse chamar a atenção dos padres nem tão baixo que ela não pudesse ouvir.

Não se tem notícia de qualquer namoro de algum seminarista com a mina - Navarrinho ficou na saudade, seus cúmplices, também.

Não podiam demorar muito na serenata, tinham de voltar para o jantar, depois para a banca, um rápido recreio, e então dormir.

Dia seguinte, cinco da manhã, despertar.

Banho.

Duro de suportar - frio.

É, no inverno, naquele tempo, fazia um frio danado.

E tome-lhe chuveiro gelado.

Ligeiro, ligeiro o banho, não havia quem não despertasse.

Para aplacar o frio, só pensando na mina em frente...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: lembro-me bem da belíssima irmã de Tagarela e Tagarelinha. objeto de desejos dos "padrecos".

Emiliano José: Você, também, hein Barretinho?...

Jose Jesus Barreto: ah, acontecia coisa do arco da velha no seminário. um dia eu conto, sem censuras. rsrs

Emiliano José: É, vc teve vida mais longa lá...

Carlos Navarro: Barretinho sempre foi um sujeito com tudo bonito (aliás na época todos éramos) e craque de futebol. Só a citada garota não deu pelota, pra ninguém. A mãe era severa, sem contar a confusão que seria com os irmãos, que ainda contavam com um primo alto e forte para ajudar.

Jose Jesus Barreto: eu dava meus pulinhos... rsrs   

---------------------------------------- 

Emiliano José

2 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: adeus Tagarela e

Tagarelinha, adeus linda morena,

volta pra Alagoinhas, meio de ano

e não podia voltar a estudar, paixão

pela sinuca nos imberbes 15 anos,

e passa a ter aulas proibidas - de sinuca.

 

Até no chuveiro frio, pensava na mina, linda morena.

Era bom não abusar no cerco.

Pai, mãe, Tagarela, Tagarelinha, e por cima um primo forte,  bíceps à mostra, cuidavam de evitar aproximações, ousadias.

Do primo, quem lembrou foi Barretinho.

Carecia cuidado, olhar só de longe.

E cantar, serenata não era ofensa, e era de bando.

Como foi expulso, Navarrinho volta pra Alagoinhas.

Era meio de ano.

Teve aquela decepção - esperando cair nos braços das minas, desejosas de suas carícias, e nada, elas nem aí pra ele.

E não podia voltar a estudar - ele até gostando, não nega.

Podia cair na buraqueira, desfrutar da rua, malandrear.

Quer coisa melhor?

Era junho de 1960.

Se olhasse a vida até ali, não podia se queixar.

Nunca deixou o tédio sequer se aproximar.

Vade retro.

Driblava-o bem.

Está certo: uma vida escolar cheia de altos e baixos.

Muito mais baixos.

Ainda vamos contar: para terminar o ginásio, quase uma década, brinquedo não.

Sabia, no entanto, desfrutar da vida - deixa a vida me levar.

Muitas emoções para aqueles 15 anos de existência.

Na esquina da rua onde morava, um salão de sinuca - o único de Alagoinhas.

Ah, pra que...

Não saía de lá.

Fortes emoções ao ver os craques do taco.

Era emocionante assisti-los encaçapando as bolinhas em jogadas impossíveis, mirabolantes.

Sonhava, Navarrinho sonhava um dia pegar do taco e derrotar todos os grandões de Alagoinhas.

A cada jogada de um deles, os olhos brilhavam.

Via-os, atentos, agachando-se, mirando, e encaçapando, enquanto o outro passava o giz no taco ou tomava mais um gole de cerveja.

Tal o brilho nos olhos diante do pano verde e suas bolas, tal, tal, a ponto de enternecer seu João, o gerente.

Nos momentos de deserto, casa vazia, João tomava do taco, dava outro pra Navarrinho, e lhe ensinava o caminho das pedras - das bolinhas e seus misteriosos segredos e percursos até encontrar aqueles minúsculos buracos. 

João fazia aquilo na surdina.

Menor de idade não podia jogar sinuca...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Élio Almeida Carvalho: Navarrinho foi meu vizinho em Alagoinhas (Rua 24 de Maio) e estudamos juntos na CNEG. Tenho foto dele com um grupo de estudantes e professoras.

Emiliano José: Élio Almeida Carvalho que maravilha. Esta foto, poderia tê-la? Isso será livro. Seria importante.

Emiliano José: Estou aqui pensando: é uma já postada por você? Mandei agora pra ele.

Carlos Navarro: Élio que bom revê-lo mesmo por foto. A quanto tempo. Fomos vizinhos sim, e vizinhos da professora Aurora. Você era figura mais brincalhona e gozadora da rua, tirava sarro da cara de todo mundo. Uma tirada sua que nunca mais esqueci é a "cara de paralelepípedo", para se referir a alguém muito cara de pau. Abração, onde você anda?

Élio Almeida Carvalho: Emiliano José Tenho sim.

Élio Almeida Carvalho: Carlos Navarro - Moro entre Feira/Salvador. Eliúde minha mulher (não sei se você lembra dela), faleceu de covid em Março deste ano. Então estou mais presente aqui em Salvador do que em Feira.

Carlos Navarro: Força aí, esse vírus é infernal levou alguns queridos amigos. Meu abraço solidário. O jeito é a gente esperar passar essa pandemia e marcar um papo. No inbox mande-me seu telefone, mandarei o meu. abração. 

-------------------------------------------------    

Emiliano José

3 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: grande mestre

João, sinuca, Navarrinho sendo

iniciado ao lado de Nuca, Carne Frita

e seus feitos, de Propriá para o

mundo, malandro é malandro, mané

é mané, e um acidente acaba com a farra.

 

Não, podia não.

Menino, menor de idade, assim se dizia naquele tempo, não podia jogar sinuca.

Arriscava viciar.

Não era bom caminho.

Lei prescrevia.

E era da palavra dos mais velhos.

Navarrinho nem queria saber.

Danou-se a aprender com o gerente João, professor paciente, e dos bons.

Ele e Nuca, irmão de Lió dos Dedos Torados - perdeu os dedos com bombas de São João.

Nuca, também vizinho da sinuca, gostou de ser da turma de alunos de João - pequena turma, dois aprendizes, disciplinados.

Em pouco tempo, craques.

Nuca mais tarde toma juízo, vai pra PM, hoje coronel reformado.

Nisso, de aprender artes da malandragem, Navarrinho era dos bons.

Diziam, falavam: sinuca é coisa de malandro.

Fosse, com ele mesmo.

Não sei, Navarrinho não me contou, nem vou perguntar, se ele conhecia, de ouvir falar fosse, um sujeito de nome Walfrido Rodrigues dos Santos.

Assim falado, conhecesse, não ia lembrar.

Disser Carne Frita, aí, provável, a memória desperte.

Foi o Pelé da sinuca - do snooker, se dizia, pomposamente.

Entre 1951 e 1974, invicto nos gramados das mesas de sinuca.

Correu mundo, a fama de Carne Frita.

Tivesse conhecido a história dele, e Navarrinho quem sabe perseguisse aquele destino: sergipano nascido em Propriá, desceu pro eixo Rio-São Paulo, corria de mesa em mesa, para os desconhecidos fingia-se de novato, e tome-lhe apostas milionárias, e dinheiro no bolso, e não foi pouco, era muito pato à disposição.

Malandro naquele tempo se fazia em cima dos otários.

Dito famoso: malandro é malandro, mané é mané.

Havia muito mané, e em cima deles, Carne Frita se fez.

E depois da fama, nem precisou mais.

Era só correr pro abraço.

Navarrinho, no entanto, teve a carreira brilhante interrompida por um acidente capaz de acabar com a farra...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joana D'arck: Vixe! Que houve com Navarrinho, gente! Tava indo tão bem na sinuca... isso me lembrou minha adolescência. Já morava aqui em Salvador, mas minha mãe gostava da jogatina dentro de casa. Preferia a ver os filhos na rua. A gente tinha 2 mesas de sinuca. Aprendi um pouco. Gosto mais do que sei😂

Devanier Lopes: Nome do NUCA?

Emiliano José: Só com Navarrinho... Quis abrir não...

Sérgio Buarque de Gusmão: É, mas eu ganhei dele num jogo em Santo Amaro...

Emiliano José: Vc era um Carne Frita, então...

Jose Jesus Barreto: O maior jogador de sinuca que vi foi padre Sadoc, negão de Santo Amaro. era tb um ótimo zagueiro, clássico. sabiam? ele mesmo, o monsenhor, pároco de São Judas Tadeu e depois da Vitória.

Emiliano José: taí, sabia não.. tinha dele outras notícias, talvez exageradas...

Jose Jesus Barreto: o conheci mais de perto, talvez.

Emiliano José: muito mais.

Carlos Navarro: Grande Sergião mas você sempre foi craque, eu era aprendiz. 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

4 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: aluno aplicado

na sinuca, não perdia uma aula,

pronto, foi pro embate, passa a

enfrentar os adultos e a ganhar

algum dinheiro, o mundo se abria,

iluminado pela mesa verde.

 

Navarrinho estava feliz.

Levantava cedo já na tenção das aulas, quando todo mundo ia se embora e só ficavam ele e seu João: eram as melhores horas.

Por-se de atenção inteira, não deixar escapar nenhum movimento do mestre.

Nuca, sempre ali, rente, junto, o irmão de Lió dos Dedos Torados.

Aprendeu rápido.

Nunca se viu aluno tão aplicado.

Fosse assim no trato diário da escola, tivesse tal procedimento no curricular de obrigação, e estaria bem mais adiantado.

Mas ele, deixa a vida me levar.

Na sinuca, ligeiro ligeirinho aprendeu.

Os mais velhos gostaram do menino.

Apadrinharam.

Abuso pequeno, polícia descobrisse, e uma cervejinha resolveria tudo, fosse transgressão de monta, vá lá, mas essa...

Zombaram da ousadia quando ele quis jogar a vera:

- Olhem o moleque, pensa que já pode enfrentar craque.

Podia.

Levava jeito.

De repente, ousado, quis jogar apostando.

- Qué isso menino? É cedo.

Navarrinho insistiu.

João, o mestre e gerente, abriu exceção.

Tinha uns trocados no bolso, podia arriscar.

Jogo é o diabo, e quando a dinheiro então, tentação é grande.

Diabo cochichou no ouvido de Navarrinho, e ele gostou: vou nessa.

Tentação pequena, pecado venial.

Encaçapava dali, daqui, parecia mágico aquele taco.

Gozado, não sabia, mas o salão era cheio de patos.

Chamava assim os coitados, derrotados por ele.

Ia se divertindo e ganhando uns caraminguás, que a mãe não soubesse.

E o melhor: era feliz.

Aquele taco iluminava o mundo.

Sentia-se um Carne Frita quando dava voltas em torno da mesa olhando a posição da bolas enquanto passava o giz na ponta do taco, e observava o pato, ansioso, pronto pro matadouro às vezes sem saber, crente em vitória, sabe nada, inocente.

Sentia-se rei - o rei do taco.

Um dia, fora de Alagoinhas, o mundo o reconheceria.

- Me aguardem - murmurava. 

Até que um dia, o acidente...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------- 

(Em outubro 1948, Navarrinho à frente de gravata, as irmãs Dalva e Marina no colo do pai e Gilson no colo da mãe)

Emiliano José

5 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha

e vida errante criando sete filhos,

Pojuca, Alagoinhas, Salvador,

Navarrinho se dando de boa,

ganhando o dinheiro de um pato...

 

Mariazinha andava meio esquecida.

Navarrinho nasceu, chegou chegando, todo faceiro, aprontador, e a gente deixou de falar dela.

Hora dela voltar.

As leitoras, os leitores vão entender da razão.

Carece alguma paciência.

Já falamos, não custa insistir: depois da morte do marido, início dos anos 1950, desvencilhou-se inteiramente das famílias Navarro e Gil-Braz e foi cuidar da vida, sete filhos na cacunda.

Melhor só que mal acompanhada.

Parente, às vezes ajuda.

Noutras, mais atrapalha do que auxilia.

Ganhou mundo. 

Primeiro Pojuca, onde havia um amigo, Raimundo Santana, a orientá-la nos primeiros passos.

Ali comprou casa, passou um tempo.

Pensando em ginásio para as crianças, muda-se para Alagoinhas, cidade maior, com mais recursos.

Só mais tarde, Salvador.

Naquele ano de 1960, se virava nos trinta para criar os sete, mas tinha preocupação especial com o primogênito.

Navarrinho, ela assuntando, muito inteligente, esperto pra danar, demais até, mas estudo que é bom, rateava.

Já havia tentado de tudo: ginásio no seminário dos Capuchinhos, ginásio em Alagoinhas, ginásio no seminário da Federação, e ele empacado, andava aos tropeços, e acabara expulso.

Veio no meio do ano pra Alagoinhas, e o semestre, perdido.

Preocupava-se com ele solto pelas ruas.

Não ia dar boa coisa.

Tardes, início de noites, ele desaparecia.

Numa tarde, Navarrinho ia se dando de boa.

Encarava um pobre ferroviário.

O trabalhador olhou pro menino, topou jogar a dinheiro, pensou: está no papo.

E Navarrinho só encaçapando, pronto pra ganhar já quase a metade do salário do rapaz.

Mais uma, mais uma, mais uma - o ferroviário não se conformava em perder pro moleque, e ia esvaziando o bolso, perdendo todas.

Naquela tarde, quase início de noite, Mariazinha teve uma espécie de premonição, mãe tem dessas coisas, e invariavelmente acerta:

- Vou girar por aí, esse moleque está aprontando alguma coisa, vou descobrir.

E saiu, olhos de lince, a procurar, saber do destino dele...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

6 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Mariazinha virada

na porra atrás do filho, consegue saber,

chega na sinuca, manda  Navarrinho

devolver o dinheiro ao ferroviário,

e o leva pela orelha até em casa.

 

Mariazinha danou-se a andar por Alagoinhas.

Sei, sei, murmurava, esse menino está aprontando alguma.

Não sabia direito onde Navarrinho podia estar.

Jeito era bater perna, olhar aqui, acolá.

Andar.

Estava virada num mói de coentro.

Encontrou um amigo da família, perguntou.

Sujeito abriu: está na sinuca.

Ah, pra quê.

Mariazinha apertou o passo.

Queria ter à mão um relho de couro cru bem fino.

Quando entrou na sinuca, foi aquele alvoroço silencioso.

O bom mestre João ainda quis conversar, mas ela, nada.

Navarrinho largou o taco, empalideceu, coragem foi embora, e o ferroviário, quase sem as calças, metade do salário já indo embora, respirou aliviado.

Navarrinho, naqueles segundos, pensou, lembrou: as calamidades são de duas espécies: a desgraça que nos acontece e a sorte que acontece aos outros.

Ferroviário, feliz - abençoada mãe, aquela.

Fossem todas as mães assim, e o mundo seria melhor.

Chegasse em casa sem dinheiro nenhum, e possa ser levasse um esbrega da mulher, se não apanhasse mesmo, ela não era brinquedo não, salvo pelo gongo.

Ele, Navarrinho, beco sem saída, até pensou, quase sorriu: sinuca de bico.

Não havia o que fazer.

Correr de mãe, nem pensar.

Ela parecia um gigante à porta.

Sem saída.

Mariazinha nem olhou pros lados.

Só tinha olhos, e de fogo, para o filho malandro.

- Onde já se viu? Um moleque desses jogando sinuca?

Deu ordem ao filho:

- Devolva todo o dinheiro ao rapaz.

Navarrinho meteu a mão nos bolsos, retirou tudo o que tinha, nem separou o que era dele, e entregou ao feliz ferroviário, um sortudo no final das contas.

Mariazinha o pegou pela orelha e assim o levou até em casa, humilhação em público: pra aprender, repetia.

Terminava ali a carreira de um novo Carne Frita.

De modo assim pouco glorioso.

Foi entrar novamente numa casa de sinuca uns 30 anos depois.

E nunca mais quis apostar.

Mãe é mãe...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: mãe de certezas,

nenhuma dúvida, fim de carreira

Carne Frita, fim dos caraminguás

ganhados dos patos, e a volta

em 1961 ao ginásio na Campanha

Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG).

 

Mãe é assim: falou, tá falado.

Não havia nada a discutir depois da palavra dela.

Mariazinha, mesmo antes de Gil-Braz morrer, era o homem da casa.

Sei, homem da casa, carrega um sentido machista.

Mas era assim o dito da época, e é essa a caracterização de Navarrinho sobre Mariazinha.

Ué, mulher capaz de sustentar tiroteio com pistoleiros para defender o pai é brincadeira?

Mulher assim é pra ser contrariada?

Vai permitir filho discutindo ordens dela?

Coisa nenhuma.

Navarrinho desenvolve comparações com os dias atuais.

Os pais hoje, quem sabe corretamente, têm muitas dúvidas quanto à educação dos filhos, dialogam mais, recorrem a ajudas externas, como psicólogos ou psicanalistas, e nem sempre dão ordens peremptórias, daquelas de nunca voltar atrás, falou tá falado.

Com Mariazinha tinha dessas pedagogias não.

A pedagogia dela era de outra matriz, a da sagrada palavra dos pais, como se a fala dela fosse parte das sagradas escrituras.

Ela tinha a sua própria tábua de leis, os seus Dez Mandamentos, e ai de quem ousasse contrariá-la.

Esse espírito determinou o fim da gloriosa carreira de Navarrinho na sinuca. 

Não teve nhenhenhem, não teve mimimi.

Duro, porém verdadeiro: ela só tinha certezas.

Filhos, tratassem de obedecer.

Navarrinho, entristecido, deixou de lado o sonho de ser um Carne Frita, o grande sonho, e também o sonho menor, o de tirar alguns trocados dos patos à disposição.

Em 1961, voltaria a estudar.

E o duro é que teria de começar do zero.

Cursar o ginásio a partir do primeiro ano, já com 16 anos.

Os anos cursados anteriormente de nada valeram na Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG), ginásio novo em Alagoinhas, onde se matriculou.

Era instituição de longa tradição.

Remontava a 1943...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

8 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Campanha do

Ginasiano Pobre no Recife em 1943,

Felipe Tiago Gomes protagonista,

expansão para todo o Brasil, CNEC

e discurso assentado numa via entre

o público e o privado, é ali o ingresso

de Navarrinho no ginásio, em 1961.

 

A Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG) teve início no Recife, em 1943.

Nesse primeiro passo, levava o nome de Campanha do Ginasiano Pobre.

Um paraibano, filho de família pobre, nascido em Picuí em 1921, foi o grande inspirador.

Felipe Tiago Gomes, o principal protagonista, foi aos tropeços estudando, e chegou à Universidade.

Teve acesso ao livro de John Gunther, "O drama da América Latina".

Na leitura, toma conhecimento da experiência de Haya de La Torre, fundador da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), destacado político e teórico, empenhado em alfabetizar indígenas.

O livro provoca um estalo: por que não pensar alguma coisa para ajudar os jovens pobres do Brasil?

Começou pelo Recife.

Lado a lado com colegas universitários, danou-se a preparar alunos carentes de recursos para dar continuidade aos estudos pós-primário.

Fundado o primeiro ginásio no Recife, resolve levar a ideia para todo o Brasil, começando a expansão pelo Rio Grande do Norte, em 1948.

E chega um dia a Alagoinhas, como vimos, onde Navarrinho ingressa.

A CNEC assumiu o discurso de uma via entre o público e o privado, entre o Estado e o Mercado, num período em que ainda estávamos longe da universalização do ensino público.

Fundava-se no tema comunidade - modelo onde as próprias pessoas beneficiadas se encarregavam de administrar a educação.

Queiram mais conhecimento sobre a instituição, podem ir atrás do estudo "A criação das Escolas Cenecistas no Brasil: uma abordagem histórica", de várias autoras.

Navarrinho chega na instituição em 1961, dessa vez disposto a seguir em frente.

Não estivesse tão disposto, tinha a mãe nos calcanhares.

Mariazinha preocupada: não era possível um rapaz de 16 anos continuar a adiar os estudos, viver na malandragem, na sinuca e no futebol...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: professores de

cidadania na CNEG, os ginásios da

cidade, Navarrinho chegou chegando,

logo abduzido pelo grêmio, seu

rito de iniciação na militância política.

 

Navarrinho não se recorda de nomes de professores, professoras da CNEG.

O peso dos mais de 60 anos passados embaça a memória.

Uma lembrança restou forte: o fato de que os mestres incentivavam a existência do grêmio.

Segundo ano da existência da CNEG em Alagoinhas, e professores davam corda à entidade estudantil, já atuante.

Estimulavam a organização dos estudantes, realização de festas, a convivência fraterna entre eles.

Impulsionavam a formação cidadã.

Isso certamente era motivado pelas características da cidade, animada por uma ativa militância comunista, e disso falaremos um pouco adiante, tenham paciência, vou devagar porque já tive pressa.

Estávamos distantes da universalização do ensino, ao menos ginasial - e as séries do ensino eram distintas das de hoje: havia o primário, o ginásio, o curso científico ou clássico, e a Universidade.

Em 1961, havia no município o  chamado Ginásio de Alagoinhas, para Navarrinho provavelmente de responsabilidade do Estado, naturalmente gratuito.

Havia, ainda, o Ginásio Senhora Santana, da professora Dagmar Portela, particular, pago.

E a CNEG.

Novidade, e boa, para o município.

Navarrinho chegou chegando todo comunicativo, todo liderança desde logo.

Ele e os irmãos são assim: dados, conforme se diz por aí.

De fazer amizades com facilidade.

Navarrinho vinha de uma rica experiência de vida.

Passagens por bancos escolares variados, os dois seminários principalmente.

E muita estrepolia.

Os dirigentes do grêmio estudantil rapidamente botaram os olhos nele, e o abduziram, como ele próprio afirma.

Perceberam o colega bem falante, comunicativo, alegre, com boa formação, e progressista.

Então, se achegue, é  bem-vindo, a casa é sua.

E ele de pronto se achegou.

Sem nenhuma timidez.

Nem licença precisava.

Tendo, melhor ainda.

De alguma forma, foi seu rito de iniciação na militância política.

Tenham calma: chegaremos lá, esse rapaz tem é história pra contar...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

10 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: futebol como

porta de entrada, jogador habilidoso,

catimbeiro, bom trato de bola, goleador,

não gostava de perder, Brasil perdeu um

craque, ganhou um grande jornalista.

 

Outro aspecto a facilitar a vida de Navarrinho na CNEG: futebol.

Bom no trato com a redonda.

Desde muito menino caiu em campo, e cedo cedo demonstrou habilidade.

Centroavante, era abusado.

Na caracterização do futebol dele, valho-me de um dos melhores conhecedores do assunto, também jogador habilidoso em tempos passados, José Barreto de Jesus - os dois jogaram juntos no Seminário Central da Federação.

Abusado.

Daqueles capazes de afrontar cara feia, de ir pra cima, medo nenhum de zagueiro, importava pouco fosse grande e violento.

E não era apenas um centroavante trombador.

Não.

Esbanjava técnica, domínio da bola.

Era de se movimentar, e perigoso.

Na área, então, mortífero.

Compará-lo com quem à época?

Um Vavá? Um Coutinho?

Sei não.

Catimba, com ele mesmo - atacante bom sempre é cangancheiro, salvo as honrosas exceções.

Lembro de Barretinho, nos babas da Boca do Rio, catimbeiro que só a porra, e bom de bola também.

A bola com Navarrinho rolava, sempre bem tratada.

Rápido, objetivo, inimigo da firula, o drible sempre curto.

O gol, seu objetivo, sempre - era um goleador.

Sabia proteger a menina.

Aguentava os trancos, apesar da pouca altura.

Não gostava de perder - isso não gostava.

Entrou no time do ginásio com pompa e circunstância

Talvez, quem há de saber?, sonhasse com esse futebol ganhar o estrelato, jogar num Bahia, num Vitória, ir para o Sul Maravilha.

Deu não.

Brasil perdeu um craque.

Ganhou um grande jornalista.

O prédio da CNEG era antigo, e ficava ao lado da Oficina da Leste Brasileiro, onde as máquinas, os vagões, tinham manutenção assegurada.

E atrás do ginásio, havia um campo de futebol, dos ferroviários.

Tornou-se o campo também da CNEG, onde o futebol de Navarrinho pôde brilhar...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: a bola é encantamento

Artur Carmel: Navarrinho, eu não vi jogar, mas um craque a gente conhece pelo arriar das malas. Agora, Barretinho ainda vi batendo uns babas "de fim de carreira", mas que davam pra ver o estilo do cara. Deviam fazer uma boa dupla !

Carlos Navarro: Artur Carmel haha Sotero Monteiro.

Edson Barbosa Da Silva Filho: Babas inesquecíveis nas madrugadas dos campos recém inaugurados com iluminação na Boca do Rio, quem viu, viu, quem jogou não esquecerá, jamais.

Jose Jesus Barreto: bons babas

Manoel Barretto: Fui colega de Navarrinho na CNEG e joguei muito baba com ele. Este campinho perto do colégio, era onde a nossa seleção do colégio treinava

Carlos Navarro: Grande Netinho, jogamos sim. Você talvez não lembre quem jogava também, era reserva do time principal, era um garoto franzino chamado Zé Eduardo, que depois foi jogador do Bahia. Era mais novo que a gente, acho que tinha chegado de Cipó, ou daquela região ali.

Jose Jesus Barreto: Ze Eduardo depois estudou no Salesiano e foi pro Bahia por volta de 68. Craque!

Edson Barbosa Da Silva Filho: Barretto grande amigo, quanta saudade de você, ainda tive o privilégio de vê-lo brilhar nos babas da aldeia jaguaribe

Manoel Barretto: Claro que lembro, tinha também Vandinho, que também jogou no Bahia, por pouco tempo pois estudava economia. Grandes babas.

Manoel Barretto: Grande abraço, Edinho. Estes também foram grandes e disputadíssimos babas. Saudades

Carlos Navarro: Minha memória anda fraca, não lembro de Vandinho, embora soe familiar. 

----------------------------------------- 

Emiliano José

11 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: bola é encantamento,

a sedução da bola verde, ferroviários

compartilham o campo com a CNEG,

Navarrinho na seleção, campeonato interno

e jogos intercolegiais, jogos narrados

pelo alto-falante da cidade, emoção.

 

Barretinho ontem, num comentário aqui: a bola é encantamento.

E não é?

Nunca tive os talentos dele ou de um Navarrinho no trato com a bola.

Mas fui envolvido por esse encanto.

Era jogador esforçado.

Tão a ponto de ser capitão do grande time de futebol de salão do Colégio Estadual Professor Eurico Figueiredo, onde fiz o ginásio, no Jaçanã, em São Paulo - meus companheiros eram excelentes jogadores.

Minha melhor fase, preso - na Penitenciária Lemos Brito, onde cumpri pena, condenado pela ditadura.

Ali me soltei mais, nunca nem perto dos talentos de um Renato Afonso, Renato da Silveira, Itajacy, Milton Mendes Filho, Ricardo - é, na cadeia tivemos um belo time, o Colorado.

Do Jaçanã, adolescente, ainda capturo na memória uma bola verde, inseparável companheira.

De borracha, ela fazia minha alegria nas tardes de sábado, alegria solitária, à falta de um time então: saltava a janela de meu quarto, caía num quintal vizinho, e imaginava estádios cheios e eu no gramado, ovacionado, jogadas eletrizantes, gols memoráveis, e a parede era meu parceiro, com quem brincava, fazia tabelinhas magistrais.

Bola é encantamento - ZédeJesus Barreto tem razão.

Navarrinho sentia isso o tempo inteiro.

Mais, muito mais quando o jogo era transmitido.

Os ferroviários, bastante politizados, sob influência de militantes do PCB, haviam decidido compartilhar o campo com a meninada da CNEG.

Acertou-se: nas horas vagas, quando eles não estivessem usando o campo, os estudantes da CNEG o ocupariam.

Era um bom campo, gramado.

Nada de arquibancada.

Como qualquer campo de várzea.

A cada jogo a moçada se acotovelava em torno, muita gente, torcida, gritos, aplausos e vaias.

Navarrinho participava do campeonato interno do colégio, e também de jogos contra o Ginásio de Alagoinhas,  aí já na seleção, o grande adversário do time da CNEG.

A seleção saía também para jogar em Catu, Pojuca, Mata de São João e recebia os times vizinhos em Alagoinhas - sempre jogos intercolegiais, não oficiais.

Havia dito: alegria mesmo, de arrebentar corações, era quando o jogo era transmitido.

Senão todas, algumas partidas eram transmitidas pelo alto-falante da cidade.

Ao vivo, narradores entusiasmados.

Os meninos, a cada jogada, pareciam ouvir Oduvaldo Cozzi, Waldir Amaral, Fiori Gigliotti, Pedro Luiz, os maiores narradores do Brasil de então.

Era emocionante.

Alguns, tentados até a parar jogada quando o locutor,  voz empostada, dizia lá vai fulano, dá um drible seco, prepara o lançamento...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Devanier Lopes: Também os narradores Cléo Meireles e Nilton Nogueira, até França Teixeira ..

Emiliano José: Boas lembranças

Jose Jesus Barreto: a bola emociona. Massa !

Mônica Bichara: Todo mundo aí se preparando para às 20h comemorar os 2 anos dessa série #MemóriasJornalismoEmiliano com a live das lives de lançamento do e-book "Balança mas não cai", na página de Franciel no Youtube, com a participação de vários jornalistas e amigos.  

------------------------------------------ 

Emiliano José

12 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: o passado na memória,

a velocidade das mudanças, necessidade

de acariciar a era do rádio, a emoção de

uma partida transmitida por locutores,

a imaginação a solta, tempos inesquecíveis.

 

Olhar o passado é sempre intrigante.

É provável algum desdém ao lembrarmos a emoção daqueles meninos quando suas jogadas eram narradas pelo radialista do alto-falante - deixa a gente chamá-lo radialista.

Os tempos são outros, o tempo não para, o mundo gira, nada será como antes.

Não neguemos isso, nem adianta.

Mas...

Eu, Navarrinho, Barretinho temos o privilégio de termos vivido a era do rádio e sua relação com o futebol.

Naquele final dos anos 1950, início dos anos 1960, o rádio ocupava papel central.

Para o futebol, então, nem se fale.

Era o rei do pedaço.

Não é possível revelar todo o impacto a quem não teve a chance de viver a emoção de ouvir uma partida de futebol pelas emissoras de rádio.

É possível um outro esgar de desdém se dissermos, e digo: as emoções suplantavam em muito o suscitado por partidas transmitidas pela televisão.

O locutor nos fazia viajar: uma jogada simples transformava-se num drible sensacional, um cruzamento quase-gol era uma sensação fenomenal, a narração do gol se espraiava por minutos em nossa mente, um sonho a partida de futebol.

Sei, podem dizer, e eu posso aceitar: é coisa dos mais velhos.

Talvez seja.

Pero, eu compreendo perfeitamente a emoção da meninada da CNEG quando o locutor do alto-falante narrava as partidas.

Quando um deles quase parava a jogada SENSACIONAL ouvida na emissora de rádio - quase uma emissora, substituta dela.

E a indescritível sensação quando da narração de um GOOOOOOOOOL!, todos correndo atrás de Navarrinho, emérito goleador, artilheiro do time, querendo abraçá-lo, e ouvindo o narrador, estendendo o grito de gol - era tudo verdade, eles estavam vivendo tudo aquilo, e depois puderam contar a seus filhos e netos.

Muitos guardam isso para toda a vida.

Manoel Barreto, querido companheiro, lembrou esses dias, eu não sabia, ter sido companheiro de Navarrinho na CNEG, e adentrado o gramado do campo dos ferroviários ao lado dele.

Revelou isso num comentário, dois dias atrás, aqui nessa série.

Ainda bem: tempos inesquecíveis.

O humano tem o privilégio da memória e do sonho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: o radio nos instigava a imaginação

Emiliano José: Barretinho não me deixa mentir...

Isabel Santos: Cresci vendo as pessoas (praticamente os homens) com rádios de todos os tamanhos colados a uma das orelhas para ouvir futebol, nas tardes de domingo. Era esse um dos principais momentos de lazer na minha terra natal, Itabuna (creio que em outras cidades do interior), além dos babas nos campos improvisados de chão batido. Próximo à minha rua, havia um denominado Barro Vermelho. Todos os caminhos levavam os amigos e familiares amantes das peladas a ele. Boas lembranças.

Alyne Costa: Quando eu era criança via meu tio dormir ao som da Rádio Globo... Tinha pesadelos horríveis RS. Mas se desligasse o rádio não dormia.

Joaquim Lisboa Neto: Além do futebol, Jerônimo o herói do sertão

Mônica Bichara: Navarrinho participando da live de lançamento do primeiro volume desta série #MemóriasJornalismoEmiliano,, o e-book "Balança mas não cai".

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

13 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: descoberta

da militância, presidente do grêmio,

envolvido nas lutas do período,

necessidade de trabalhar, possibilidade

de emprego num curtume em Salvador, larga

tudo e segue para a capital, terceiro ginasial

no Instituto Normal, mora numa pensão.

 

Não, a vida não era só futebol.

Na CNEG, Navarrinho descobre-se militante.

Faz-se militante.

No primeiro ano já participa do grêmio.

No segundo, presidente.

Corria o ano de 1962.

Era um ano turbulento.

Goulart assumira em meio a uma tempestade no ano anterior, e só assumira pela mobilização desenvolvida por Brizola no Sul e, também, porque soube negociar, aceitando o parlamentarismo, com Tancredo Neves primeiro-ministro na fase inicial.

Cresciam as mobilizações populares, a classe operária fervia, os camponeses e trabalhadores do campo se movimentavam, a classe média progressista também.

É claro: os ferroviários não ficavam atrás.

Em Alagoinhas, tinham papel essencial, especialmente pela presença dos comunistas entre eles.

Os estudantes, em todo o País, eram parte da grande luta pela democracia, pela distribuição de renda, pelos direitos do povo, pela soberania nacional.

Universitários e secundaristas.

Era muito forte a luta antiimperialista, os EUA como alvo central.

Agora, estudante de família pobre, militante seja, deve combinar a atividade política com o trabalho.

Só os mais afortunados podiam se dar ao luxo de desenvolver a militância sem ter qualquer emprego, sem ter alguma renda.

Mariazinha se virava nos trinta, mas o dinheiro era curto.

Navarrinho, à frente do grêmio, vivia conversando com os políticos progressistas da cidade, abrigados no PSD e no PTB.

Conversar sobre as reivindicações estudantis, pedir ajuda para excursões, para levar o time de futebol pra lá e pra cá, festas.

Ele nem sabe como, talvez tenha sido decorrente de tais contatos, viu-se diante da possibilidade de trabalhar no Curtume Coelho Robato.

Com um problema: a vaga era em Salvador.

Navarrinho resolve aceitar.

Calça de veludo ou bunda de fora.

Ganharia o chamado salário mínimo de menor.

Adeus grêmio, adeus futebol.

Transferiu-se então para o Instituto Normal, na capital.

Trabalho durante o dia, estudo à noite - assim fez o terceiro ano ginasial em 1963.

Começou morando numa pensão na rua Direita de Santo Antônio...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

14 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: estudando no Iceia,

saindo da pensão do Santo Antônio, indo

para a Calçada, no final do mês não tinha

mais dinheiro, aparece anjo bom, um

pastel e um refresco como almoço, e 1964

tem de voltar para Alagoinhas, aos 18 anos.

 

O Instituto Normal, como o chama Navarrinho, é o famoso Instituto Central de Educação Isaías Alves (Iceia), onde ele concluiu o ginasial.

O Iceia é antigo.

Nasce em 1836 como Escola Normal da Bahia, mas só passa a funcionar em 1842.

Daí em diante, evoluiu, acompanhou as mudanças políticas e culturais, seguindo sempre como uma instituição essencial da Educação no Estado, funcionando há muito tempo no bairro do Barbalho.

Navarrinho, chegado a Salvador, depois da pensão do Santo Antônio, situada nas proximidades da Igreja do Boqueirão, foi para outra pensão, no bairro da Calçada, na Cidade Baixa, indicada por um colega do Instituto Normal, vindo também de Alagoinhas.

O colega morava na hospedaria da Calçada, viu Navarrinho em dificuldades pela morte da dona da pensão do Santo Antônio, e chamou-o pra lá.

A vida corria de quarto em quarto, nada fácil.

Quem tenha vivido em pensão, sabe.

Na Calçada, não havia refeição.

Era a seco: só dormida.

Navarrinho, logo pela manhã, tinha de fazer a dura opção: desembolsar um trocado para o café ou para pegar o ônibus a levá-lo ao trabalho.

Ficava sem o café.

Dinheiro contado, muitas vezes só para chegar ao trabalho.

Dura, a vida do estudante e trabalhador pobre.

Sorte: sempre surge um anjo bom.

No caso de Navarrinho, seu Lourenço, espécie de faz-tudo no Curtume, mais que um office boy.

Sempre lhe emprestava uns tostões pra descer e fazer um lanche, mitigar a fome em lanchonetes de espanhóis, ao lado da Associação Comercial na Cidade Baixa - normalmente, uma banana real e um refresco de cajá.

Tomava o cuidado de reservar um dinheirinho para chegar à noite ao Instituto Normal.

Depois das aulas, descia a Ladeira da Água Brusca, e tomava o ônibus para chegar à Calçada.

Isso ocorria na reta final do mês, salário consumido, tudo escasseava, e ele era obrigado a garantir-se com os empréstimos de Lourenço para assegurar aquele lanche da manhã e um almoço, pretensão chamá-lo assim: um pastel grande e o costumeiro refresco de cajá - a refeição final do dia.  

Vivi exatamente isso como office boy em São Paulo: era um pastel de queijo, outro de carne, e uma garapa, ali, ao lado da Praça da Sé, o meu almoço.

Navarrinho apertava-se assim para não pedir dinheiro à mãe.

Ano seguinte, 1964, teve de voltar para Alagoinhas: já com 18 anos, tinha de servir ao Exército...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Devanier Lopes: Muito bom

Paulo Mascarenhas: Também morei em pensionato, dinheiro curto. Lanche ou transporte? Eventuais "traseiradas" no ônibus, ou "bate-pernas" mesmo... sei o que é isto...

Joana D'arck: Minhas irmãs mais velhas viveram em pensão e nessa dureza toda. Uma delas foi da escola normal.

Lucia Correia Lima: Quando chegar no Estadão lembro que a correspondente ZILAH MOREIRA tia de Marquinhos grande secretário de redação da Tribuna, de quando correspondente do Centenário jornal de SP, convidou Bel para fazer as matérias com ela. Fizeram muitas antes de SP saber da importância da Bahia e abrir o escritório se não me engano no Bráulio Xavier.

Zilah indicou Bel p continuar no jornal pois ele com minha rolleyflex já estava enviando fotos p SP. Bel trabalhava no arquivo do JBa Indicado pela irmã Maria Palácios, que era repórter e sua reportagem sobre Inhambupe, terra de pai, na verdade dos Dantas, chamou atenção de um olheiro da Universidade de Liverpool que levou Marcos Palácios.

--------------------------------------------- 

Emiliano José

15 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: eu, providencial tuberculose, dispensado do serviço militar em São Paulo, 1964 também, Navarrinho em Alagoinhas dividia o tempo entre o Tiro de Guerra e o Curtume, clima de terror com o golpe de abril, perseguição aos comunistas, ele chefiando grupo de combate...

 

Servir ao Exército.

Nossas histórias se cruzam.

Eu, em São Paulo, também em 1964, tive de me apresentar.

Trabalhava em banco, fiquei puto, mas não havia jeito a dar.

Sorte: na radiografia obrigatória do pulmão apareceu mancha comprometedora, tuberculose, e a milicada não quis nem saber - vade retro.

Dispensado - respirei aliviado.

Antes de sair, um castigo: fazer faxina em todo o pequeno quartel.

Fiz, sem relutar:  havia sido premiado.

Fiz outra radiografia, e não era nada. 

Poderia ser um momento muito interessante na vida de um jovem.

Fossem as nossas Forças Armadas voltadas à defesa de nossa soberania, de nossas fronteiras, tivessem um pensamento nacionalista mínimo.

Mas, não.

Os dias de hoje evidenciam o ápice de uma trajetória ancorada num pensamento subalterno, ideologia de absoluta submissão aos EUA, aprendida sobretudo a partir do imediato pós-guerra, de 1945 até hoje, e por isso mesmo favorável ao autoritarismo de modo geral, apreço singular por ditaduras.

Nos últimos dias, algum alento: recusaram-se a dobrar-se diante das tentativas do presidente de submetê-las aos tresloucados interesses dele, ao menos quanto ao comando das tropas e seu pensamento negacionista.

Nada, no entanto, de qualquer manifestação ou posição face à política antinacionalista e de retirada de direitos da população brasileira, praticada pelo presidente.

Será ilusão desejar outro tipo de Forças Armadas?

Talvez.

Navarrinho, em Alagoinhas, servir ao Tiro de Guerra.

Outra rotina.

Acordar antes das cinco da manhã, e apresentar-se.

Cumprir ordens do sargento, exercícios, desenvolver as tarefas, aprender manobras militares, continências, obedecer ordens.

Isso durava até oito, nove horas da manhã, e então seguia para o Curtume - a empresa admitiu a vinda dele para Alagoinhas por conta da obrigatoriedade do serviço militar.

De manhãzinha, no Exército.

Durante o dia, no Curtume, visto como comunista. 

Veio o golpe militar, abril de 1964.

Navarrinho guarda na memória o clima de terror na cidade.

É o momento dos dedo-duros a sair apontando quem era comunista, e o conceito nesses momentos ganha amplitude, e muitos nada a ver eram presos.

No Quartel do Tiro de Guerra instituiu-se o plantão.

Vocês sabem: para a milicada, os comunistas eram um perigo muito maior do que verdadeiramente eram.

Podiam a qualquer hora, quem sabe liderados pelos ferroviários, invadir o quartel.

Recomendava-se muito cuidado.

Esse plantão contava com nove homens - chamado grupo de combate.

Navarrinho chefiava um deles, todo cheio de pose.

O sargento Couto, comandante do quartel, um dia, chama-o, e explica procedimentos:

- Ô quatorze, tá aqui essa munição...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

---------------------------------------------- 

Emiliano José

16 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: sargento Couto dá a Navarrinho comando de Grupo de Combate, ele sai pelas ruas quase general dando esporro

em putas e bêbados, deviam ir pra casa por conta do golpe, revolução dirá o sargento, contra os comunistas, de comunistas

conhecia ele, como o velho Aurélio da Mata.

 

Veio o sargento Couto, autoridade máxima do Tiro de Guerra - o TG-110 -, chamou Navarrinho pelo número dele no quartel:

- Ô 14, você é o comandante desse Grupo de Combate, e será o responsável pela primeira guarda, e deverá ser o exemplo.

Navarrinho, todo prosa, sentindo-se quase general.

Afinal, para quem tinha 18 anos não era qualquer coisa, responsabilidade danada, e orgulho.

Todos os nove homens tinham seu fuzil.

Sargento Couto entregou a Navarrinho uma caixa de munição dos fuzis Mauser - não eram armas modernas, remontavam às primeira e segunda guerra, mas disparavam.

Deu ordem:

- Carregue apenas o seu fuzil.

Navarrinho fez um ar de interrogação.

O sargento explicou:

- Só distribua a munição aos demais em caso de ataque ao quartel.

Tudo tranquilo na primeira guarda.

Na segunda, coisa de menos de uma semana depois, Navarrinho, entediado com a mesmice do quartel resolveu sair com a tropa.

Comandante toma decisões, e ele achou interessante patrulhar as ruas próximas ao quartel.

Parecia um general à frente da soldadesca.

Queria mesmo, ao desfilar, era exibir a 45 na cintura, devidamente municiada.

Coisa de macho - 45 na cintura não é qualquer coisa.

Exibir não se sabe para quem.

Após as 22 horas, havia uma ou outra alma perdida naquelas vizinhanças, quem sabe um bêbado ou outro, pouco interessado em exibições militares.

Ainda assim, aparecesse um ébrio ou uma puta, Navarrinho, autoridade da porra, dava uma bronca homérica, mandava ir para casa aos gritos, país sob um golpe, era perigoso transitar, mesmo se putas, mesmo se bêbados.

Sargento soube, não gostou, chamou Navarrinho, esbravejou: golpe porra nenhuma, uma revolução contra os comunistas, doidos para tomar o País.

Perfilado, Navarrinho nem sonhou em discutir com sargento Couto.

De comunistas, sabia ele.

Conhecia alguns deles.

Famoso, por exemplo, era Aurélio da Mata, ligado à direção estadual do PCB, pai de Lídice da Mata, ex-prefeita de Salvador, ex-senadora, atualmente deputada federal.

Havia ainda Mário Alves de Souza Dantas...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

17 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho lembra ter

conhecido Mário Alves, pai de Agliberto Lima,

casado com Íris, irmã de Ana Montenegro,

borracheiro em Alagoinhas, cidade vermelha,

fuga para São Paulo com o golpe de 1964.

 

Mário Alves de Souza Dantas.

Navarrinho o conheceu.

Abro parênteses.

Primeiro, para insistir ser Alagoinhas um município com forte base do PCB entre outras coisas por se constituir num polo ferroviário,

Os trabalhadores das ferrovias sempre eram fundamentais ao crescimento do partido, quando não o eram os alfaiates, os sapateiros, barbeiros, borracheiros e tantas outros trabalhadores.

Segundo, dar duas ou três palavra sobre Mário Alves.

Depois voltamos ao nosso protagonista.

E o faço porque descobri laços históricos profundos entre Navarrinho e Agliberto Lima, filho de Mário Alves.

O notável fotógrafo trabalhará durante muitos anos na sucursal do Estadão, sob a direção de Navarrinho.

Encontram-se mais tarde, depois de muitas turbulências na vida de um e de outro.

Tive a satisfação de conhecer Íris, mãe de Bel, como chamamos Agliberto Lima, com quem convivi no Estadão, amigo querido.

Desfrutei da amizade dela, irmã de Ana Montenegro, outra comunista célebre, a quem admirei e de quem fui amigo.

Como desfruto da amizade de Lúcia, também excelente fotógrafa.

Escrevi sobre Mário Alves de Souza Dantas - e é bom dizer nome inteiro, tenho de estar alerta, para não confundir com o outro Mário Alves, também dirigente comunista, também baiano, de Sento Sé, morto pela ditadura no comecinho de 1970.

Quem quiser conhecer um breve perfil dele, só buscar, não mais em livrarias, o livro "Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento", segunda parte, com carinhoso prefácio do notável Alípio Freire, levado pela pandemia recentemente.

O capítulo "O borracheiro" o retrata.

No mesmo livro, o leitor encontrará o capítulo "Ana e os lobos", sobre Ana Montenegro.

O leitor perceberá Mário Alves como exemplar militante comunista, o PCB sabia formá-los.

Construtor paciente do partido, borracheiro, homem de mil instrumentos, daqueles de sempre se virar nos trinta, respeitado, foi ele com seu prestígio a apresentar Antônio Torres a João Falcão.

Ninguém era capaz de suspeitar vir a ser aquele foca um dos mais extraordinários romancistas do País.

O impulsionador dessa carreira de escritor foi o borracheiro.

Uma vida a merecer romance: com o golpe de 1964, foge às pressas de Alagoinhas numa boleia de caminhão, viagem rocambolesca para São Paulo, deixa tudo para trás: uma casinha, casa de autopeças, borracharia, Sucataria Lunik 9, dois sítios, o pouco acumulado numa dura vida de trabalho.

Só mais tarde, traz a família novamente para Salvador.

Os seis filhos têm pai e mãe de quem se orgulhar.

Quem sai aos seus não degenera.

Viva Íris.

Viva Mário Alves.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lucia Correia Lima: Poxa! Pai se vestia como operário bolchevique, com boné italiano, mas o carro chefe de seus comércios era uma grande auto-peça (uma das melhores lojas de peça de automóveis da cidade), tinha também uma sucataria chamada Lunik 9. E a borracharia onde inovou criando baldes de água com a barracha dos pneus de tratores

Pai sempre foi Mário Dantas. Mas ao ser perseguido pela ditadura, jogou fora todos os documentos. Quando chegou em SP na casa do tio Luiz, irmão de Mãe um médio industriário, que nos recebeu nos abrigou, era tao bem de vida que alugou um sobrado perto do seu, na mesma rua no Ipiranga.

A prima Teresa do Inhambupe, hoje vivendo na Itália, foi ao cartório pois a família Dantas tinha prestígio, e, embora o moça do cartório morrendo de medo, retirou o Dantas e deixou somente Alves de Souza dos avós.

Enviou nova certidão de nascimento e pai assim tirou novos documentos.

Com tudo perdido em Alagoinhas, o mais possível foi continuar somente com a borracharia.

O partido de qdo seu Aurélio pai de Lídice era contemporâneo em Alagoinhas. Fale com Lídice sobre o pai dela militante também em Alagoinhas e quem ordenou q pai não poderia ser preso, tinha q sair da cidade.

Lucia Correia Lima: Antônio Torres me mandou do Rio, impresso, o discurso de posse dele na Academia Brasileira de Letras em que conta como pai o levou a João Falcão. Organizando o arquivo acabo de encontrar e vou fazer cópias pois Gustavo Falcon me pediu. Faço uma p vc. É um lindo depoimento

Emiliano José: Obrigado, Lúcia.

Emiliano José: Quero muito o discurso de Torres

Lucia Correia Lima: sim vou xerocar pois o original e todo trabalhando kk mas tento fazer amanhã. Combinamos

Emiliano José: ok. Beijo

Adilson Borges: Viva, viva!

Lucia Correia Lima: Grata por esta emoção tão forte profunda orgulhosa orgulho do bem

Emiliano José: Puro merecimento

Mônica Bichara: Que lembranças ricas, de emocionar mesmo

Carlos Navarro: É isso Zapatilla, em Alagoinhas, e já escrevi isso em algum lugar, tinha também Lilio, alfaiate, dona Maura, seu Aurélio da Farmácia, o ferroviário Messias Cachorro, ou Mistérjames, todos velhos comunistas; eu os considerava o nosso o "grupo dos 11". De todos, além de Messias que era dirigente estudantil que nem eu, o "estudante profissional" que os militares queriam exterminar, minha maior intimidade era com mestre Lilio. Passava horas conversando e aprendendo com ele na alfaiataria. 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

18 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: risco de perder-se nas

veredas, velhos e venerados comunistas,

cuidados para não perderem-se em teorias

abstratas, tratando da luta cotidiana, direitos

do trabalho, justiça social, coisas elementares,

Navarrinho embevecido com antigas lições.

 

O risco, nessa coisa de escrever, é perder o rumo.

Ingressar em veredas fora da estrada principal.

Tive tentações, mas vou resistir.

Lúcia, filha de Mário Alves, o borracheiro, pai dela, de Bel, marido de Íris, me mandou um belo texto de Antonio Torres, hoje meu companheiro da Academia de Letras da Bahia, a respeito do encontro.

Do encontro a levá-lo em seguida a João Falcão, e a dar rumo definitivo à vida dele.

Artigo denominado "Tributo a um comunista", lindo de morrer, de chorar.

Vou fazer só a indicação, fazendo um esforço sobre-humano para conter minha vontade de recontar a história: Jornal do Brasil, dezembro de 2005.

Voltemos a Navarrinho.

Já dissemos: era líder estudantil, e bastava isso para no dia a dia ser considerado comunista.

Não, não era, ao menos de carteirinha - não tinha filiação ao PCB.

Sua única ligação com o partido, houvesse, era ser militante ativo no movimento estudantil.

Alguns velhos comunistas, não pode negar, conhecia. 

Conhecia, já se disse, o velho Aurélio da Farmácia, o pai de Lídice da Mata.

Mário Alves, pai de Bel.

Seu Lilio Alfaiate.

Deste, lembra bem: comunista e presidente do Gato Preto, time onde jogou durante algum tempo - comunista se infiltra em tudo.

Navarrinho hoje confessa: adorava conversar com Lilio, aprendia muito nas muitas horas de conversa na alfaiataria, nunca perdia a chance de ouvi-lo.

Vocês sabem, comunista tem uma palavra boa danada, cheia de ensinamentos.

Periga pegar, como praga.

No caso de Navarrinho, muita coisa ficou.

Pegou.

Havia ainda o ferroviário Mister Cachorro, também conhecido como Mistérjames.

Ah, e havia a professora Maura.

Os comunistas lembrados por ele, venerados pela cidade, pela juventude, pelos sindicalistas.

Venerados por uma parte dela, vamos combinar, né?.

Certamente, havia aqueles da persignação: só passar um daqueles, e benziam-se, sempre há, e nos dias atuais, são fartos.

Algumas senhoras corriam pra casa, tomavam do rosário, e passavam bom tempo dedilhando-o, murmurando, não se sabe quantas ave-marias, quantos pai-nossos, quantas salve-rainhas, quando avistavam um deles.

Cuidavam até de esconder seus filhos, seus netos, porque acreditavam, juravam de pé junto: comunista comia criancinha.

Navarrinho não se lembra de ouvi-los falar em Marx, em Lênin, em luta de classes, ditadura do proletariado, nem de socialismo e comunismo, as teorias marxistas.

Falavam da necessidade da luta, de modo sensato: organizar o povo, justiça social, direitos do trabalhador, essas coisas quase triviais, necessárias a um povo - e eram ouvidos respeitosamente.

Navarrinho, então, com tripla jornada.

De manhãzinha: Tiro de Guerra.

Resto do dia: Curtume.

De noite: estudo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Isabel Santos: Como deve ter sido Navarrinho vivenciar o Tiro de Guerra?

Emiliano José: Contudo, divertiu-se

Rui Patterson: Eu nunca me diverti tanto. TG 240, Ilhéus, sgto Cássio no comando.

Jose Antonio Reis: Aplausos 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

19 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Tiro de Guerra, Curtume,

estudo à noite, Instituto Fleming, destino

dos jovens pobres, chefe de gabinete

do prefeito Murilo Cavalcanti, novos caminhos.

 

Navarrinho cumpria o destino da maioria dos jovens pobres do Brasil.

Destino decorrente de uma história marcada pela desigualdade social, marca de um País da periferia, sujeito, desde o nascedouro, à violência da escravidão, e às características intrínsecas do capitalismo, a condenar os pobres a uma luta insana para sobreviver.

Assim, destino é forma de dizer.

São as correntes da desigualdade.

Tiro de Guerra cedinho.

Trabalho durante o dia.

Estudo à noite.

Vivi isso, tal e qual, menos o Tiro de Guerra.

De manhã, cuidava de um bar.

À tarde, bancário desde os 14 anos.

À noite, estudo.

Lá, na periferia de São Paulo, Jaçanã.

Navarrinho estudava no Instituto Fleming.

Era uma instituição privada, de Salvador.

Abriu uma filial em Alagoinhas.

Tábua de salvação. 

Turbulenta, a história de Navarrinho nos estudos. 

Fleming, do professor Carlos Rosa, sujeito baixinho, bem falante, expansivo, dono e diretor do colégio.

Ali fez o Científico, logo após sair do Tiro de Guerra. 

Era o mais relapso de uma sala de 19 alunos.

Mais tarde, em compensação, será o único a passar no vestibular da UFBA - mais tarde falaremos disso.

Nós sabemos: ele havia se destacado como liderança na CNEG, tornou-se conhecido do mundo político.

Murilo Cavalcanti, deputado estadual pelo PSD, elege-se prefeito de Alagoinhas em 1962.

Renuncia ao mandato e assume em março de 1963.

Era da banda progressista da política na cidade.

UDN, era a direita.

PSD, a esquerda. 

Cavalcanti, no fim de 1964, golpe em andamento, surpreende a todos, e chama Navarrinho para chefiar o gabinete dele.

Na prática, secretário da Prefeitura - não havia propriamente chefe de gabinete.

Assumiu sobretudo a parte política da função, isso antes de completar 20 anos - precoce o rapaz.

Abria-se um período na vida dele marcado pela paixão política.

Não mais o simples militante estudantil.

Daria outros passos...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: escrever é perigoso,

veredas, encontros, Murilo Cavalcanti

oficial de gabinete de Balbino, Lili Cavalcanti,

o pai, líder formal do governador, Waldir

Pires o líder real, amizade profunda entre os dois.

 

Lendo agora Grande Sertão, Veredas.

Viagem.

De sonho.

Por entre as veredas do sertão, sabedoria de jagunço.

Tempo todo viver é perigoso.

Escrever, também.

É vertigem.

A gente vai contando a história, pensa ter pegado um rumo, e surge uma vereda, olha o diabo no meio do redemunho...

Navarrinho vai provocando encontros, e retardando a narrativa a dizer respeito a ele próprio.

Jornalista é bicho nervoso.

Dei ontem de ligar para Marcus Cavalcanti, atual secretário de Infraestrutura do governo da Bahia.

E da conversa com ele, nasce um encontro entre Waldir Pires e Murilo Cavalcanti.

Jornalista viaja, futuca, ainda mais se teve bons mestres, Navarrinho, um deles.

Vocês sabem disso.

Marcus é filho de Murilo Cavalcanti, o prefeito de Alagoinhas em 1964, sobre quem íamos começar a falar a propósito de ter chamado Navarrinho para o gabinete dele.

Aí, provocado por mim, danou-se a contar histórias - estimulei-o a escrever sobre Murilo Cavalcanti e o tempo dele.

Disse iria começar - a ver.

Nada muito extenso, e tudo a ser checado, mas pra Navarrinho voltar ao seu papel de protagonista, tenho de me deter um pouco, num sobrevoo, na trajetória do pai de Marcus.

Cedo, foi do gabinete de Antonio Balbino, governador da Bahia entre 1955-1959.

Aqui, encontro com Waldir Pires.

Eleito deputado estadual em 1954, Waldir era homem da mais absoluta confiança de Balbino, aliado dele desde o final do anos 1940, ainda estudante.

Encontro duplo com Waldir.

Explico-me: o primeiro e mais fecundo encontro foi entre Lili Cavalcanti e Waldir.

Lili Cavalcanti, assim conhecido, mas na pia batismal Ladislau Cavalcanti, pai de Murilo, avô de Marcus, médico vindo das terras de Esplanada, político experimentado, eleito na mesma legislatura de Waldir, os dois ligados a Balbino.

O governador, por suas conveniências políticas, escolhe Lili Cavalcanti como seu líder na Assembleia Legislativa.

Lili e Waldir, muito amigos.

Tão amigos a ponto de Lili praticamente passar a Waldir as tarefas da liderança.

Lili, já com mais de 50 anos.

Waldir, nem chegado aos 30, cheio de gás, disposição.

Confiança grande entre os dois: Waldir era o líder real, Lili, o formal.

História conhecida, conto em detalhes na biografia sobre Waldir.

Murilo, pelos caminhos do pai, sabe de Waldir, e logo depois se elegerá deputado estadual pelo PSD, em 1958...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

21 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: PSD fiel da balança

da vida democrática entre 1945 e 1964, Tancredo Neves, Murilo Cavalcanti na

linha mais progressista, preso na Mouraria, juventude querendo resistir, certa da chegada das tropas do general Ladário Teles e dos militantes das Ligas Camponesas de Julião.

 

Murilo Cavalcanti navegava no leito do PSD, um partido essencial entre 1945-1964, de centro, espécie de fiel da balança daquele período.

De centro, e contando com figuras essenciais da vida política brasileira, alguns com fortes compromissos democráticos, e podemos lembrar um nome memorável: Tancredo Neves.

Um político a se manter coerente o tempo inteiro, inabalável na sua fé e defesa da democracia.

Testado tantas vezes, nunca vacilou.

Contava também com políticos mais à esquerda, Waldir Pires, um deles.

O PTB fazia algum contraponto ao PSD, os dois compondo um arco de apoio ao modelo desenvolvimentista de Getúlio, depois de Juscelino e, no fim, o de Goulart, mais consequente, e por isso mesmo, derrubado pelo golpe de 1964.

Murilo compunha a linha mais progressista.

Advogado, militava junto aos sindicatos dos ferroviários, e por esse caminho chegou a Alagoinhas.

Elegeu-se deputado nessa esteira e após, prefeito de Alagoinhas.

Era a renovação na cidade.

Sobreveio o golpe.

No relato de Marcus Cavalcanti, filho dele, foi preso, levado pra Salvador.

Ficou algum tempo detido no Quartel General, na Mouraria, certamente sob os olhares atentos do general Manoel Mendes Pereira, alcunhado Manelão, comandante da VI Região Militar.

Houve intervenção na Prefeitura, mas, por fim, voltou ao poder, e foi quando então, no final de 1964, ao reassumir, chamou Navarrinho para o gabinete.

O pai, Lili Cavalcanti, atento, e certamente agindo em favor do filho.

Observava as movimentações da juventude, Navarrinho no meio, alguns ferroviários, os comunistas menos notórios.

Os mais conhecidos haviam sumido, tomado seus cuidados.

Ouvia os comentários: vai haver luta, o general Ladário Teles vai subir do Rio Grande do Sul com sua tropa, desbaratar o golpe, ajudado pelas Ligas Camponesas. 

Sabia onde as cobras dormiam: não haveria Ladário Teles, nem Ligas Camponesas.

Estava tudo dominado pelos golpistas.

O general, no Rio Grande do Sul, logo após o desembarque de Goulart em terras gaúchas nos primeiros dias de abril de 1964, explicou-lhe: estava sozinho, praticamente sem tropas para comandar.

E aconselhou o presidente a ir para o exterior.

O presidente seguiu para o Uruguai.

Explico isso em detalhes na biografia de Waldir.

Francisco Julião estava escondido, caçado impiedosamente, sem possibilidade de lançar palavras de ordem, e as Ligas, sem ele,  incapazes de reação.

Será preso em junho, dia 3 em Brasília, recambiado para Recife.

Lili Cavalcanti chamou alguns dos líderes da tentativa de resistência em Alagoinhas, Navarrinho, entre eles, para conversar...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Rui Patterson: Tenho a relação dos presos iniciais de 1954 e Murilo está lá, ficou no QG da Mouraria até ser liberado.

Emiliano José: Genial, Rui. O dedo errou só no ano: 1964. Ó o sol!

Rui Patterson: 1964

Manoel Barretto: Murilo e Chico Pinto eram as grandes lideranças progressistas do interior da Bahia. Murilo ficou preso no Quartel da 6a região na Mouraria e quando foi solto foi uma verdadeira festa em Alagoinhas.

Manoel Barretto: lembro muito bem, que uma verdadeira multidão esperava Murilo na Prefeitura. Fomos de bicicleta (eu na minha juventude, inclusive) encontrar com o Prefeito em um riacho que tinha na entrada da cidade (acho que deve ser próximo onde hoje é a Universidade). Deve ter sido o primeiro "bicicletaço" baiano e tinha bastante bicicletas.Esperamos o prefeito chegar de carro e o acompanhamos ate a porta da prefeitura.Grande festa

Emiliano José: Vou aproveitar suas dicas. Ótimas, Mané.

Mônica Bichara: preciosas, históricas

José Américo Castro: Murilo foi deputado estadual?

Emiliano José: acho que quatro vezes

--------------------------------------------- 

Emiliano José

22 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: dias de tormento,

Manelão botando pra quebrar, Murilo

na Mouraria, Lili aconselha a juventude

e ferroviários a se recolherem diante da

barra pesada, um dia Murilo é libertado,

amado, a população quer abraçar o líder.

 

Lili Cavalcanti vivia dias tormentosos.

Chegara o golpe.

Manelão, o general Manoel Mendes Pereira, comandante da VI Região Militar, prendera seu filho, Murilo Cavalcanti.

Deixara-o recolhido no Quartel General, na Mouraria, e isso ontem nosso querido Rui Patterson confirmou.

Eu e Rui dividimos prisão em 1971, na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.

Pai é pai.

Lili se desdobrava de modo a aliviar a situação do filho, e se pudesse, o quanto antes libertá-lo na esperança de vê-lo ainda à frente da prefeitura de Alagoinhas.

É provável tenha conversado com militares amigos.

O PSD, partido dele, era partido da conversa, da boa política, de não destruir pontes.

E quem sabe conseguiu chegar a alguém capaz de resolver a situação do filho.

Um dia, em Alagoinhas, ainda naqueles primeiros dias do golpe, filho preso, vê a movimentação da juventude e de ferroviários, crentes na possibilidade de confrontar os militares vitoriosos.

Chama alguns, e do alto de sua experiência, chegado aos 60 anos, já avô, explica: meus filhos a barra pesou, e esses militares vieram pra ficar.

- Melhor se recolherem, cuidarem de suas vidas. O momento é deles, e não há nesse momento qualquer chance de reação.

Navarrinho, presente à conversa, compreendeu.

Além de Murilo Cavalcanti, prenderam, ainda, Pedral Sampaio, prefeito de Vitória da Conquista, e Chico Pinto, de Feira de Santana, dos mais notórios, e os dois serão, mais tarde, destacados opositores à ditadura.

Pedral, histórica liderança do MDB/PMDB, prefeito de Conquista mais de uma vez, liderança estadual, coordenador da campanha de Waldir Pires em 1986.

Chico Pinto, nome de expressão nacional, líder do Grupo Autêntico do MDB/PMDB.

Preso outra vez, no final de 1974, por ter feito duro discurso contra Pinochet.

Não eram tempos fáceis.

Ainda em 1964, certamente como decorrência das movimentações de Lili Cavalcanti, Murilo é libertado.

Alagoinhas soube, e o esperou.

Líder incontestável da cidade, amado pelo povo.

Dele se dizia ser, no mínimo, um simpatizante do PCB, e é provável isso tenha contribuído para a prisão.

Estava de volta aos braços do povo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

José Américo Castro: Murilo foi deputado?

Carlos Navarro: É isso Zapatilla, uma informação só para registro: Dr. Lili era amigo de um general reformado que tinha muito prestígio na tropa, chamava-se Lucio Félix, se não me falha a memória. Respondendo a Zé Américo aí em cima, foi deputado estadual ainda muito novo.

Emiliano José: Carlos Navarro Primeira eleição dele, em 1958. 

-------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: a volta, Murilo

está chegando, juventude e

bicicletaço, multidão a pé, todos a

recebê-lo no riacho, desce do carro,

abraços, entusiasmo, chegada

à Prefeitura, de cabeça erguida,

uma nova posse, alegria, alegria.

 

Cidade parou.

Alagoinhas, em festa.

Murilo está chegando.

De boca em boca, notícia corria.

Alguém disse, e agora parecia fósforo riscado em tanque de gasolina.

Ouviam-se fogos. 

Mané Barreto, moço, moço, colega de Navarrinho na CNEG, ajuntou-se a um bocado de outros jovens, e fizeram um bicicletaço.

Era bicicleta a perder de vista.

Mané ainda brinca, falando sério: deve ter sido o primeiro bicicletaço da Bahia.

Saíram do centro, e felizes, pedalaram até o riacho.

Ali onde está a UNEB atualmente.

Murilo chegou de carro, viu aquela multidão: a juventude do bicicletaço, outros vindos a pé, ferroviários, a cidade se deslocou até ali, modo a receber seu líder, ele emocionado.

Desceu do carro, apertou mãos, abraçou.

Gostou do alvoroço, do calor, entusiasmo, gritaria, ovação.

Qualquer político sente o coração pulsar, a alma se incendiar quando está junto do povo, acarinhado. 

Depois daquele aperto todo, aquele abraço todo, entrou no carro.

Deu ordens ao motorista: seguir bem devagar até a Prefeitura, onde reassumiria.

A moçada de bicicleta o seguiu.

Os de a pé, corriam um pouco, acompanhavam também.

Ninguém queria perder a festa.

A entrada dele na Prefeitura foi de cabeça erguida.

Os funcionários o saudavam, felizes.

Os políticos o reverenciavam, uma parte por respeito, admiração.

Outra, por cuidados diante da força política dele, mesmo adversários.

Incontestável liderança.

Voltando ao poder nos braços de seu povo.

Não regressava de cabeça baixa.

Nem com o chapéu embaixo do braço.

Goulart quando lhe falavam no exílio sobre a volta ao Brasil, dizia:

- Voltar, desejo muito. Nunca, no entanto, com o chapéu embaixo do braço.

Só voltou morto.

Ele, Murilo, depois de amargar um tempo de prisão no Quartel General em Salvador, voltava debaixo do entusiasmo de sua gente, de uma impressionante celebração.

Tempo depois, chama Navarrinho para o seu gabinete...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Carlos Navarro: SE não me falha a memória o riacho é o Riacho do Mel, na entrada de Alagoinhas pela rodovia que vem de Salvador.  

-------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Murilo Cavalcanti

chama Navarrinho pra ser oficial de

gabinete, transforma-se na prática em secretário, combinava Tiro de Guerra,

dar aulas, trabalho no Curtume e na

Prefeitura, ginásio com professora

Dagmar, Científico no Instituto Fleming

 

Navarrinho foi convidado para ser oficial de gabinete de Murilo Cavalcanti no retorno dele à prefeitura de Alagoinhas.

O filho dele, Marcus Cavalcanti, atual secretário de Infraestrutura do governo da Bahia, acredita ele tenha voltado em julho.

Pelas informações do pai, teria passado em torno de 90 dias preso no Quartel da Mouraria, em Salvador.

Na prática, Navarrinho tornou-se o real Secretário da Prefeitura.

O titular, professor Rubens Fontes, acabara de abrir uma loja de materiais elétricos.

Dedicava-se ao seu negócio, e não lhe sobrava tempo para o exercício da função.

Navarrinho, do alto de seus 19 anos, assumiu toda a parte política da função e quando necessário mandava os processos para Fontes assinar.

Tudo, no frigir dos ovos, antes de chegar ao prefeito, passava pelas mãos dele.

Os demais secretários, querendo uma audiência, procuravam Navarrinho.

Virou figura chave do prefeito.

Foi pra ele uma grande escola política.

Antes de seguir adiante, um esclarecimento - vida escolar de Navarrinho foi tumultuada, vocês já sabem, e por isso essa pausa.

Quando voltou de Salvador, em 1964, para fazer o Tiro de Guerra, precisava cursar o último ano do ginásio - foi um ginásio estendido, de quase 10 anos, vocês têm acompanhado essa odisseia.

Então, foi conclui-lo numa escola privada, paga.

O Curtume abriu exceção pra Navarrinho: trabalhar apenas um turno pra poder estudar.

No turno voltado aos estudos, ele não acompanhava as aulas.

Dava aula.

Isso: aula de OSPB.

Foi a forma encontrada por ele para pagar o Ginásio Senhora Santana, da professora Dagmar Portela.

Saía do Tiro de Guerra correndo, e entre 8 e 10 horas da manhã, ensinava a meninada - a ditadura ainda era pouco vigilante, e ele danava-se a ensinar lições de liberdade e democracia à moçada dos primeiros anos do ginásio.

A disciplina Organização Social e Política brasileira foi pensada pela ditadura em 1968 como mecanismo de luta ideológica e cultural com a juventude, ao lado de Educação Moral e Cívica.

Nem sempre dá certo - nesse caso não deu. 

Como ele combinou Tiro de Guerra, Curtume, dar aulas, ser Secretário da Prefeitura, só ele pode explicar - na juventude, somos capazes de nos multiplicarmos, estar em vários lugares ao mesmo tempo, e mais tarde nem conseguimos, nós próprios, saber como. 

O Científico, já dissemos de passagem, Navarrinho fez no Instituto Fleming...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Fleming, professores,

estudantes universitários, Navarrinho aluno

pouco aplicado não era cotado para ingresso

na Universidade, foi único a passar,

jornalismo político e satírico e também

aprendizado na militância estudantil ajudaram.

 

Científico, Navarrinho fez no Fleming, já dissemos antes, mas o leitor não vai voltar pra saber.

Os professores eram quase todos estudantes universitários.

Exploração da força de trabalho intelectual, antiga.

Moçada vinha pra Salvador estudar, grana era curta, e aí se dividia entre a Universidade e a atividade docente em sua terra.

Tinham de sobreviver.

Melhor fosse ganhando uns trocados perto de casa.

Eram especialmente alunos de Engenharia, de Física, área de Exatas.

Alguns deles, depois, se organizaram, e criaram os primeiros cursinhos de pré-vestibulares em Salvador.

Navarrinho lembra do PHD, por exemplo.

Havia, assim, no Fleming, com esse corpo docente, a particularidade de no terceiro ano os alunos serem preparados para o vestibular, atenção especial para isso.

Sala de Navarrinho contava com 13 alunos.

Foi a primeira turma do terceiro ano.

Ele pegou o Fleming no início.

Curioso: Navarrinho não fazia parte de nenhuma previsão de sucesso no vestibular.

Não era aluno aplicado, estudioso.

Ao contrário.

Então, fora da lista dos possíveis futuros universitários entre os 13.

E, anotem: dos 13, foi o único a passar no vestibular da UFBA.

Jornalismo.

Zebra?

Ou capacidade, inteligência?

Dez anos no ginásio talvez tenham lhe dado uma  base sólida o suficiente para a façanha.

Depois, foi só fazer o Científico aos trancos e barrancos, combinando com as trocentas outras atividades.

Seus colegas não queriam acreditar.

Era quase um abuso.

Como pode?

O sujeito não frequentava as aulas, vinha de quando em vez, e passa no Vestibular?

Claro, além da base escolar propriamente, havia o fato de que ele praticava jornalismo, de uma forma ou de outra, e nós vamos contar isso de modo mais detalhado, o leitor nos aguarde.

De passagem, informo: ele assinava artigos no jornal de Alagoinhas, pertencente a um dentista, Valtinho, vereador mais à direita, aliado de Murilo, textos voltados à análise política.

Na revista Cometa, organizada por alguns bancários, tentava seguir os passos de Stanislaw Ponte Preta, Sérgio Porto - satírico, debochado, gozador.

Sátira social - lembra de uma: sujeito muito pobre foi registrar criança recém-nascida e cismou de colocar o nome de general no filho, orgulho, General dos Santos, um puxa-estica danado, o oficial do cartório resistindo, ditadura, não podia, quero porque quero, não deu, e o pobre disse então bota Zé dos Santos mesmo nessa porra. 

O jornalista principiava, e isso ajudou muito a passar no vestibular, não fosse, ainda, a militância estudantil, sempre uma escola.

Era 1968.

Isso reclama um retorno.

Avançamos demais...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: a multiplicação do

tempo, quarto ano de ginásio em Dagmar,

o padrinho Zé Português, os sonhos

de presidir a ABES ou a UBES, vereador.

 

Voltando no tempo, encontro explicação para o exercício da multiplicação dos pães desenvolvido por Navarrinho.

Multiplicação do tempo, quero dizer.

Volto ao quarto ano de ginásio dele, no Colégio de Dagmar Portela, Colégio Senhora de Santana.

Em Salvador, tinha secreta esperança de ser dispensado, como acontecera comigo por um acidente de percurso, já contado.

Nada.

Rapaz forte, cheio de saúde, o Exército o queria.

Com aquela crença, não tomou qualquer providência.

Podia ter reservado vaga na CNEG ou no Ginásio de Alagoinhas, instituições públicas. 

No mato sem cachorro.

Não havia mais vaga, obrigado a ir para uma escola paga.

Dar aula de OSPB no próprio colégio de Dagmar, a saída para poder estudar, bancar o estudo.

Madrugava no Tiro de Guerra, trocava de roupa na saída, ia para o Curtume, e de lá, ali pelas 11 da manhã, saía correndo para dar aula em Dagmar, iniciada às 11,15hs, terminada às 12hs  - eram frequentes as reclamações dos alunos pelo horário, especialmente quando a fome apertava.

À tarde, de volta ao Curtume.

À noite, estudar.

Tudo isso era possível porque o Curtume era como mamão com mel.

Facilitava a vida dele de todo jeito.

Amigo, sempre há um amigo decisivo na vida - ou mais de um.

Havia Zé Português, filho de Ernesto Coelho, o dono.

Zé era amigo de farra de Navarrinho, parceiro de todas as estrepolias de juventude em Alagoinhas, cheio de cumplicidades.

Foi Zé Português o responsável por conseguir a vaga no Curtume em Salvador, era ele também a flexibilizar os horários do trabalho em Alagoinhas.

Mão na roda junto ao pai.

Vida de aluno pobre era assim.

Ou se virava nos trinta, ou estacionava.

Fez Científico de 1965 a 1968, disso já falamos.

Navarrinho, em 1967, é eleito vereador pelo MDB.

Provavelmente poucos saibam disso.

Vamos contar. 

Não alimentava quaisquer aspirações a um mandato eletivo, não o animava um carreira parlamentar.

Seu objetivo maior, enquanto fazia movimento estudantil, era vir a ser presidente da ABES, a entidade secundarista estadual, ou da UBES, entidade nacional.

Legítimas aspirações de um líder estudantil como ele...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

27 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: o sonho da presidência

da UBES, lembranças de uma entidade,

Aventuras e Desventuras de um Estudante,

Carlos Sarno, Chico Ribeiro Neto,

navegar é preciso, viver não é preciso

 

É, Navarrinho se imaginou presidente da UBES, ao sentir o ardor do movimento estudantil secundarista.

Lembrou de Jarbas Santana, um dos presidentes da entidade antes de 1964.

Velho e querido amigo Jarbas Santana, chegado aos 80 anos atualmente, morando no Rio de Janeiro, de memorável família de comunistas, entre os quais Fernando Santana.

A UBES é entidade a ser sempre lembrada, ainda mais por mim.

Fui seu vice-presidente entre 1968-1969, gestão de Marco Melo, e por isso fui condenado num de meus processos quando preso.

Não custa lembrar de Tibério Canuto de Queiroz Portela, presidente da gestão 1967-1968, jornalista na Bahia logo ao sair da prisão, e depois dirigente do jornal Em Tempo, em São Paulo, colega de cela na Lemos Brito.

Lembro-me, ainda, em minha gestão, de Cleber Consolatrix Maia, de Fernando Parreira, Luís Bernardes, Bernardo Joffily.

Jovens, na luta contra a ditadura e a favor de um ensino público laico, universal, gratuito.

Era o sonho de Navarrinho - estar à frente dos secundaristas na luta contra a ditadura.

Era um tempo de ebulição, especialmente dos secundaristas, ao menos em Salvador.

Já contei, e agora relembro. 

Em 1966, os secundaristas de Salvador desenvolveram uma luta de dimensão histórica, provocada pela peça de Carlos Sarno, Aventuras e Desventuras de um Estudante.

O diretor do Colégio Central proibiu a peça, e aí foi uma balbúrdia só - os secundaristas se levantaram em toda a cidade, e obrigou autoridades a se virarem nos trinta, e a botarem a polícia na rua, metendo o cacete.

O diretor Walter Reuter suspendera sete alunos do Grupo de Teatro do Colégio Central, denunciando-os como subversivos e marxistas.

Entre os sete, além de Sarno, mais tarde meu colega de prisão na Galeria F da Lemos Brito, Nemésio Garcia, outro dos contemporâneos de cadeia, e Francisco Ribeiro Neto, amigo meu e de Navarrinho, parceiro nas lides jornalísticas.

Foi luta de muitas dias, meados de 1966, Salvador virou enxame de secundaristas, entra em beco, sai em beco, e era secundarista saindo de tudo quanto era lugar, polícia descendo o cacete.

Memorável luta, contada nos detalhes em Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento, número um, de minha autoria.

Sarno, perseguido como cão danado, aceitou bolsa de estudos na Alemanha Ocidental para mais tarde voltar e passar à luta armada contra a ditadura, depois presos, torturado, condenado.

Sonho de Navarrinho era este: ouvia os ecos das batalhas, chegava a sentir o cheiro de gás lacrimogênio, a ouvir as patas dos cavalos, as palavras de ordem dos seus colegas estudantes em Salvador.

Era essa a sua barca.

Navegar é preciso, viver não é preciso.

#MemóriasJornalismoEmiliano   

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

28 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: Jarbas Santana, presidente da UBES por duas vezes,

luta dos estudantes em 1967 em

Salvador, Navarrinho marca passeata,

polícia prepara-se para reprimir, Luiz

Viana acaba recuando, evitada a carnificina.

 

Ainda ontem, conversei com Jarbas Santana, morando atualmente no Rio de Janeiro.

Cheio de vigor, esclareceu: foi presidente da UBES em 1960, reeleito em 1961.

Dois mandatos.

Em 1962, candidato a deputado estadual, não conseguiu se eleger.

Um homem digno e de luta.

Navarrinho sentiu a força do movimento estudantil a se desenrolar em Salvador em 1966 por conta da peça Aventuras e Desventuras de um Estudante, de Carlos Sarno.

Aquele movimento foi como um rastilho de pólvora.

Ano seguinte, o governador Luiz Viana Filho resolveu mandar à Assembleia Legislativa a Lei Orgânica do Ensino.

Nela, havia um jabuti.

Viana dava um jeito de embutir o ensino pago no interior da lei.

Pensava talvez fossem inocentes, os estudantes.

Besteira.

Voltaram às ruas com todo ímpeto.

Novamente, Salvador se viu às voltas com intensas mobilizações.

Cidade ocupada pela juventude.

Muita porrada, muita polícia, cassetetes, repressão sem piedade.

Navarrinho, principal liderança estudantil de Alagoinhas, resolve levantar os estudantes da cidade na esteira de Salvador.

Moçada entrou em greve.

Numa sexta-feira, marcada uma passeata.

Os adversários, os Azi, aliados do governador Luiz Viana, acionaram a PM para reprimir a manifestação.

Colocaram tudo quanto é policial de prontidão. 

O pau ia comer.

Navarrinho tinha todas as informações.

Secretário do prefeito de Murilo Cavalcanti, tinha relações com muitos militares, inclusive em Salvador.

A tropa viria em uniforme de campanha, pronta pra arrebentar, armada até os dentes, nenhuma contemplação - assim o informaram, não sei se o aconselhando a moderar, recuar.  

Navarrinho, turrão, fincou pé: nenhum recuo, vamos pra rua.

Por sorte dele e de toda a juventude de Alagoinhas, a questão foi solucionada em Salvador.

Se ele estiver falando da luta da Lei Orgânica, o governador Luiz Viana, diante das gigantescas mobilizações dos estudantes, resolveu recuar, e o artigo referente ao ensino pago, foi retirado.

Suspendeu-se a passeata em Alagoinhas.

Não houve o inevitável confronto.

Fosse mantida a mobilização, Navarrinho tem certeza: seria um carnificina.

Até porque, na esteira dos secundaristas, apareceriam inclusive estudantes dos últimos anos do primário, criançada.

Não podia, no entanto, recuar.

Luta tem disso, às vezes, é preciso ousar, confrontar, especialmente quando sob uma ditadura.

Senão, ela pensa poder tudo.

E nunca pode.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Os Azi resolveram criar um fato político relevante, acabando pela violência a passeata. No interior isso pesa, só não contavam com a disposição e a coragem da garotada.

Carlos Navarro: A solução encontrada em Salvador por LVF foi essa mesmo Zapatilla. Recuou e os professores e estudantes suspenderam o movimento. 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

29 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: o aprendizado

na militância estudantil, prefeito o

quer vereador, começa a gostar

da ideia e a se articular, um

concorrente jovem, Judélio Carmo.

 

Navarrinho seguia na militância estudantil.

Tal militância implicava muita agitação, além de ir moldando também o lado do organizador.

Parece tudo simples, mas não é.

Organização de muitas festas.

De viagens.

Campeonatos esportivos.

Era um tal de sair para jogar em Catu, Inhambupe, Mata de São João, Pojuca, Irará, redondezas, e tudo isso implicava articulações, busca de financiamento, e a rede de contatos ia se ampliando, a liderança se consolidando.

Festas, constantes, também reclamavam muita articulação, e algum dinheiro para acontecerem, é preciso buscar quem banque.

Essa movimentação chamou a atenção do prefeito Murilo Cavalcanti, e Navarrinho terminou secretário.

Não lembra o ano, se 1965, se 1966: recorda é da fundação do MDB no município.

Navarrinho, um dos fundadores do novo partido.

Chamaram-no para ser representante da juventude,

Murilo, como bom político, atento, começou o cerco a Navarrinho.

Falava na possibilidade de uma candidatura a vereador.

Alisava o ego dele, dizia de sua liderança com a juventude, a capacidade de articulação, e apontava chances de eleição.

Murilo semeava em terreno fértil.

O líder estudantil ia abraçando a ideia.

Pensava: quem sabe, talvez dê jogo.

E começou a se movimentar, já com olhos na Câmara Municipal.

Havia os céticos.

Dificilmente se elegeria: a liderança dele se baseava nos estudantes secundaristas.

Os mais velhos, 16 anos.

Àquele tempo, não tinham direito a voto.

Esqueciam-se, os céticos, da existência de muitos estudantes secundaristas já com 18 anos, estudando à noite, e mesmo durante o dia.

As dificuldades da vida levavam-nos a atropelos na trajetória escolar - pobreza, necessidade de trabalhar.

O próprio Navarrinho era um exemplo de caminhada tortuosa.

E esqueciam-se de outra coisa: uma liderança secundarista, se forte, chega a outros setores sociais.

Ele enfrentaria, no partido, outra candidatura jovem, a de Judélio Carmo, nascido no mesmo ano, 1945.

Estudava Direito em Salvador, e era mais enfronhado nas articulações partidárias.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

30 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: um encontro, Judélio

Carmo e impeachment em 1975, cobertura

feita por mim, Navarrinho mete as caras

na campanha para vereador, ninguém acreditava.

 

Navarrinho segue promovendo encontros.

Lembrou de Judélio Carmo.

Do início da caminhada política dele.

Foi prefeito mais de uma vez de Alagoinhas.

Primeira, creio, em 1974.

Logo depois, em 1975, sofreu impeachment.

A direita, inconformada com a vitória daquele menino abusado, recém-chegado aos 30 anos, articulou-se, movimentou a reação na Câmara Municipal, e o tirou do cargo.

Ele voltaria mais tarde.

Digo encontro porque o impeachment dele foi coberto por mim, pelo "Jornal da Bahia", enviado pelo meu chefe de Reportagem, Césio Oliveira.

Estava na primeira fase de minha trajetória jornalística.

Isso está contado com precisão no "Balança mas não cai", livro lançado por mim recentemente, com prefácio de Mônica Bichara, à disposição para venda na Amazon, um E-book.

O "Jornal da Bahia" fora a primeira casa de Navarrinho como profissional em Salvador, se não me engano.

Ele nem começou a contar a história jornalística dele, e eu vou me adiantando.

Se errar, ele me corrigirá.

Judélio vou encontrar mais tarde nas andanças do PMDB.

Encontros: eu, Judélio Carmo, Navarrinho.

Navarrinho meteu as caras na campanha de vereador.

Organizou um bom time de capitães de campanha, todos jovens naturalmente, e viu o nome crescer.

A moçada corria trecho, ia de casa em casa, falava nas salas de aula.

Importava pouco não pudessem votar.

Interessava era conseguir votos.

Havia os filhos e parentes de ferroviários a fazer barulho também, a apresentar aquela novidade: um estudante nem ainda chegado à Universidade candidato a vereador, cheio de ideias, de projetos novos para a cidade, e contra o autoritarismo, contra a ditadura.

Novidade quando bem apresentada ganha corpo.

E Navarrinho, liderança, desde cedo relacionou-se com pessoas mais velhas, com políticos, porque sempre devia fazer articulações para o futebol, para as festas, e houve apoios de pessoas mais maduras, poucas, mas houve.

Seu time de capitães fazia o cerco, o corpo a corpo em toda a cidade, tudo  muito típico de eleição para vereador, a mais dura delas, ao menos de minha própria experiência.

Judélio, malandro, ia conversando com a juventude dizendo Navarrinho já está eleito me ajudem.

Papo perigoso, capaz às vezes de tirar eleição ganha.

No mundo político tradicional, ninguém dava um vintém pela eleição dele...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Alvaro Figueiredo: copiado, bom parceiro obrigado!🤩

Thiago Conceição: Hoje o filho de Judelio Carmo, segue o mesmo caminho na política local de sua cidade de origem.....Ex Vereador, foi Presidente da Câmara de vereadores, lançou- se candidato a Deputado, é o atual Secretário de Educação no Município......Gustavo Carmo.

Emiliano José: obrigado

Mônica Bichara: Pois é, leiam "Balança mas não cai" pra conhecer o Emiliano José foca. Sim, nosso imortal da ABL já foi foca. E nosso querido Navarrinho estava por perto 

----------------------------------------------- 

(Eleito vereador, Navarrinho foi homenageado com o Título de Cidadão de Alagoinhas)

Emiliano José

31 de maio de 2021

Carlos Navarro Filho: a surpresa da

eleição de Navarrinho, revelação

de uma cidade progressista, fazendo

campanha na moita, ajuda de Gabino

Kruscheswky, salário comido pela campanha.

 

Ao contrário do pensamento dos caciques da política de Alagoinhas, Navarrinho se elegeu, e bem.

Ele e Judélio Carmo.

O MDB fez cinco vereadores, eles os dois mais votados do partido.

O município fazia jus à sua tradição progressista, elegendo dois jovens do MDB.

Oito anos depois, Judélio Carmo será eleito prefeito, mas em 1975 sofre impeachment, jeito encontrado pela direita municipal de tirá-lo do poder.

Haverá mais tarde, a chegada do PT à Prefeitura: Joseildo Ramos se elege em 2000, se reelege em 2004, com fim de mandato em 2008.

Cidade de boa tradição política.

Navarrinho credita a eleição dele à militância reunida em torno de sua campanha, à sua juventude, à sua beleza, "com 20 anos todo mundo é bonitinho", e à sua condição de atleta conhecido na cidade.

À época, jogava como aspirante no Grêmio, mais tarde Atlético de Alagoinhas, recém proclamado com justiça campeão baiano - Bahia e Vitória, os grandes, de fora.

O fato: ele constituiu-se na grande surpresa daquela eleição.

O mundo político tradicional não acreditava fosse a popularidade do "menino" suficiente para elegê-lo: não tinha dinheiro, não era de família política conhecida, então carta fora do baralho.

Engano.

Elegeu-se, e bem à frente de alguns dos políticos tradicionais.

Amigos dele, alguns mais velhos e da velha escola da política, chegaram a torcer o nariz quando o viram eleito, putos.

Durante a campanha, Navarrinho corria atrás do voto, mantinha a humildade, não fazia alarde para não ser alvo, na moita.

Também para não dar asas aos apostadores - não iria dar a chance de ganharem dinheiro com sua vitória.

No interior, há uma febre por apostas nas eleições - ou ao menos, havia.

Só quando as urnas foram abertas e a contagem começou, alguns perceberam a possibilidade da vitória dele, e jogaram fichas no potro novo.

Ganharam algum dinheiro ainda.

O único apoio de Navarrinho, de fora, foi de Gabino Kruscheswsky, candidato a deputado estadual pelo MDB, eleito naquela disputa.

Ganhou uma fortuna dele: cinco bolas e três jogos completos de futebol - camisa, calção e meião.

Não deu pra quem quis, uma disputa da porra, não sabe se foi bom ou ruim, muita gente ficou puta da vida  por não ter recebido.

O salário dele, na Prefeitura, era de bom tamanho.

Ao menos, para um rapaz solteiro, sem grandes despesas.

Para a campanha, no entanto, um sopro: recebia e rapidamente o dinheiro desaparecia com as despesas da campanha.

Há coisas não ditas, ou mal ditas, segredos de campanha.

Navarrinho costumava ir ao Alecrim - a zona da cidade.

Não propriamente atrás de sexo, soube.

Apenas tomar uma ou duas cangibrinas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Hahahaha "beleza" dos outros, eu era só um garoto latinoamericanoalagoinhense.

Emiliano José: aos 20 todos são bonitinhos, aspeei, tem razão, até eu era...

Carlos Navarro: E centrefó do time da escola.

Manoel Barretto: Realmente poucos acreditavam que Navarrinho se elegesse.

Emiliano José: Dançaram. É que o rapaz era bonito...

Carlos Navarro: Emiliano José: Lá ele.

Carlos Navarro: Grande Netinho, proponho uma conversa alagoinhense no fim dessa pandemia. Topas?

Manoel Barretto: Claro, vamos dar um tempo pra esta loucura melhorar e vamos marcar.

Manoel Barretto: como faço pra comprar o livro Gororoba? Temos muita conversa pra jogar.

Mônica Bichara: Líder estudantil e vereador, nunca imaginei esse passado de Navarrinho. Emiliano José vai cavoucando e descobre é coisa

Carlos Navarro: Pois é Mônica, nem eu lembrava dessas passagens.

Mônica Bichara: que bom que o repórter Emiliano não deixou isso só no baú da memória, é história

 Manoel Barretto: Claro. Quando está loucura permitir vamos sim 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

1 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: Alecrim dourado

que nasceu no campo sem ser semeado,

a zona em Alagoinhas, Navarrinho só ia

ali pra comer água, ajudava as meninas,

teve ali  alguns votinhos, fez amizades.

 

Navarrinho viaja no tempo quando pensa no Alecrim.

Volta aos tempos de infância, menino menino lá pelos lados de Iaçu.

Nem Iaçu ainda.

Paraguaçu.

Ou Sítio Novo.

Era cantiga de ouvir Mariazinha do Boqueirão cantar:

Alecrim, alecrim dourado

Que nasceu no campo sem ser semeado.

Entre uma travessura e outra, Navarrinho escutava:

Foi meu amor que me disse assim

Que a flor do campo é o alecrim.

Os amigos de Alagoinhas cedo cedo lhe falaram do Alecrim.

Não era bem o alecrim dourado.

Rua da Zona.

Lá no Paraguaçu também tinha - era a rua do Crefe.

Só lembranças - menino, nem de nada sabia.

A rua da Zona em qualquer cidade do interior era o objeto do desejo de muita gente - dos homens, claro.

As mulheres, as esposas, amaldiçoavam, sempre.

Rua da perdição.

Para os homens, paraíso.

Território da iniciação sexual.

De muitos fregueses habituais, aqueles acostumados a marcar ponto.

Alguns até com amores na zona.

Os tomados de paixão chegavam a tirar a mulher da zona.

Quem não conhece a música de Odair José:

Eu vou tirar você desse lugar

Eu vou levar você pra ficar comigo

E não me interessa o que os outros vão pensar.

Tudo isso povoava a mente de Navarrinho.

O Alecrim em Alagoinhas era, além de tudo, uma retaguarda.

Os bares todos fechavam, e restava o Alecrim.

Muita gente ia pra lá, tarde da noite, mais pela chance de tomar uma, comer água.

Nessa barca ia Navarrinho.

Homem sério.

Mas, ia  sempre.

E na campanha, ele amiudou ainda mais as idas.

Conversava com uma menina, com outra, zagueiro bom não perde viagem, era candidato.

Chegou a ajudar uma ou outra, gastar uns trocadinhos: arrumar um telhado, consertar uma porta, dinheirinho pra compra de carvão pra cozinhar...

Menos pelos votos, mais pelo coração generoso - característica de Navarrinho.

As meninas se engraçavam com o menino bonitinho, mas ele, consciente da condição de candidato, ria muito, brincava, bebia sua cangibrina, mas mantinha postura de homem sério - acreditem, é testemunho atual dele, não riam não.

Dali, não nega, surgiram alguns votinhos, a contribuir com sua inesperada eleição. 

Fez amizades.

Não pode negar.

Política tem dessas coisas...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

2 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: vereador num ano

de Constituição tutelada pelos militares,

volta da organização popular, UNE, UBES,

a força da cultura sob regimes autoritários,

a música de protesto, Carcará pega mata e come...

 

Navarrinho eleito.

Caminhava no leito da retomada das lutas estudantis de 1966, a partir de Salvador.

Entrara de cabeça na luta da Lei Orgânica, em 1967, contra o ensino pago.

Era enfronhado nas lutas  pela democratização do esporte, especialmente do futebol.

Articulado com o prefeito Murilo Cavalcanti, de quem tinha as bênçãos.

Quando assume, no início de 1967,  divisava uma larga estrada pela frente.

O ano prometia.

O País começava a respirar, ainda aos poucos, depois do golpe de 1964.

Claro, ninguém me alerte: continuava ditadura.

A nova Constituição, do início daquele ano, desenvolvida sob o olhar atento dos militares, buscava adequar o País à ditadura, consagrando o controle castrense sobre o Legislativo e o Judiciário.

Ali se constitucionalizava a presença militar e se dava sinais nítidos de uma estadia de longo prazo no poder.

A oposição, no entanto, apesar de tudo, de toda a repressão desencadeada pelo golpe, começa a se rearticular.

A área cultural dava sinais de intensa vitalidade.

Só para lembrar do mundo musical, é ano de "Ponteio", de "Alegria, Alegria", de "Roda Viva", de "Domingo no Parque", tudo do Festival da Música Popular Brasileira.

Era Edu Lobo.

Caetano.

Era Chico Buarque.

Gilberto Gil.

Ano anterior, 1966, Vandré e Chico dividiram o primeiro lugar do festival: Disparada e A Banda.

Cultura e sua criatividade, sempre pedra no sapato de qualquer tipo de autoritarismo.

Aproveito para voltar um pouco no tempo, e falar de ousadia da cultura: o show "Opinião", estreia em dezembro de 1964, com Nara Leão, João do Vale e Zé Keti, texto de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, uma porrada, acontecimento, referência histórica na música de protesto.

Carcará pega mata e come - lembram?

Não por acaso, a cultura é sempre perseguida pelos regimes autoritários de qualquer natureza, como acontece nos dias atuais.

A UNE realizava seu XXIX Congresso, em Valinhos, São Paulo, clandestinamente.

A UBES também ressurgia.

O movimento estudantil será, em 1968, o grande opositor da ditadura, promovendo gigantescas mobilizações em todo o País.

E a organização dos estudantes ganha corpo em 1967...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: Vandré?

Emiliano José: Rapidamente, incluí. Em 1968, Vandré explode novamente. Obrigado

Alyne Costa: Vixe, eu vou é ouvir Vandré pra sair dessa tristeza enorme que me bateu hj.

Maria José Malheiros: Nao pode esquecer de falar um dia da Ubes de Goiania, Euler Ivo, Chico Montenegro e dezenas de quadros valorosos que lutaram bravamente contra a ditadura

Emiliano José: Maria José Malheiros Milhares. Um dia. Talvez outros o farão. Esses dias falei com Euler. 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

3 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: chegando querendo mudar o mundo, aprendendo, de

centroavante pra meio de campo,

primeiras indicações, primeiros projetos, primeiro tombo, malandro é malandro,

mané é mané, aprendendo tricô

 

Navarrinho, novinho novinho, assume o mandato no início de 1967.

Assume, no ardor de seus 22 anos, querendo mudar o mundo.

Botar pra quebrar.

Arregaçar.

Cheio de gás.

De planos.

Rapidamente, descobre: o céu é mais em cima.

O buraco é mais embaixo.

Uma casa legislativa é cheia de segredos.

Carece descobri-los.

Há entraves, obstáculos, e não são pequenos.

O pensamento desejoso apenas não basta.

Muita agua corre por debaixo daquela ponte.

Há interesses a condicionar a atividade parlamentar.

No primeiro momento, melhor o papel do meio de campo manhoso, capaz de cobrir a retaguarda e distribuir bola.

Centro-avante, só na sequência, e Navarrinho chegou com o ímpeto de atacante, a praia dele.

Há rotinas, há regimento, tempo de fala, prioridades para os líderes.

Navarrinho percebeu: mandato é coisa sofisticada, é política, é malevolência.

Não era apenas para a figura do trombador, embora também pudesse ser.

Chegou pensando em grandes projetos - e ainda bem, papel de um jovem vereador.

Naquele tempo, começava a se falar na BR-101.

Pensou nisso, e aprovou uma indicação: a BR-101 devia passar por Alagoinhas.

O traçado dela devia garantir a passagem o mais próximo possivel da cidade, e contou, para a indicação, com a ajuda de engenheiros amigos.

A televisão ganhava força.

Vamos lembrar: a televisão, até o iniciozinho dos anos 60, não era a mídia dominante.

Mas, a partir de meados da década, ganha muita importância, e torna-se dominante, de âmbito nacional, a partir do final de 1969, depois de a ditadura ter garantido a infraestrutura indispensável, criado as condições para a Rede Globo tornar-se hegemônica.

Na Bahia, 1967, a TV Itapoan era a tal.

Navarrinho tascou-lhe uma indicação: instalação de uma antena repetidora, de modo a garantir o sinal para a cidade.

Um projeto de lei, quase inevitável diante de sua condição de liderança estudantil, de grande repercussão: meia passagem para os estudantes.

De grande repercussão, ainda, foi o projeto de criação do Centro Industrial de Alagoinhas, com destinação de terreno e tudo.

Neste, tomou um tombo: teve de dividir autoria com outro vereador, Edson Oliveira, da Arena, gerente do cinema da cidade.

Língua solta, inexperiente, Navarrinho, comentou com Oliveira sobre o projeto, ainda em elaboração.

O vereador, de quem Navarrinho se considerava amigo, correu, apresentou logo o projeto - malandro é malandro, mané é mané.

Foi a ele, reclamou: o que é isso, companheiro? O colega muito gentilmente permitiu fosse coautor.

Começava a entender: o mais bobo ali fazia tricô com luvas de boxe.

Navarrinho ainda não aprendera tricô.

Foi ali sua escola.

Era preciso estar sempre de olhos abertos, não dar sopa para o azar.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: !!! isso

Adelia Andrade: Muito bom mestre. Bjs

Artur Carmel: Vivendo e aprendendo a jogar... 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

4 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: muito trabalho,

ajuda para o "Carneirão", muitos

contatos, prefeito de Feira e as dicas,

estádio pronto, e ele alegre e triste,

não experimentou o gramado como jogador.

 

Navarrinho seguia com o mandato, aprendendo a fazer tricô.

Muitas indicações, vários projetos.

Não recorda de tudo.

Os anais da Câmara certamente guardam todo o acervo.

Acalenta essa esperança.

Ajudou muito, disso se recorda, na construção do Estádio  Antônio Carneiro - como não fazê-lo?

Apaixonado por futebol, estrela na cidade, como não ajudaria?

Como vereador e secretário.

Ele, lado a lado com  o prefeito Murilo Cavalcanti, com dezenas de pessoas da cidade, meteu mãos à obra.

O estádio aconteceu.

Estiveram umas tantas vezes com o prefeito de Feira de Santana, Joselito Amorim.

O "Joia da Princesa" surgira na gestão de Amorim, em 1966.

Amorim fora a solução encontrada pela direita logo depois do golpe para ocupar a Prefeitura em 1964, depois do vendaval repressivo levar Chico Pinto para a cadeia.

Navarrinho, Murilo, tantos outros, podiam aprender com ele os segredos, as manhas da construção de um estádio.

Surgia o Estádio Antônio Carneiro - o Carneirão.

Inteiramente construído com recursos municipais.

Ficava para trás o campo da LDA - Liga Desportiva de Alagoinhas.

Nesse campo, Navarrinho viveu momentos de glória de centroavante rompedor, dono da pequena área, goleador, ídolo da rapaziada, especialmente das minas da cidade.

Estádio construído, alegria, alegria, e tristeza - a vida não tem  linha reta.

Restou uma frustração.

Navarrinho olhava para o gramado, verdinho, verdinho, para as arquibancadas, tudo novo, novinho.

Chegou a sonhar, ver-se em movimento, rompendo zagas adversárias, o estádio de pé, gritando, comemorando seu gol.

Nada, nem uma partidazinha sequer.

Nunca jogou no Carneirão.

Alegre, feliz, por ver o Atlético de Alagoinhas, campeão baiano hoje - ele brilhou no Grêmio, antigo nome do time.

Nunca esqueceu, no entanto: volta e meia, uma ponta de tristeza o invade por não ter podido desfilar seu talento no novo campo.

Quando avalia o mandato, arrisca dizer: não foi um grande mandato.

Essa avaliação, talvez, decorra da conhecida modéstia dele.

Ou, também, da brevidade da presença dele na Câmara Municipal.

Dezembro de 1968.

Sobre o Brasil, desaba o AI-5...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: Carneirinho é

quem inaugura o Carneirão, AI-5, às

favas os escrúpulos de consciência,

o risco do guarda da esquina, uma

longa fase de terror e morte.

 

Antes de seguir adiante, precisar uma coisa.

Contador de história, é assim: deve de não deixar dúvidas no leitor.

Carece isso.

Jornalista, também.

E contador de história e jornalista não são a mesma coisa?

Às vezes.

O Carneirão, estádio tão falado já, não foi inaugurado na gestão de Murilo Cavalcanti.

Coube ao prefeito Antônio de Figueiredo Carneiro, o sucessor, a inauguração.

Os primeiros movimentos foram de Murilo Cavalcanti, mas a finalização foi de Carneirinho, como era chamado, e ninguém saber por que o estádio, a levar o nome dele, passou a se chamar Carneirão - são as manias de grandeza, não se sabe de quem.

Dito isso, o contador está à vontade para voltar ao final de 1968, quando o AI-5 desaba sobre a Nação.

Foi num dia 13.

13 de dezembro.

A ditadura, com isso, deixava de lado quaisquer resquícios de legalidade.

O coronel Jarbas Passarinho, então ministro da Educação, teve a sinceridade de "mandar às favas todos os escrúpulos de consciência" quando da assinatura do ato, numa frase a ficar na história.

Foi uma reunião de frases famosas.

O ditador Costa e Silva, diante das preocupações manifestadas pelo vice Pedro Aleixo com a edição do ato, perguntou-lhe sobre as razões de tais preocupações.

Aleixo não se fez de rogado:

- Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem com os que com o senhor governam o País. O problema é o guarda da esquina.

Tinham razão os dois, Passarinho e Aleixo.

Um, pela sinceridade - deixou os escrúpulos de lado.

Outro, pelo diagnóstico - o País abria as portas do inferno, dava autoridade ao guarda da esquina para todas as atrocidades.

O AI-5 iniciou uma temporada de terror e morte.

De prisões, torturas, desaparecimento de pessoas.

Sob Médici, sucessor de Costa e Silva depois do interregno de uma Junta Militar, a ditadura restou nua, sem disfarces - e nua era muito mais feia.

Não obstante a distensão lenta e gradual iniciada em 1974 com Geisel, seguirá matando, como proclamado pelo próprio general-presidente.

Com Figueiredo, e muita luta do povo, já ocorrem mudanças.

O País só vai respirar em 1985, quando o regime militar é derrotado.

Quando chegou o AI-5, Navarrinho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: "Essa abertura é um furo !" , pichação em Amaralina, no final dos 70

Emiliano José: e era

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

6 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: discurso contra o AI-5,

acompanhado  por  dois colegas, denunciados

ao SNI pelos Azi, denúncia  não segue adiante,

Navarrinho se manda  de Alagoinhas, e

em 1970 pede licença do mandato de

vereador, seu último ano como parlamentar.

 

Veio o AI-5.

Navarrinho, na linha do coronel Passarinho, mandou às favas qualquer prudência.

O sangue ferveu.

As razões da consciência falaram mais alto, nesse caso o avesso de Passarinho.

Juventude não costuma pesar riscos.

Vai pra cima, e depois vê no que dá.

Navarrinho deitou e rolou pra cima de Costa e Silva.

Criticou o arbítrio representado pelo AI-5,  início da era de trevas.

Pronunciamento duro, e de intensa repercussão.

A família Azi, oposição a Murilo Cavalcanti e a qualquer tipo de esquerda, grava o discurso, e manda para o SNI, para as mãos de Bião, oficial do Exército, chefe do serviço.

Mandou os discursos de Navarrinho, de Crisanto Borges e de Hostílio Ribeiro Dias.

Crisanto, anarquista, contestador, poeta e jornalista.

Hostílio, velho comunista, de carteirinha.

Ambos do MDB,  como Navarrinho.

Haviam metido a porra no AI-5, também.

Por sorte, olha ela aí de novo, Crisanto Borges era cunhado de Bião, e de alguma forma isso fez com que a tentativa dos Azi de mandar os três para a cadeia se frustrasse.

Os discursos restaram engavetados.

Ninguém foi indiciado, incurso na temível Lei de Segurança Nacional, até hoje vigente, espera-se em fase terminal.

Navarrinho, no entanto, sabia: barra pesou.

Resolve se afastar de Alagoinhas.

Por duas razões: havia passado no vestibular para Jornalismo e a ditadura o colocara na mira.

Não abandona o mandato.

Concilia as aulas do curso de Jornalismo com as duas sessões por semana na Câmara de Vereadores de Alagoinhas.

Chegava de ônibus pouco antes do início da sessão, voltava para Salvador no outro dia, cedinho.

Na moita.

Era o infernal ano de 1969 -  infernal porque era repressão para todo lado, a ditadura disposta a prender e matar, prendendo e matando.

No ano de 1970, último ano do mandato, tendo de dar conta dos estudos e já trabalhando no "Jornal da Bahia", resolve pedir licença da atividade na Câmara Municipal.

Na real, na real, dava adeus à vida parlamentar.

Não era a dele - foi concluindo.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: saltando uma

grande fogueira, Bião Luna homem

chave da ditadura, organizador do

DOI-CODI na Bahia, manda um

carateca massacrar Theodomiro

em 1970, e Paulo Pontes é também ameaçado.

 

Navarrinho, mais tarde grande jornalista, certamente sabia, e vai saber ainda mais quando escarafunchou a vida do cidadão, o tamanho da fogueira que pulou quando as investigações sobre o discurso foram engavetadas.

O dito cidadão é Antônio Bião Martins Luna.

Natural, do meu saber, de Alagoinhas.

Parece tinha algum apreço por seus conterrâneos.

Pudesse, livrava a cara deles.

Agora, nós, presos políticos então, fim da década de 60, início dos anos 1970, o conhecíamos como temível, terrível homem da ditadura.

Um dos organizadores do DOI-CODI na Bahia.

Formava dupla de linha de frente com Luiz Arthur de Carvalho, durante anos superintendente da Polícia Federal, o homem a me mandar para a tortura em novembro de 1970.

Os dois serão secretários de Segurança: Bião Luna, de João Durval; Luiz Arthur, de Roberto Santos.

De Bião Luna, contam-se muitas histórias, e não são lendas urbanas.

Uma, testemunhei.

Provavelmente outubro de 1970, eu já preso, no Quartel do Barbalho.

Chega o cabo Dalmar Caribé, no ano seguinte um  dos assassinos do capitão Carlos Lamarca, no sertão da Bahia.

Vinha acompanhado de alguns bate-paus, também do Exército.

Ditadura carrega a marca da covardia.

Os torturadores andam sempre de bando.

Mandou abrir a cela de Theodomiro Romeiro dos Santos, mais tarde, em março de 1971, o primeiro condenado à morte sob a ditadura.

Deixou os bate-paus guarnecendo a porta da cela, entrou, e como bom carateca, massacrou Theodomiro, porrada até cansar.

Deixou Theo no chão, todo arrebentado.

Saiu, esfregando as mãos, e gritou para todos ouvirem:

- Fiz isso a mando do coronel Bião Luna.

A porradaria, testemunhei, cá da cela onde estava.

Ao menos, ouvia os gritos de Dalmar Caribé, de puro sadismo - não dava pra ver dentro, estava numa das celas ao lado.

A frase, testemunho de Paulo Pontes, ouvida nitidamente.

O covarde, não contente, passou em frente à cela onde Paulo estava, e disse:

- Eu volto, o próximo será você.

Certamente também um dos jurados por Bião Luna.

Não voltou, ocupado com outras tarefas repressivas.

Para alívio de Paulo.

Confessa:  no momento, sentiu um medo danado.

Incutir medo era uma característica dos torturadores.

Não cumprissem as ameaças, deixavam o medo no ar.

Divertiam-se com isso.

Puro sadismo.

Paulo, vocês sabem, foi preso junto com Theodomiro, no Dique, naquele ano de 1970.

Mas, há outras histórias em torno de Bião Luna...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Sônia Maria Haas: Muito bom. Adoro ler, mesmo que muitas figuras eu não conheça a história.

Carlos A Scorpião: Estava lá, e teve jatos fortes de água, após. Cela sem colchão, e ele nu.

-------------------------------------------------- 

(Fernando Escariz.  Alagados para matérias sobre a visita do Papa. Foto: Agliberto Lima)

Emiliano José

8 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: troca de guarda,

sai ACM, entra João Durval, sai Durval

Mattos, entra Bião Luna na secretaria

de Segurança, Escariz meteu o pau

no novo secretário, Matos se

assusta, depois compreende.

 

Corria o ano de 1983.

Tempo de troca de guarda.

Saía ACM, entrava João Durval Carneiro.

Primeiro governador eleito pelo voto direto, guindado à condição pela força de ACM.

Clériston Andrade havia morrido pouco antes da eleição num acidente, e ACM se viu obrigado a tirar rapidamente um nome da algibeira para substituí-lo.

A imprensa chegou a questioná-lo.

Um repórter mais atrevido chegou a perguntar:

- O senhor acha possível eleger um nome tão inexpressivo?

ACM nem titubeou, expôs toda sua costumeira arrogância:

- Meu filho, se eu quiser elejo até um poste.

Elegeu João Durval.

O novo governador pensou, pensou, e escolheu Antônio Bião Martins Luna como secretário de Segurança.

Navarrinho está de camarote, por enquanto, esperando para voltar à cena, enquanto vamos contando histórias de Bião.

Ainda mais se história envolvendo jornalista, imperdível.

O chefe de Comunicação da Secretaria de Segurança era o jornalista Antônio Matos - desempenhara a função durante a gestão do coronel Durval Mattos.

Já começara a limpar as gavetas, quando foi chamado por Bião Luna:

- Você continua no cargo.

Nada mal.

Vida que segue.

Dia seguinte à posse do novo secretário, abre a "Tribuna da Bahia" e depara com matéria assustadora para quem está no início de nova gestão.

Desancava o secretário Bião Luna.

Desnudava suas ligações com a ditadura, toda sua folha corrida de homem do arbítrio, de torturador para cima.

Poderia ainda considerar razoável, coisa de jornalista, não fosse assinada pelo seu melhor amigo, seu compadre Fernando Escariz.

Ligou pra Escariz:

- Meu irmão, você quer me fuder?

Escariz, de pronto, inocente, perguntou:

- O que houve?

- Ora, Escariz, você não deixa eu nem esquentar lugar, e logo no primeiro dia escreve matéria esculhambando o secretário. Não podia ao menos esperar um pouquinho?

Uns segundos de silêncio, e Escariz responde:

- Matos, toda a Bahia sabe de nossa amizade. Coisa de irmãos, pra durar a vida inteira, não é verdade?

Matos, assuntando, querendo entender a argumentação:

- Sim, sei, e por isso mesmo estou perplexo com a matéria.

Escariz explicou:

- Quis passar um recado, Matos. Nem amizade como essa preservará o secretário. Ele não foi blindado com a indicação de meu melhor amigo para chefiar a Comunicação dele. A partir de hoje, já sabe.

Matos, silencioso.

Nada a dizer.

Matou a bola no peito, seguiu adiante.

A admiração por Escariz, apesar da matéria, ou por causa dela, aumentou.

O amigo era um jornalista.

De caráter irretocável.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Maria De Lourdes Ribeiro de Morais: Helisa Escariz

Helisa Escariz: Esse era Fernando Escariz!!

---------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: crime muda de

feição em Salvador, antes arrombador,

em 1970 quadrilhas chegando,

cerco a uma delas em Itapuã,

Bião leva um tiro inesquecível...

 

Possível, descarto não: fãs de Navarrinho devem estar impacientes para vê-lo de volta à cena.

Tomei atalho, desapeei do cavalo, e gostei da parada.

Peço um pouquinho de paciência.

Tem a ver com a fogueira saltada por Navarrinho: a fogueira de Bião Luna - entendam isso.

Homem de muitas histórias, sobretudo aquelas vinculadas à repressão da ditadura.

Mas, há outras, ligadas à repressão, mais apimentadas, e nem sempre reveladoras de bravura - digo sempre, e repito: a covardia é traço das ditaduras, e de seus torcionários.

Salvador um pouco antes do início dos anos 1970, não contava com quadrilhas organizadas - isso me foi revelado por uma fonte policial esses dias.

O ladrão, o acostumado a roubar residências, era comum - o arrombador, bem conhecido.

Mais mané do que malandro.

Caía fácil nas malhas da polícia.

A partir do final da década de 1960, início dos 1970, começou a surgir por essas bandas as quadrilhas, normalmente vindas do Sul Maravilha.

O crime começava a se sofisticar.

Vicente Vaz Maia chegou por aqui no início dos 1970, com sua quadrilha.

Já havia assaltado alguns bancos em São Paulo.

Resolveu recuar para a Bahia.

Pelo Sul, barra pesou.

As forças policiais mapearam o deslocamento.

Bião Luna, sabendo tratar-se de assaltantes de banco, gritou:

- Deixa comigo, é assunto de segurança nacional.

E lá se foi ele, peito estufado, valentia toda do mundo.

Com  alguns homens do Exército, não sei se também reforço de policiais civis.

Cercaram a casa da quadrilha em Itapuã.

Meteram bala.

Rendição.

Aí, várias versões.

A mais plausível: Vicente, rendido, todo cordato, pede pra pegar muda de roupa no quarto.

Sai de lá cuspindo fogo, dois revólveres nas mãos.

Os policiais saem correndo, um rebucetê.

Mas, se recompõem, voltam.

Atiram de novo, outra fuzilaria.

Dominam a situação, prendem a quadrilha.

Saldo:  Antônio Bião Martins Luna, ferido.

Com um tiro na bunda.

Isso no nosso tempo de prisão na "Lemos Brito", corria de boca em boca, e Vicente não deixava de espalhar.

Foi nosso contemporâneo lá.

Na Secretaria de Segurança Pública, secretário ou não fosse, a notícia nunca deixou de correr, aos sussurros, murmúrios, comentários no breu das tocas: um tiro na bunda não é para qualquer um.

É marca para sempre.

Não dá pra disfarçar e dizer: foi em combate.

É marca de fuga, de quem não quis o confronto.

De quem fugiu, apavorado.

Vicente sorria quando perguntado, e contava.

Um dia fugiu, com seus companheiros - ele não era brinquedo, não, inteligência rara.

Conto sobre a fuga em "O cão morde a noite", lançado por mim recentemente.

Ironia: depois da fuga, em São Paulo, teve o carro assaltado, levou um tiro, ficou tetraplégico.

Consolo: seus companheiros mataram o assaltante logo depois.

Vicente morreu num hospital penitenciário...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

10 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: 1974 ano de virada,

no País e na vida de Navarrinho, susto nas

eleições, MDB elege ampla maioria de

senadores, ditadura se assusta edita

Pacote de Abril, senadores biônicos.

 

1974 foi um ano decisivo.

Para o País e para Navarrinho.

Lead: naquele ano o País perderia um político promissor, ganharia um extraordinário jornalista.

Foi para Navarrinho o ano decisivo, quando  ele atravessou o Rubicão.

Vamos entender.

Contextualizar é bom e eu gosto.

Peço licença aos mais velhos e aos mais novos, aos leitores e leitoras.

Começaria naquele ano o governo Geisel.

Distensão lenta e gradual, promessa de alguma abertura, tímida pra burro a bem da verdade.

Mais: não seria afrouxada a política de prender, torturar e matar adversários - isso, não me canso de lembrar, foi dito pelo próprio

Geisel.

Confessou a necessidade, para a ditadura, de ainda continuar a matar.

Continuou.

Ainda assim, um novo mando ditatorial, com algumas diferenças para o governo Médici.

Não creio exagerar se disser ter começado naquele ano o declínio da ditadura.

A população, passados quase dez anos de regime de arrocho e de terror, começava a se cansar.

E nas urnas, em novembro, deu uma resposta dura ao regime, dando expressiva vitória ao MDB em todo o País.

Aquelas eleições deram ao MDB um protagonismo jamais experimentado pelo partido.

Só para dar um exemplo: dos 22 estados que elegiam senadores, o MDB elegeu 16.

Era uma primeira virada de mesa, feita pelo povo, um recado cristalino, de óbvio repúdio.

A ponto de Geisel, tentando evitar perder inteiramente o domínio da situação, ter fechado momentaneamente o Congresso, e editado o chamado Pacote de Abril.

Era abril - parece mês da predileção de golpistas: golpe de 1964, Pacote de Abril, golpe de 2016.

Do número 13, não creio gostem - mas tal pacote, editado no dia 13 de abril de 1977.

Geisel mostrava: o caminho até o fim da ditadura ainda seria longo.

Só ocorreria em 1985, como sabemos.

No pacote, determinava-se: um terço dos senadores não seria mais eleito pelo voto direto

Seriam senadores biônicos, amigos do rei, indicados pelo presidente.

Ditadura não queria correr riscos na eleição do ano seguinte...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: troca de guarda,

sai ACM, entra Roberto Santos, a Bahia

respira, Alagoinhas em disputa,

acompanha Judélio à cidade, decisão MDB.

 

No Brasil, sinais de mudança.

Bahia, também.

Mudança de guarda, consequências.

Geisel não ia muito com os cornos de ACM.

Governador, vocês sabem, não rimava com voto direto.

Ditador, escolhia.

ACM esperava, babando.

Com alguma consciência, sentia a aragem: novos ventos soprando.

Geisel manda ver: governador seria Roberto Santos.

Para não deixar ACM no sereno, manda-o para a Eletrobras, essa agora a ser privatizada pelo atual governo.

Não foi um bom momento para o velho mandachuva aquele 1974, nem o ano seguinte, 1975.

Ele, no entanto, sabia se mexer.

Tinha fôlego, sabia cultivar, babar os militares, mimoseá-los,  e voltaria na troca de guarda seguinte, 1979.

Adiantando-me: a chegada de Roberto Santos, com ditadura e tudo, foi recebida com suspiros de alívio.

Não era homem de perseguições.

O "Jornal da Bahia", vítima de cruzada implacável do velho soba, pôde respirar.

A ciência se viu mais prestigiada, como a Educação.

Um estilo novo, bem mais ameno.

Ninguém se iludia: sabia da existência da sobredeterminação da ditadura, suas garras impiedosas.

Uma coisa, no entanto, era ACM.

Outra, Roberto.

O diabo mora é nos detalhes.

E Alagoinhas?

Na leitura de Navarrinho, as coisas por lá andavam complicadas.

O MDB perdeu a família Maia, tradicional na política local.

Estava isolado.

Ele, já inteiramente devotado ao jornalismo.

Naquele 1974, Judélio Carmo, sempre a pensar naquilo, o procura em Salvador.

Diz: precisamos de você em Alagoinhas.

Afirma: você é o melhor nome para prefeito.

Convida-o a acompanhá-lo.

Haveria votação decisiva sobre quem seria o candidato.

Navarrinho, só assuntando.

Aceitou o convite - apenas para a votação decisiva.

O resto, resto.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho

acompanhava Judélio Carmo em

viagem a Alagoinhas, já havia se

decidido pelo jornalismo,

seu companheiro de viagem

doido pra ser o candidato.

 

Navarrinho ouvia Judélio Carmo pelo caminho.

Com a corda toda, o companheiro de viagem só pensava naquilo: queria ser o candidato a prefeito.

Sempre pensou nisso.

Habilidoso, dizia, no entanto: melhor candidato é você.

Quiser, e será.

Navarrinho, assentindo.

Até certo ponto.

Dizia: não quero.

Judélio, claro, desconfiava.

Coisas da política.

Resquícios da escola do velho PSD: se alguém disser não, crave sim.

Nesse caso, era verdade: não era não.

Judélio, obstinado:

- Bem, se você não quiser, eu serei candidato, e quero seu apoio.

Navarrinho havia dado um giro na vida.

Claro, aqui, acolá, no pensamento, uma ponta de dúvida.

Por que não ser prefeito de uma cidade da importância de Alagoinhas?

Honra danada.

E os seus companheiros, aqueles acostumados a segui-lo, a juventude entusiasmada, os ferroviários, os intelectuais da cidade, queriam-no candidato.

Havia evidenciado carisma, e num MDB relativamente isolado, isso era essencial para a vitória.

Pensava em tudo isso, sensibiliza-se com tantas demonstrações de apreço.

Mas na real, na real, não queria.

Em 1974,  já estava no Estadão - essa é história ainda a ser contada, mas já adiantamos.

Gostando e muito da profissão.

Encontrou seu caminho.

Não tivesse encontrado vocação nas duas tentativas de seminário, encontrava-a agora.

Apaixonou-se pelo jornalismo.

E além de tudo, casou-se, e aí a vida muda pra valer.

E Popoya não queria nem ouvir falar nisso, nessa história de candidatura a prefeito - era ele dar qualquer palavra em torno do assunto, e ela mandava parar, e Navarrinho, besta nem nada, parava: tem homem acostumado a não desafiar a mulher, os mais sábios.

Então, acompanhava seu companheiro a Alagoinhas disposto a ajudar  a reestruturar o MDB e a contribuir para a candidatura dele a prefeito.

Nada mais.

Disputar a indicação, não...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-----------------------------------------------------

Emiliano José

13 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho ao lado de

Judélio Carmo, deixa cartas de apoio,

decide-se definitivamente pelo jornalismo,

política lhe dá régua e compasso para

novo passo, lado a lado com os pais.

 

Navarrinho desembarcou em Alagoinhas decidido.

Não seria candidato.

Jornalismo era seu caminho a partir de agora.

Sem retorno.

Então, ajudou na rearticulação do MDB, apoiou Judélio Carmo para prefeito, deixou carta de apoio, outra para um candidato a vereador, Xavier, não lembra sobrenome, ele se elegeu - era secretário dele na entidade estudantil.

Judélio, vocês sabem, se elegeu, e logo logo sofrerá um processo de impeachment articulado pela direita, de repercussão nacional.

Será afastado da Prefeitura, tudo isso com o carimbo da família Azi.

Eu próprio, em 1975, novo, novo no jornalismo, no "Jornal da Bahia", farei a cobertura do impeachment.

Durou pouco essa primeira gestão de Judélio Carmo - a direita, podendo, sempre dá o golpe.

Ele voltará, no entanto, mas aí é outra história.

Estava encerrado um capítulo na vida de Navarrinho.

Aos 29 anos, definia seu norte.

A política lhe dera régua e compasso.

Contribuíra decisivamente para sua formação cidadã.

Por ela, situado no campo da esquerda.

No território das ideias progressistas.

Base para sua nova caminhada.

Soubesse ou não, o jornalismo era também uma tribuna.

Delicada, perigosa tribuna.

A exigir fortes compromissos éticos.

Sobretudo com a verdade, viesse ela de onde viesse.

Difícil de ser encontrada, mas uma utopia a ser buscada a cada dia.

Essa formação ética, tivera: se é certo ter a política contribuído, não foi apenas ela a lhe dar essa base: o pai e a mãe, de modo especial, lhe transmitiram valores essenciais, jamais abandonados.

O contador de histórias vai e volta, porque a vida não tem linha reta.

Se é preciso falar do Navarrinho jornalista, e estamos chegando agora a isto depois de alguns meses mergulhados na trajetória dele, temos de recuar um pouco no tempo.

Surpreendê-lo bem jovem, volver a los diecisiete, quando a política o joga nos braços do jornalismo, ainda titubeante...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: campanha de

Tarcilo Vieira de Melo, gigante das

lutas democráticas desde 1946,

deputado várias vezes, secretário

de Educação, opositor à ditadura,

Navarrinho envolvido.

 

Corria 1962.

Campanha de Tarcilo Vieira de Melo.

Candidato a deputado federal pelo PSD.

Juventude de Alagoinhas, envolvida.

Navarrinho a todo vapor.

Tem jeito, não.

Uma voz me sussurra, sempre ela: apresente o homem.

Contextualize.

Bom saber quem Navarrinho estava apoiando.

Vieira de Melo merece.

Nascido em Barreiras, mesmo berço de Antônio Balbino.

Um dos fundadores do PSD, em 1945.

Deputado constituinte pela Bahia em 1946.

Deputado federal, ainda, entre 1955-1959, e entre 1963-1967.

Secretário de Educação de Otávio Mangabeira e de Régis Pacheco.

Líder de Juscelino, opôs-se à ditadura, foi um dos articuladores da Frente Ampla, já então no MDB.

Era extraordinário orador - testemunho de Waldir Pires.

Afonso Arinos o qualificava como "o maior parlamentar brasileiro desde 1930".

Obviamente, lato senso, de esquerda.

Um ardoroso, convicto defensor das liberdades democráticas.

Morre em 1970, atropelado, no Rio de Janeiro.

Por falar nele, e abusando da paciência do leitor, falo de passagem sobre essa eleição de 1962, quando um obstinado Waldir Pires torna-se candidato a governador.

Os caciques do PSD não topavam a parada, entre eles o próprio Vieira de Melo.

Ele dizia:

- Deixa o menino enfrentar. Ao menos teremos uma campanha movimentada.

Tiveram.

Waldir perdeu por apenas cinco pontos percentuais, sobretudo devido à movimentação conservadora da Igreja Católica, de braços dados com Lomanto Júnior, o vencedor.

Era esse gigante o candidato da moçada de esquerda de Alagoinhas.

Nessa esteira, começava a nascer o jornalista.

A coligação liderada pelo PSD apresentou a Navarrinho a proposta de fazer um programa de rádio: A voz do estudante.

Movimentava a campanha, e dava alguma visibilidade às lideranças estudantis.

Inteligente iniciativa do PSD.

Navarrinho topou...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Minha memória olfativa veio junto com a visão dos cartazes de Lomanto, nos meus então imberbes cinco anos de idade. Lembro até hoje do cheiro da tinta dos cartazes...E de um jingle chiclete... 'Lomanto alegria do povo..."...Acho quiera assim.

Paulo Renan Santos: Caiu da cama, quebrou o ovo". Esse era o complemento. É era esperança do povo

Jorginho Ramos: Vieira de Melo foi um dos maiores tribunos do seu tempo. Os embates entre ele, líder do governo JK, e Carlos Lacerda, outro excelente orador e o maior nome da oposição , na tribuna da Câmara foram antológicos, verdadeiros duelos verbais e atraía todas as atenções, do plenário, da área reservada para a imprensa e das galerias. Ambos tinham grande cultura política e sabiam manejar as palavras. Ele morreu em 1970, atropelado por um fusca, à noite, em frente ao prédio onde morava, no Rio de Janeiro. Tinha vindo de uma reunião política e a rua estava semideserta...O motorista fugiu sem dar socorro... circunstâncias misteriosas...em tempos de ditadura e intensa repressão a morte foi considerada suspeita mas as investigações não avançaram. Era muito ligado a JK e embora não estivesse cassado estava sem mandato e era muito articulador ! Vieira de Melo foi um dinâmico Secretário de Obras do governador Juracy Magalhães e foi quem executou a construção da Avenida Contorno e da antiga Rodoviária, próximo ao Largo das Sete Portas. Era tio de Sérgio Vieira de Melo, o grande embaixador brasileiro na ONU, que morreu num atentado em 2003 no Iraque. Sergio Vieira de Melo dirigiu com muita competência a área da ONU voltada para combater abusos aos direitos humanos e stava muito cotado para ser o próximo Secretário Geral da ONU quando ocorreu a explosão.

Emiliano José: Jorginho Ramos muito obrigado, meu velho

Jorginho Ramos: Outro traço característico dele era a sua visão de Democracia. Com a Ditadura, ele passou a ser uma referência no Congresso de luta pela restauração da legalidade. Achava que para isso era necessário a União de TODOS os democratas. Foi um dos articuladores com Carlos Lacerda, seu maior oponente na Câmara, da Frente Ampla. Articulou para que JK recebesse no exílio a visita de Lacerda, arquirivais célebres, em nome da restauração da Democracia. Do outro lado, Doutel de Andrade, trabalhista histórico, fez o mesmos relação a JANGO, que com seu coração generoso abriu a porta de sua casa no Uruguai e recebeu para um almoço o homem que tinha conspirado contra ele e o líder CIVIL do golpe que o depôs. Todos colocaram suas diferenças de lado em favor da Democracia. Lacerda pagou caro por seu passado de conspirador (contra os governos de Getúlio, JK e Jango) mas mesmo tardiamente aderiu à Democracia. Vieira (PSD) Doutel(PTB) e Lacerda (UDN) foram os principais nomes da Frente Ampla, uma tentativa de fazer o Brasil voltar a trilhar a Democracia. Lacerda e Doutel foram cassados e Vieira de Melo escapou por pouco (o nome dele estava na lista entregue a Castelo Brabco...) A História ensina que só a união de todos os democratas - mesmo que existam diferenças entre eles - pode salvar Democracia ! 

--------------------------------------------------------- 

(Equipe da Rádio Emissora de Alagoinhas ZYN26, programa A Voz do Estudante, apresentado por Navarrinho (terceiro da direita) na década de 70: os dois da ponta direita são os radialistas Marco Aurélio e Antônio Vieira; o aniversariante Georginho; Manoel Serapião, que se consagrou como árbitro de futebol e juiz do trabalho; o penúltimo é o diretor da rádio Célio Machad)

Emiliano José

15 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: Navarrinho começa

com A voz do estudante. Depois, com o N26.

Noticiário local e estadual e nacional. Baseado nos jornais, sucesso na cidade.

 

Navarrinho topou.

Fazer A voz do estudante.

Programa radiofônico

De variedades, nada muito arrumadinho, não.

Juntou dois ou três amigos, e tocou o pau.

Dava visibilidade aos estudantes, e contribuía com a campanha.

Passada a eleição, Navarrinho tomou gosto.

E foi atrás de seu desejo.

O diretor da rádio, Célio Ribeiro.

Rádio Emissora de Alagoinhas, prefixo ZYN26.

Ousado, sem qualquer formação específica, Navarrinho propõe ao diretor fazer um programa noticioso.

Seria algo novo para Alagoinhas, inédito.

Chegavam os jornais - os leitores, estes, então se informavam.

Os ouvintes da emissora ficavam no prejuízo, ao menos aquela maioria não acostumada à leitura dos jornais.

Alguns poucos, além dos jornais, ouviam a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, e se informavam mais.

Raríssimos, tinham televisão, e desfrutavam do noticiário.

O  povão, chupando o dedo.

Assim, pensou Navarrinho, havia um  espaço a ser ocupado.

Pensou e disse a Ribeiro.

Diretor abraça a ideia.

E surge o Noticiário N26.

Além das notícias locais, onde os bairros tinham prioridade, Navarrinho seguia um modelo ainda muito praticado atualmente por emissoras de rádio país afora: lia o noticiário dos jornais.

Notadamente, do "Jornal da Bahia".

Por uma razão: "A Tarde" chegava e rapidamente sumia das bancas.

De longe, o preferido à época.

Foi por décadas e décadas o jornal majoritário da Bahia.

Assim, era mais fácil correr à banca e pegar o  "Jornal da Bahia", cuja demora nas bancas era maior.

Era a banca de seu Solon Barros, famosa.

Solon Barros, conhecendo Navarrinho, emprestava-lhe ainda jornais comunistas, como "Novos Rumos", e publicações dos sindicatos, lidos às escondidas.

Não custa lembrar, nesses tempos tão velozes: os jornais chegavam atrasados a Alagoinhas, dois ou três dias depois de  impressos.

Então, era noticiário atrasado.

Mal ou bem, no entanto, a população era informada.

Um sucesso, o programa.

Tomou importância, ganhou dimensão inesperada...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Radialista (sério) ...Mais um motivo preu gostar de Navarrinho !

Carlos Navarro: Obrigado. Sempre gostei de rádio Carmel, quando estava no Grupo OESP criei um produto para transmissão de noticia por telefone ponto-a-ponto, naquele tempo não tinha internet. E em campanhas usei muito as rádios comunitárias, inclusive as de poste, o bom e velho alto-falante.

Artur Carmel: Que massa, utilizar as radios de poste nas campanhas ! Cresci - toda minha geração - ouvindo rádio e tive a sorte de trabalhar na área. E ainda trabalho - quando me chamam - nas campanhas de marketing político.. Abraço ! 🙏

Isabel Santos: Esse Navarrinho não é brincadeira não. Parece um polvo rssss. Também gosto muito do rádio, Artur Carmel, inclusive, meu primeiro estágio foi na Rádio Sociedade da Bahia, onde, certa vez, me deparei com querida Rita Lee, entrando na emissora, sozinha, provavelmente correndo atrás de divulgação, pois ainda não era famosa, a nossa ídola.

Mônica Bichara: A cada dia uma surpresa, esse é Navarrinho. E Emiliano José desfiando o novelo e fazendo a memória vir à tona 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

16 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: programa cresce,

por ligação com os bairros, por noticiário

advindo dos jornais, guerra do Vietnã,

Navarrinho começa também a escrever crônicas.

 

O programa, crescendo na opinião pública.

Navarrinho se entusiasmando.

Havia razões.

A ligação com os bairros.

Sensível, ele, como dizem hoje, humanizava o programa.

Compreendia o jornalismo como singularidade.

Cada pessoa devia ser revelada.

Cada dona de casa.

João, Maria, José.

Vendedor de banana, carroceiro, amolador de faca, vendedor de picolé, entregador de leite.

Com suas alegrias e suas dores.

O médico de bairro, valorizado.

Isso foi enraizando o Noticiário N26.

E olhe: o noticiário local ocupava no máximo um terço do programa.

O restante, noticiário nacional e internacional, a partir da leitura dos jornais – como se sabe, chegavam atrasados a Alagoinhas, mas suporte essencial.

E para Navarrinho, havia uma prioridade: guerra do Vietnã.

E ele ia deixar escapar a chance de espinafrar os americanos?

No N26, Navarrinho pôde sentir o quanto tivera de régua e compasso com a militância política.

A fala saía fácil, articulava com tranquilidade.

Lembra lendo apenas o lead, e dando sequência, sem nada escrito.

A tribuna da atividade política o preparara para a vida, ao menos para aquele início de jornalismo.

Deitava e rolava com a guerra do Vietnã.

Ênfase, claro, nas ações vitoriosas do Vietcong.

Recorda da empostação de voz quando falava SAIGON, onde estavam acantonadas as tropas americanas.

Experiência rica, vasto aprendizado.

Compreendeu ali o quanto o rádio permitia de simulação.

Navarrinho falava, na abertura, ou logo após os intervalos, da qualidade e do intenso trabalho da equipe de sonoplastas, repórteres, redatores.

E a equipe era quase ele só.

Quase por conta do sonoplasta.

Não, não ia revelar o segredo - melhor dar impressão de grandeza.

Podia se alegrar: por dois ou três anos, o N26 era o noticiário premiado, com entrega de diploma e tudo, vencedor.

Pudera: era o único da cidade.

Simultaneamente, Navarrinho, começava a escrever.

Para a revista “Cometa” e para o “Alagoinhas Jornal”, iniciativa de um vereador de direita, Valter Campos, sujeito arejado, sem ranços.

Não fazia matérias, propriamente.

Cronista, perseguia o estilo de um Stanislaw Ponte Preta, à semelhança de um João Ubaldo Ribeiro, então no “Jornal da Bahia”.

Nascia o jornalista, não obstante não tivesse talvez consciência disso porque vai mergulhar na vida parlamentar, de curta duração.

Depois disso, da experiência como vereador, virá o jornalismo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------------- 

(Navarrinho com trabalhador  na lavoura do sisal - Foto Agliberto Lima)

Emiliano José

17 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: fim do programa

em 1967, passa no vestibular, procura

emprego, começa no “Jornal da Bahia”,

sem lenço, nem documento,

dinheiro só o da caixinha.

 

O programa de rádio, Noticiário N26, durou até 1967, quando Navarrinho assume o mandato de vereador pelo MDB.

Por falta de experiência, de traquejo, considerou não ser de bom tom exercer o mandato de vereador e simultaneamente apresentar um programa de rádio.

Podia perfeitamente ter mantido a atividade na emissora, tentando ser rigoroso, observando os princípios éticos do jornalismo e as boas práticas da política.

Preferiu não.

Não houve qualquer interferência externa,  proibição, nada.

Decisão moral, ética.

Mandato, AI-5, ingresso na UFBA, fim de 1968.

Procura Gabino Kruschewsky, eleito deputado estadual em 1966 pelo MDB.

Havia feito a campanha dele.

Disse-lhe da situação pessoal: passei no vestibular, AI-5 está aí, você sabe.

- Pronto. Então você já vai começar a trabalhar. Assembleia Legislativa, pertinho da Praça da Sé – precisamente no prédio onde funciona atualmente a Associação Bahiana de Imprensa (ABI).

Kruschewsky o apresentou ao jornalista Orlando Garcia, do “Jornal da Bahia” e de Alagoinhas:

- Esse menino aqui é um vereador de Alagoinhas, meu amigo. Passou no vestibular de Jornalismo, e quer começar a vida na profissão.

Orlando Garcia, nem pestanejou:

- Deixa comigo.

Marcou encontro com Navarrinho, no mesmo dia, no “Jornal da Bahia”.

Era fim de tarde, e Navarrinho a postos na portaria do jornal, esperando a chegada dele. 

Subiram juntos para o primeiro andar, atravessaram toda a barulhenta redação, dirigindo-se aos aquários de João Carlos Teixeira Gomes (Joca), redator-chefe, e de Rafael Pastore, secretário.

Orlando Garcia dirigiu-se a Joca, explicou, passou no vestibular de Jornalismo, é amigo meu, a história ouvida de Kruschewsky. 

Foi incisivo, tinha intimidade com Joca para tanto:

- Vamos botar ele pra trabalhar aqui.

Joca olhou pra Navarrinho:

- Como é seu nome?

Respondeu, um pouco tenso.

Depois de uns arrodeios, Joca ditou sentença:

- Vamos começar, então.

Assim, antes mesmo de as aulas começarem na Escola de Biblioteconomia e Comunicação (EBC), Navarrinho deu a arrancada na carreira de jornalista.

Sem contrato, sem carteira assinada, sem lenço, nem documento.

Até meados de 1969, deu duro sem receber tostão.

Salvação era a caixinha.

O escasso dinheirinho recebido para fazer matérias, ir atrás das fontes.

Saída era suar na paleta, nada de condução.

Andar muito a pé para não gastar...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Luiz Brasileiro: Cabra bom este Navarrinho... Só vejo coisa boa dele aqui.

Emiliano José: Luiz Brasileiro, puro merecimento

Jorginho Ramos: Observação : No prédio referido, onde a Assembleia estava instalada, NÃO "funciona atualmente a ABI". O termo é impróprio. O prédio é da ABI, foi inaugurado em 1962 para sede da instituição, e alguns andares (o 4° principalmente, onde funcionava o plenário...) foram alugados à Assembleia Legislativa. Com o golpe militar de 1964 e a repressão que se seguiu o Edifício Ranulpho Oliveira foi cercado e invadido em 1966 por tropas do Exército para prender o então deputado estadual (PSB) Sebastião Nery. O que não ocorreu porque ele havia fugido. Outros deputados estaduais, colegas dele de magistratura, foram igualmente cassados : Luiz Leal, Ênio Mendes, Osório Villas Boas, Marcelo Duarte, Padre Palmeira. Todos exerciam o mandato naquele prédio.

Emiliano José: Muito bom, Jorginho. 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

18 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: caixinha e sorte

de ter Mariazinha  do Boqueirão

como mãe, família em Salvador,

obrigado a se virar nos trinta,

atender reclamos do jornal e da EBC.

 

Sorte de Navarrinho, ter aquela mãe: Mariazinha do Boqueirão.

De guerras, não é?

Precisasse de trabucos, nunca vacilou.

Quem não sabe, volte um pouco atrás nessa história, e conhecerá.

Pense numa mulher determinada.

Ele, Navarrinho, a partir de 1970, não dependeu exclusivamente da caixinha para viver por conta exatamente de Mariazinha.

Lembro-me, logo ao sair da prisão, final de 1974, no pouco espaço de tempo sem contrato, dependi da caixinha para sobreviver, eu e Mércia, grávida de Teo.

Muita gente no "Jornal da Bahia", naquele 1969, vivia, por bom tempo, do dinheiro daquela caixinha, milagrosos trocados, parecia coisa do Evangelho, multiplicação dos pães.

Navarrinho curtiu bom aperto em 1969, morando num pensionato.

Em 1970, Mariazinha, sempre de olho  nas crias, resolveu sair de Alagoinhas, estabelecer-se em Salvador.

Foi a salvação da lavoura - colo da mãe, sempre  bom.

Colo e comida.

Marina, irmã, havia também passado no vestibular no fim de 1968 - Letras.

Dois filhos na universidade, melhor acompanhá-los, dar cobertura.

Pensou um tempo, alugou a casa dela em Alagoinhas e mudou-se para um apartamento na Joana Angélica, defronte do Convento da Lapa, próximo ao Colégio Central.

Navarrinho tinha de se virar nos trinta.

Cumprir as pautas do dia e as disciplinas da Escola de Biblioteconomia e Comunicação.

Cabem duas ou três palavras sobre a EBC.

Eu, besta nem nada, fui atrás do professor Othon Jambeiro, mestre de tantas gerações, até hoje mestre.

Todos sabem: a partir de 1968, implantada a reforma universitária, contra a qual lutamos, nós, do movimento estudantil à época.

Salvador e Juiz de Fora, as primeiras cidades a colocá-la em prática.

Duas possibilidades de reorganização da estrutura das universidades federais: transformar-se em centros ou manter a estrutura de escolas e faculdades.

A UFBA decidiu-se por manter a estrutura.

Até porque era enorme a resistência das faculdades de Direito, Medicina e Politécnica em serem extintas.

Não obstante, foram sepultadas as cátedras e implantados departamentos, nos quais estariam os professores de cada disciplina, independentemente das faculdades onde davam aula.

Exemplo: os professores de Matemática, cujas aulas eram dadas na Politécnica, em Arquitetura, na Faculdade de Ciências Econômicas, passaram a ser, todos, lotados no novo Instituto de Matemática.

Era essa a nova regra.

No caso do curso de Jornalismo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Artur Carmel: Quantos lutaram por esse diploma de Jornalista, eu incluso. Para depois vir um sacripanta, de uma canetada, suprimir a obrigação do que tanto custou a muitos. E o pior: sob o olhar cúmplice - por não terem se manifestado - dos democratas ( ) que comandavam o país, à época. 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

19 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: reforma

universitária leva à criação da EBC,

Navarrinho se virando,

estudo, trabalho no “Jornal da

Bahia”, sessões da vereança,

coluna de Alagoinhas, diabo a quatro.

 

Com a reforma universitária de 1968, Jornalismo sofria consequências.

O curso fazia parte da Faculdade de Filosofia.

Com a reforma, Jornalismo era obrigado a fazer parte de outra faculdade porque o Conselho Universitário havia decidido restringir a Faculdade de Filosofia apenas às chamadas Humanidades: Filosofia, Antropologia, História, Ciência Política, Psicologia e Sociologia.

Puxa, estica, e o Conselho Universitário decidiu: Jornalismo e Biblioteconomia trabalhavam com informação.

Então, havia uma lógica a fundamentar a junção dos dois cursos em uma só Escola.

Já existia a Escola de Biblioteconomia e Documentação.

Só substituir Documentação por Comunicação – simples assim: como brinca Othon Jambeiro, até rimava.

Ambas as partes, estrilaram.

Biblioteconomia, duramente.

Famosa a grita da famosa professora Felisbela de Carvalho, dona Belita, conhecida por ser amiga de Edgar Santos.

Jornalismo, principalmente pelas vozes de Florisvaldo Mattos, Milton Caires de Brito e Ari Guimarães.

Argumento: assim como havia feito a Universidade de Brasília, a UFBA deveria criar uma Faculdade de Comunicação, seguindo tendência universal.

Dona Belita venceu.

Em 1969, os dois cursos começaram o ano letivo juntos, funcionando a Escola de Biblioteconomia e Comunicação (EBC) provisoriamente no Canela, onde atualmente funciona a Secretaria Geral de Cursos.

Diretora pró-tempore, professora Maria Stela Santos Pita Leite, do Departamento de Biblioteconomia, com a missão de organizar a nova unidade universitária.

Criado o Departamento de Jornalismo, onde restaram abrigados os professores remanescentes do antigo curso.

Somente em 1977, o curso de Jornalismo foi retirado da EBC para constituir a Faculdade de Comunicação, hoje com três cursos de graduação: Jornalismo, Produção Cultural e Cinema.

E um Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea, com Mestrado e Doutorado.

De passagem, lembro: fui professor na Faculdade de Comunicação de 1983 a 2008, quando me aposentei, juntando tempos, como se diz.

Lá, fiz Mestrado e Doutorado.

Também de passagem, lembro: Florisvaldo Mattos participou da banca examinadora, em 1982, a me aprovar para a docência na Facom.

E Othon Jambeiro foi um de meus mestres.

Navarrinho iniciou na velha EBC, em 1969.

Almoçava um acarajé com coca-cola na Barroquinha mesmo, e seguia para a escola.

Naquele primeiro ano, 1969, ainda exercia o mandato de vereador,  ia e voltava, duas sessões por semana.

E fazia uma coluna no “Jornal da Bahia” denominada “Em Alagoinhas Acontece”, justificando o salário recebido por ser assessor de comunicação da prefeitura.

Quando ia às sessões, bancava o repórter, e abastecia a coluna. 

Tenho de retificar: Navarrinho, nesse primeiro ano de 1969, não passava tanto aperto, não.

Se virava com os trocados recebidos como assessor de imprensa da Prefeitura de Alagoinhas.

Mandato de vereador então não era remunerado, ao menos para municípios do porte de Alagoinhas.

No final de 1969, procurou o prefeito Antônio Carneiro e pediu demissão do cargo de assessor.

Já havia sido contratado pelo “Jornal da Bahia” e a atividade como assessor de comunciação podia abrir flancos, dar munição à oposição para ataques.

Em 1970, a vida complicou...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Mestre Mil, fui seu aluno, ainda na EBC...De 1981 a 84....Acho que EBC virou FACOM em 1987...A confiirmar.

Emiliano José: Grande Carmel, tbm fiquei em dúvida. Acompanhei informação de Othon. Vamos checar. Abração.

Graça Azevedo: Permita-me, mestre. Em 1968 não havia Antropologia e Ciência Politica. Ambas faziam parte do curso de Ciências Sociais.

Havia também o curso de Geografia.

Emiliano José: Querida Graça. A gente vai corrigindo. Foi o mestre Othon Jambeiro a me enviar gentilmente um despretensioso texto. Pode ter se equivocado. Muito obrigado. Registrado.

Graça Azevedo: Eu era aluna na época! Na minha linda faculdade que hoje é a sede do MP. 

--------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: acúmulo de atividades,

licença do mandato de vereador, sucesso

no vestibular,  jornalista e aluno,

os ótimos professores da EBC.

 

Em 1970, Navarrinho continuou mais alguns meses exercendo o mandato de vereador, mas sentindo dificuldade para compatibilizar  tanta coisa.

Dar conta do "Jornal da Bahia", agora contratado, responsabilidade maior, obrigado a cumprir duas, três pautas diárias.

Do curso de Jornalismo, na EBC.

E ainda por cima, ir duas vezes por semana a Alagoinhas para cumprir as tarefas da vereança - a mãe em Salvador, tudo complicado quando chegava lá, a casa entregue a Goroba, irmão mais novo, protagonista do último romance de Navarrinho.

Vocês sabem, mãe ausente, caos.

Pediu licença do mandato, então.

A experiência na EBC foi rica.

Ótimos professores.

Com receio de citar nomes, cita um: Raul Sá, mestre de português.

Já tinha boa base por conta do latim nos seminários.

Porém, escrever mesmo aprendeu com o velho Raul Sá, com quem também tive ainda a graça de ter aulas ali no prédio da antiga Faculdade de Filosofia, onde hoje funciona parte do Ministério Público.

Professor de Estilística da Língua Portuguesa.

Daqueles velhos mestres, um sábio.

Com  ele, aprendeu a identificar terríveis vícios de linguagem.

Nunca mais aceitou um "a nível de"...

Pra não ser injusto, acrescenta Florisvaldo Mattos, Antônio Loureiro, João Carlos Teixeira Gomes, Carlos Libório, Consuelo Pondé, Ari Guimarães, Fernando Rocha Peres, Fernando Rocha ou Fernando Bananeira, como conhecido.

Bananeira me presenteou com uma coleção da revista "Problemas", do PCB - assim, de repente, perguntou se eu queria, aceitei, claro.

Não estranhem a presença de professores não vinculados especificamente ao Jornalismo - os alunos de Jornalismo, então, tinham aulas em outras unidades, e de matérias diversificadas.

Ainda alcancei essa fase como aluno.

Tive aulas de Filosofia em São Lázaro, com o inesquecível Fernando Rego.

Ainda se recorda do vestibular.

Surpreendeu todo mundo, e algumas coisas facilitaram.

Fazer francês, por exemplo.

Dominava mais, herança do seminário, e implicava com inglês, "língua do imperialismo".

História sempre o encantou, e aí também foi muito bem.

Português, era bom, embora não tivesse lido livro nenhum dos indicados.

Por pura sorte, e graças ao olhar apurado, em frente a ele, no Balbininho, onde aconteceu a prova, sentou menina conhecida, o cão de calçolão, havia lido todos os livros.

Na redação, foi bem.

Para as cruzinhas relativas aos livros, só olhar, colar o feito pela menina, e aí foi só correr pro abraço.

Notas altas em Francês, História, Português compensaram desempenho mais fraco em outras, daí o sucesso no vestibular.

Era pós-AI-5, e logo no primeiro semestre, 1969...

#MemóriasJornalismoEmiliano

----------------------------------------------- 

Emiliano José

21 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: tiras espalhados

pela Universidade, rotina do pós-AI-5,

vários na EBC, alguns flagrados, Navarrinho,

repórter, cobrindo Polícia Federal, localiza alguns deles.

 

Navarrinho levou um susto logo ao chegar à Universidade.

Susto, talvez não.

Sabia: estava sob uma ditadura.

Restava nua, com o AI-5.

Muito feia.

E ia piorar, dia a dia.

Susto, chamei assim, porque logo percebeu a existência de tiras dentro da própria EBC.

Vamos nos entender.

A ditadura criou um aparatoso sistema de segurança por todo o País, destinado a vigiar a cidadania, querendo, quem sabe, organizar uma espécie de Big Brother para acompanhar os passos de quem se dispusesse a enfrentá-la.

Um sistema de grande capilaridade.

O SNI tinha suas agências regionais.

As Divisões de Segurança e Informações (DSI), em cada ministério civil.

E as Assessorias de Segurança e Informação (ASI), existentes em cada órgão público e autarquia federal.

Os infiltrados nas escolas integravam as ASI.

A primeira coisa a ser percebida por Navarrinho, na EBC, assim de cara, foi a existência de infiltrados, integrantes da ASI.

Destacavam-se, por estranhos.

Lembra de um deles - troncudo, forte, ele quase escorrega e diz gordinho, recuou e renomeou troncudo.

Era tão estranho, tão a ponto de logo ser descoberto.

A moçada o provocava, fazia-o ir atrás de pistas falsas, e logo logo foi desmoralizado.

Sumiu, ninguém sabe ninguém viu.

Navarrinho, repórter, algumas vezes cobria Polícia Federal.

Nessas idas, repórter é bicho endiabrado, se atento, viu vários dos agentes espalhados pela Universidade, na ASI, ou no acompanhamento do movimento estudantil, em frente ao restaurante universitário, dando bandeira, fingindo inocência, fumando um cigarro, assim como quem nada queria, e queria muito.

Um dos pontos preferidos dos tiras, o Colégio de Aplicação.

Reduto de comunistas, território da balbúrdia - virava e mexia, e reconhecia um deles, bisbilhotando, fingindo inocência como quem nada queria, e querendo muito.

O mar não estava pra peixe.

Navarrinho chegou a provocar um deles, rondando o Aplicação. Tinha certeza de tê-lo visto na sede da Polícia Federal mais de uma vez:

- Olá, como vai?

Sujeito respondeu  todo sem jeito:

- Tudo bem...

Navarrinho enfiou a faca:

- Trabalhando?

O policial engasgou.

Dia seguinte, evaporou.

Não foi visto mais por ali...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Benilson Ataide: Tempos sombrios. Fora ditadores!

Artur Carmel: Ingressei na Economia em 77, quando a ditadura já estava um pouco mais branda, mas não menos peçonhenta. Ainda havia presos políticos e muitos agentes e X-9 infiltrados nas universidades. Na escola da Piedade suspeitava-se do ascensorista, do faxineiro e até de alguns colegas.

 

 

Emiliano José

22 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: safra de tiras

sempre renovada, começo no

"Jornal da Bahia", Gilson Nascimento,

primeiro chefe a gente nunca esquece.

 

Na EBC, a safra variava.

Safra de tiras.

Vinha um.

Ficava manjado.

Desmoralizado.

Identificado pela moçada.

Era retirado.

Órgãos de segurança mandavam outro.

Não era tão difícil identificar os infiltrados.

Sujeito não tinha muita conversa, se enrolava quando tentava se enturmar, não dominava a linguagem daquela juventude, e nem se dispunha a puxar um fumo embaixo da goiabeira...

Às vezes, arriscava falar de política, havia sido treinado pra isso, mas se retraía todo quando a conversa derivava pro sexo, pra todo tipo de sacanagem.

Às aulas, tira não faltava de jeito nenhum.

Atento, sempre.

À palavra do professor.

Às intervenções dos alunos.

Desarmados, estudantes podiam dar indícios de suas inclinações ideológicas.

Vida que segue.

Chegou ao "Jornal da Bahia", no final de 1968, dezembro.

Chegou careca - vítima do trote na EBC.

Admitido, nas condições de então, sem lenço nem documento, espécie de estágio, treinamento, sem nada a receber, salvo a caixinha.

Claro, estava acertado, começaria, bem apresentado, mas, e se fosse um desastre?

No primeiro dia, chega ao jornal de manhã.

Depara com Gilson Nascimento.

O primeiro chefe de reportagem.

Aquele: a gente nunca esquece.

Eram, então, ele de manhã, Frederico Simões, Fred, à tarde.

Dos dois, gratas lembranças.

Quando cheguei ao jornal, em 1975, um era rigoroso copidesque, o outro, grande pauteiro, a quem mais tarde substituí quando ele saiu de férias.

Gilson, não apenas o primeiro chefe de reportagem de Navarrinho, mas também o primeiro grande mestre de jornalismo dele.

Acontece isso.

Meu primeiro chefe de reportagem, José Barreto de Jesus.

E meu primeiro grande mestre, lá pelos idos de 1974.

Gilson, dono de um texto impecável, é testemunho de Navarrinho, subscrito por mim.

Pela manhã, depara ainda com José Lopes da Cunha, Rafael Pastore, e o velho José Maria Rodrigues.

Cunha e Zé Maria, velhos companheiros de João Falcão nos tempos do PCB.

Cunha chegou a ser Chefe de Redação - editor-chefe.

As redações só ferviam à tarde.

De manhã, pouca gente.

Gilson, distribuindo as pautas.

Havia, ainda, mais dois estudantes de jornalismo na mesma empreitada de Navarrinho:  um rapaz de Alagoas e uma moça, não lembra os nomes...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Trabalhei com Gilson, no Correio. Além de ótimo profissional, educadíssimo !

Emiliano José: Artur Carmel era o avesso dos copidesques rabugentos.

Artur Carmel: Emiliano José Conheci alguns verdadeiras almas-de-jegue... 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: os primeiros passos,

conhecendo os colegas, Nó de Cana,

Rei Momo de Biafra, Dente de Leite,

LA, tantos outros, novo universo.

 

Nesse primeiro dia, primeira manhã, vai ainda assistir à chegada de José Carlos Mesquita, cujo apelido Navarrinho jamais esqueceu: Nó de Cana.

Parece-me de Esportes.

Carlos Libório também chegou pela manhã - vai comandar o jornalismo da TV Bahia por 21 anos, aposentando-se em 2008.

Luís Carlos Alcoforado, outro a chegar, também de Esportes.

José Amílcar, magro, alto, de inesquecível apelido: Rei Momo de Biafra.

Trabalhava na TV Aratu, e quando a Globo entregou a concessão para ACM, em conhecido episódio de uso abusivo do poder, no momento da chegada de Waldir Pires ao governo, Amílcar seguiu para Brasília e fez carreira na Vênus Platinada.

Navarrinho foi se enturmando.

Conhecerá também o teletipista Simão Alves.

Simão, depois ele o seguirá para o "Estadão".

Com ele, convivi na sucursal do jornal paulista quando repórter lá - de excelente humor.

Antônio Luiz Guimarães Diniz - Dente de Leite - garoto novo, chegando para Esportes.

Dele, Navarrinho se lembra bem: passou muito tempo vivendo muito tempo só da caixinha, até se firmar.

Da revisão, recorda-se de LA - todos nós o conhecíamos assim.

Pense num sujeito de bem com a vida, Luis Augusto dos Santos - tive o privilégio de conviver com ele quando cheguei ao jornal, em 1975.

Fernando Vita, hoje Tribunal de Contas dos Municípios, cultor da língua, copidesque rigoroso, autor de romances.

Havia quem tremesse com ele.

Eu, nada a reclamar.

Teve o privilégio, também tive, de conviver com Frederico Simões de Santana - Fred.

Excepcional chefe de reportagem, pauteiro de grande qualidade, íntegro, um raro jornalista - um dos mestres de Navarrinho.

Dele, recolheu inesquecíveis lições.

Um dia, trabalhando no período da tarde, Fred lhe entrega três pautas.

Navarrinho, jovem, impetuoso, e já se achando, levanta o nariz:

- Fred, não vou fazer três pautas, não. Vou escolher, uma, e ponto.

Sentado, Fred, olhou pra ele, e com sua voz serena o trouxe para o chão:

- Navarrinho, o leitor não quer saber se você saiu com uma, duas ou quatro pautas. O que o leitor quer saber é da qualidade da matéria. Assinadas ou não, serão de sua responsabilidade. Faça o seu trabalho bem feito, ou você não irá longe na profissão.

Pegou as três pautas, cumpriu-as.

Lição jamais esquecida.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: O exercício diário do jornalismo é uma senhora escola de vida.

Mônica Bichara: Que saudade de Mesquita, poxa, agora fiquei abalada. Nosso querido amigo que se foi tão cedo. Viram isso, Jaciara Santos e Isabel Santos ?

Isabel Santos: Sim, Mônica, o querido Mesquita. . Saudade. Aliás, este texto me trouxe muitas boas lembranças e emoções. O meigo Fred Simões, que figura. Ele foi tudo o que está sendo dito dele e muito mais. Também senti muito a sua partida. A trajetória de Navarrinho é um tesouro. Tem sido muito bom acompanhar a, como sempre, criativa e poética narrativa de Emiliano. 

--------------------------------------------------- 

(Foto: Agliberto Lima - Navarrinho em início de carreira)

Emiliano José

24 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: em busca do tempo

perdido, tantas pessoas conhecidas

voltam à memória, velho "Jornal da Bahia".

 

Pois é: repórter novo, foca, ralar.

Receita pra aprender.

Como dizia Fred Simões a Navarrinho: ninguém quer saber se o patrão lhe paga mal, se as condições de trabalho são precárias, se a vida é dura, se a caixinha é pequena.

Nada.

Quer a notícia.

E o repórter trate de se esmerar na apuração, na investigação, na conversa com as fontes, no tempero das diversas visões, na ética do tratamento das informações à mão.

Navarrinho, naquele início, aprendeu a lição do mestre, do velho Fred, morto precocemente devido a um câncer de intestino.

Recolheu a arrogância, e pela vida afora procurou orientar assim os repórteres sob seu comando.

Isso encerra outra lição: jornalista vende a sua força de trabalho.

Trabalho intelectual, mas trabalho.

Produz um valor específico, a notícia, mas produz valor.

É explorado, como qualquer outro trabalhador.

Essa consciência deve levá-lo a diminuir a natural propensão ao estrelato, propensão tendente a fazê-lo esquecer-se da exploração diária.

E ao estrelato mesmo, chegam alguns poucos.

Como jogador de futebol, como em tantas outras profissões.

Conheceu Gustavo Tapioca - foi do movimento estudantil, quase vai para a direção da UBES, mas acabou casando com a filha de João Falcão, e os planos mudaram.

Sóstrates Gentil, a quem vou encontrar mais tarde na "Tribuna da Bahia", notável jornalista, também homem de teatro, morto precocemente num acidente, pai de Ludmila Duarte,  jornalista, hoje  no Canadá, foi minha aluna um dia.

Orlando Garcia, Samuel Celestino, Anísio Félix - lembrar: estamos o ano de 1969.

Com Anísio, conviverei no "Jornal da Bahia" por muito tempo.

Na sede da Barroquinha.

E quando funcionou na Djalma Dutra.

E também nas lides sindicais, ele durante bom tempo presidente do Sindicato dos Jornalistas.

Navarrinho ainda se recorda de brincadeira dele chegando na redação sentando na borda da mesa e perguntando se tinha um emprego pra ele naquele jornal Navarrinho levando a sério nem percebendo a gozação com o foca tão comum em redações respondendo a sério emprego é ali com Gilson Nascimento Frederico Simões ou Rafael Pastore né comigo não...

Velho Anísio sai com um risinho de canto de boca.

Velho Anísio, vida inteira no Continental sem filtro...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: puxando pela memória,

dia da primeira matéria, primeiro escorregão,

compreendendo o longo caminho pela frente.

 

Navarrinho puxa pela memória.

Eram do seu tempo, e do meu, Newton Sobral e Hellington Rangel, dois dos grandes do jornalismo baiano, grandes já à época.

Também estava lá, novinha, Mariluce Moura - virá a ser uma das mais talentosas jornalistas brasileiras.

Viverá a tragédia de perder seu companheiro, Gildo Macedo Lacerda, morto pela ditadura em 1973, a quem ela nunca pôde enterrar, por desaparecido.

Ela também presa, grávida de Tessa.

Viera também da EBC, um pouco depois de Navarrinho.

Junto com ela, da fornada da EBC, desembarcam no "Jornal da Bahia", no mesmo período, Aninha Sampaio, Lúcia Ferreira, gente nova chegando, impulsionada pela força da regulamentação da profissão, a exigir diploma de Jornalismo para ingressar nas redações.

Os mais velhos, anteriores à regulamentação, eram de Direito, Filosofia, Letras, não de Jornalismo.

Naquele momento, começou a mudar.

Navarrinho, dos primeiros - ainda cursando Jornalismo.

Primeira matéria: quem esquece?

Navarrinho, não: cobrir uma reunião na Secretaria de Segurança.

Gilson Nascimento entregou a pauta, ele meteu as caras pra Praça da Piedade, onde funcionava a Secretaria.

Cobriu, voltou, escreveu a matéria.

Vamos nos entender: Navarrinho jamais ouvira falar em lead.

Escreveu como lhe dera na cabeça.

Dizia "aconteceu hoje na Secretaria...", seguia com hoje sempre.

Dia seguinte, olha a matéria publicada: outro texto.

O lead na cabeça, o tempo modificado para ontem, naturalmente.

Chateado, triste, quase inconsolável, foi chorar pitangas, aconselhar-se com Gilson Nascimento.

- Venha cá, meu filho - disse o chefe, tomando-o pelas mãos e levando-o à sala de Rafael Pastore, secretário de Redação.

- Rafael, veja só, o menino fez a matéria e está todo desenganado, desconsolado porque a matéria saiu com texto diferente.

Gilson, continuou:

- Nunca havia entrado numa redação, nunca escrevera matéria para jornal, e já pretende ver seu texto publicado tal e qual ele escrevera. Não é demais?

Pastore e Gilson riram muito, sem desestimular o menino.

Ali soube: ainda tinha muito a aprender, longo caminho pela frente.

Ao menos naquele dia fora apresentado ao lead - dele, jamais esqueceria.

Nem se esqueceria do tempo: o acontecido hoje é ontem.

Ao menos era assim, no jornal impresso.

Jornalismo, cheio de segredos e manias - levaria vida inteira aprendendo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: uma aula de Frederico

Simões pra jamais esquecer, diagnóstico

das redações de então, mudanças

experimentadas pelo "Jornal da Bahia",

noticiaristas x repórteres, pegando no tombo.

 

O episódio da primeira matéria foi uma lição, dessas pra  jamais se esquecer.

De cara, um suspiro de alívio depois da conversa com Gilson Nascimento e Rafael Pastore: não seria demitido.

Depois, logo no dia seguinte, chega à redação e depara com Frederico Simões na Chefia de Reportagem.

O usual, Gilson Nascimento pela manhã.

Naquele dia, sabe-se lá por que, Fred no lugar dele.

Destino, talvez, e destino a favor dele, Navarrinho.

Fred pacientemente, parecia um sacerdote franciscano, explicou-lhe os segredos do lead, a construção da matéria, quase uma lição do que era o jornalismo moderno, nascido já havia quase século.

Nada mais do nariz de cera, aquele rococó todo.

Ir direto ao assunto.

Responder logo de cara às perguntas clássicas: o que, quem, quando, onde, como, por que.

Valeu por um semestre de escola, ele ainda no início do curso.

Compreendeu o que era matéria especial - um feature.

Entendeu por onde caminhava um side - "eu lá sabia o que era tudo isso?"

E era tudo copiado do jornalismo americano.

Os termos, em inglês.

Lead, superlead, e por aí seguia.

O jornal, havia uns dois anos, passava por mudanças, por adaptações, chegando à contemporaneidade do jornalismo mundial, na avaliação de Navarrinho.

Dois ou três anos antes, ainda havia os setoristas: de aeroporto, de Polícia, da Assembleia Legislativa.

Eram os noticiaristas - ligavam pra redação com a notícia, alguém anotava, e os redatores, copidesques davam forma.

Os copidesques tinham, então, importância ainda maior.

A redação conhecida por ele já será outra, quando a Reportagem Geral ganha dimensão, a grande escola dos jornais, quando o repórter cresce em todas as áreas, e é levado a aprender a escrever, não confiar às cegas nos copidesques, até porque podia levar um sabão de um deles, e isso não era tão incomum.

E não se está dizendo não houvesse grandes repórteres anteriormente - havia.

Apenas situando as mudanças na organização das redações.

Navarrinho vai lembrar ainda de Hamilton Celestino - Tito.

Editor de Internacional - eu o encontrarei nessa mesma função, na "Tribuna da Bahia", final de 1974, ao lado de Carlos Borges, hoje nos EUA.

De Osvaldo Conhago Filho, diagramador - vou encontrá-lo mais tarde, no próprio "Jornal da Bahia".

Depois, trabalhará comigo na edição de pequenos jornais, no início dos anos 90, quanto também diagramará "Narciso no fundo das galés: combate político através da imprensa", de minha autoria, de 1992.

Depois da primeira matéria, das lições de Fred, Navarrinho engrenou.

Tudo bem: pegou no tombo, mas pegou.

Seis meses passado, e já...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

27 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: engrenou, ganhou

ritmo, inclusive nas farras pelas ruas da

cidade, primeira grande cobertura,

desabamento da Contorno, as chuvas de abril.

 

Engrenou.

Bastou a lição daquela primeira matéria para Navarrinho engrenar.

Tomou tenência.

A disciplina do seminário, do Exército, as lições de Mariazinha, ajudaram-no.

É a caminhada da vida a nos ensinar, sempre.

Mais do que qualquer escola, não obstante a EBC tenha lhe ajudado muito.

Atenção nas coberturas, anotava tudo, não perdia nada, e foi se firmando como repórter.

Escrever, sabia.

O lead, aprendera.

Gostava daquela lida.

Coisa de seis meses após a primeira matéria, já o tinham requisitado para a equipe de copidesques.

Melhor - combinava a atividade de repórter com a de copy.

Espécie de hora extra.

Ganhava pouco, salário mínimo, e a hora extra vinha bem a calhar.

A calhar menos para a ajuda em casa, e mais para as farras, bastante amiudadas, já.

Recorda-se, e não sei se fala tudo, das farras na Montanha - ali onde ficava o 63, não sei se frequentou.

Da Boate Guaciara, ali perto da ABI, tudo centro da cidade.

Guaciara, descendo a rua, você sairia na 28 de Setembro.

Subindo, você toparia com o Liceu de Artes e Ofícios.

Das localizações, Navarrinho lembra bem.

Na Guaciara, encontrava-se a Universidade inteira, intelectuais de muitos matizes, poetas, seresteiros - e jornalistas.

Esmeralda, a dona, madrugada avançando, sem aguentar mais o repuxo, contava as cervejas consumidas, deixava lá, depois cobraria, e ia dormir - e todos seguiam na farra, que a noite era menina.

A conta, todos pagavam: deixavam o dinheiro numa caixa, ninguém dava calote.

Tempo de jornalista boêmio.

Antes de chegar ao time de copidesques, no entanto, viu-se numa grande cobertura.

De madrugada, a avenida do Contorno havia desabado, um desastre de grandes proporções.

A avenida estava sendo construída.

Uma obra de contenção, desabou, à altura do Solar do Unhão.

O desabamento, na conta de Navarrinho, matou entre 16 e 18 operários.

Passou a manhã e parte da tarde acompanhando o resgate dos corpos, observando o impacto da tragédia.

Fez a matéria.

Foi ela a puxar todo o material publicado.

Por ter cor local,  sentimento, revelar todo o drama, conter entrevistas com parentes das vítimas, com as primeiras autoridades a chegar na área do desabamento.

Foi o seu batismo de fogo, sua primeira grande cobertura, e por isso jamais esquecida.

Cobrirá outras, da mesma natureza.

A Salvador de então acostumou-se tragicamente com o desabamento de encostas durante as chuvas de abril, quando morria muita gente...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: conhecendo

João Ubaldo Ribeiro, rapaz de texto

bonzinho, vergonha, vida ensinando.

 

Nos primeiros dias de jornal, Navarrinho experimentou um prazer indescritível: conhecer João Ubaldo Ribeiro.

Será um gigante da literatura brasileira.

Já estava a caminho.

Ele o via chegar, aos sábados, laudas enroladas debaixo do braço, sempre aquele sorriso largo, alegrando o ambiente.

Dava um bom dia sonoro, com sua voz de barítono, atravessava a redação, e entregava a crônica dele a Rafael Pastore.

A coluna dele, "Satyricon", publicada aos domingos.

Coluna obrigatória para Navarrinho.

Aprendera, logo nos primeiros dias, lições de Gilson Nascimento e

Fred Simões: para aprender a escrever, o mínimo é você ler o jornal, inteirinho.

E ele seguiu isso de modo religioso.

Havia territórios do jornal, meio insossos - ainda assim, percorria-os.

Lia também os concorrentes: "Diário de Notícias" e "A Tarde".

"Tribuna da Bahia" surgirá no segundo semestre de 1969.

A crônica de João Ubaldo, lia com imenso prazer.

Um dia, antes de vê-lo ingressar na redação naquele dia, ao vivo e a cores, entrou na sala de Rafael Pastore, e foi logo dizendo:

- Ô Pastore, tenho lido "Satyricon". E o sujeito até escreve direitinho, é bonzinho...

Pastore reagiu de pronto:

- Bonzinho? Navarro, esse cara é João Ubaldo.

Puxou a ficha dele, falou e disse, trazendo-o para o chão.

Baita susto, e uma quase descompostura - descompostura, não, Rafael não era disso: baita lição.

Ele assinava J. U. Ribeiro.

Foca entrão dá nisso: passa vexame a torto e a direito.

Deu de um dia estar na sala de Pastore, e João Ubaldo chegar para entregar o texto para a coluna.

Pastore não perdeu a chance:

- João Ubaldo, Navarro é nosso repórter. Ele achou o seu texto bonzinho.

Navarrinho quase morre de vergonha.

Pediu pra terra se abrir, sumir.

Tinha noção já de quem era João Ubaldo, quinhentos degraus à frente dele, um mestre da literatura, e ele troçando.

João Ubaldo, com quem tive a chance de trabalhar mais tarde na "Tribuna da Bahia", ele redator-chefe, nem aí.

Riu, de boa, cheio de simpatia:

- Que bom. Ao menos, tenho a certeza de ter um leitor.

A partir daí, Navarrinho se sentiu à vontade para dar um jeito de chegar a tempo, ás sextas-feiras, para encontrá-lo à chegada dele para entregar a crônica.

Todo santo dia, nesse dia, dava um jeito de entabular conversa, e nisso João Ubaldo era bom, dava trela ao jovem repórter.

Nem era tão grande a diferença de idade - João Ubaldo nascera em 1941, quatro anos mais velho.

Diferença mesmo, a experiência e o talento literário.

Navarrinho, hoje, está perseguindo, quem sabe, na ficção, os passos do mestre da juventude...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Graça Azevedo: Fui aluna de João Ubaldo no segundo ano da Faculdade. Pleno 1968. Inesquecível. Carlos Navarro, sei que vc é o personagem da história e Emiliano me mantém presa à narrativa, mas o Mestre era um espetáculo!

Emiliano José: Graça Azevedo Duvidar quem há de?...

Graça Azevedo: Nao é?🥰

Emiliano José: Entonces... E Viva o Povo Brasileiro

Carlos Navarro: E põe espetáculo nisso Graça, para mim o grande escritor contemporâneo brasileiro sem desdouro a Jorge Amado, outro baiano mítico. Depois ficamos amigos e trabalhamos juntos na Revista Viver Bahia (que editei em meados dos anos 1970 e as crônicas dele eram ilustradas pelo grande Lage) e em outras publicações.

Graça Azevedo: Agora eu digo: ô inveja!

-------------------------------------------------------- 

Emiliano José

29 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: um ano de terror,

1969. João Falcão, crente na amizade

de ACM, pede ajuda para Marcelo

Duarte face às perseguições da ditadura,

não esperava a reação intempestiva.

 

O ano de 1969 não foi brinquedo, não.

Navarrinho vai compreender isso naquele início como jornalista.

A ditadura estica a corda.

O AI-5 de 13 de dezembro de 1968 foi a antessala do teatro de horrores a seguir.

Sob o comando de Médici, apertou os torniquetes.

País afora.

ACM, prefeito de Salvador.

Biônico, assim será quase sempre: governador duas vezes também escolhido pelos militares.

Em uma solitária ocasião, eleito: 1990.

Não demoraria pra colocar as mangas de fora.

João Falcão, dono do "Jornal da Bahia" acreditava-o amigo.

Em jantares regados a bons vinhos, quase sempre junto com Odorico Tavares, jogavam conversa fora, invadindo a noite.

Quando de seu interesse, ACM conseguia ser simpático.

João Falcão, homem de imprensa, bom cultivar amizade.

Amizade, em termos - Falcão perceberá.

Sabe nada, inocente.

Na varredura da ditadura na Bahia, cassaram e prenderam Marcelo Duarte, até então deputado estadual.

Filho de Nestor Duarte, ambos fundadores do "Jornal da Bahia".

O velho Nestor Duarte, jurista, dos mais notáveis professores da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.

Lembro-me do entusiasmo de Waldir Pires, quando a ele se referia: tivera o privilégio de ser aluno dele.

Autor de vários livros sobre Direito, incursionou na área do romance também.

Apaixonado defensor da reforma agrária, de firmes convicções socialistas e democráticas.

Uma das mais respeitáveis figuras da história da Bahia.

Estava muito aflito pelas perseguições sofridas pelo filho.

Temia, além de tudo, a perda do direito à aposentadoria, opção implícita em toda aquela perseguição.

Pediu ajuda a João Falcão.

Encontrou-se com ACM no Palácio de Ondina, numa comemoração.

Falcão acreditava pudesse obter dele alguma ajuda, confiante na relação estabelecida até ali.

Não conhecia ACM.

Ele vai revelar-se no poder.

Falcão expõe a situação de Marcelo Duarte, as perseguições.

ACM, ouvindo, atento, mas sem conseguir disfarçar totalmente a irritação.

João Falcão leva um susto com a reação.

Quase aos gritos, ACM, de modo enfático, desmente tudo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Graça Azevedo: Vc vai me matar de curiosidade!

Artur Carmel: "Não Deixe Essa Chama se Apagar !"

Emiliano José: Título de livro escrito por João Falcão...

Artur Carmel: E slogan da 'campanha de resistência' do JBa...

Emiliano José: Isso

Átila Santana: ACM sendo ACM.

Lucilia Duarte: Um FDP! É o mínimo dos elogios...

Átila Santana: Veja vc q não posso discordar.

Lucilia Duarte: Obrigada pelos elogios ao meu avô Nestor e a Meu PAI Marcelo, eles eram isso tudo que vc disse e muito mais!

Eu sei o fim dessa história! Vivemos na pele a tirania de pulha do filhote de crápula que se sentia dono da Bahia! Eu cuspo na memória de acm! 

------------------------------------------ 

Emiliano José

30 de junho de 2021

Carlos Navarro Filho: ACM golpista de

primeira hora, a defesa da ditadura

diante de João Falcão, a reação,

rompimento entre os dois, início de

longa perseguição ao "Jornal da Bahia".

 

ACM, não custa insistir, é golpista de primeira hora.

Apoiou o golpe de 1964 com entusiasmo.

Defendeu ardorosamente aquele regime de terror e morte.

Navarrinho conhece bem essa trajetória e vai viver de perto ou de longe a odisseia do "Jornal da Bahia".

Quando João Falcão, inocentemente, relata a ACM as perseguições sofridas por Marcelo Duarte, causadoras de tanto sofrimento ao velho Nestor Duarte, ele perdeu a compostura.

Desmentiu João Falcão, assim sem mais nem menos.

Defendeu com unhas e dentes a ditadura.

Mais: resolveu provocar Falcão:

- Os jornais da Bahia são muito pouco corajosos. Eu gostaria que o seu jornal criticasse o governo.

Respirou fundo, surpreso, João Falcão.

Reagiu:

- Por todos os jornais não posso responder. Mas, pelo "Jornal da Bahia" você não perde por esperar.

De alguma forma, declarava guerra a ACM.

Ele contra-atacou:

- Não tenho medo. Minha administração é inatacável.

João Falcão retrucou:

- Não existem administrações inatacáveis.

E nesse momento, sentiu o sangue lhe subir à cabeça.

Perdeu a paciência, e avançou sobre ACM de dedo em riste:

- A partir de hoje você perdeu o direito à minha intimidade porque não tem educação e nem compostura para merecê-la.

Luiz Viana Neto, próximo à discussão, afasta Falcão, evitando, quem sabe, um pega pra capar ainda maior.

Aquela noite marca o início de uma guerra a se arrastar por quase seis anos.

Mais apropriado dizer: é o ponto de partida de uma cruel perseguição contra um jornal, contra a liberdade de imprensa.

Golias e David.

O jornalismo, naqueles seis anos, sairá engrandecido, não obstante tudo.

Artes do destino, talvez: dois dias depois do jantar em Ondina, um temporal inunda boa parte de Salvador.

O "Jornal da Bahia" mergulhou no assunto: botou os repórteres nos alagamentos, a acompanhar os estragos.

E tome-lhe manchete no dia seguinte:

"A chuva de um dia destrói a obra do 'Prefeito do Século'."

'Prefeito do século' era como ele era chamado pelo cordão de puxa-sacos.

Cedo, muito cedo, ainda em casa, João Falcão, atende o telefone.

Era ACM...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Antonio Lins: MEMÓRIA DAS TREVAS, COMO JÁ ESCREVEU NOSSO SAUDOSO PENA DE AÇO!!

Lucilia Duarte: Grande JOÃO FALCÃO! Família de amigos muito queridos!

Artur Carmel: O negoço tá esquentano...

Átila Santana: Vou esperar os próximos capítulos, como quem espera Jesus!

Anete Ivo: Viva o jornalismo livre do despotismo do mando local

Jose Tavares: Governo de Lídice da Mata : a cidade de Salvador tornou-se um buraco de buraco em buraco escavados por ACM com dinheiro da ditadura. Derrotou a prefeita e seus aliados com essa política mesquinha, tipo seu estilo

Jose Tavares: Buracos políticos!!! 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

1 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: telefonema,

rompimento, sequência de

perseguições de ACM, processo

contra Joca, a tentativa de destruição

de um jornal, não deixe esta chama

se apagar, respirando em 1975.

 

ACM tinha a mania de ligar cedo para a casa dos outros.

E, também, de ter os telefones mais íntimos de autoridades superiores a ele.

Waldir Pires me contou: era o principal aliado de Juscelino na Bahia, mas em dois tempos ACM conseguiu o telefone de cabeceira do presidente.

E ligava pra ele nas horas mais impróprias, como o presidente relatou a Waldir, às gargalhadas.

E se brigasse com alguém, e precisasse da pessoa, passava por cima, e ligava como se nada tivesse acontecido, a amizade continua.

Foi assim com João Falcão.

Ligou cedo pra casa dele.

Falcão atendeu, e foi surpreendido, por ser ACM, e pela intimidade:

- O que é isso, Falcão? O jornal me declarou guerra?

João Falcão não lhe deu chance:

- Já lhe disse: você perdeu o direito à minha intimidade. Dirija-se à redação.

E desligou.

A partir daí, todas as pontes ruíram.

E o "Jornal da Bahia" tornou-se muito mais crítico, sem, no entanto, deixar de lado o compromisso com os fatos, tentando sempre ser fiel à verdade.

Navarrinho sentindo o clima esquentar.

Era já o final do ano de 1969.

O jantar em Ondina fora em setembro, aniversário de ACM.

Para jornalistas, sopa no mel.

O arco de liberdades, no  dia a dia ao menos, se amplia.

Na cobertura de cidade, livres para exercitar o melhor do jornalismo.

ACM faria uma escalada, no entanto: negou licença para reparos na sede de modo a garantir a instalação de novas máquinas destinadas à modernização do jornal e chegou ao ápice com a demissão do jornalista João Carlos Teixeira Gomes (Joca) da Secretaria de Turismo de Salvador.

Ápice, não.

Ele processará Joca, redator-chefe do jornal, com base na Lei de Segurança Nacional.

ACM era mais real do que o rei: nem os juízes militares apoiaram a iniciativa.

Joca, absolvido.

Grave: ACM foi escolhido governador.

E durante o resto do mandato de prefeito e durante todo o exercício como governador, dedicou-se cotidianamente a perseguir o "Jornal da Bahia", inclusive pressionando anunciantes a se afastarem do jornal, sendo bem-sucedido em inúmeros casos.

Quase o jornal fecha.

Não aconteceu pela resposta dos leitores, sensíveis à campanha "Não deixe esta chama se apagar", desencadeada pelo jornal, título do livro de João Falcão, Editora Revan, 2006, apresentado por mim.

O jornal só respirou em 1975, quando Roberto Santos assumiu como governador.

Sei da angústia do leitor por conhecer melhor essa intrépida luta de resistência de um jornal.

Tenho, no entanto, que voltar ao nosso protagonista.

Os interessados devem correr, buscar o livro de João Falcão, e compreender então o caráter de um soba.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Antonio Lins: Tenho o livro de João Falcão. Excelente, com dedicatória e tudo

Átila Santana: Caramba!

Artur Carmel: Além de amigo de João Falcão - e nutridor de antipatia pelo Cabeça -, meu pai era assinante e leitor assíduo do JBa. Por tabela, eu lia tb o jornal.

Carlos Augusto da Silva: Cuca Falcão Lula Falcão Julinha Falcão

Maria Luiza Falcão Silva: Orgulhosa e saudosa de meu pai João Falcão!

Ignez Velloso: Tenho o livro do João Falcão e retrata a verdade da perseguição que o jornal sofreu. Apesar de ser criança na época fui crescendo e compreendendo que o ACM era um covarde ,OPORTUNISTA que usou a Bahia para seu próprio interesse e nunca amou os baianos.

Mônica Bichara: Também tenho o livro e muito orgulho por ter meu nome incluído, mesmo não tendo alcançado essa fase da campanha. Ele listou todos q trabalharam no JBa enquanto pertenceu a ele 

------------------------------------------------- 

(Foto de Lúcia Correia Lima - Fotógrafo Agliberto lima)

Emiliano José

2 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: a lacuna sobre

fotografia, nunca esquecer o dito de

que uma foto vale por mil palavras,

os fotógrafos do "Jornal da Bahia".

 

Nessa série sobre jornalismo na Bahia, uma lacuna me atormenta, e é muito possível não consiga preenchê-la.

Levanto-a, e ao fazê-lo, quem sabe, provoque outros jornalistas a ir atrás, talvez também estudantes.

Fotógrafos, fotógrafas.

Aqui, acolá visitei Anizio Carvalho, patrono de gerações, pela qualidade e pela idade, um criativo testemunho da Bahia.

Visitei escrevendo.

E não raramente estive com ele no Alto do Saldanha, onde fomos vizinhos por vários anos.

Ou então falamos por telefone.

Fomos colegas no "Jornal da Bahia".

E amigos até hoje, amizade cultivada.

Volta e meia, falo com o pintor Agliberto Lima - chamo-o pintor pelo primor de suas fotos.

Fui colega dele no "Estadão".

E somos amigos - no caso dele, de toda a família: pai, mãe, irmãs, todo mundo.

Conheci tantos outros: Vigota, Carlos Catela, Rino Marconi, Ikissima, Jurandir, Bonfim, Miltinho - uma renca, e muitos nomes somem na névoa do tempo.

Registro: Arthur Ikissima foi meu vizinho de porta no Alto do Saldanha.

Moravam ele e Roberto Gonçalves no mesmo apartamento, ao lado do meu.

Roberto era repórter, não sei se no "Jornal do Brasil" naquele momento, ou n'O Globo'.

Lúcia, irmã de Agliberto Lima, outra lembrança.

Disse isso a Navarrinho, provoquei-o.

O "Jornal da Bahia" valorizava a fotografia, a "Tribuna" vai dar ainda mais espaço às fotos.

Ao entrar na redação do "Jornal da Bahia", no amplo salão, as fotos nas paredes eram as primeiras a nos saudar, a chamar nossa atenção - homenagem à Bahia e aos repórteres fotográficos.

Difícil, impossível, separar o escriba e o fotógrafo.

Repetiu-se sempre: uma foto vale por mil palavras.

Vale.

Melhor, portanto, não separar a palavra escrita pelo repórter daqueloutras, das mil ofertada pela foto, ou mais de mil se mais de

uma.

Dos fotógrafos, entre 1969 e até 1974, período dele no "Jornal da Bahia", Navarrinho se recorda de Teófilo Negreiros, Vigota, Anizio Carvalho, Juvenal Silva Santos - este, laboratorista: quando faltava alguém, ele saía pra rua como fotógrafo.

Lembrou-se, ainda, de Manoel França.

Contratado como motorista, surgiu a vaga, e França tornou-se fotógrafo.

Acontecia.

Paulo Mocofaya, encontrei motorista no "Estadão".

Mais tarde, notório fotógrafo - Jaciara Santos o conhece bem da convivência no "Jornal da Bahia", e pode dele contar ótimas histórias.

A da baba no leite de cabra, uma delas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Átila Santana: Professor essa série vai originar mais um livro?

Emiliano José: Espero. O primeiro volume, Balança mas não cai, já está nas ruas, E-book, na Amazon. Estamos trabalhando já no segundo, Os comunistas estão chegando. E virão outros.

Átila Santana: Sucesso, professor.

Emiliano José: Hora que puder, leia Balança mas não cai

Átila Santana: Emiliano José assim q possível. Li umas obras suas - me foram emprestadas pelo ex-vereador PIPIA, de São Francisco do Conde, seu administrador de primeira linha. Estou curioso para ler “O cão morde a noite”.

Emiliano José: Átila Santana não há dificuldade: mande seu endereço, e lhe envio autografado.

Artur Carmel: Como bem sabem os colegas jornalistas, na lida diária das pautas, o repórter raramente saía às ruas sozinho...Ao seu lado, estava sempre o repórter fotográfico. E quando a dupla repórter/fotógrafo se afinava, era dificílimo da pauta não render. Posso dizer, de peito aberto, que trabalhei com algumas feras do fotojornalismo baiano e com as quais formei excelentes duplas e ganhei excelentes amizades !

Zeca Peixoto: Essa série está construindo uma inusitada trilha da história da imprensa na Bahia. Salve!!

Mônica Bichara: hahahahaha Jaciara (Paulino Jose Dos Santos avise a ela, não consigo marcar) seu Biliu dando um jeito de voltar às memórias. Maravilha essa lembrança dos fotógrafos, muitas pautas divididas com Anízio, Vigota, Mocofaia, Jorge de Jesus (Nigrinha), Fred Passos, Manu Dias, Neuzinha, Queirós....

Isabel Santos: Guardo a honra e gratidão de ter trabalhado, alguns diretamente no dia a dia das reportagens, com todos esses grandes fotógrafos e tantos outros, como os citados por Mônica. Grata lembrança ao voltar ao passado com essa sua série, Emiliano. Ikissima, eterna saudade. 

------------------------------------------------ 

(Homenagem a Anízio Carvalho na Câmara Municipal de Salvador, acompanhado por Emiliano José - Foto: Reginaldo Ipê)

Emiliano José

3 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: ainda fotógrafos,

Milton Mendes Filho, Anizio Carvalho,

destino dos arquivos fotográficos

perdidos por aí.

 

De fotógrafos, falávamos.

Repórteres fotográficos, sempre bom acentuar.

Olhei agora, porque volto a ele sempre, o livro de João Falcão sobre o "Jornal da Bahia".

No final, ele relaciona jornalistas.

E os fotógrafos.

Surpreendi-me: tão cuidadoso, esqueceu-se da presença de Milton Mendes Filho.

Foi companheiro nosso na "Lemos Brito".

Destaque dele na cadeia foi o futebol.

Peito de pomba, grande atacante, rápido como raio.

Casou-se com Rosália - Rosa Mendes.

Ela o visitava na prisão.

Foi bibliotecária na "Tribuna".

Trabalhava no arquivo ali pelo final de 1974, início de 1975, não sei quando saiu.

Foi pra Itália tem muito tempo, já a encontrei por lá, me hospedei com ela.

Em liberdade, Miltinho desenvolveu sua veia artística e de repórter: tornou-se excelente fotógrafo.

Trabalhamos juntos nos meados dos anos 1970, no "Jornal da Bahia".

Recordo-me de suas comoventes fotos sobre a "Invasão do IAPI", cobertura feita por nós dois.

Depois das lides nos jornais da chamada grande imprensa, embrenhou-se, máquina em punho, no movimento popular e sindical.

Tem um dos melhores arquivos das lutas dos trabalhadores - pena não esteja organizado, nem sei se recuperável.

São preciosidades perdidas, os arquivos dos fotógrafos.

O material de Anizio Carvalho, um deles.

Um pouquinho antes da pandemia estivemos com a secretária da Cultura, Arany Santana, discutindo o destino do arquivo dele, mas a peste adiou tudo.

Presentes, nessa audiência, algumas comadres: lembro-me de Jaciara Santos, Isabel Santos, Mônica Bichara - elas o tratam com imenso carinho.

Acompanharam a audiência, ainda, Ernesto Marques e Maria Marighella, como recorda Mônica Bichara.

Antes, estivéramos na casa dele, com o mesmo objetivo, Zulu Araújo, da Fundação Pedro Calmon, então secretário Jorge Portugal, e eu com o mesmo objetivo.

Quem sabe, quando a maioria da população estiver vacinada, o projeto ande.

Navarrinho, recapitulemos, chega ao "Jornal da Bahia" em dezembro de 1968, sai em 1974 para "O Estado de S. Paulo".

Em verdade, no decurso, torna-se repórter de ambos.

A responsável pelo centenário jornal paulista na Bahia era Zilah Moreira, e como não havia sucursal ainda, ao menos não havia dependências físicas, tudo era feito da redação do próprio "Jornal da Bahia".

Zilah utilizava os serviços do teletipista Simão Alves Dias para transmitir as matérias.

Mais tarde, Simão irá pro "Estadão", já sucursal, e sob chefia do próprio Navarrinho, cujo talento foi logo descoberto por Zilah...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Nelson Varón Cadena: Boa parte do acervo fotográfico produzido pela sucursal do OESP está no arquivo publico municipal.

Rui Patterson: O Tatu na Galeria F, não foi meu contemporâneo, saí em outubro 1971, mas o encontrei em diversas oportunidades cobrindo eventos trabalhistas e sobre prisões políticas, uma delas a prisão dos sindicalistas Jaques Wagner e Nilson Bahia, na Polícia Federal, 1o. Armazém das Docas, ao lado do Mercado Modelo. Eu estava lá como advogado do Sindiquímica defendendo Wagner e Bahia e Tatu fez a cobertura das prisões, foram publicadas várias fotos deles no pátio da PF, no jornal A Tarde - não era qualquer jornal que publicava essas notícias- Wagner e Nilson sentados sobre um tonel. Quando viu que Tatu estava fotografando, o superintendente da PF expulsou Tatu e ordenou a minha prisão, corri e entrei no escritório de Pedro Milton de Brito, que impediu a minha prisão. Com o falecimento de Tatu nunca recuperei essas fotos, registros de uma época historicamente importante e cessa

Joao Coutinho: Rui Patterson Tatu faleceu? Não soube!

Emiliano José: Alguém disse isso?

Joao Coutinho: Sim, Rui Peterson. Esclareça pra ele.

Emiliano José: Do que sei, doente. Falecido, não. Vou checar.

Joao Coutinho: Me dê notícias dele. Obrigado.

Emiliano José: João, conversei com Joana, filha dele. Difícil situação de saúde, sendo muito bem cuidado, já tem tempo assim. Vivo.

Emiliano José: Rui, ele está vivo. Falei com Joana, filha, hoje. Não obstante, situação de saúde precária. Abração.

Rui Patterson: Emiliano, gostaria muito de reencontrar o velho companheiro e amigo, retratando-me por considerá-lo morto.

Perdi o texto quando escrevia, só agora vejo que enviei, faltam algumas informações.

Emiliano José: Rui Patterson Rui, ele não está nada bem. Esta, a verdade. Muito bem cuidado.

Lucia Correia Lima: Esqueceu que eu levei Albino na casa de Anízio. Desde então tudo ficou na promessa... Lamentável

Maurício Vasconcelos: Conheci Miltinho na campanha de Dr. Roberto Santos ao governo da Bahia em 1982. Ele, Dalton Godinho que era da turma de Dr. Waldir.

Mônica Bichara: Quanta gente querida nesse capítulo, só aumentou a saudade. Alcancei Miltinho no JBa, tão querido. Anízio C. Carvalho nem se fala, era disputado pelas comadres, paixão à primeira vista. Nessa reunião na Secretaria da Cultura estavam tbm Ernesto Marques e Maria Marighella. Que esse projeto de homenagear nosso veinho saia do papel

Lucia Correia Lima: Nunca esquecer que Bel Agliberto. Já trabalhava com Zilah antes da abertura da sucursal. Ela o levou p o Estadão.

Albenísio Fonseca: Eu e Miltinho, como tratávamos o querido fotógrafo Milton Mendes, atuamos juntos em muitas reportagens no Jornal da Bahia. Antonio Gaúcho era o editor e Messias Porquinho o chefe de reportagem.

Uma enigmática mortandade de peixes no Rio Subaé, em Santo Amaro da Purificação, nos levaria até aquele município do Recôncavo.

Sondava moradores, comerciantes, barqueiros, sobre o que poderia ter causado aquela tragédia ambiental, mas sem muito sucesso. Miltinho fotografava minuciosamente os milhares de peixes mortos a boiar no Subaé.

Eis que de repente nos surge um senhor que passaria a informação crucial da origem do problema. Disse que houve o rompimento de uma das bacias de destinação do vinhoto em uma fazenda produtora de etanol, nos revelando a localização.

Vinhoto, vinhaça, tiborna ou restilo é o resíduo malcheiroso que resta após a destilação fracionada do caldo de cana-de-açúcar fermentado, para a obtenção do etanol. Para cada litro de álcool produzido, 13 litros de vinhoto são deixados como resíduo, que pode se apresentar na forma líquida ou pastosa e é extremamente tóxico, um danoso veneno, sem meias palavras.

Poucos minutos depois, lá estávamos, como em ação de guerrilha, a invadir propriedade alheia e a nos deparar com o "piscinão" de vinhoto já reparado, mas com todos os vestígios de terra úmida e remexida a indicar o vazamento.

Miltinho fez inúmeras fotos. Tudo parecia transcorrer bem, já saíamos do local quando observei duas caminhonetes cheias de homens, ostensivamente armados, vindo em nossa direção.

- Zorra, Milton, o bicho vai pegar. Lembro ter dito. Ele olha, avalia o tamanho da encrenca e me diz: "Albenísio, fique em minha frente".

Em segundos, rebobina o filme e insere outro, virgem, na câmera.

A tropa de choque do fazendeiro chega e um deles dispara: "O que vocês estão fazendo aqui? Quem são vocês? Quem autorizou a entrada? Isso aqui é uma propriedade privada".

Um outro deduz rápido: "Já vi que são repórteres. Olha esse aí com uma câmera!"

Antes que disséssemos qualquer coisa, um terceiro arrancou a câmera pendurada ao pescoço de Miltinho.

Pergunto o que sabem sobre o vazamento de vinhoto e a mortandade dos peixes. Não me deram resposta ou importância.

Sem se fazer de rogado, Mendes diz:

"O equipamento pertence ao jornal, se quiserem entrego o filme". Eles aceitam a proposta, sem se dar conta de que nenhuma imagem havia naquela película. Nos puseram para fora do lugar com estocadas de espingardas e sob ameaças:

"Se voltarem aqui é melhor, antes, garantirem covas no cemitério mais próximo".

O motorista do jornal nos esperava do outro lado da pista. Rimos muito, também de nervoso, durante o retorno.

Dia seguinte, com Brizola em Salvador e na manchete principal, a chamada da nossa matéria, com foto em seis colunas, ocupa quase toda a parte de baixo da Capa. A reportagem ocuparia o alto e metade da quinta página. E era um "furo" nos concorrentes.

Emiliano José: Albenísio Fonseca belíssimo resgate

Mônica Bichara: Que maravilha Albenísio, imaginando aqui a tensão e a arte de Miltinho.

Isabel Santos: Grandes fotógrafos Anízio Anízio C. Carvalho e Miltinho, com os quais tive honra de trabalhar, numa convivência de muito aprendizado e gratidão. Eterno carinho. Rendo homenagens também à Zilah, que teve sua presença singular na nossa área.

Manoel Barretto: Grande Miltinho

---------------------------------------------

Emiliano José

4 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: perde a piada mas

não perde o amigo, fotógrafo perde foto

do  busto quebrado, um corpo estendido

no chão, param o carro, Vigota fotografa.

 

Navarrinho é daqueles que perdem a piada.

E preserva o amigo.

Se provocar alguém, prefere omitir o nome.

Escriba, fique na saudade.

Não cede nem com a porra.

Viveu muitas histórias jocosas na lida jornalística.

Quem não?

Conta milagre.

Santo, nem pensar.

Quer saber uma?

O busto de Cosme de Farias devia ser inaugurado, no bairro do mesmo nome, parte de Brotas - cidade dentro da cidade, espalhando-se por todo lugar, eita bairro grande, Brotas, não?

Navarrinho se abalou para o bairro, na véspera - fazer matéria de apresentação.

Relembrar: fotógrafo, muitas vezes, saía separadamente.

Ia fotografar independentemente, até porque eram inúmeras as pautas recebidas, às vezes em número bem maior do que o dos repórteres.

Navarrinho chegou ao local, noite.

Deparou com o busto todo quebrado, vandalizado.

Tacou o pau, fez a matéria, quente.

O fotógrafo chegou logo depois, viu o busto quebrado, pensou: não tem busto, não tem foto.

E se picou.

Matéria prejudicada.

Não são só os momentos hilariantes. 

Plantões - jornais tinham.

Ainda têm, certamente.

Navarrinho estava num desses plantões, e saiu com Vigota para fazer matéria IP - só se falava assim, matéria IP: interesse do patrão.

A matéria IP era, nas lembranças de Navarrinho, no Iate Clube.

Final de tarde.

Dia 27 de outubro de 1970.

Passavam pelo Dique do Tororó, altura do atual Posto São Jorge.

Um corpo no chão - é, estendido no chão.

Uma ou duas pessoas olhando, gente curiosa.

Navarrinho deu ordem: para, para.

Vigota desceu, fotografou.

Nem imaginavam: estavam diante do mais rumoroso caso daquele ano de 1970, a redundar na primeira condenação à morte da ditadura.

O corpo era do sargento Walder Xavier de Lima, da Aeronáutica.

Ele, mais um cabo do Exército e dois agentes da Polícia Federal...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

---------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: defronte da história,

argumento pra dar a foto, Pastore topa,

PF puta, jornal tinha argumento, repressão engole.

 

Navarrinho se viu defronte da história.

E isso só ocorreu porque ele havia entrado, por escolha, naquela escala de plantão daquele 27 de outubro de 1970.

Tivesse recebido pauta pela manhã ou mesmo pela tarde, não mergulharia num dos mais rumorosos casos da ditadura.

Passou, viu aquele corpo estendido no chão, parou, Vigota fotografou.

Dique do Tororó.

Era o corpo do sargento Walder Xavier de Lima. 

No momento, não atinou pudesse ser alguma coisa relativa a uma operação da ditadura - e era.

Navarrinho olhou prum lado, olhou pra outro, conversou com os curiosos, sabiam ter havido tiros, mais nada.

Decidiu seguir em frente, cumprir a pauta de interesse do patrão.

De volta à redação, já coisa de 21 horas, começa a perceber a dimensão do episódio.

Já se sabia da prisão de dois terroristas - assim, a denominação dos opositores do regime.

Tinham matado um militar - corria essa notícia.

Luiz Arthur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal já dera ordem à redação: nada devia ser publicado.

Navarrinho propôs a Rafael Pastore um modo de driblar a ordem:

- Nós não sabemos de nada. Temos a foto, apenas isso. Vamos publicar, com uma legenda, e ponto.

Pastore gostou.

E o "Jornal da Bahia" foi o único no País a publicar a foto.

Deu o furo.

Na legenda, cuidava-se de não cutucar a onça com vara curta.

Uma pessoa tinha sido morta no Dique do Tororó, nas imediações da Vasco da Gama, em tal hora, pouca coisa, corria a informação nas delegacias teria sido um militar morto numa troca de tiros, nada mais na legenda.

Lá estava o corpo estendido no chão.

No dia seguinte, o bafafá: repressão baixou no jornal com tudo.

Mas, havia argumento: não se sabia de nada, parecia um crime comum...

E mais: no aviso recebido para não publicar nada, não havia a notícia de nenhuma morte...

Dando de João sem braço.

Repressão engoliu, mas não gostou nem um pouquinho.

E Salvador virou praça de guerra...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------- 

(Navarrinho na redação da sucursal com Raul Bastos ao lado e Barretinho)

Emiliano José

6 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Theo e Paulo presos,

reação, clima de guerra, torturas, plantão

rende matéria histórica, fontes sobre episódio.

 

É.

Salvador virou praça de guerra.

A história é conhecida: Theodomiro Romeiro dos Santos e Paulo Pontes da Silva são abordados por quatro sujeitos em trajes civis no Dique do Tororó, algemados, colocados na traseira do veículo.

Ninguém revistou Theo.

Ele sacou da arma, meteu bala, só acertou o sargento Walder Xavier de Lima, da Aeronáutica.

Os quatro eram militares, e levaram Theo e Paulo para a Polícia Federal, na Cidade Baixa, e aí foi tortura, e tortura, e tortura, ali mesmo e depois no Barbalho.

Eu ainda estava solto, mas logo sou preso, menos de um mês depois.

E então estabelecerei com os dois uma amizade profunda, especialmente com Theo.

Na Salvador praça de guerra, entraram Luiz Arthur de Carvalho, major Nilton Cerqueira, coronel Lima Araújo, todos os órgãos de segurança.

Claro, as leitoras, comadres, tantas, os leitores, todas, todos, devem me cobrar: conte essa história.

Limito-me a um convite: podem ler "Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento", segunda parte.

A história de Theo abre o livro, com ênfase na fuga dele, agosto de 1979.

Há, ainda "O cão morde a noite": fecho o livro, novamente, com Theo, novidades na história.

Se quiserem, há, também, "A fuga histórica", na número um da revista "Caros Amigos", escrita por mim, capa.

E há filmes: os de Henrique Dantas e o de Emília Silveira, pra lembrar dois.

Em março de 1971, Theo será condenado à morte.

Sentença depois reduzida a perpétua...

Não, não vou contar.

Resisto.

Tenho de voltar ao meu protagonista.

Navarrinho soube da comoção da área militar - como não ia saber?

No enterro, houve choro e ranger de dentes, discursos cheios de ódio e ameaça por parte de altas patentes das Forças Armadas, clima de raios e tempestades, os terroristas haveriam de pagar, aquele sangue não fora em vão...

Um plantão histórico, a render matéria histórica, propiciar o encontro com a história.

Mais tarde, eu e Navarrinho, aí os dois no Estadão, nos envolveremos com outra histórica matéria sobre Theo.

Ele contará à frente.

Ando devagar porque já tive pressa.

Tenham paciência...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Vanda Amorim: Memórias marcantes.

Helvecio Aguiar: Muito interessante.

Zeca Peixoto: Paulo Pontes me deve essa entrevista... mas entendo seu recôndito. Mais uma excelente crônica, mestre! 

--------------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: chegada de Harry Belafonte, ninguém sabia inglês,

Vera Martins é salvação da

lavoura, militante político.

 

Vou e volto.

No início de 1970, chego a Salvador.

Barra tinha pesado em São Paulo.

Ação Popular, organização revolucionária a que pertencia, me deslocou para a Bahia.

Nem sonhava sobre como eram de fato as condições de trabalho dos jornalistas.

Claro, de longe, imaginava.

Mas, só de longe.

Navarrinho, novinho, nos seus 24, 25 anos, sentia todo o clima do pós AI-5, a ferocidade de Médici.

E na Bahia, a truculência de ACM, guindado à condição de governador por indicação do general-presidente.

Vida que segue.

Há peripécias, e ainda bem.

Senão só tristeza, e não era só.

Matéria sobre Harry Belafonte.

Esperando-o no aeroporto.

Havia uma preocupação entre os repórteres: se o cara chega, quem vai falar com ele?

Ninguém dominava o inglês.

Quando chega Vera Martins - Navarrinho acredita fosse ela também repórter do "Jornal da Bahia".

Era.

Eu, clandestino, estive com ela em 1970.

Salvação da lavoura: conhecia inglês.

Belafonte chegou muito tarde.

Vera Martins, nas minhas lembranças bem nova, provavelmente menos de 20 anos, não só entrevistou Belafonte, fez as perguntas, como também ajudou a tropa toda na tradução.

Belafonte tornou o calipso uma febre nos EUA.

Rei do Calipso - assim ficou conhecido.

Nascido no Harlem, em Nova Iorque, infância na Jamaica, ganhou dois Grammy nos anos 60.

É destacado defensor dos direitos civis, das causas humanitárias, confidente de Martin Luther King, manifestou-se contra a guerra do Iraque, e esteve ao lado de Hugo Chaves quando das ofensivas dos EUA contra a Venezuela.

Artista e militante político de esquerda.

Ocupou as listas do macartismo.

Nunca se rendeu.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

8 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Copa do Mundo,

Clodoaldo no Aeroporto, homenagem

do "Jornal da Bahia", drible de Fernando

Presídio, malandro, malandro, mané, mané.

 

Brasil campeão do mundo.

Tricampeão do mundo em 1970.

Eu morava no Alto do Saldanha, em Brotas.

Clandestino.

Ali, assisti essa conquista, sem muita disciplina por conta da militância.

Um bela seleção.

Médici fez a festa.

O povo, também.

Clodoaldo, Navarrinho recorda-se dele agora.

Volante, jogador do Santos, fez uma bela Copa.

No Santos, sucedia o grande Zito.

Nas lembranças, Clodoaldo iria pra Sergipe, terra natal.

Comemorar, ser abraçado por sua gente.

Avião, escala em Salvador.

Jornalistas, à espera.

Navarrinho, com a incumbência de levar o volante à redação do "Jornal da Bahia".

Sabia-se: a escala seria longa e haveria tempo para isso.

Houve a coletiva, e terminada, Navarrinho, tentando cumprir a tarefa, chama Clodoaldo do lado, vende o peixe, exagerando:

- Sou repórter do melhor jornal do Estado, e houve a decisão de homenageá-lo. Aí, seria necessária a sua presença na nossa sede. Eu lhe levo, trago de volta.

Clodoaldo não regateou.

No meio do caminho tinha uma pedra.

Malandragem de colega de profissão.

Fernando Presídio, repórter do "Diário de Notícias", ouve a conversa:

- Ótimo. Sigo com vocês, a gente passa pelo "Diário", e depois vocês seguem para o "Jornal da Bahia", tudo muito perto, não há problema.

Navarrinho, inexperiente, maldade nenhuma, topa.

Pensou fosse simples carona.

Chegaram em frente ao "Diário de Notícias", e tudo foi diferente: Clodoaldo desceu puxado por Presídio, demorou bastante pra voltar, Navarrinho já muito puto, percebendo a roubada.

Foram para o "Jornal da Bahia", houve a homenagem, com direito a placa e tudo, fotos pra burro.

Quando Clodoaldo foi embora, Rafael Pastore e João Carlos Teixeira Gomes foram pra cima de Navarrinho.

Mostraram a ele o quanto de inocência houve naquele gesto de aceitar a proposta de Presídio.

A matéria era dele, e agora perdia a exclusividade.

Levou um drible de Presídio.

Malandro é malandro.

Mané é mané.

Posou de mané.

Para nunca mais.

Consolo: só se aprende assim, apanhando...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Zeca Peixoto: Que passagem! Esses detalhes que enriquecem essa bela série. Carlos Navarro tomou um drible, é certo - tomei tantos na selva jornalística de Brasília rsrs -, ainda assim conseguiu entrevistar um dos melhores volantes do mundo à época. Clodoaldo era diferenciado. 

------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: navegando em mares

bravios, aprendendo, repórter bocão,

água milagrosa de Serrinha, furo,

vingança é prato que se come frio.

 

O ano de 1969 foi um terror.

Era o imediato pós-AI-5.

O ano de 1970 foi de consolidação - a ditadura navegava nos resultados do "milagre econômico", no crescimento de 10% ao ano, muito emprego calcado nos salários baixos, e ainda por cima houve Copa do Mundo e toda a festa, como já dissemos.

Nesse quadro, ditadura seguia matando, sem dó nem piedade.

Navarrinho navegando por esses mares.

Aprendera com o episódio Presídio: em tempo onde havia furo jornalístico, não era possível brincar, não se admitia inocência.

É, porque então o furo era essencial - a notícia exclusiva dada por um veículo, deixando os outros a ver navios.

Hoje, nesses tempos de internet, o furo praticamente desapareceu.

Aprendeu.

Ô marinheiro marinheiro  marinheiro só quem te ensinou a navegar marinheiro só ou foi o tombo do navio marinheiro só ou foi o balanço do mar marinheiro só...

Tempo depois, um ano após, conversa com veterano repórter de um jornal local, e ele confidencia: iria fazer puta matéria sobre uma água milagrosa em Serrinha, milagrosa a ponto de dar tesão nos velhos, maravilha.

Chega no "Jornal da Bahia", informa os editores.

Era uma quinta-feira.

Sexta-feira, viajam pra Serrinha, pauta definida - água milagrosa.

Ele e Rino Marconi, grande fotógrafo.

Uma das matérias de maior repercussão do jornal, então: famosa água de Serrinha.

Petrobras havia furado um poço em Biritinga, pequeno município próximo a Serrinha.

Não encontrou petróleo, mas água: sulfurosa, cheia de sais, e daí pra se tornar milagrosa, espécie de viagra do sertão, foi um pulo, além de tudo muito gostosa, água mineral natural.

Navarrinho deitou e rolou.

Rino, também.

A água chegou à cidade, encanada.

Na foto, primeira página, um bocado de homens mais velhos, comemorando, de mão pra cima, felizes com a água, virilidade recuperada, as mulheres ficando prenhas, filhos nascendo, milagre da natureza - pra eles, verdade.

O velho repórter do outro jornal, de língua solta, de viagem marcada para o sábado, viu já na sexta a matéria de Navarrinho, em destaque - Serrinha, adeus.

Adeus para o bocão, não para Navarrinho.

Matéria possibilitou uma suíte atrás da outra - suítes são desdobramentos de uma reportagem, de alguma notícia de impacto.

Além de ser desdobrada no noticiário de outros jornais, de emissoras de rádio, de tevês.

Malandro é malandro, mané é mané.

Dessa vez, não foi Navarrinho a pagar de mané.

Não importa não tenha sido com Presídio.

Mas, vingança: prato que se come frio...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Zeca Peixoto: Carlos Navarro, deu pra apurar se a "água milagrosa" já era da Pfizer?

Emiliano José: Zeca Peixoto só com Navarrinho  

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

10 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: água milagrosa

rendeu, Onassis encostando o iate em

Serrinha pra buscar a água, "Jornal da

Bahia" sob ataque, pequena equipe resiste.

 

Matéria da água milagrosa rendeu.

Rendeu que só a porra.

Povo começou a noticiar: Onassis, dono de incontáveis milhões de dólares, homem mais rico do mundo dizia-se, estava pronto a ancorar seu luxuoso navio-iate em Serrinha, para embarcar milhões de garrafões da água porque estava precisando.

Aristóteles Onassis, todos vocês sabem, era então um dos empresários mais ricos do mundo.

Havia se casado com Jacqueline Kennedy em 1968.

Nem tão velho: seus 65 anos.

Mas, o povo assegurava: já carecia daquela água.

E logo seu navio ancoraria em Serrinha - daria um jeito de o mar chegar até lá, como não?, dinheiro não faltava.

O sertão ia virar mar...

Se veio ou não, sei não, ninguém testemunhou.

Nem desmentiu.

Povo do sertão é bom pra contar esses causos.

No meio tem verdade, mas não só.

Navarrinho só garante uma coisa: foi a matéria de maior repercussão naquele ano de 1971 - é o ano na memória dele.

Modesto, afirma: não pelo repórter signatário da reportagem, desconhecido, mas pelo conteúdo.

Fato: a partir dali, ficou bem mais conhecido.

Não foi um período fácil - falo dos anos 1969-1974, período da presença de Navarrinho no "Jornal da Bahia", a começar a rigor em dezembro de 1968.

E não foi fácil simplesmente pela perseguição de ACM. 

O soba - ah, como Joca gostava de chamá-lo assim - não deu descanso ao jornal.

Um pouco antes de a perseguição começar, nas lembranças de Navarrinho, o "Jornal da Bahia" contava com 35 repórteres.

Era de um dinamismo fascinante, fervia.

O jornal mais pujante da época, na avaliação dele.

Quando a perseguição terminou, restavam cinco repórteres.

Nesses anos ninguém teve aumento, todos trabalharam dobrado, havia entusiasmo da equipe em resistir à opressão do soba.

Navarrinho conta: faziam uma comissão na redação, iam pedir aumento a João Falcão, e saíam da sala da diretoria dispostos a dividir os minguados trocados do fim do mês.

A verdade nua e crua: quem teimou em ficar, quem não foi atrás de outra atividade, eram aqueles dispostos a encampar a briga, a exercer o bom jornalismo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Isabel Santos: Êtcha Navarrinho nordestino/cabra danado de bom. Honrou

o jornalismo desde sempre. Quem ficou, só fez ganhar em aprendizado. 

--------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: David contra Golias,

ACM usando todos os métodos, terrorismo

inclusive, "Jornal da Bahia" resiste até o fim.

 

Foi muita história.

Navarrinho viveu intensamente esse período.

A briga com ACM rendeu pra burro.

E rendeu por conta da resistência.

O "Jornal da Bahia" foi um exemplo nesse período da ditadura.

Não se dobrou à tirania do soba.

ACM tentou de tudo: asfixia econômica ao suspender toda a publicidade oficial e pressionar abertamente o empresariado baiano e do Sul de modo a que ninguém anunciasse no jornal, calúnias contra João Falcão dando-o como sonegador de impostos, pedido de enquadramento de Joca na Lei de Segurança Nacional, não foi pouca coisa não.

Não contente com isso, passou ao terrorismo: uma bomba foi jogada contra o próprio João Falcão, no centro da cidade, explodindo a poucos metros de distância dele.

Noutro episódio, o carro de Joca, teve os pneus cortados e esvaziados, o para-brisa e a chaparia pichados, a pintura riscada, danificada.

Brinquedo, não.

Ou o jornal recuava, deixava se abater, ou reagia.

E para tanto, carecia coragem, disposição de luta.

A campanha "Não deixe esta chama se apagar" evidenciou: não haveria recuo diante do soba.

Com todas as dificuldades, a circulação aumentou com a campanha - a última esperança, como definiu João Falcão.

Não, o jornal não saiu da crise financeira, mas ganhava o alento da continuidade.

Fácil, não foi.

E houve ambiguidades.

Teve de fazer concessões à ditadura.

No raciocínio de João Falcão, impossível confrontar dois inimigos tão poderosos de uma só vez.

Enfrenta essa questão no seu livro "Não deixe esta chama se apagar - História do Jornal da Bahia".

Inegável, no entanto, a histórica luta contra o soba - lição de resistência, de dignidade, a enobrecer a trajetória dos "últimos da Barroquinha", sede a que vou chegar no início de 1975, saído da "Tribuna da Bahia", com o jornal já próximo a voltar a respirar, com a posse do novo governador, Roberto Santos, em março.

As marcas dessa perseguição persistirão.

Feriram de morte o jornal.

Idas e vindas, mudanças de controle acionário, e no início de 1994, o jornal deixará de circular: 36 anos de uma gloriosa história.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

-------------------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: jornalismo na oposição, ACM sempre ameaçador, o gorgulho na estrada do feijão, as sugestas.

 

Vida que segue.

Navarrinho ia tocando o barco sob aquela conjuntura de perseguições ao "Jornal da Bahia".

Foi uma fase rica, quanto ao jornalismo.

Afinal, trabalhar na oposição, quando o repórter deve procurar os malfeitos, é sempre muito melhor.

Salário, claro, lá embaixo.

Muitas matérias interessantes.

"Deu gorgulho na Estrada do Feijão", uma das mais criativas, pelo trabalho e pelo título - feita por Oldack Miranda, como já contei.

ACM, depois disso, mandou fazer a recuperação.

Navarrinho, chamado por Fred:

- Essa restauração foi em tempo recorde. Viaje e descubra os defeitos.

- E se estiver tudo bem feito? - perguntou Navarrinho.

- É com você - desafiou Fred.

O mesmo Vigota seguiu com ele - viajara com Oldack na matéria anterior.

Foi, viu e venceu: descobriu falhas pra burro.

Matéria publicada, no mesmo dia é mandado para coletiva com ACM, no Palácio da Aclamação.

Terminada a coletiva, depois de descer o cacete no "Jornal da Bahia", ACM o chama de lado, ciente fora ele o autor da matéria, até porque assinada, todo sorridente:

- Olhe, conversei muito hoje com seu chefe em São Paulo. Sou muito amigo de Fernando Pedreira, não sei se você sabe. E ele me disse das alterações que o jornal vai fazer até o final do ano...

Navarrinho, ouvindo.

Pedreira era o redator-chefe do "Estadão".

Uma sugesta - era mestre em sugestas.

Testava o jornalista - quem sabe, numa dessas, se assustava, e começava a se render.

Não era o caso de Navarro.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

13 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: primórdios do "Estadão"

na Bahia, pouca importância dada à Bahia,

mudanças na economia, começa a se pensar

em sucursal, Navarrinho e Bel juntos.

 

E teve a ida de Navarrinho para o "Estadão".

Sempre bom contextualizar.

O centenário jornal paulista não dava muita importância à Bahia.

Olhar pretensioso.

São Paulo, centro do mundo, locomotiva do Brasil.

Não só a Bahia.

Nordeste, Norte, desconsiderados.

No máximo, mantinha correspondentes espalhados pelo País.

Durante algum tempo, manteve um correspondente, Rosquilde Moreira, advogado, sem experiência jornalística.

No olhar do jornal, dava pro gasto.

Morreu, ali no início dos anos 60.

Tinha três filhos. 

A irmã, Zilah Moreira, também advogada, o sucedeu, e com isso ajudou a criar os filhos do irmão.

A Bahia começou a mudar.

Deixava de ser apenas a terra do cacau.

Chegou o Centro Industrial de Aratu.

Começa a surgir o Polo Petroquímico.

Modernizava-se para chegar à atual sociedade de serviços.

Ganhava alguma dimensão econômica, e o "Estadão" entendeu a necessidade então de ter ao menos mais um profissional - jornalista, voltado às lides da reportagem.

A própria Zilah Moreira percebeu o dinamismo de Navarrinho, e o colocou ao lado.

Era ele o repórter.

Quem ia à rua, fazia os textos, enviava via Simão Alves Dias, ele.

Então, natural fosse ele o contratado, quando começou a se pensar em sucursal.

Navarrinho fazia dupla com Agliberto Lima - hoje reconhecido como um dos mais talentosos fotógrafos do País.

Bel, como o conhecemos, começou no Arquivo do "Jornal da Bahia", sob a chefia de Castro - José Henrique de Castro.

Dupla jornada.

No arquivo, à noite.

De dia, acompanhava Navarrinho nas reportagens.

As do "Jornal da Bahia" e as do "Estadão".

Já se disse, mas não custa insistir: a redação do "Estadão" funcionava no "Jornal da Bahia".

Natural, quando se pensou em sucursal, e Navarrinho acabou escolhido para chefiá-la, Bel seguisse junto.

O próprio Navarrinho fez questão dessa companhia, e teve o apoio de Zilah...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: a descoberta da Bahia

pelos grandes jornais, JB pioneiro, e depois

"O Globo", "Correio da Manhã", logo

"Estadão", matéria sobre cidade fantasma.

 

A descoberta da Bahia pelos grandes jornais começou no final dos anos 1960.

O Estado iniciara sua transição, escapando da hegemonia da cultura e produção cacaueira, e reclamava mais atenção.

A cobertura jornalística não podia mais restringir-se ao Centro-Sul.

O Brasil era muito mais amplo - demorou para os grandes jornais descobrirem.

Hoje, numa rápida e rica conversa, Florisvaldo Mattos revelou-me ser o "Jornal do Brasil" o precursor das sucursais, dos jornais ao menos.

Ele chefiando, iniciou as atividades em 11 de agosto de 1968.

Funcionava no último andar do Edifício Bráulio Xavier,  o décimo sexto, na rua Chile, e também, simultaneamente  ao JB, a revista "Manchete", esta no décimo segundo andar.

Em dezembro de 1977, o JB inaugura moderna sede própria, no bairro de Pernambués, onde funciona atualmente a Rádio Metrópole.

Nas lembranças de Florisvaldo, cuja memória aos 89 anos mantém um viço admirável, a sucursal seguinte foi a de "O Globo", chefiada por Osvaldo Gomes - na Cidade Baixa.

Nesse período, final dos 1960, início dos 1970, funcionou também a sucursal do "Correio da Manhã", dirigida por Milton Caires de Brito - isso pra mim, novidade completa: ignorância.

Sônia Serra, debruçada sobre a rica trajetória de Milton Caires, deve ter detalhes disso.

Não sei quando a revista "Veja" instala sucursal, mas também fincará os pés na Bahia - recordo-me da época de João Santana dirigindo-a, bem mais tarde.

A sucursal do "Estadão" foi aberta em 1973, também no Edifício Bráulio Xavier, primeiramente, depois Martins Catharino.

No entanto, mesmo com sucursal em atividade, Navarrinho continuou mais um ano no "Jornal da Bahia".

Em 1974, até prêmio.

Ainda se recorda de matéria sobre o São Francisco inundando Glória Velha para garantir o funcionamento da Barragem de Moxotó - milhões de metros cúbicos de água sepultaram tudo, uma cultura constituída desde o século XIX, 1886, quando fundada.

Surgiu uma nova Glória, sem vestígios da história da velha cidade.

Matéria, feita por ele e por Agliberto Lima.

Chegaram à velha Glória antes de ser inundada.

Já um deserto, cidade-fantasma, algumas poucas pessoas vagando, tristeza, saudade, melancolia  no ar, indignação, e sem reação possível.

Rendeu prêmio, a reportagem do "Jornal da Bahia".

Vamos passo a passo para entender essa transição de Navarrinho para o "Estadão", a merecer melhor tratamento...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Chico Bruno: Em 1975 já existia a sucursal da Veja, na rua da Ajuda, no prédio da agência do Banorte. Dirigida por Juraci Costa, com Libório como chefe de redação.

Emiliano José: Valeu, meu velho   

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

15 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: um almoço, uma

esperança, um telefonema, e a vida

começa no "Estadão" em meados de 1971

 

Sábado, manhã.

Ali pelas 8,30, Navarrinho já está a postos na redação do "Jornal da Bahia".

A sexta-feira não fora de muita farra.

Tivesse sido, e não chegaria tão cedo.

A ressaca não deixaria.

O "Estadão" havia decidido incorporar um jornalista aos seus quadros na Bahia.

Carecia de reforço.

Zilah Moreira, a correspondente na Bahia, havia botado os olhos em duas novas promessas: Mariluce Moura e Navarrinho.

Um ou outro seria o contratado.

Disse:

- Quem chegar mais cedo no sábado, será o premiado.

Navarrinho levou a sério, embora admitisse pudesse ser troça de Zilah.

Ela foi direto ao ponto, quando ao chegar o encontrou na redação:

- Você quer vir para o "Estadão"?

Navarrinho, a bem da verdade, arriscava.

Estava ali, mas ainda não acreditava fosse verdade.

- Eu topo - disse, num tom de brincadeira.

Zilah reagiu:

- Não estou brincando: hoje chega um diretor do jornal, e eu vou  levar a pessoa escolhida para conversar com ele.

O jornalista com quem ele e Zilah se encontrariam num almoço, Carlos Garcia, chefe da sucursal do "Estadão" no Recife, e responsável pelo Nordeste perante o jornal.

Jornalista respeitado, passou muitos anos à frente da sucursal de Recife, tendo formado gerações de jornalistas.

Homem de convicções democráticas.

Chegou a ser preso e torturado pela ditadura militar.

Secretário de Comunicação do governo Cid Sampaio nos anos 1950, foi também secretário de Cultura no governo de Jarbas Vasconcelos entre 1999 e 2002.

A covid o levou no dia 27 de abril deste ano.

Durante o almoço com Zilah e Garcia, Navarrinho sentiu: era uma entrevista.

Informal, mas entrevista, da qual não saiu com qualquer certeza.

Passada uma semana, recebe ligação de Garcia:

- Você será nosso correspondente aí na Bahia, junto com Zilah.

E desde meados de 1971, a vida dele, por quase três décadas, esteve vinculada ao "Estadão".

Durante pouco mais de três anos, como  uma espécie de freelancer fixo - nessa condição já alcançava uma remuneração superior à do "Jornal da Bahia".

A vida lhe sorria.

Costuma brincar:

- Isso ocorreu porque a minha cachaça na sexta foi menor do que a de Mariluce...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Antonio Lins: Delícia de texto.

Albenísio Fonseca: O que aconteceu com Navarro quando assumiu e logo abdicou da presidência do Sinjorba no início dos anos 80, Emiliano?

Emiliano José: Companheiro, questão pra ele - certamente responderá.

Jorginho Ramos: Albenísio Fonseca ...já foi dito nesta série de posts. O ESTADÃO passava por uma reforma gerencial e ele teve que optar entre uma dedicação integral, absoluta mesmo, e continuar no cargo ou perder o emprego e ficar no SINJORBA...algo assim !

Albenísio Fonseca: Jorginho Ramos, coube, então, a você, assumir a direção da entidade, se não me falha a memória, não foi isso?  

-------------------------------------------------- 

 Emiliano José

16 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: batismo de fogo,

acidente com mais de 40 mortos,

cobertura abrangente, aprendizado.

 

Navarrinho chegara ao "Jornal da Bahia" no final de 1968.

Meados de 1971, contratado pelo "Estadão", é possível já se considerasse pronto, jornalista, pouca coisa a aprender.

Fosse isso, estava enganado.

Jornalista nunca está pronto: todo dia, um aprendizado.

Verdade, verdade o "Estadão" lhe propiciou uma espécie de rito de iniciação.

Inesperado.

Pouco tempo depois de ser contratado, acredita início de 1972.

Acidente de um ônibus com um caminhão-baú à altura de Jequié, quatro, cinco horas da manhã.

Mais de 40 mortos.

A rigor, a primeira grande reportagem dele.

Foi com ela a descoberta dos desdobramentos de um fato, a amplitude de uma cobertura, a capacidade do jornalismo de cercar um acontecimento por vários ângulos - se houver noção jornalística, capacidade, visão abrangente.

Foi a pauta vinda de São Paulo, ampla e circunstanciada, a lhe dar rumos: investigou os horários de maior incidência de acidentes, e descobriu serem os do  lusco-fusco - final da tarde e dia amanhecendo, quando o motorista cochila, cansado.

Mergulhou em busca das precárias condições de trabalho dos motoristas de ônibus e de caminhão, submetidos a jornadas extenuantes, obrigados a tomar bolinhas, rebites, qualquer coisa para tentar permanecer acordados, nem sempre conseguindo.

Levantou acidentes semelhantes.

Procurou saber situação das estradas da Bahia, obviamente precária.

Ainda procurou conhecer dos mortos e familiares espalhados por vários estados.

Soube: as vítimas estavam vindo de São Paulo, voltando para o Nordeste.

Ligou para as mais variadas autoridades, procurando saber de providências e discutindo responsabilidades.

Compreendeu a força de um grande jornal, a possibilidade de uma cobertura ampla, com o envolvimento de muitas sucursais, especialmente do Nordeste.

Matéria de página.

Seu batismo de fogo.

Entre 1971 e 1973, o trabalho jornalístico do "Estadão" era feito a partir do "Jornal da Bahia".

Em 1973, instalou-se a sucursal no edifício Bráulio Xavier.

Era o edifício mais querido das sucursais - "Estadão", "Jornal do Brasil", "Manchete", o escolheram.

Razões, não sei...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

17 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: chefia de redação,

diretor Cleonte de Oliveira, minha

chegada ao "Estadão", rápida estadia.

 

Navarrinho foi surpreendido: de cara, no início do funcionamento da sucursal, nomeado chefe da redação.

Nem cinco anos de profissão.

E no "Estadão", jornal de maior prestígio do País.

Zilah Moreira havia vários anos exercia a função de correspondente.

Durante muito tempo, sozinha.

Depois, veio Navarro.

Esperava fosse alçada à condição de diretora da sucursal.

Não aconteceu.

O jornal resolveu mandar um jornalista de São Paulo para assumir a função: Cleonte Pereira de Oliveira.

Para ela, uma decepção profunda.

A sucursal do "Estadão" foi escola de muita gente.

Grande escola.

Nos primeiros tempos, e Navarrinho ainda há de contar melhor, ele devia estar acompanhado de Simão Alves, teletipista, com Agliberto Lima, fotógrafo, não sei se Carlos Gonzalez Passos já o seguiu.

Eu só fui chegar ao "Estadão", e Navarrinho está devendo dizer como me descobriu, em meados de 1976 - a admissão, em carteira, está registrada 1 de julho daquele ano.

Pra mim, uma grande conquista.

Não completara nem dois anos de profissão.

Ao revisitar a velha carteira profissional, deparo-me com sucessivas mudanças.

Vida de trabalhador.

Entre outubro de 1974 e fevereiro de 1975, "Tribuna da Bahia".

De fevereiro de 1975 a setembro do mesmo ano, "Jornal da Bahia".

De 3 de setembro de 1975 a 12 de maio do ano seguinte, na "Tribuna" novamente.

E aí, "Estadão".

O resto de maio e o mês de junho, trabalhei sem carteira assinada.

A chegada ao jornal paulista representava melhoria salarial: passava dos 2 mil cruzeiros mensais da "Tribuna" para 3 mil e 330 cruzeiros mensais.

Reforço considerável para quem tinha filho de um ano e pouco.

E agora viria o aprendizado da escola "Estadão".

Sob a batuta do mestre Navarrinho...

Essa primeira experiência no jornal paulista durou pouco: em 17 de junho de 1977 já estava de saída.

Já se viu: reportariado dura pouco nos empregos.

Curta duração, riquíssimas lições.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------ 

Emiliano José

18 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Escariz, Gonzalez, Bel

e Simão, além de Navarrinho e Zilah, os primeiros mosqueteiros da equipe do "Estadão", chegados no início de 1973.

 

Navarrinho estruturou a redação, inicialmente com dois repórteres de esporte, Fernando Escariz e Carlos Gonzalez Passos, além do fotógrafo Agliberto Lima, do teletipista, Simão Alves Dias, e dele próprio e Zilah Moreira.

Janeiro de 1973.

Escariz, história mais conhecida.

Gonzalez, domino pouco: fazia do silêncio seu discurso.

Eu o encontrei no "Estadão" quando cheguei em 1976.

Foi dos mais longevos.

Ouvir uma palavra dele, raridade.

Mas, não o imaginem um taciturno.

Ao contrário, sempre de bom humor.

Escariz, convivi naquela redação, e depois.

Tornei-me muito próximo dele, ficamos amigos.

Dele e de sua mulher, Kátia.

Cedo, apaixonado pelo jornalismo, estagiou no "Esporte Jornal", semanário dirigido por Luís Eugênio Tarquínio.

O jornal merece estudo, foi a  única mídia a noticiar o futebol baiano por bom tempo.

Ney Ferreira, presidente do Vitória, cuja história de truculências é conhecida, mandou dar uma surra no jornalista Cleo Meireles porque ele havia descoberto e noticiado a existência de um jogador atuando irregularmente no time, sem obedecer aos requisitos legais.

Toda a imprensa se solidarizou com Meireles, e o futebol baiano saiu inteiramente das páginas dos jornais.

O "Esporte Jornal" surgiu nesse vácuo, e existiu por umas duas décadas, a partir de 1964.

Depois do "Esporte Jornal", Escariz passou pela escola "Tribuna da Bahia", sob a direção de Antônio Matos, cuja equipe de esportes se notabilizou como uma das melhores da Bahia.

Matos, amigo-irmão de Escariz, foi a fonte dessas informações.

Navarrinho levou Escariz para o "Estadão", e ele se dedicava especialmente a matérias para o "Jornal da Tarde", jornal do grupo, com muito mais liberdade no estilo, de texto mais leve e solto.

Gonzalez, voltado mais ao "Estadão".

De Agliberto Lima, nosso Bel, já falamos um bocado.

Chamo-o pintor, tal a qualidade de suas fotos.

O telex, manuseado por Simão, sujeito de ótimo humor.

E com esse reduzido número de profissionais, dava-se a partida para a constituição de uma das mais brilhantes equipes das sucursais dos jornais do Sul na Bahia, sob a direção de Navarrinho.

#MemóriasJornalismoEmiliano   

------------------------------------------------ 

(Zilah Moreira - Foto: Agliberto Lima)

Emiliano José

19 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Gonzalez, Fernandinho,

Sarno, Escariz e amizade sincera, livro sobre

fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos.

 

O protagonista  é Navarrinho, não é preciso ser alertado.

Mas, ao navegar, a memória provoca.

Gonzalez, de cujo bom humor já falei, é, também, irmão de

Fernando Passos, destacado publicitário, cujo talento fez da Engenho Novo uma das mais criativas e premiadas agências da Bahia, ao lado de Carlos Sarno - os dois, ligados a mim por laços de militância, Sarno na prisão, Fernandinho companheiro de processo na Auditoria Militar, e amigos queridos.

De Escariz, um lote de lembranças.

Recorro a uma.

Em novembro de 1979, lançou "Porque Theodomiro fugiu", livro precursor dos muitos escritos sobre a fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos, em agosto daquele ano.

É histórico.

Rodado pela Emita, gráfica sempre utilizada por nós, da esquerda, numa edição artesanal.

Merece nova publicação, tal a sua importância.

Reúne não só as circunstâncias da fuga, como depoimentos de Paulo Pontes, meu, prefácio de Joviniano Neto, a carta de Haroldo Lima anunciando a fuga, e uma longa entrevista de Theo dada antes da saída da cadeia, recusada pela grande imprensa. 

Resisto, mas cedo, em divulgar a dedicatória, reveladora da profunda amizade dele por mim, recíproca - e os amigos sempre exageram, digo isso a sério, para alertar os leitores:

"Amigo Emiliano, das pessoas que conheci ao longo da vida, você foi uma das que mais me marcou. Talvez, a que mais me marcou. Certamente pelo volume de informações que me transmitiu, permitindo que eu pudesse estabelecer parâmetros com o que tinha armazenado, e reformular muita coisa que já não tinha sentido. Tudo isso, porém, só foi possível depois que percebi o homem que você é, uma figura humana maravilhosamente forte e verdadeira. Este filho, também é seu. Até porque começou a ser gerado há alguns anos, quando lhe conheci em uma visita à redação do JBa. Amadurecido com o passar do tempo, ele explodiu no contato com Theo, a quem já admirava antes de apertar-lhe a mão. Sinceramente, obrigado. Um forte abraço. Fernando Escariz, 19-11-1979."

Vale, insisto, como documento de uma amizade a perdurar sempre, até o desaparecimento dele, precocemente.

O olhar dele sobre mim é fruto dessa amizade, e as amizades suscitam exageros obviamente, como nesse caso - reitero.

A convivência com ele foi muito enriquecedora, jamais esquecida.

Tocando em frente.

Desde o final de 1972, Zilah Moreira se batia à procura de um local para a sucursal do "Estadão".

Acabou fixando-se numa sala do edifício Bráulio Xavier.

Pouco tempo depois, essa sala terminou virando dor de cabeça...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: na transição, muitas

mudanças e decepções, equipe sendo

montada, a descoberta das promessas.

 

Comprou-se a sala no edifício Bráulio Xavier.

Dono morava nos EUA.

Não houve o devido cuidado com os documentos.

Sujeito morreu.

Deu um rolo danado, não houve chance de passar a escritura.

Quando cheguei, em 1976, sucursal ainda era no Bráulio Xavier.

Algum tempo depois, edifício Martins Catharino, também na rua  Chile.

Nessa transição, 1973, Zilah Moreira, certa de vir a ser a diretora, tomou um tombo.

Cleonte Oliveira era antigo na casa.

Gozava de prestígio, velho editorialista.

E enfrentava problemas naquela quadra da vida.

Com o álcool.

Melhor mandá-lo para o Nordeste.

Surgida a vaga em Salvador, pronto.

E Zilah Moreira, na saudade: recebeu a desagradável notícia de Laurita Mesquita, mulher de Rui Mesquita, um dos donos do jornal.

Não gostou, óbvio.

Inimiga do novo diretor durante toda a estadia dele na Bahia.

Além de profundamente decepcionada com a família Mesquita - como a trataram assim, depois de tanta dedicação, tantos enfrentamentos com ACM, tanto empenho pelo jornal?

Coisas da vida, lógica de patrões.

A suceder Oliveira, mais tarde, o grande Raul Bastos, de quem me tornei amigo, creio já na minha segunda fase no "Estadão".

Depois daqueles primeiros mosqueteiros - Gonzalez, Escariz e Bel, além de Simão - Navarrinho leva Pedro Formigli.

Notável jornalista, dono de texto seguro, limpo, excelente companheiro, amigo a toda prova.

A Bahia, com seu desenvolvimento, mais e mais exigia cobertura ampla.

Formigli, então na chefia de reportagem do "Jornal da Bahia", reforçou a equipe.

E foi providencial a chegada dele.

Ajudou Navarrinho a ir compondo o time necessário àquela nova fase do "Estadão".

Havia passado pela "Tribuna da Bahia" e agora pelo "Jornal da Bahia".

Conhecia muita gente, dominava as qualidades de cada repórter.

Foi ele a indicar Teixeirinha - José Carlos Teixeira.

A apontar Césio Oliveira.

Creio, no entanto, isso deva ter ocorrido ali pelos anos 1977/78, pois eu já estava no "Estadão" quando os dois chegaram ou então chegamos quase juntos.

Eu e Teixeirinha dividimos chefia de reportagem no "Jornal da Bahia", antes.

Césio, em 1975, era chefe de reportagem no "Jornal da Bahia".

O fato é: Navarrinho, com a ajuda de Formigli, foi atraindo os melhores para o "Estadão".

Ao receber de São Paulo sinal verde para o aumento da equipe, procurava saber quem estava despontando.

Foi assim comigo - me revela agora.

Minhas passagens pela "Tribuna" e pelo "Jornal da Bahia" haviam me dado alguma notoriedade, e lá fui eu, chamado por Navarrinho.

Por aquela redação, passaram ainda José Barreto de Jesus, Jadson Oliveira, Demóstenes Teixeira, e mais tarde, Biaggio Talento, Paulo Leandro...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

21 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: sobressalto das

crises econômicas, demissões,

minha passagem pelo "Estadão".

 

O "Estadão" vivia os sobressaltos das crises econômicas sob a ditadura.

Senti isso na pele.

A primeira dessas crises me atingiu em meados de 1977.

Havia sido contratado em julho de 1976.

Final de maio de 1977, começou discussão sobre quem cortar.

Ordem de São Paulo.

Disse logo: claro, sou o mais novo, corte deverá recair sobre mim.

Critério óbvio - defendi.

Não sei se isso contou, mas fui demitido, e sei do quanto isso desgostou Navarrinho - tinha de cumprir a ordem.

Baixa na carteira: 17 de junho de 1977.

Da vida - fazer o quê?

Poucos dias passados, e assumia como chefe de reportagem do "Jornal da Bahia" - carteira assinada dia 26 de junho daquele ano.

Do ponto de vista salarial, até melhorei de vida: Cr$ 3.000 de salário-base, Cr$ 5.000,00 de gratificação de função e Cr$ 2.000,00 de adicional de classe. 

Segui no "Jornal da Bahia" até dia 5 de janeiro de 1979.

Navarrinho não havia desistido de mim: foi o "Estadão" abrir para uma contratação, e me chamou novamente.

Dia 12 de janeiro de 1979 inicia minha segunda fase no "Estadão".

Remuneração de Cr$ 10.983,00, repórter II.

Três anos de uma experiência única, repleta de lições e de aprendizado.

Um mestre a repassar ensinamentos: Navarrinho.

A crise viria novamente, e no início de 1982, aos 36 anos, cinco dias depois do meu aniversário, 10 de fevereiro, deixava o "Estadão".

Triste.

Quem me lembrou dessas crises, a alcançar vários da notável equipe montada por ele, em momentos diferentes, foi o próprio Navarrinho.

O bom é ter a velha carteira profissional, com registros precisos.

Como é precioso esse documento.

Ali, redescubro o real endereço do edifício Martins Catharino: Travessa da Ajuda, 1, salas 903/904/907.

Dizíamos rua Chile porque de fato era uma pequena travessa, de poucos metros, encostada àquela rua.

Revejo a data de minha primeira admissão como office-boy no Banco Comercial do Brasil em São Paulo, aos 14 anos de idade: 1 de outubro de 1960.

Tempo, tempo, tempo.

Com as crises econômicas, demissões decorrentes do agravamento da crise nos anos 80, quando a sucursal mudou-se para o Max Center, na Pituba, Navarrinho contava com apenas dois ou três repórteres, obrigado a se virar nos trinta.

Relembra, e o faz com modéstia, a qualidade da equipe de jornalistas montada por ele naqueles anos - se tenho algum mérito profissional, começa...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

22 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: melhor equipe das

sucursais, grandes talentos, a gente

sabe a quem chama de mestre.

 

Navarrinho tem convicção: os profissionais reunidos por ele, entre meados dos anos 1970 e 1980, constituíram a melhor equipe de uma sucursal na Bahia.

Talentos, ele os reuniu, deu polimento, e quando o "Estadão" foi dispensando-os, encontraram abrigo com facilidade.

Não é pouca coisa ter a sobriedade e elegância do texto de Pedro Formigli.

A leveza das matérias de Escariz, estimulado pelo "Jornal da Tarde".

A maestria de Césio Oliveira, criativo e hábil com as palavras.

O manejo ousado de Barretinho com cada palavra, quase poeta.

A sobriedade de um Carlos Gonzalez.

A fotografia de Agliberto Lima, notabilizado desde lá como um dos maiores fotógrafos do Brasil.

A elegância de Teixeirinha, secundada por sua vasta cultura literária.

A intrepidez de Jadson Oliveira.

Alguns, estou me lembrando.

Não estive lado a lado com Biaggio, nem com Paulo Leandro, mas sei do quanto contribuíram com essa equipe.

Navarro fala ainda de Coelho, a quem vi, de passagem, na "Tribuna da Bahia", ali pelo final de 1974, quando iniciava minha trajetória jornalística.

E é provável algum nome me escapar.

De fato uma equipe notável.

Caetano, ao falar da visita feita a ele e a Gil no exílio londrino por Roberto Carlos, das tantas coisas ditas, revelação do quanto chorou naquele dia, ensinou: é muito importante saber a quem a gente chama de rei, tão emocionado pela solidariedade, e reconhecendo a majestade.

Considero importante também saber a quem a gente chama de mestre.

São poucos na vida.

Revelam caráter, sabedoria, talento.

São tolerantes, capazes de orientar pessoas.

Têm carisma.

E dos mestres, jamais se esquece.

Aquela equipe foi resultado de um mestre, com todas essas qualidades.

Nós, daquela equipe, sabemos a quem chamamos de mestre.

Nunca o esqueceremos.

Parabéns, mestre Navarrinho.

#MemóriasJornalismoEmiliano   

------------------------------------------------------- 

Emiliano José

23 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Max Center e o

fim da sucursal em 1997, raízes da

crise desde os anos 1970, a explosão

da dívida, e a mudança da gestão

empresarial a partir da transição geracional.

 

Quando houve a transferência da sucursal para o Max Center, Navarrinho deslocou Carlos Gonzales para a administração de modo a não perdê-lo.

Repórteres, apenas Paulo Leandro e Biaggio Talento.

Vacas magras.

Em 1997, praticamente se encerrava a vida da sucursal.

"Estadão" entregou à sucursal de Minas Gerais a responsabilidade pela Bahia.

Talvez não tenha sido dito: houve tempo de a sucursal de Salvador ser responsável pela cobertura de todo o Nordeste.

Como não havia sucursais nos estados, e como a de Recife também foi desmontada, Navarrinho tomou a providência de designar um correspondente para cada capital nordestina.

Quando tudo acabou, restou um correspondente cobrindo todos esses estados.

Também não foi dito: no tempo da sucursal dirigida por Navarrinho, montou-se também uma rede de correspondentes espalhada pelo interior da Bahia - Barreiras, Feira de Santana, Juazeiro, Vitória da Conquista e Itabuna.

Não se pretende aqui discutir a crise dos 1970/1980 do Estadão.

Duas ou três palavras apenas.

Parece, acompanhando relato de Navarrinho, ter sido provocada por ilusões próprias de período de ditadura.

Tomou-se um vultoso empréstimos em dólares para construir a majestosa sede do jornal, situada à avenida Marginal, na capital paulista.

Nessa época, alguns meios de comunicação entraram nessa esteira de grandes, imponentes sedes - a Editora Abril, revista "Veja" incluída, também entrou nessa barca.

Delfim Netto garantia a eles que não haveria explosão inflacionária.

O "Estadão" deu com os burros n'água: inflação disparou, e o débito em dólares foi pras nuvens.

Impagável.

Quem paga o pato?

Os trabalhadores, jornalistas e funcionários administrativos, os assalariados, os de baixo.

Por isso, aquelas demissões a atingir a brilhante equipe montada por Navarrinho.

Havia ainda o fato de estar acontecendo uma transição geracional.

Saíam os velhos Mesquita, Júlio Mesquita Neto e Rui Mesquita sobretudo, e entravam Julinho, Rodrigo, Ruizito.

A empresa transformou-se em um aglomerado de unidade de negócios.

Com isso, a "Agência Estado" (AE), responsável por 80%, 90% do noticiário, também foi transformada numa unidade de negócios...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: na crise, reestruturação

leva à dedicação exclusiva dos jornalistas,

equipes ganham novo ânimo, e Agência

Estado começa processo de inovação.

 

Na reestruturação do "Estadão", a Agência Estado (AE), motor do jornalismo do jornal, virou também "unidade de negócios", dirigida por Rodrigo Mesquita, nova geração.

Navarrinho faz justiça: ele pensava notícia, jornalismo,

comunicação, acompanhava a modernização na mídia.

Fez coisas pioneiras, das quais Navarrinho se orgulha de ter participado.

Isso acontecia ali pelo final dos anos 1980.

Os remanescentes, os não demitidos na tempestade da crise gerada pela enorme dívida em dólares, foram chamados a São Paulo para uma reunião decisiva.

Ouviram:

- Olhem aqui, tudo mudou. Não queremos mais repórteres de meio turno, ninguém mais fazendo bico para sobreviver.

A Agência Estado iria entrar noutro ritmo.

Navarrinho se recorda do início dos anos 1980, quando combinou a atividade da chefia do "Estadão" com a dura tarefa de redator-chefe do "Jornal da Bahia" - passado um ano, e concluiu ser impossível conciliar as duas responsabilidades, jornada de 20, 21 horas diárias era inviável.

Bico pesado, não obstante bem remunerado.

Nessa reestruturação, com a exigência de tempo integral, dedicação exclusiva ao jornal, a AE, de modo a garantir a determinação, triplicou o salário dos remanescentes.

Vida melhorou.

Equipe do "Estadão", naquele final dos 1980, enxuta.

Obrigada a se desdobrar.

Ganha novo ânimo.

Volta a viajar.

Navarrinho faz um parênteses: a turma de direção da AE naquele momento era da fina flor do jornalismo brasileiro.

Sandro Vaia, Eloi Gertel, Júlio Moreno, alguns nomes lembrados por ele, pensavam a mil, criativos, destemidos.

Registra: eram, porém, péssimos administradores.

Comento: administrar não era tarefa deles.

A AE, nessa nova fase, deu ânimo às reduzidas redações espalhadas pelo Brasil, e começou a exercitar a criatividade, a desenvolver novos produtos para o mercado.

Como o News Paper, transmitido por fax, acompanhando inovação desenvolvida pelo New York Times...

#MemóriasJornalismoEmiliano

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Estadão,

New York Times, modernização,

News Paper, Fax Paper, Fax Eventos.

 

O Estadão, naquele início dos anos 1990, parecia estar disposto a acompanhar os tempos modernos.

Para dar, quem sabe, sobrevida ao jornal impresso, começou um processo de modernização.

A Internet ainda não dera as caras no Brasil.

Só o fará no mercado ali pelos meados dos anos 1990.

A AE, nessa fase, parecia correr contra o tempo.

Olhava a evolução da imprensa mundial, e tentava seguir os mesmos passos.

Lançou o News Paper.

Tal e qual modelo adotado pelo New York Times.

Jornal de três, quatro páginas, tamanho ofício.

Primeira página, com manchetes principais dos jornais do dia.

Um apanhado sintético do noticiário do dia, síntese das principais matérias publicadas, ainda na primeira página.

Nas outras páginas, sequência desse material.

Os repórteres e editores trabalhavam a partir de meia-noite, fechavam o jornal ali pelas quatro da manhã, e às cinco era despachado por fax para a clientela, basicamente constituída de empresários, políticos, governos, círculos do poder.

Uma inovação, uma revolução.

A pessoa chegava ao seu escritório, ali pelas 8 horas da manhã, e já tinha à sua frente um bom resumo de todo o noticiário a ser divulgado pela imprensa no dia.

O cliente carente de notícias internacionais, era também atendido - editava-se o material do New York Times e mandava-se.

Navarrinho foi o precursor da ideia do Fax Eventos.

Ideia surgiu a partir da realização em Salvador da III Conferência Íbero-americana, em 1993, quando a cidade era governada por Lídice da Mata.

Acontecimento de repercussão mundial, presença de muitos chefes de Estado.

Mais rumorosa, a de Fidel Castro.

Qual era a ideia?

Estadão cobria o evento, e adotava a mesma sistemática do News Paper: nas primeiras horas do dia, a clientela receberia tudo sobre ele.

Prefeitura topou, foi sucesso, e a AE encampou a ideia, reproduzida assim em todo o País.

#MemóriasJornalismoEmiliano

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: Fax Eventos, iniciativa

precursora e de sucesso, vários

acontecimentos, boa rentabilidade.

 

Nisso do Fax Eventos, Navarrinho gostou da sugestão de Domingos Leonelli, então secretário de Comunicação da prefeitura de Salvador:

- Por que você não faz um pré?

Era a pergunta de Leonelli.

- Explique melhor - pediu Navarrinho.

- Uns 15 dias antes, você inicia a cobertura, faz o esquentamento. Isso atrairá gente, chamará atenção. E depois, você cobre o evento todo.

Navarrinho gostou da ideia.

Claro, Leonelli, além de político, festejado publicitário, estava pensando na prefeitura de Salvador, na capitalização midiática do encontro para a administração local.

Mas boa ideia não se perde, e a partir daí, Faz Eventos passou a se dar dessa maneira.

Havia, ainda, o pós, pensado por Navarrinho: interpretar o acontecimento e seus desdobramentos.

A Cumbre realizada em Salvador foi o acontecimento precursor do Fax Eventos.

Fez sucesso, e voou.

Rodolfo Spíndola, chefe da sucursal do Ceará, mais afeito aos negócios, saiu na frente e passou a vender o Fax Eventos - Navarrinho, ótimo na criação, bom no jornalismo, na inovação, não era bom vendedor.

As sucursais, nesse processo de inovação, foram levadas a criar um departamento comercial para promover a venda dos novos produtos.

Em Salvador, o responsável era Carlos Gonzalez.

Navarrinho lembra-se de operação semelhante à da Cumbre, Fax Eventos.

Em Manaus, um evento mundial de meio ambiente.

No Pará, reunião da OEA.

No Ceará, encontro internacional de turismo.

Na III da Cumbre, edições bilíngue: português e espanhol.

Na reunião da OEA, do meio ambiente e do turismo: português, inglês e espanhol.

No turismo, também trilíngue.

O fato é que tais eventos, naquele momento, reunidos, renderam coisa de 500 mil dólares ao Estadão - inovação rentável.

Navarrinho chefiava todas as redações desses Fax Eventos, sempre prestigiando os profissionais locais.

Na época, a transmissão por fax era o maior avanço tecnológico na transmissão de notícias.

Ainda não havia a internet - ao menos para a transmissão noticiosa.

Era o meio mais moderno.

Uma equipe em São Paulo, na madrugada, comandava toda a operação de envio.

Na madrugada porque o trânsito na telefonia era tranquilo e também porque afinal os clientes deveriam receber os produtos nas primeiras horas do  dia.

Foi um momento de muita ebulição, muito trabalho, muita inovação...

#MemóriasJornalismoEmiliano

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

27 de julho de 2021

 

Carlos Navarro Filho: notícias quase em

tempo real, mudanças aceleradas, novos

produtos, diretores de sucursal e também executivos

 

A mudança do Estadão, a implantação das chamadas unidades de negócio, tudo aconteceu no final dos anos 1980.

Atitude mais  ousada, positivamente agressiva em relação  ao mercado.

Já falamos dos News Paper, do Fax Eventos, diabo a quatro.

Evoluiu ainda para o Brodcast, com o jornal passando a divulgar notícias em tempo real.

No meio dessa agitação, surge o celular, a nova e surpreendente novidade - ainda eram uns tijolões.

Os diretores de sucursais, os repórteres indicados para as principais coberturas receberam um daqueles estranhos aparelhos.

Com essa máquina à mão, o repórter já mandava de onde estivesse o  flash do acontecimento, outro avanço no processo de modernização, agilidade no noticiário.

Nessa primeira informação, já se desenhava a matéria e seus desdobramentos, tudo curto e grosso.

O lead de alguma forma já vinha nas palavras do repórter.

Na Rio 92, encontro mundial de meio ambiente, isso foi amplamente utilizado pelo Estadão.

Não se pode dizer notícia em tempo real, mas próximo disso.

Havia um cálculo nessa operação: a notícia deve aparecer três ou quatro minutos após o fato, quase em tempo real, avanço da porra.

A Brodcast selou isso, inaugurada em 1991, com uma grande festa em São Paulo.

A AE, com essas iniciativas, passou então a desenvolver uma política ousada de vender isso.

E os melhores vendedores dos novos produtos deviam ser os próprios jornalistas, dado o seu conhecimento.

E assim Navarrinho e todos os demais diretores de sucursal foram alçados à condição de executivos.

Tinham de ser virar nos 30 - tocar a redação e as vendas.

No jornalismo, passaram também a redigir para a emissora de rádio do grupo, a Eldorado, e a passar notícias em tempo real, entrando no ar.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

28 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: admirável mundo

novo, Broadcast cresce, o pulo do

gato do jornalismo, Estadão na ponta.

 

Tudo era mudança, ebulição naquele final dos anos 1980, início dos 1990.

Nós já falamos de raspão, não custa falar um pouquinho mais da Broadcast, adquirida pelo Estadão em 1991.

Empresa dedicada ao fornecimento de cotações de ações e comodities no mercado financeiro, nas mãos do Estadão em menos de dois anos se tornou a empresa líder no mercado.

Cobria o pregão da Bolsa, em tempo real.

Mantinha mesa de operações no interior do próprio edifício da Bolsa, em São Paulo.

Houvesse atraso de segundos e ela informava - afinal, qualquer atraso pode significar um prejuízo monumental para quem investe.

Não podia dar informações defasadas.

Contando com uma equipe de profissionais espalhada por todo o País, expande suas atividades.

Não ficou apenas no fornecimento em tempo real das cotações da Bolsa.

Ainda em 1991, lança três boletins no mercado, com dados conjunturais, análises de tendências, notícias de bastidores e antecipação de informações políticas e econômicas.

O jornalismo se fazia presente, e dinamizava a empresa.

Foi o pulo do gato.

Agregou valor.

O cliente da Broadcast comprava não só o acompanhamento do pregão como também uma leitura qualificada do mercado financeiro, da conjuntura econômica e política do País, os grandes negócios feitos fora da Bolsa, incorporações, diabo a quatro, senão em tempo real, quase

O Jornal do Brasil ainda tentou competir na área, como lembra Navarrinho, mas não tinha a mesma rede do Estadão, e não deu nem pra começo.

As informações da Broadcast chegavam ao cliente pelas chamadas bandas ociosas de rádio e televisão - Navarrinho lembra da utilização de bandas ociosas da Rede Bandeirantes, da SBT, entre outras.

E utilizava muito também as bandas ociosas das emissoras de rádio.

Na Bahia, por exemplo, usou-se muito a Rádio Educadora, única com FM 30 quilos - com essa potência, as transmissões chegavam bem inclusive ao interior do Estado.

Tudo parecia a promessa de um futuro radiante.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------------

Emiliano José

29 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: jornalista e executivo,

múltiplas tarefas, vendedor de produtos

da Agência Estado para governadores

e empresários, rotina de aeroportos e hotéis.

 

Mudou muito a vida de Navarrinho nessa nova fase do Estadão.

Trabalho aumentou muito.

Diversificação de funções.

Se acontecia alguma coisa, estivesse fazendo uma cobertura, pegava o celular, ligava para a Rádio Eldorado, do grupo Estado, e entrava no ar, cobertura em tempo real.

Não tinha aquele tempo todo anterior pra pensar o lead, refazê-lo fosse o caso.

Nada disso, tudo a quente, um novo aprendizado.

Muitos dos jornalistas do Estadão, naquela fase, foram obrigados a aprender também a redigir matérias para rádio.

Havia a cobertura em tempo real, aquela pelo celular.

E havia também a necessidade de mandar matérias escritas, a serem transmitidas pela emissora.

Navarrinho não tinha nada a aprender nesse quesito - desde menino lidou com o rádio, sabia tudo.

Repórteres aprendiam: para uma leitura pausada do locutor, com as entonações de praxe, matéria para um minuto, muito tempo em rádio, não devia ultrapassar 20 linhas, um pouco mais.

Se for notícia de 30 segundos, reduzir pela metade.

E com a história de o diretor de sucursal ser também executivo, o trabalho dobrava, às vezes triplicava.

E ele não era apenas diretor da sucursal de Salvador.

Era responsável agora por Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte - diretor regional.

Uma vez por mês, visitava os govenadores de todos esses Estados, prefeitos das capitais, principais empresários, dirigentes de federações de indústria, percorria os corredores do poder político e econômico.

Missão: vender os produtos da Agência Estado.

Os governadores costumavam comprar alguns dos produtos da Agência, destinados exclusivamente aos gabinetes deles - precisavam estar informados desde as primeiras horas do dia, e acompanhar os acontecimentos na sequência.

Navarrinho passou uns cinco ou seis anos na rotina massacrante de aeroportos e hotéis, sobe-desce nordestino

E depois da cruzada nordestina, passava uma semana em São Paulo, acertando os ponteiros, prestando contas, discutindo rumos.

O Hotel Eldorado de Higienópolis em São Paulo era quase morada dele.

Além de dirigir a redação do jornal em Salvador, era incumbido de todas essas outras tarefas executivas.

Numa dessas viagens, viveu uma cobertura emocionante...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

30 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: cobertura inesperada, um ex-governador recebe três tiros de um governador, Navarrinho encerra sua longa jornada no Estadão.

 

Navarrinho estava ali pelo segundo uísque.

Ninguém é de ferro.

Almoçava num restaurante afastado, com alguns amigos.

Já havia cumprido suas tarefas de executivo em João Pessoa, conversado com quem tinha de conversar, vendido alguns dos produtos da cesta de ofertas da Agência Estado.

Além de tudo, sexta-feira.

Às vezes, em poucos momentos, aquela vida de executivo o agradava.

Afinal, não requeria ficasse atento 24 horas por dias, pauta sobre pauta, mesmo chefe sempre repórter, que a vida não para.

Jornalismo, aventura incessante.

Naquele dia, 5 de novembro de 1993, estava assim, naquele almoço.

Relaxado.

De repente, no entanto, viu-se arrastado para o jornalismo, para uma cobertura imprevista, e cheia de lances cinematográficos - é, cinematográficos, não encontro outro termo.

Aconteceu no restaurante Gulliver distante do local onde ele estava.

O ex-governador Tarcísio Burity almoçava tranquilamente, cercado de amigos.

De repente, chega ao restaurante o governador Ronaldo Cunha Lima.

Dirige-se à mesa de Burity, saca revólver, e dispara três tiros.

Reagia às críticas feitas pelo ex-governador ao filho dele, Cássio Cunha Lima, então superintendente da Sudene,  minutos antes, durante entrevista a uma emissora de TV de João Pessoa.

Burity sobreviveu aos tiros, depois de alguns dias em coma.

Cunha Lima morreu sem ser julgado.

Navarrinho, avisado, teve de abandonar o terceiro uísque, comida pelo meio, e cair de boca na inesperada cobertura.

Jornalista, sempre jornalista.

Dali a coisa de três anos, Navarrinho encerraria sua trajetória no Estadão.

Uma vida: três décadas.

Dezembro de 1996, e vê sacramentado o fim.

Registra: o jornal pagou tudo de seu direito.

Superou as expectativas.

Entrasse com uma ação, e não receberia tudo o que lhe caiu nas mãos.

Por isso, aceitou a sugestão dos seus superiores de continuar a ajudar na transição, recebendo apenas as diárias de viagens, os pagamentos decorrentes de sua movimentação pelo Nordeste...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Sérgio Buarque de Gusmão: Eu já tinha acertado com o Fernando Morais escrever minha biografia, mas, depois desse show, acho que vou procurar o Emiliano..

Emiliano José: Não obstante óbvias insuficiências, seria honroso.

Joaquim Lisboa Neto: Ronaldo Cunha Lima. Seresteiro. Grande amigo de Clodomir Morais

Emiliano José: Verdade

------------------------------------------------------- 

Emiliano José

31 de julho de 2021

Carlos Navarro Filho: fim das sucursais

médias, sucursal de São Paulo assume

vendas da Agência Estado, Navarrinho

negocia saída do jornal, e tem início nova vida.

 

Navarrinho acompanhava as mudanças do Estadão logo após a primeira metade da década de 1990.

O jornal, diante das dificuldades, entrou numa de corte de despesas.

Não era a primeiro corte.

Agora, no entanto, mais radical.

Resolveu fechar todas as sucursais médias: Salvador, Fortaleza, Curitiba e Porto Alegre.

São Paulo passa a concentrar as vendas dos produtos da Agência Estado.

O grupo Estado não teria mais as despesas com diretores de sucursais cruzando os céus do Brasil, não pagaria mais hotéis, alimentação, carro alugado, diabo a quatro.

A sucursal de Minas Gerais assumiria a da Bahia.

Com isso, com a demissão de tanta gente, houve acentuada economia.

Não há novidade.

Nas crises, as empresas capitalistas cortam na carne.

Na carne dos trabalhadores.

Às vezes, há ilusões sobre o jornalismo.

Como se fosse um mundo à parte, como não tivesse de seguir a lógica implacável do mundo do capital.

Não é um mundo à parte.

Navarrinho considera ter vindo em boa hora a demissão do Estadão.

Foi sem briga, muito amigável.

Mas era uma ruptura, mudança profunda na vida.

Positiva.

Confessa: já estava cansado da vida em redação.

Não obstante a vida de jornalista nunca seja rotineira, cada dia é uma novidade, já decorrera quase três décadas nessa lida, e uma virada na existência vinha a calhar.

É vida dura, a de jornalista.

Não tem domingo, não tem feriado, no caso dele muito tempo afastado da família pelas constantes viagens, não é vida de gente normal.

A saída foi negociada.

Procurou a direção do Estadão, propôs fosse demitido com todos os direitos, deu garantias de seguir ajudando o jornal pelo tempo necessário, e assim foi feito, e em meados de 1997, desligava-se definitivamente.

Outra vida...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------------- 

Emiliano José

1º de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho:  giro na vida, projetos,

emplaca revista para agricultura, e começa

vida das campanhas políticas, Roseana Sarney.

 

Mudar, esses giros de 180 graus na vida, não é tão simples.

Navarrinho não pretendia parar, se aposentar.

Quis, isso quis, dar um basta naquela rotina de quase 30 anos.

Não mais aquela obrigatoriedade de acordar pensando nas pautas, escrever o mundo, nunca dormir sossegado.

Jornalista, quando olha pra trás, deve se perguntar sobre quanto da vida dedicou aos seus familiares, indagar se conseguiu acompanhar o crescimento dos filhos, do tempo dedicado aos seus.

Nunca é, ou raramente é, um balanço muito alentador.

A partir dali, Navarrinho queria voltar-se um pouco mais para os seus.

Curtir os dias, os finais de semana.

No entanto, não queria se aposentar.

Naqueles seis meses, segundo semestre de 1997, danou-se a fazer projetos.

Valia-se de sua experiência como jornalista e como executivo.

Elaborou um para a Odebrecht, voltado à imagem da empresa, referente aos investimentos em Costa do Sauípe.

Ia elaborando, entregando projetos aqui, acolá.

Um emplacou.

A Bahia vivia o boom do Oeste na área agrícola e Navarrinho imaginou uma publicação impressa voltada à atração de investimentos para o setor primário.

Depois do sinal verde do governo do Estado, envolveram-se Banco do Nordeste, Associação dos Irrigantes, cooperativas de crédito agrícola, umas cinco ou seis entidades, e através de um convênio tornaram o projeto uma realidade.

Para isso, contou muito a competência e a boa vontade do economista Ronald Lobato, dirigente do IMIC - Fundação Instituto Miguel Calmon de Estudos Sociais e Econômicos.

O IMIC administrava o convênio.

A revista Bahia Negócios Agrícolas ganhou as ruas.

Afirmou-se por uns três, quatro anos como o principal veículo de divulgação e promoção da área agrícola no Estado, alcançando inclusive investidores do exterior  com interesses na Bahia.

Simultaneamente, em 1998, envolve-se na campanha de Roseana Sarney, candidata a governadora no Maranhão.

Chamado por Antonio Lavareda, deveria escrever o plano de governo dela.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Nilson De Vasconcelos Meira: Lembro-me muito bem da revista Bahia Negócios Agrícolas. Riquíssima em informações na época. Depois da Internet essas publicações desapareceram. Li recentemente Goroba e seus Amores Errantes, de Carlos Navarro, Navarrinho para os íntimos. Este livro tem alguns toques surrealistas e lembra um pouco dos escritos de Gabriel Garcia Marques.

Emiliano José: É fato. 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

2 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: novo desafio,

campanha de Roseana Sarney, plano

de governo, bem-sucedido, outras possibilidades profissionais

Navarrinho gostou do desafio profissional.

 

Nunca havia trabalhado na área do marketing político.

Antonio Lavareda, pernambucano, estudioso na área de pesquisa eleitoral, apresentador de televisão, procura Fernando Escariz e pede indicação de uma pessoa capaz de elaborar o plano de governo da candidata Roseana Sarney.

Escariz não titubeia: indica Navarrinho.

Corria o ano de 1998.

Bobo nem nada, inexperiente nesse tipo de trabalho, procura o amigo Raul Bastos, e descobre nele o mapa da mina, sujeito escolado em campanhas políticas, velho companheiro de Estadão.

Roseana encabeçava uma ampla frente no Maranhão, incluindo o PCdoB.

Navarrinho desembarca no Maranhão,  pesquisa muito, conhece o Estado, suas dificuldades e potencialidades.

Rica experiência.

Conhece todos os setores da administração do Estado, sindicatos, movimentos sociais.

E a partir desse conhecimento, coloca no papel o plano de governo e suas propostas.

A candidata gostou muito, e o plano correu mundo, tão bom ficou.

Lavareda chegou a usá-lo, em alguns aspectos, como modelo para a campanha de Fernando Henrique à reeleição.

Havia ousadias, copiadas de projetos desenvolvidos em Cuba, Colômbia, Índia, voltadas a iniciativas comunitárias, microcrédito, distantes da lógica exclusivamente capitalista - se foram aproveitadas ou não, outra coisa.

Depois disso, pensou: eu posso.

E danou-se a fazer campanhas políticas.

Na Bahia, em 2000, fez campanhas de Uauá, Tanque Novo, Paulo Afonso.

Remunerada, só a de Paulo Afonso.

O resto, atendendo pedidos de amigos.

Quase trabalhamos juntos na campanha de Roseana Sarney.

Fui convidado por Lavareda para coordená-la.

Honrado pelo convite, segui outro caminho.

Fui fazer a campanha de Lula em São Paulo, coordenando o jornalismo.

Todos sabem: FHC venceu.

Na campanha seguinte, Lula ganharia a eleição...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

3 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: comunicação política

em vários cantos do País, campanhas em

Salvador, TRE e Tribunal de Justiça,

uma fuga, início de uma aventura.

 

Navarrinho fez campanha de Pelegrino em Salvador, a de 2004:  esta me lembro - era o coordenador geral.

Antes, 2002, havia feito Roseana Sarney novamente.

Fez várias outras, país afora.

Andou por São Paulo, Ceará, Alagoas - virou marqueteiro.

Há muitos jornalistas no ramo - João Santana, nosso Patinhas, o mais célebre.

Teve a chance de acompanhar como jornalista a luta do desembargador Carlos Alberto Dultra Cintra.

A partir de 2002, Cintra assumiu a  presidência do Tribunal de Justiça da Bahia.

A hegemonia dele perdurou quase dez anos, depois de derrotar o grupo de ACM, cujo domínio fora absoluto por longo período.

Em 2005, vence um concorrência como pessoa jurídica para o TRE, onde Cintra se encontrava naquele momento.

A pedido de Cintra, logo depois, trabalha no Tribunal de Justiça.

Fica até 2010, e sai de lá para a segunda campanha de Wagner ao governo do Estado.

Faz outra campanha a prefeito de Salvador, em 2012 - a quarta de Pelegrino: 1996, 2000, 2004, e a de 2012.

Após essa peregrinação, Secretaria da Fazenda do Estado até hoje, assessor especial do secretário.

Volto no tempo, e conto uma aventura vivida juntos.

Ao já longínquo ano de 1979.

Outubro.

Um movimento meio brusco, porém creio imprescindível.

Sou surpreendido à tarde na redação do Estadão por uma visita de Natur de Assis Filho.

Havia sido meu contemporâneo de prisão na Penitenciária Lemos Brito, no início daquela década.

Redação pequena e cheia.

Fomos para a escada daquele nono andar do edifício Martins Catharino - conversa devia ser reservada, Naturzinho havia me alertado, baixinho.

Naturzinho era do PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.

Preso nessa condição.

Continuava militante.

Me informa, garante:

- Theodomiro está no Brasil!

Eu, assuntando.

Theo havia fugido da Lemos Brito no dia 17 de agosto daquele ano, e era dado em várias partes do mundo, menos no Brasil.

Trazia um recado de Theo, de quem sou amigo-irmão:

- Ele quer dar uma entrevista, e escolheu você para a tarefa.

Um calafrio e uma certeza: a matéria de minha vida...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

---------------------------------------------------- 

(Estadão - matéria de Navarrinho sobre Theodomiro 10-9-69)

Emiliano José

4 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: Natur de Assis

Filho, emissário do BR, proposta de

entrevista com Theodomiro, o homem

mais procurado do Brasil, Navarrinho

topa, teria de ir a São Paulo.

 

Enquanto o ouvia, pensava: na cadeia, brincávamos muito.

Fingíamos, e nem tanto, eu e Natur, boxear.

Suávamos pra burro nas nossas lutas.

Sujeito alegre - dele, próprio se dizer: de bem com a vida.

A luta revolucionária nunca o tornou taciturno.

De sorriso fácil, e farto.

Permanente.

Enquanto escrevo, relembro sua morte prematura: aos 51 anos, tiro à queima-roupa, em Ubaíra, no Vale do Jequiriçá, 9 de março de 2001.

Ivan Eça, o assassino.

Acompanhei de perto a saga, o sofrimento da mãe, Kátia, tudo.

Pudesse escolher, teria preferido morrer à beira de um riacho de águas cristalinas, ali mesmo, no Vale do Jequiriçá, honrando o Partido Verde, presidido por ele no município quando assassinado.

Não deu.

Explicou presença de Theo no Brasil e queria fosse eu o repórter a entrevistá-lo.

Outubro de 1979.

E isso tinha urgência - insistiu.

- Que seja, Naturzinho - disse.

Havia preliminares, no entanto.

- Não preciso lhe dizer, mas digo: não posso decidir isso sozinho.

Discorri:

- Pra seguir adiante, impõem-se uma consulta ao meu chefe, Carlos Navarro. Sem o sinal verde dele, não posso tocar nada.

Naturzinho parece não ter gostado muito, mas não tinha jeito a dar.

Ficamos de nos falar logo tivesse a decisão de Navarrinho.

Eu, ansioso pelo sinal verde.

Procurei Navarrinho, falei da pauta explosiva.

Não era uma matéria qualquer.

Tratava-se do sujeito mais procurado do Brasil.

Órgãos de segurança da ditadura doidos para matá-lo.

Fui claro: o PCBR me procurou, falou do paradeiro de Theo, e quer entrevista dele publicada no Estadão.

Emissário do BR era Natur.

Navarrinho, sagaz, sacou a importância da matéria.

No entanto, dada a dimensão, não podia ser feita sem a autorização do andar de cima do jornal.

Estávamos, como sabido, sob uma ditadura.

Os telefones da sucursal, grampeados, e disso Navarrinho teve inúmeras provas.

Então, não havia outro jeito senão despencar-se pessoalmente para São Paulo - ele próprio, chefe da sucursal em carne e osso.

Ligou para a secretária de Júlio Mesquita Neto, Maria de Lourdes, encareceu da necessidade de um encontro com ele...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Lembro bem de Natur, fizemos algumas farras juntos, você não participava. Do mesmo jeito de Jadson Oliveira, só depois que a coisa desanuviou mais no país, Jadson passou a sair com alguns amigos.

Paulo Leandro: Prof. E Ivan Eça pagou por seu crime?

Emiliano José: Foi condenado

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

5 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: encontro com

Júlio de Mesquita Neto, alerta do

velho liberal conservador para não

dar pista para polícia, viagem para

o Rio de Janeiro, cobrindo ponto, Nosferatu

 

Disse pra Maria de Lourdes - era urgente uma conversa com Júlio Mesquita Neto, o todo-poderoso do Estadão.

Nem anunciar o assunto podia:

- Logo depois, ela retornou, e disse da reação de Júlio Mesquita: se ele acha tão importante assim, venha, eu o recebo.

Foi.

Júlio Mesquita gostou da pauta, achou muito interessante - fosse jornalista, e ele era, não tinha como não gostar.

Navarrinho informou tudo: iríamos ele e eu fazer a matéria e não deixou de relatar o contato feito pelo próprio PCBR.

Afinal, em qualquer situação, qualquer problema, a retaguarda seria o Estadão.

No fim da conversa, o velho liberal, conservador, mas digno, alertou:

- Vocês tomem muito cuidado, todas as precauções de modo a não fornecer pistas à polícia, evitar a todo custo dar a localização do rapaz - ele sabia dos riscos, conhecia o caso Theodomiro, sabia-o procurado pelos órgãos de segurança, inimigo número um da ditadura naquele momento.

Navarrinho jamais esqueceu desse alerta.

Voltou pra Salvador, e logo seguimos os dois para o Rio de Janeiro.

Não pensem vocês fosse matéria ordinária, rito normal.

Fomos para um hotelzinho ali nas proximidades do Leme.

De lá, segui para o ponto marcado com Natur.

Certeza, não tenho, mas minha memória reteve letreiro de cinema anunciando Nosferatu - o vampiro da noite, de Werner Herzog.

Sim, ponto - como se eu voltasse aos tempos de clandestinidade.

E Theodomiro e a maioria de seus companheiros de BR viviam de fato na mais absoluta clandestinidade.

Encontrei-me com Naturzinho no ponto combinado - terá sido em frente a algum cinema, onde teria visto Nosferatu?

Talvez.

Disse: a matéria será feita por mim e Navarro.

Natur respondeu:

- Vamos mudar o jogo, então. Não haverá mais encontro com Theo.

Coisas da clandestinidade.

Havia ficado quatro anos preso com Theo, e ele tinham absoluta confiança em mim.

A matéria seria presencial, como se diz atualmente.

Como entrou um terceiro na jogada, tudo mudava, não obstante o terceiro fosse de absoluta confiança.

Marquei outro ponto para não muito tempo depois, voltei ao hotel.

Informei Navarrinho: devíamos gravar as perguntas numa fita cassete, entregar a Natur.

Ele entregaria a Theo, e seria devolvida com as respostas, num outro ponto, dia seguinte.

Coisas da clandestinidade.

Theo caísse, seria morte certa...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Carlos Navarro: Lembro das escovas de dentes e cuecas dentro da mochila a tiracolo, como na clandestinidade. E das senhas para os pontos. Lembro também que não fiquei muito feliz com a mudança de planos na entrevista.

---------------------------------------------------------

Emiliano José

6 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: Flamengo,

Zico, bêbado e equilibrista com

tanta gente que partiu num rabo

de foguete, fura o  primeiro ponto,

remarcação, e o encontro.

 

Além de Nosferatu, creio ter ouvido ecos de um Flamengo campeão, de um Zico brilhando, estourando redes por mais de 30 vezes, talento inexcedível então.

Passava ao largo de tudo isso.

Passávamos, eu e Navarrinho.

Talvez, um rádio ou outro ligado, e ouvíssemos Baby Consuelo e seu Menino do Rio, uma Beth Carvalho Coisinha do pai, sentíssemos um Sol de primavera de Beto Guedes, desfrutássemos de uma Lua de São Jorge com Caetano ou até ouvíssemos um bêbado equilibrista com tanta gente que partiu num rabo de foguete na voz de Elis Regina.

Talvez, talvez.

E talvez porque disciplinadamente concentrados, tais e quais jogadores de futebol diante de partida decisiva.

Olhos voltados para a matéria com Theo.

Navarrinho não gostou quando lhe dei a notícia de que deveríamos gravar as perguntas e depois receber as respostas, também gravadas.

Como gostar?

Jornalista quer estar no front, no cara a cara.

Mas, não havia jeito a dar.

É o lugar de cada um.

Nós, jornalistas.

Uma coisa era mandar uma fita cassete, e receber as respostas.

Outra, pudéssemos entrevistá-lo, provocá-lo, instigá-lo.

Eu, além de tê-lo como fonte, o veria novamente, amigo querido, quatro anos de cadeia comum.

Navarrinho, apreço, e a fonte.

Theodomiro e seus companheiros, clandestinos, a morte a espreitá-los, e isso não era metáfora, recurso de linguagem.

Viram muita gente partir num rabo de foguete para nunca mais voltar, amigos perdidos assim.

Não podiam permitir um instante de vacilo.

Por isso, a reviravolta.

O hotel onde nos hospedamos tinha até nome pomposo: Leme Copacabana Palace - Navarrinho retém na memória: logo depois do túnel, já perto da praia.

Nome pomposo, instalações precárias, e a gente nem aí.

Conversamos eu e Navarrinho, gravamos  na fita cassete as perguntas.

Navarrinho relata, e isso não está na minha memória: saímos os dois com a fita nas mãos em direção ao ponto marcado com Naturzinho.

Na lembrança de Navarrinho, o ponto furou: não apareceu senhor ninguém.

De que modo não sei, mas deram jeito de me recontatar, talvez telefone do hotel, e teriam me dito: próximo ponto, só você, mais ninguém.

Regras de segurança.

Volto a encontrar Natur para entregar a fita cassete com as perguntas - disso me recordo.

Olhando à distância, parece filme policial...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: Quando entrar setembro e a boa-nova se espalhar nos campos...

Carlos Navarro: Curioso essa coisa de memória, mesmo juntos, não lembro de Nosferatu, nem do Flamengo campeão e olha que sou Flamengo desde criancinha em Iaçu, porque o meu pai era o meia direita do Flamengo local. Mas lembro lembro de um acidente à noite na porta do hotel, quando uma mulher com um carrão bateu no fusca de um "playboi". O rapaz ficou desesperado porque gastou todo o dinheiro que tinha na reforma do fusquinha, pulava, gritava, chorava...  

------------------------------------------------- 

Emiliano José

7 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: felicidade de Natur

naquela tarefa, pontos cobertos, matéria

escrita, imaginação à solta, despistamento.

 

Naturzinho era um sujeito alegre.

Como se estivesse sempre de bem com a vida.

Nos encontros no Rio de Janeiro, naqueles dias, parecia pinto no lixo.

Feliz, não obstante contido porque a responsabilidade era muito grande.

Tinha noção dos riscos, e qualquer tropeço dele, qualquer quebra das regras de segurança, podia implicar na queda do quadro político mais procurado do País.

Fazia tudo com muita responsabilidade, mas obviamente feliz.

Talvez por estar no olho do furacão, a história nas mãos.

Era outubro, já decorridos mais de dois meses da fuga histórica de Theo.

Todo o noticiário o dava em algum País no exterior, nunca no Brasil.

Todo cuidado era pouco.

Entreguei a fita a Naturzinho, conversamos um pouco, mandei lembranças a Theo, remarcamos ponto.

Dia seguinte, outro ponto, e recebo a fita cassete com as respostas.

Era a voz de Theo, inconfundível - quatro anos de convivência permitiam a identificação.

Ainda assim, ele, cuidadoso, mandou um texto, de próprio punho, firmando veracidade da entrevista.

Nos despedimos calorosamente, e fui para o hotel.

Ouvimos a fita e demos tratos à bola.

Escrevemos a matéria.

A quatro mãos - nossa caminhada comum no jornalismo facilitou.

Só não sei se escrevemos no Leme ou em São Paulo, no Estadão.

São mais de 40 anos passados, e a memória traiçoeira oscila, não responde com objetividade.

Os moços de hoje, esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei, o que eu e Navarrinho sabemos, esses moços, ao lerem a matéria de página do Estadão de 30 de outubro de 1979, vão provavelmente nos admoestar.

Podem criticar nosso exercício criativo, imaginação à solta, estranhar.

Um box, ao lado do texto principal, conta verdades em meio a muita fantasia, quem sabe, com o olhar de hoje, muito próximo de um trailer policial.

Ora, ora, vivíamos sob uma ditadura.

Fundamental fazer uma operação de despistamento.

Falássemos a verdade nua e crua, e colocaríamos Theo em risco...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Você voltou com a fita e nós corremos para o Santos Dumont pegar a Ponte Aérea. Escrevemos o texto em São Paulo, em um clima meio adverso porque o dr. Julinho não estava na casa, já era noite quando chegamos. Sem ele presente o comando da redação impôs alguns limites, mas isso você conta, você é o historiador.

Joaquim Lisboa Neto: Que pluma... Com pitadas de Lupicínio Rodrigues 

------------------------------------------------------ 

Emiliano José

8 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: um cuidadoso exercício

de imaginação para garantir o despistamento,

incluindo Jorge Amado e mudança de

localização de nossa fonte, para preservá-la.

 

Operação despistamento.

No box, sob o título "O encontro por fita", contávamos: o contato com Theo fora difícil, tortuoso, rocambolesco, a ponto de nem nós mesmos, repórteres, sabermos o paradeiro dele, e nem o vimos - tudo verdade.

E, também, não conhecíamos o intermediário: ao receber a fita cassete, ao devolvê-la, jamais se identificou, e ainda utilizava artifícios para não ser reconhecido fisicamente - nossa imaginação, parte da operação despistamento.

Naturzinho não podia ser revelado - seguíamos despistando.

Como a informação da presença de Theodomiro no Brasil chegara ao Estadão?

Através de um telefonema anônimo.

O interlocutor propunha um ponto, estaria de camisa verde e levaria nas mãos "Farda, Fardão, Camisola de Dormir", último livro de Jorge Amado. 

Indicava a senha:

- Vens do Norte?

- Não, sou estrangeiro.

Tudo combinado no longo telefonema anônimo.

Coberto o ponto, tudo combinado, devíamos viajar e Theodomiro, a partir dali, em qualquer contato, seria chamado Isabel.

Viagens de carro e avião, teatro de operações montado em São Paulo.

Idas e vindas, e não foi possível o contato direto com Theodomiro.

Tudo por fitas cassete.

"Tudo gravado. Theodomiro continua em São Paulo, em lugar desconhecido".

Essa, a história contada por nós ao explicar a matéria para o leitor.

Não fora exatamente assim, como vocês sabem.

Havia nosso dever ético e político.

Tínhamos de cumprir a tarefa: dar aquele furo, garantir a realização da matéria.

E ao mesmo tempo, preservar a nossa fonte.

Evitar caísse nas mãos da repressão.

Inclusive mudando sua localização.

Indicávamos Theodomiro em São Paulo.

Ele estava no Rio de Janeiro, como sabem.

Voltando um pouco.

A ideia original era entrevistarmos Theo e fotografá-lo - matar a cobra e mostrar a cobra morta.

Navarrinho trouxera com ele a máquina fotográfica.

Não deu certo, vocês sabem...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

9 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: ponte aérea, matéria

escrita na redação do Estadão em São Paulo,

editor examina e corta parte política,

decidimos não assinar a reportagem

 

Conversando com Navarrinho, vou colocando as coisas no lugar.

Voltei do último ponto com Natur, cheguei no hotel, e disparamos para a ponte aérea.

Seguir para São Paulo.

Lá, na redação do Estadão, numa salinha à parte, escrevemos a matéria.

Checamos, olhamos uma vez, duas, e Navarrinho foi ao editor de plantão.

O velho Júlio de Mesquita Neto não estava na casa.

Fiquei sozinho na saleta, aguardando.

Demorou algum tempo.

Quando voltou, Navarrinho não estava muito entusiasmado.

Contou: um sujeito respondia pela redação, sabia da reportagem, olhou atentamente para nosso texto, e sentenciou: política não vai entrar, ao menos a parte mais substancial.

A fala forte de Theo sobre a conjuntura política sofria censura, autocensura.

Há jornalistas mais reais do que o rei.

Certamente, com o velho Júlio de Mesquita a matéria restaria incólume.

O sujeito mutilou nossa matéria - talvez Navarrinho lembre o nome dele.

Era, por óbvio, um desrespeito à fonte, ao nosso entrevistado.

Matéria, um furo daqueles, seria assinada por mim e por Navarrinho.

Reagi de pronto:

- Não vou assinar a matéria.

Theodomiro entenderia meu gesto: ao não assinar, não subscrevia o corte.

Navarrinho não relutou - acompanhava minha decisão.

Ali, confirmava-se a grandeza de caráter dele.

A matéria recebe chamada de primeira página, e ocupa toda a contracapa do Estadão de 30 de outubro de 1979.

O título informava: "Theodomiro está em São Paulo".

No superlead em negrito, informava-se a condição de clandestino dele, dando-o "em algum ponto de São Paulo" e falava-se das peripécias desde sua histórica fuga em 17 de agosto daquele ano.

No pé da matéria, outro box: o manuscrito de Theodomiro.

Um "A quem interessar possa", destinado a comprovar a autenticidade da entrevista realizada na clandestinidade, explicando diante disso a impossibilidade de fotografias.

Matando a cobra e mostrando a cobra morta...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

Emiliano José

10 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: matéria e a

fuga, e torturadores, e condenação

à morte, redução da pena, negação

do pedido de condicional,

e decisão de fugir.

 

A matéria propriamente, resultado da entrevista com Theodomiro, descia em duas colunas, até o pé da página.

O texto seguia abaixo de um subtítulo: "O esquema da fuga ainda é um mistério".

De cara, inocentava seus companheiros de prisão quanto a envolvimento na fuga histórica de 17 de agosto, Haroldo Lima e Paulino Vieira.

Verdade, com relação a Vieira.

Haroldo Lima, aí não: participara decididamente.

Denuncia as torturas quando de sua prisão e aponta os verdugos: Luiz Arthur de Carvalho, o comandante; capitão Hemetério Chaves Filho, comandante da Polícia do Exército (PE); agentes Hamilton Nonato e José Felipe Filho, da Polícia Federal; tenentes Trindade e Botelho, da PE; cabo Dalmar Caribé, da Quarta Companhia de Guardas; sargento Mário, da PE, e outros cujos nomes não recordava.

Os nove anos de prisão são ressaltados como um tempo de companheirismo, de aprendizado, luta comum contra as arbitrariedades da repressão.

Não deixa de lado a solidariedade nacional e internacional, tão fortes.

Nas poucas linhas reservadas, permitidas pelo Estadão à política, "critica a estrutura do governo e as contradições políticas e econômicas - principalmente a reforma partidária que está no Congresso."

Mais:

"Defendendo liberdade política e sindical, Theodomiro mostra a necessidade de criação da 'Central Única dos Trabalhadores, ao lado do desenvolvimento das lutas pelo direito de greve' e o 'estabelecimento de uma alternativa de poder popular'."

Depois, intertítulo "O ex-preso", e a história de Theodomiro desde a infância, ocupando a maior parte da matéria.

Reserva-se bom espaço ao sequestro do embaixador suíço, Giovani Enrico Bucher.

Theodomiro e Paulo Pontes da Silva, preso com ele, companheiro do PCBR, foram arrolados na lista pelos revolucionários para sair para o exterior, mas a ditadura endureceu o jogo, e os dois não saíram, embora nos 45 dias de negociações, fossem barbeados e preparados para a viagem.

Em tempo recorde, Theodomiro foi condenado à morte - já em março de 1971. Em meados daquele ano, a pena foi transformada em prisão perpétua.

Idas, vindas, anos de luta política e jurídica, e sua pena terminou em 16 anos, 6 meses e 25 dias em 1979, dando-lhe o direito de pedir liberdade condicional, negada.

Firmou então convicção: não sairia tão cedo.

E fugiu.

Este, o resumo da matéria.

Caiu como uma bomba.

Um furo da porra.

Lembro-me chegando ao "Jornal da República", dirigido por Mino Carta, final da manhã do dia seguinte à matéria, 31 de outubro, não me lembro o que fora fazer, e...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Graça Azevedo: As reticências me matam de curiosidade😂

Emiliano José: Tenha calma

Carlos Navarro: A história é sua e não vou antecipar nada, mas lembro do rebuliço da repressão em nossa porta. Não sei como descobriram sobre a sucursal apesar do nosso cuidado. A pressão só parou com a chegada dele a Brasília. 

----------------------------------------------------- 

Emiliano José

11 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: Jornal da República

e dúvida sobre barrigada, vingança

com Theodomiro na Nunciatura,

cerco à casa de Navarrinho.

 

Disse: cheguei ao Jornal da República, em São Paulo.

30 de outubro de 1979.

Exato dia da publicação de nossa matéria "Theodomiro está em São Paulo" no Estadão.

O jornal havia surgido coisa de dois meses antes: 27 de agosto.

Iniciativa de dois monstros sagrados do jornalismo brasileiro: Mino Carta e Cláudio Abramo.

Independente, criativo, ousado, caminhava na esteira dos novos ventos da conjuntura brasileira - anistia, abertura, não obstante ainda ditadura.

Jornalismo com aquelas características, no entanto, sob o tacão do grande capital, não tinha vida longa: em janeiro de 1980, sucumbiu.

Eu, família na cidade, fiquei mais dois, três dias na capital paulista.

Cheguei, cumprimentei os conhecidos, entre os quais, Raul Bastos, ex-diretor da sucursal do Estadão em Salvador.

Acreditem: havia dúvidas sobre nossa matéria.

Como se fosse uma barrigada - nome dado a uma notícia ou reportagem equivocada, com sérios erros ou eivada de distorções.

- Ué, ele não está no exterior? - era a pergunta comum, base da dúvida, quase troça.

Sabiam os autores - nas redações, tudo se sabe.

Eu, achando aquilo inacreditável - como duvidavam?

Cheguei àquela redação depois das 14 horas.

Eu, explicava a matéria, sem revelar tudo - como se sabe, não podia, não devia.

E os coleguinhas, orelha em pé, desconfiados.

De repente, as tevês e emissoras de rádio começam a noticiar a entrada de Theodomiro na Nunciatura Apostólica, em Brasília, praticamente obrigando a Igreja Católica a aceitá-lo como exilado.

A redação calou.

Minha vingança, silenciosa.

Navarrinho, matéria entregue para edição, na noite de 29 de outubro, hospedou-se no Hotel Jaraguá, contíguo à velha sede do Estadão na rua Major Quedinho, à época já instalado no bairro do Limão.

Soube: já havia viatura próxima à casa dele, em Salvador.

Como os órgãos de segurança souberam dos autores, ninguém imagina.

Talvez supusessem - Theodomiro passara quase nove anos na Penitenciária Lemos Brito em Salvador, sucursal fizera inúmeras matérias com ele, natural então fossem repórteres da Bahia os autores.

O jeep do Exército rodava em torno da casa onde Navarrinho morava, penso mora até hoje, num condomínio da Pituba - queria dar sinais de presença.

A família o informou dessa exibição.

Depois de muitas voltas, foi embora.

Havia dado o recado.

A redação do Estadão, em São Paulo, recebeu vários telefonemas dos órgãos de segurança logo na manhã do dia 30 de outubro, quando a matéria explodiu.

Os editores, nem uma palavra - já estavam habituados àquela pressão.

Jornalismo sob a ditadura, cerco permanente.

O cerco só parou no dia 31 de outubro, quando...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

12 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: cerco sobre sucursal

só cessa com entrada de Theodomiro

na Nunciatura, ainda negociações em

torno da matéria, generais em polvorosa

 

O cerco da repressão à sucursal só cessou quando no dia 30 de outubro à tarde houve a notícia da entrada de Theodomiro na Nunciatura Apostólica, embaixada do Vaticano no Brasil, em Brasília.

Os olhares da repressão e de toda a mídia se voltaram para Brasília.

Volto à noite de nossa chegada ao Estadão, dia 29 de outubro daquele 1979.

Quando chegamos à redação, não estavam Júlio de Mesquita Neto, nem Miguel Jorge, diretor de redação.

Só restava, como responsável pela redação, o Ornelas - não sei o primeiro nome.

Navarrinho era o negociador.

Ia e vinha, eu ali na sala ao lado da diretoria, aguardando solução.

Matéria já entregue.

Restava decisão.

Navarrinho acompanhava os telefonemas de Ornelas, de perto.

Dizia estar falando com Júlio Mesquita Neto.

Navarrinho acredita fosse na verdade com Miguel Jorge - simulação.

Decisão, já contamos: cortaram a parte política.

Na manhã seguinte, é informado não só da presença do jipe militar rondando a residência dele em Salvador como da ligação de não sei quantos generais para a redação do jornal em São Paulo, querendo saber onde Theodomiro se encontrava e quem eram os redatores da matéria.

Navarrinho comenta hoje: quando Theo apareceu em Brasília foi um alívio - repressão suspendeu o cerco, e o alvo principal era ele próprio, diretor da sucursal.

Recorda: não tinha qualquer informação sobre o passo seguinte de Theodomiro, sobre o asilo dele na Nunciatura.

- Talvez você soubesse, mas eu não - ele diz.

E aqui, passados mais de 40 anos, esclareço: eu também não sabia.

Já esclareci isso em livros, mas Navarrinho não deve ter lido, pois disse agora não ter certeza se eu estava de alguma forma envolvido na operação.

Sei: face às minhas relações de amizade, companheirismo com Theodomiro é difícil acreditar não estivesse.

Fácil pressupor fosse tudo combinado comigo.

Não foi.

O PCBR fez uma baita operação de despistamento com a nossa matéria.

Como eu conhecia um bocado das regras da clandestinidade, nunca perguntei isso a Theo nem aos companheiros do BR.

Como a matéria foi pensada no esquema montado por eles...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

------------------------------------------------- 

Emiliano José

13 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: regras rígidas da

clandestinidade, operação Sagradas

Escrituras, eu e Navarrinho sem saber

de nada, histórias a contar para os netos.

 

Ditadura é ditadura.

Nela, impunha-se, muitas vezes, a clandestinidade.

E tal situação, reclama regras.

Rigorosas.

Descumpridas, prisão, tortura, morte.

Imagino tenha o PCBR, com a responsabilidade de assegurar a vida do sujeito mais procurado do País, imaginado fórmulas de driblar a repressão para dar chances a Theodomiro de entrar sossegadamente numa embaixada, e pedir asilo.

Advirto: quiserem saber detalhes da fuga e de como ele entrou na Nunciatura Apostólica em Brasília, vocês encontrarão em matéria da número um da revista Caros Amigos e no livro O cão morde a noite, tudo escrito por mim.

Aqui, só tangencio.

O partido deve ter pensado: temos amigo histórico na grande imprensa, está no Estadão, vamos providenciar matéria feita por ele, e no dia do arerê, da polvorosa, reportagem na rua, repressão feito barata tonta, nós entramos na embaixada.

- Será que dá certo? - alguém na reunião pode ter perguntado, quem sabe Bruno Maranhão, o comandante da operação, regressado do exílio logo depois da anistia.

- Não custa tentar - teria dito um outro, quem sabe Renato Affonso, dirigente da operação.

E aí mandaram Natur de Assis Filho fazer o contato comigo.

O restante vocês sabem.

Eu e Navarrinho e o Estadão entramos no plano "Sagradas Escrituras" sem saber - o nome foi dado por mim agora.

Tanto quanto o resto do País, fomos surpreendidos pela chegada de Theodomiro à Nunciatura Apostólica pedindo e forçando o asilo, ao lado de Chico Pinto e Airton Soares - Chico aparece nos jornais como tendo sido avisado da presença de Theodomiro na embaixada.

Nada.

Ele e Soares foram parte ativa da operação, mas isso não se falaria à época.

Paro - resisto à tentação de contar como foi.

Em algumas ocasiões, falando com Bruno Maranhão, pretendia esclarecer algumas coisas da operação, até hoje guardadas a sete chaves, embora a maioria já reveladas, e ele, não obstante ditadura já derrotada, não abria nada - sempre achava houvesse rastros da ditadura por aí: e hoje a gente é obrigado a reconhecer o quanto ele tinha de razão - estou enganado ou o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra foi declarado marechal nas últimas horas?

Estive muitas vezes com Theo, com Natur, com Renato Affonso, e eles envoltos no manto do silêncio, ao menos quanto a como tínhamos entrado na operação "Sagradas Escrituras".

Tinham certeza, certamente: desse certo, e eu me sentiria honrado de ter participado, e melhor mesmo não soubesse porque se caísse não tinha como revelar nada - regra fundamental da clandestinidade, e é bom não esquecer fosse ainda ditadura.

Creio, e não perguntei, ser esse também o sentimento de Navarrinho.

Coisas do jornalismo do tempo de ditadura.

Temos alguma coisa, pouca coisa seja, pra contar pras nossas netas sobre a caminhada de um  tempo de terror e de trevas.

Sorte tenhamos sobrevivido para tanto.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Uma ponta de orgulho, de vez em quando, talvez vaidade de estar ficando velho, mas creio que você deveria contar mais, afinal foi um momento da história da repressão na ditadura e ficará para a posteridade, como tantas outras informações dos seus livros.

Artur Carmel: Natur se foi cedo... 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

14 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: divergências com

o diretor de redação, mania de não levar

desaforo pra casa, espírito de Mariazinha

do Boqueirão, outras vezes espírito

conciliador do pai, política no posto de comando.

 

Há histórias paralelas a essa matéria, a explicar muito dos acontecimentos  do entorno.

Navarrinho já havia enfrentado divergências com Miguel Jorge, diretor de redação do Estadão à época.

Faz um perfil: o book dele quando chegou ao Jornal da Tarde era uma revista pornográfica de uma rede de saunas - Relax for Men.

Uma turma de Minas Gerais chegou ao Jornal da Tarde.

Entre os vários mineiros, Luciano Ornelas - agora descubro o nome do sujeito da noite da autocensura.

Chegaram juntos ao Jornal da Tarde.

Miguel Jorge chegou depois à chefia de redação do Estadão.

Navarrinho não o tem como um sujeito inteligente.

Ao contrário.

Numa ocasião, enchentes na Bahia, mandou desaforos para a sucursal, criticando cobertura, e Navarrinho não contou conversa: respondeu duramente, desaforos em dobro.

É daqueles: dá um boi pra não entrar numa briga, uma boiada para não sair.

Pense num sujeito tolerante - é ele.

Agora, não pisem no calo dele: aí baixa o espírito de Mariazinha do Boqueirão, saca das armas, e é tiro pra todo lado.

Nem sempre, no entanto.

No dia da entrevista de Navarrinho com Júlio Mesquita Neto para tratar da matéria de Theodomiro, obter o aval dele, foi exatamente o dia da visita de Leonel Brizola ao jornal depois de voltar do exílio, parte de um périplo realizado por ele aos meios de comunicação mais importantes.

Navarrinho, na antessala, aguardando pra ser recebido, quando irrompem na sala de Júlio Mesquita o próprio Brizola, acompanhado de Miguel Jorge e de integrantes da comitiva do ex-governador.

Miguel Jorge cumprimenta Navarrinho.

Depois disso, houve a conversa com Júlio Mesquita Neto, cuja sala era contígua à redação - havia uma porta independente e outra voltada para a redação.

Como Navarrinho havia sido visto por Miguel Jorge, achou de bom tom não sair sem cumprimentar os companheiros da redação.

Podia ter saído pela outra porta, mas preferiu não fazê-lo.

Miguel Jorge o interpela grosseiramente:

- Que é que você está fazendo aqui?

Navarrinho, estupefato.

- Como é que você vem falar com dr. Julinho sem passar por mim? - completou Miguel Jorge.

Navarrinho, do jornalismo e da política, minimizou.

Nesse caso, preferiu esse caminho - engoliu o sapo.

Havia o objetivo maior: a matéria com Theodomiro.

Aí baixava o espírito do pai, Carlos Navarro, muito mais afeito à conciliação do que Mariazinha do Boqueirão, a fera.

O sujeito já não gostava de Navarrinho, não engolira a resposta desaforada do passado.

Com a visita a Júlio de Mesquita Neto sem passar por ele, ganhou inimigo pra vida toda.

Isso seguramente explica por que a parte política da matéria sobre Theodomiro foi vetada - dedo de Miguel Jorge, cujas divergências com Navarrinho jamais foram esquecidas.

Vetar a matéria por inteiro, não podia - havia sido acertada com Júlio de Mesquita Neto.

Teve o gostinho, no entanto, de vetar a fala política de Theodomiro.

A pequenez anda à solta por aí...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

(Pedro Formigli , João Paulo Costa , Adilson Borges, Paolo Marconi, José Carlos Teixeira Welinton Aragão, Jorginho Ramos e Carlos Navarro)

Emiliano José

15 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: terminando uma

história, caminhada do protagonista

continua, uma volta ao passado, Querida cidade

 

Vontade é de seguir viagem.

Mas, é hora de caminhar para o encerramento.

Essa caminhada foi iniciada em janeiro deste ano, vocês se lembram.

Com fantásticas histórias, sobretudo do reino encantado de Iaçu.

Depois de tanto reboliço, vamos começar a jornada final.

Dessa escrevinhação, entenda-se.

História de Navarrinho segue, há muita estrada pela frente.

Sobretudo, penso, a do romancista, não mais promessa.

Caminho para a reta final.

Pero, não esperem pressa.

Sempre com Almir Satter: ando devagar porque já tive pressa.

Gosto de situar as coisas no tempo.

Uso do cachimbo faz a boca torta: mania de jornalista.

Ano de 2022, e Navarrinho será surpreendido por 60 anos de imersão na atividade jornalística.

Primeiro, de forma amadora,

Amadora, mas intensa.

Já falamos, penso.

Mas, o que abunda não vicia.

Primeiro, transitou pelo rádio, pelo Alagoinhas Jornal, pela revista Cometa.

O jornal, de responsabilidade do dentista Walter Campos, cuja duração foi longa.

A revista, editada por funcionários do Banco do Brasil, não aguentou tanto tempo assim - ainda assim durou uns três, quatro anos. 

O rádio, já falei demoradamente.

Navarrinho, rapaz ousado, cheio de latim, danou-se a pensar como cronista, Stanislaw Ponte Preta de Alagoinhas - e isso foi lhe servir para o resto da vida.

Foi ali a sua Estrada de Damasco - a luz ofuscou os seus olhos por instantes, o mundo ficou colorido, e ele nunca mais saiu dessa estrada.

Escrevendo, a imaginação volta-se para o livro de Antônio Torres, lançado esses dias, ele, nascido em Sátiro Dias, convivendo com Alagoinhas - lindo, o Querida Cidade, tudo a ver com a história de meninos pobres, mais tarde brilhantes, atrevo-me a dele falar, ainda na exata metade da leitura.

Navarrinho, ele mesmo, ao falar de Alagoinhas, quem sabe possa a ela se referir também como querida cidade, a lhe dar régua e compasso.

Profissionalmente, o início foi dezembro de 1968, no Jornal da Bahia.

Antônio Torres, apresentado a João Falcão por Mário Alves, pai de Agliberto Lima, comunista de Alagoinhas, borracheiro na cidade.

Foi lá, também, no Jornal da Bahia, o início dele como jornalista.

Destinos se cruzando por aquela querida cidade.

Torres vai se tornar consagrado romancista, não é preciso dizer mas digo, e Navarrinho inicia mesma caminhada.

Ao longo da vida, nas tantas palestras, ele insistiu sempre: quem quiser ganhar dinheiro, se dar bem, não seja repórter.

Jornalismo não dá camisa a ninguém.

Dá pro gasto, no limite, não mais.

Há exceções, mas devem ser consideradas assim, e não devem iludir ninguém.

Então, em princípio, é atividade a requerer algum sentido de missão, alguma vocação.   

Mesmo aqueles eventualmente bem remunerados, e ele se recorda de fase com ótimo salário como chefe da sucursal do Estadão, não têm condições de acumular alguma fortuna.

A fortuna acumulada, ele reflete hoje, é a dignidade, o reconhecimento de uma vida reta, íntegra, sentimentos presentes na sociedade e nos colegas de profissão,  a par de uma evidente competência profissional, talento indiscutível, carisma, capacidade de chefiar, construir equipes,  e aí já sou eu registrando...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Pois é Zapatilla, coisa de amigo historiador, história bem maior que o personagem.

Emiliano José: O personagem é que é grande mesmo

Mônica Bichara: O personagem é gigante, merece todas as homenagens. Trajetória digna de um filme - óia eu dando ideia hehehehe Mas não se avexe não que quando o noveleiro Emiliano diz que está caminhando pro final, tem muitos dias ainda pela frente. E o protagonista merece

Graça Azevedo: Carlos Navarro, não concordo.

Carlos Navarro: Vocês, Mônica e Graça, também são suspeitas, pela amizade. 

---------------------------------------------- 

Emiliano José

16 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: balanço, o feliz

encontro com o jornalismo, satisfação

de fazer o que sonhou desde a juventude,

e continuar fazendo, eterno aprendiz.

 

Alguma coisa o jornalismo lhe proporcionou.

O elementar: casa própria.

Uma vida de trabalho e uma casa própria.

Vive nela até hoje.

Condomínio de classe média na Pituba.

A aposentadoria é merreca.

Viver dela, nem pensar.

Por isso, trabalha até hoje.

Nem é lamento: constatação.

Situação da maioria dos jornalistas - sabe disso.

Fala com tranquilidade, paz de espírito.

A falta de bens materiais, o fato de não ter acumulado alguma fortuna, não lhe traz nenhum amargor.

Viveu até aqui com os poucos confortos da classe média e sempre voltado para a profissão escolhida desde muito jovem - uma escolha apaixonada.

Paga as contas, toma seu uísque, viaja - e não está bom?, ele pergunta e responde positivamente.

Insiste, jornalismo não é só ganha-pão.

É antes de tudo, vocação.

Não sabe como viveria tivesse sido levado a outra atividade.

Provavelmente, muito infeliz.

Ele vai confessando, e eu vou viajando na minha própria história, levado aos 14 anos a ser bancário, e sumindo no mundo aos 22 anos, prometendo a mim mesmo jamais voltar a um banco para trabalhar.

Como Navarrinho, profissionalmente fui me encontrar no jornalismo.

Considera-se um privilegiado.

Sabe: muita gente, quem sabe a maioria, não faz o que desejaria, mas o imposto pela vida, o determinado pelas circunstâncias.

E segue infeliz, almejando um dia aposentar-se, e quando se aposenta...

Ele não tem qualquer lamento, e até hoje o trabalho profissional dele, a complementar a aposentadoria, é fundado no aprendizado do jornalismo.

Quando saiu do Estadão, não só se dedicou ao marketing político, como desenvolveu vários projetos jornalísticos, entre os quais muitas revistas, algumas regionais, outras, nacionais.

Se o cidadão, a cidadã, sonhou na juventude ser médico, engenheiro, advogado, jornalista, e conseguiu realizar o sonho, é um felizardo, independentemente dos ganhos materiais.

- Sou um felizardo. Fiz o que quis a minha vida inteira.

E com certo orgulho, afirma ter procurado sempre empenhar-se no exercício do jornalismo, utilizar o conhecimento acumulado, e nunca esquecer a condição de um eterno aprendiz.

Quando chefiou, procurou sempre ouvir os liderados, nunca impor nada, sem deixar de comandar - e aqui é testemunho meu.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Luiz Brasileiro Brasileiro: Este Navarrinho é a peste mesmo, a febre do rato do jornalismo, fazer o que quer não é para qualquer um.

Carlos Navarro: Belo trabalho, trabalho de historiador, afora as deferências de amigo. Eu não teria paciência para ser historiador, a menos que encomendasse as pesquisas.

---------------------------------------------

Emiliano José

17 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: volver ao início,

EBC e Facom, trajetória.

Já disse: a gente pensa mandar na escrita.

Manda não.

 

Agora mesmo imaginava caminhar para o fim dessa história, e sou tentado a volver ao início.

Ao princípio da caminhada jornalística de Navarrinho, quando ele simultaneamente trabalhava no "Jornal da Bahia" e estudava Jornalismo.

Minha prosa é motivada pela Facom, onde dei aula por 25 anos, e onde Navarrinho estudou a partir de 1969, depois de ter passado no vestibular em 1968.

E por um depoimento do querido Florisvaldo Mattos, cuja participação na minha banca de exame de admissão para professor da UFBA em 1982 jamais esquecerei.

Facom, hoje.

Não era em 1962, quando o Curso de Jornalismo se iniciou.

Na Joana Angélica, onde funcionou até 1968, quando se formou a primeira turma.

Em 1969. passa a funcionar em prédio vizinho à Reitoria, no Canela.

A UFBA resolveu tirar o curso da solidão, e talvez a emenda tenha sido pior que o soneto, e ele passou a fazer parte da estrutura da Escola de Biblioteconomia e Documentação, creio mais tarde denominada, talvez por isso, Escola de Biblioteconomia e Comunicação.

Alunos e professores intensificaram a luta para criação de curso próprio.

Isso aconteceu ainda no Canela, e logo depois criou-se a Faculdade de Comunicação, mais tarde transferida para Ondina, onde funciona até os dias atuais.

Florisvaldo recorda-se da criação dos Laboratórios de Jornalismo e de Fotografia, da impressão e circulação pelo jornal A Tarde, de um caderno com notícias e fotos de ambos os laboratórios, e da abertura dos professores para promoção de seminários temáticos de jornalismo impresso, audiovisual, cinematografia, literatura e ciências humanas.

Foi na Facom meu Mestrado e Doutorado - hoje ela se constitui um dos centros de excelência do ensino de Comunicação no País.

Ela também, além de Alagoinhas, a querida cidade, deu a Navarrinho régua e compasso.

Amanhã, se não ocorrer nenhuma tentação, volto à etapa final dessa escrevinhação sobre nosso protagonista...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

18 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: orgulho de

caminhada ao lado de tantos

profissionais e de ter se

mantido íntegro, cabeça erguida.

 

Nesse balanço, Navarrinho fala do orgulho de ter compartilhado caminhada com tantos jornalistas, fonte de rico aprendizado, sobre os quais já falamos.

Da Bahia e do restante do País.

Ricardo Kotscho, Raul Bastos, Enio Squeff, Audálio Dantas, Fernando Pedreira, Clóvis Rossi - alguns assomam à memória, nomes nacionais jamais esquecidos.

O conhecimento em jornalismo é sempre compartilhado.

Navarrinho sabe disso.

Em muitos, há a crença no virtuosismo individual, e essa crença às vezes obscurece a visão.

Vi, chefiando equipes, repórteres brilhantes desaparecerem rapidamente por uma visão demasiadamente otimistas de si mesmos.

E observei gente claudicante, sem brilho na fase inicial, firmando-se ao longo do tempo porque se esforçando, observando, aprendendo, revelando-se grandes repórteres, porque conscientes do conhecimento compartilhado, da condição de eternos aprendizes, como todos nós.

Ele, Navarrinho, chegou a ganhar dois Prêmio Esso - um sobre estatais, outra sobre mordomias, supersalários, sob a batuta de Ricardo Kotscho, esse brilhante repórter.

Realização profissional - no balanço, Navarrinho não tem queixa a registrar, nenhuma.

A caminhada até aqui, amplamente vitoriosa.

Vitoriosa, aqui, significa tanto o trabalho profissional quanto, no decorrer da vida, manter-se íntegro, indiferente a ouro, incenso e mirra.

ACM, atilado, e irônico, e maldoso, dizia haver três tipos de jornalista.

O que quer notícia.

O que quer emprego.

E o que quer dinheiro.

Acrescentava: político esperto é aquele que não troca as bolas - não dá notícia a quem quer emprego, dinheiro a quem quer notícia, emprego a quem quer dinheiro.

Não sei se é boa definição, mas é arguta, e tem base na realidade.

Navarrinho permaneceu vida inteira entre os primeiros - sempre atrás da notícia.

De ACM,  manteve respeitosa distância, e como profissional, revelou sempre todas as suas maracutaias e estripulias. 

No balanço, lembra: nunca foi vanguarda de esquerda.

Foi líder estudantil, adquiriu noções claras de democracia, de liberdade, alicerçou convicções, mas não assumiu posição de vanguarda militante...

#MemóriasJornalismoEmiliano

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

19 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: maior parte da experiência sob ditadura, formação

de esquerda, escolha pelo jornalismo

 

Há de se lembrar, e Navarrinho se recorda: boa parte de sua experiência jornalística, se consideramos o período de 1962 a 1985, foi desenvolvida sob a ditadura.

E a ditadura impunha regras.

Os governadores, ressalvadas suas singularidades, eram nomeados pela ditadura.

Ninguém há de ignorar as diferenças entre um Luiz Viana Filho e um ACM.

Ou entre Roberto Santos e ACM.

No entanto, considerado isso, não se pode esquecer encontrarem-se todos sob o mando, sob o tacão da ditadura.

Se aceitavam aquela condição, o de serem governadores nomeados pela ditadura, tinham noção do significado disso

Sabiam do fardo a ser carregado, da marca histórica a pesar sobre seus ombros.

Ajoelhou tem de rezar.

Agora, o mando de ACM era o mais despótico - isso ninguém ignora.

Nas mãos dele, jornalistas sofreram mais, e muitos também tiveram a coragem de fazer o bom combate.

Navarrinho, um deles.

Tem uma convicção: a escola política dele, desde muito cedo, foi de olho crítico em relação a governos.

Como haveria de ser diferente, sendo de uma tradição de esquerda, e vivendo a maior parte da trajetória sob a ditadura?

Como haveria de ser diferente sendo admirador de Guevara?

E a foto do revolucionário ainda emoldura o escritório na casa dele.

Como havia de ser diferente, tendo sido ele fundador do MDB, em Alagoinhas, querida cidade?

Como, se perseguido pela ditadura depois de duro discurso contra o AI-5?

Tem consciência de ter, a partir de 1969, trocado de trincheira.

Agora, era o jornalismo - exclusivamente.

Confessa: não tinha muita coragem para pegar em armas.

Viu amigos sumindo assim, assassinados pela ditadura.

Não tinha também concordância com a forma de luta.

E sabe: a escolha pelo jornalismo talvez tenha sido uma maneira de compensar inconscientemente o fato de não assumir a luta armada.

Ele ouvira de um velho político: os milicos vão esmagar vocês, é a luta do estilingue contra o canhão.

O general Adyr Fiuza de Castro disse um dia - nós usamos o martelo pilão para matar a formiga.

Durante um tempo chefiou a VI Região Militar, cuja jurisdição era Bahia e Sergipe.

Então, compreendendo isso, Navarrinho mergulhou no jornalismo.

Uma trincheira política, com suas singularidades, suas regras, sua ética.

A busca incessante da verdade - a utopia permanente do jornalismo.

Atuou sempre com isso na mente.

Trocou a militância direta, da rua e dos aparelhos, pela militância jornalística.

Sem ser partidária, não deixa de ser militância.

#MemóriasJornalismoEmiliano

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

20 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: consciência de sempre

ter combatido a ditadura pela militância

jornalística, um homem realizado profissionalmente.

 

Navarrinho é um sujeito modesto.

Exagera, às vezes.

Num ponto, abandona a modéstia: quando fala de sua militância jornalística, no período da ditadura de modo especial.

- Eu consegui combater a ditadura sem cometer deslizes jornalísticos, sem em nenhum momento ter atentado contra a verdade, distorcido fatos, incorrido em deslizes éticos.

- Combati a ditadura, enfrentando Antonio Carlos aqui na Bahia, e esse enfrentamento foi definidor em minha existência.

E explica: quando terminou a experiência no Estadão, em 1997, foi trabalhar fora do Estado.

E aí lembra só ter voltado à Bahia por um convite meu - chamei-o para fazer a campanha de Nelson Pelegrino à prefeitura de Salvador, que eu coordenei, em 2004.

Sinceramente, não tinha noção desse papel: ter contribuído para a volta dele à Bahia.

Mais tarde, quando Wagner derrota a oligarquia em 2006, o cenário se desanuviou.

E ele pôde voltar de modo mais consistente ao Estado.

ACM salgava a terra.

Deixava-a inóspita para quem não ajoelhasse e rezasse.

E Navarrinho nunca o fez - não era dado à servidão.

- Enquanto houve ditadura, eu combati a ditadura - ele reafirma.

Lembra:

- Afora tantas outras matérias, essa matéria feita por nós sobre Theodomiro, é um óbvio combate à ditadura.

Um balanço sereno dessa longa caminhada:

- Fiz o que quis, na profissão que escolhi, cheguei ao topo da profissão, ao menos na minha aldeia, e sou um homem realizado.

E por realizado, como ele já insistiu, entenda-se profissionalmente, não com acúmulo de fortuna.

E isso não é pouco: chegar à maturidade, ultrapassados os 70 anos, e sentir-se realizado é um privilégio.

Nunca parou.

- Jornalista quando para de escrever, vai escrever - filosofa.

Na lida jornalística, você tem parâmetros relativamente rígidos.

Trabalha com fatos, cercado por eles, pisa em ovos, toma cuidado para não errar, para não distorcer, ouve as diversas fontes.

Não escreve livremente.

Senti isso muito cedo.

E fui buscar alternativas: trabalhar na imprensa alternativa.

Ou já em 1980, colocar "Lamarca" na rua, ao lado de Oldack Miranda.

Navarrinho sempre sentiu também essa limitação...

#MemóriasJornalismoEmiliano

-----------------------------------------------------

Emiliano José

21 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: o rígido círculo das

regras do jornalismo até o momento da

libertação não sou que me navego

quem me navega é o mar cavalo selvagem

 

Volto, e me valho do próprio Navarrinho: jornalista quando para de escrever, vai escrever.

Vida inteira, jornalista está na linha de produção.

É, quem não conhece a profissão, pode idealizá-la.

Vê-la através das lentes do cinema, da ficção.

Nós, trabalhadores, sabemo-nos numa linha de produção.

Lidando com uma delicada mercadoria - não deixa de ser mercadoria o diabo da notícia.

Tem valor de uso e valor de troca, a acompanhar lições do velho Marx, aquele endiabrado feiticeiro, a nos revelar segredos antes indevassáveis.

Na redação, lida diária, você não escreve o que quer.

Está contido por regras, dinâmicas, rotinas das quais não é possível escapar.

Há um complexo sistema de poder nas redações.

Os meios de comunicação, todos eles, sofrem a determinação em última instância do modo de produção, no nosso caso do capitalismo.

E as redações se articulam vinculadas às regras do capitalismo, e a mercadoria notícia acaba ligada a tais regras.

O jornalista se mexe no meio desse arcabouço, faz milagres, revela coisas às vezes desagradáveis para o sistema.

Faz coisas que Deus e o Diabo duvidam.

Mas, contido sempre por algumas regras inflexíveis.

Nós temos visto o desenvolvimento de um arsenal de críticas ao governo Bolsonaro por parte dos meios de comunicação, mas a política econômica segue incólume, destruindo um século de direitos da classe trabalhadora, só para dar um exemplo.

Talvez haja jornalistas nesses meios querendo abrir a boca, e não podem.

É o capitalismo, estúpido - não custa parafrasear o assessor de Clinton, James Carville.

Não se escreve livremente no dia a dia da profissão. Talvez um cronista ou outro. Os repórteres, editores, editorialistas, todos eles são submetidos diariamente às regras  de cada veículo, sempre determinadas por mecanismos externos, já falados.

Repórter, Navarrinho sempre foi, e disso tem orgulho.

Sabe nunca ter sido livre, ao menos não inteiramente livre.

Sabe ter realizado prodígios.

E tem ciência dos limites.

Jornalista, um dia fica mais velho, deixa a redação, e então vai escrever o que gosta.

Voar.

Publique ou não.

Uma quase vingança.

Aí pode cantar não sou quem me navega quem me navega é o mar segue nos braços de Paulinho da Viola é ele quem me carrega como nem fosse levar a escrita correndo solta cavalo selvagem...

Assim, com ele.

Voltou-se para a ficção.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: Sempre Paviolando

Como dizia Clodomir Morais, jornalista mexe com mercadoria perecível 

----------------------------------------------- 

Emiliano José

22 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: dores e delícias de

ser repórter, a ditadura do fato, o dia da

libertação, quando para de escrever

só voltando a escrever, imaginação.

 

Eita mundo vasto mundo e eu não chamo Raimundo.

Nem Drummond.

Nem quisesse, e não podia explicar esse vasto mundo do jornalismo.

Navarrinho fala das dores e delícias de ser repórter.

Delícias, as descobertas diárias, a busca de pistas inexploradas, a perguntação, fontes assustadas, ou não, a angústia e a pressa de escrever quando na redação, onde está o lead, pergunta chave, e não tem como pensar muito, tem de escrever, e aí ver o texto publicado, inteiro ou não, a depender dos interesses e às vezes do humor do editor.

Dura, intensa, rica rotina.

Dores, muitas.

E uma prisão: o fato.

Recentemente, durante a posse na Academia de Letras da Bahia, março deste ano da graça ou desgraça de 2021, falei disso.

De como o fato aprisiona o texto.

De como eu próprio senti isso ao longo de minha vida profissional e das dificuldades para me livrar dessa maldição.

Porque se importante considerar o fato, essencial também deixar voar minimamente as asas da imaginação, de modo a não empobrecer o texto, de maneira a não endurecer a realidade, torná-la áspera ao pobre do leitor.

Mas, o fato, eis ele sempre presente, qual maldição, o fato é: libertar-se dele é muito difícil.

Na reportagem, ele é o senhor, inconteste.

O repórter o considera rei.

E gosta de considerá-lo assim.

Navarrinho acentua: quem não foi repórter, tem dificuldades de apreender o essencial do jornalismo.

E é verdade - quanto aprendizado.

Não sei, mas como repórter sempre estive incomodado pelo autoritarismo do fato, ou pela forma como o jornalismo o trata.

Talvez, outra vez Drummond, porque quando nasci um anjo torto desses que vivem na sombra disse: vai, vai ser gauche na vida.

E ser gauche é complicado - torna o sujeito sempre um incomodado, rebelde, chato muitas vezes.

Não estou sozinho.

Insisto no mantra de Navarrinho: jornalista quando para de escrever, vai escrever.

Descobre a existência de outro mundo, vasto mundo, mais além do fato.

Descobre a delícia de voar.

Dar asas a si mesmo, abrir portas à imaginação.

Por isso, talvez tantos romancistas, poetas, escritores de tanta espécie foram jornalistas.

Esqueceram os fatos, ou deram a eles outra roupagem: colorida, divertida ou dramática.

Passaram a olhar o mundo lá de cima, das nuvens.

Assim Navarrinho, quando deixou levar-se nas águas da ficção...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Raquel Nery: Mas também tem o caminho inverso, querido Emiliano. A prosa contemporânea tem seu tanto de ancoragem factual, o romancista que se assume personagem de sua ficção... E os recursos para os dois movimentos não são exatamente os mesmos? Narrar ou relatar, o que os distingue só pode estar em algum fora da linguagem, uma instância inacessível ao leitor. Deixe estar: jornalistas e romancistas, os melhores, aqueles que borram esses limites.

Emiliano José: Só borrando-os...

Emiliano José: Sem escravidão...

Emiliano José: Ancoragem factual, sim...

Joaquim Lisboa Neto: Gabo, Galeano...  

------------------------------------------------------ 

(Foto: Lúcia Correia Lima - Navarrinho e Waldir Pires em 2012)

Emiliano José

23 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: trabalho até hoje,

casamento em São Paulo, filhas correndo

mundo, de Portugal aos EUA, de Xangai

a Saigon, netas e netos, alegria da vida.

 

Nunca deixou de escrever.

De valer-se de todo o aprendizado como repórter, como editor, diabo a quatro.

Até hoje, trabalha profissionalmente na Secretaria da Fazenda, produzindo material qualificado para o secretário, levantando às quatro da manhã.

Aposentadoria não permitiria segurar as pontas da família.

Lembra: casou-se com Popoia em 1973, dezembro, numa igrejinha de madeira, guardada na memória até hoje, linda, linda, só não mais do que a noiva levada ao altar.

Igreja de São Pedro e São Paulo.

Curioso.

Casamo-nos no mesmo ano.

Com uma diferença: eu estava preso, e o casamento se deu por procuração.

No caso de Navarrinho, o casamento vai se aproximando dos cinquenta anos de duração.

Brinquedo, não.

Muito amor.

Dois dias depois, desembarcam em Salvador.

Nem esquenta a cama.

Quarenta e oito horas passadas, e viaja para Porto Seguro, ele e Agliberto Lima.

Primeira grande matéria de página sobre os índios Pataxó - tem noção da importância daquela reportagem.

Para o "Jornal da Bahia".

Popoya, a esperá-lo.

Sozinha, sem conhecer ninguém na cidade - era de São Paulo.

Marileni Machado - o nome de Popoia.

Ganhou Navarro ao casar - no nome e pela vida afora.

Estradas de terra, viagem de barco, não havia jeito de chegar facilmente às aldeias Pataxó.

Duas semanas de trabalho.

Navarrinho é pai de Mariana - todo mundo Machado Navarro.

Casada com Ricardo Vasques, já inundou de alegria a vida de Popoia e Navarrinho com a neta Luísa, de 11 anos atualmente, e Pedrinho, um capeta de sete anos.

É pai de Juana, casada com Peter, baiano de nome inglês, e do amor deles nasceu Sofia

Felicidade sem fim por ter nos três anos de idade completados recentemente aprendido a rodar bambolê, e Navarrinho não se contém de tanta alegria ao contemplar tanta graça.

Joana mora há mais de 11 anos em Lisboa, já é cidadã portuguesa.

Curioso.

Uma de minhas irmãs, Vera Lúcia, também mora em Lisboa desde o final dos anos 1980.

Mariana, a mais velha, correu mundo: primeiro Chicago, nos EUA.

Depois, Xangai, ali: na China. 

Girou, girou, foi parar em Saigon.

Para Navarrinho, como voltar à juventude, aos programas de rádio dirigidos por ele, quando a maioria das locucões giravam em torno da guerra do Vietnã, onde empostava a voz ao dizer SAIGON, não nega, sempre ao lado dos vietnamitas...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

----------------------------------------------------------- 

Emiliano José

24 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: neta a quem puxar,

maravilhoso mundo da ficcção se insinuando,

gostando, chegando perto, eu sou eu mesmo...

 

O avô tem a quem puxar.

Nessa mania de ficção, acompanha os passos de Luísa, a neta.

Navarrinho finalizava "Boquira".

Pediu à neta: escreva alguma coisa sobre o livro.

Ela tomou da caneta e mandou ver:

"Eu tenho um avô inteligente, e que para mim é o melhor.

Apesar dele estar velhinho, eu sei que ele escreve lindamente!!

Eu participei do lançamento do seu primeiro livro.

Fiquei tão feliz que cheguei até a dar autógrafos com ele.

Um dia quero ser escritora, igual ao vovozinho!

Agora que vocês aprenderam um pouco sobre o meu avô, conheceram ele melhor?"

O texto compõe a quarta capa de "Boquira".

Datado: Saigon (Ho Chi MInh) 12/10/2017.

Luísa tinha sete anos.

Capista.

Insisto: Navarrinho tem a quem puxar, vai longe.

Tem futuro: basta seguir os passos da neta.

Agora em São Paulo, mãe e pai de volta ao Brasil depois de tanto correr mundo, já com 11 anos.

Navarrinho começou a divagar, sem estar condenado a responder o que, quem, quando, onde, por que, como. - escravidão do lead.

Devagar, foi se achegando, como quem nada quer, e de repente, invadia o mundo da ficção, ou a ficção o invadia.

Escrever sem compromisso.

Deixar personagens tomarem conta da cena, guiá-lo.

Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...

Aí então pôde dizer, como Riobaldo Tatarana:

"Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre - o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!"

É o velho Guimarães Rosa e seu protagonista de "Grande Sertão: Veredas",  insuperáveis.

Navarrinho sentiu-se assim: qualquer ideia ligeira, e ele passava a persegui-la, sem medo, sem travas.

Rastreando a ideia ligeira pelo fundo de todos os matos...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Navarro: Beleza Zapatilla, Luísa é um dos meus orgulhos. Os outros dois respondem por Pedro e Sofia, a mais novinha. Avô coruja. Sem contar é claro Mari e Ju, além de Pops. São razões de existir.

Graça Azevedo: Tenho o autógrafo dela! Orgulho!

Carlos Navarro: Você lembra? Ela toda compenetrada à mesa, assinava com tinta vermelha e fazia ao lado um coraçãozinho.

Joaquim Lisboa Neto: Lhe parodiando, delícia de leitura

---------------------------------------------------- 

Emiliano José

25 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: jornalismo e literatura,

o primeiro livro a gente nunca esquece,

Goroba, deixa o sonho me levar,

andar pela velha Salvador, beber, comer...

 

Navarrinho fala muito da relação jornalismo literatura.

Dos tantos escritores, escritoras nascidos nas redações.

No Brasil e no mundo.

Não compensa arriscar citar nomes.

Lista infinita.

Os leitores darão asas à imaginação.

Ele começou quando saiu das redações.

Eu comecei no decorrer da minha vida profissional, talvez incomodado com o volume de restrições do dia a dia, dos códigos estruturais a me cercar, limitar, prender.

Não com a literatura, mas com personagens históricos.

Comecei com Lamarca, junto com Oldack Miranda, e depois segui viagem solitária, em busca de nossa história, especialmente a época de terror da ditadura.

Disse não com a literatura, mas sei da existência de uma zona de sombra - era também literatura, construção de personagens, não obstante sempre uma construção fortemente ancorada em fatos.

Discuti isso em texto recente, e no meu discurso de posse na Academia de Letras da Bahia em março.

Ouvia Navarrinho contar histórias, muito interessantes, e o aconselhava, insistia até: escreva, meu velho, bote no papel.

Ele seguia sem fazê-lo.

Aconteceria um dia.

Tinha noção: ninguém avança na ficção sem estar ancorado nos fatos, na realidade, sem vincular-se a coisas da vida, aquelas ao seu redor.

Ouvia conselhos daqui e dali para escrever, avançar no terreno da ficção.

E um dia ousou;

Primeiro livro, "Goroba", saborosa reunião de contos, de 2015.

E primeiro livro ninguém esquece.

Deixou-se voar pela velha Bahia, sobretudo Salvador.

Muito do território da vida de jornalista, Centro Histórico de Salvador: Rua da Ajuda, Ladeira da Montanha. Rua Chile, Avenida Sete, Terreiro de Jesus, Pau da Bandeira, Largo do Mocambinho, Largo Dois de Julho.

Andou, transitou por todos esses recantos, pegou taco na Sinuca do Abel, comeu e bebeu no Varandá, na Cantina da Lua de Clarindo Silva, querido, acolhedor  Clarindo, no Porto do Moreira, simpático e irascível Moreira, andou pelo 63 e pela Maria da Vovó, não conta tudo porque tem juízo, e nem eu falo de toda Salvador revelada por ele.

Começou a soltar-se, sentir-se livre, longe das amarras do jornalismo.

Chega de tanta pesquisa, tanta checagem - agora, território dos sonhos, o pensamento parece uma coisa toa mas como é que a gente voa quando começa a pensar...

Não, não ficou apenas em Salvador.

Seria pouco...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: Encerrando com Lupicínio. Pensamento voa

Carlos Navarro: Atesto: foi um dos que mais insistiram em que eu escrevesse, mas sempre me faltou coragem, até que um dia decidi me expor, agora a meia dúzia de três leitores (como dizia João Ubaldo) vai ter de aguentar porque não paro mais.

Carlos Navarro: Lembro de como começou Lamarca, o livro. Eu tinha feito uma grande entrevista com Olderico, um irmão de Zequinha, que trabalhava na construção do metrô de São Paulo e veio a Salvador para audiência na Justiça Militar. Foi para o Jornal da República, ou Isto É (não lembro agora, mas Raul Bastos estava nos dois), e aí, me parece, você teve a ideia. Corrija aí se estiver errado.

Emiliano José: Com exatidão, lembro não. Sei que resolvi fazer longa entrevista com ele, talvez nessa vinda dele. Devia ser primeiro semestre de 1979, talvez provocado pela sua matéria. Entrevista feita, procurei Mariluce: que faço com isso? - Escreva um livro - ela respondeu. Toquei o barco. Saiu Lamarca.

Carlos Navarro: Lembro, você procurou primeiro Mariluce, depois uma colega de SP, o nome talvez seja Mônica, não lembro, era amiga mas a memória é fogo. Ela chegou a ir ao local do assassinato de Lamarca e a partir daí não lembro mais. Parece que desistiu no meio do caminho.

Emiliano José: Isso. Era Mônica mesmo. Quem foi ao Buriti foi Mariluce. Mônica ajudou em São Paulo. Por variadas razões, as duas não suportaram continuar. Oldack chegou e finalizamos. Lançamos meados de 1980. Está na 18a. edição. Agora, 17/9, meio século da morte do Capitão.

Emiliano José: Nome dela: Mônica Teixeira.

Emiliano José: Mônica, egressa do Colégio Vocacional, avançada experiência de São Paulo à época. Eu a conheci primeiro como dirigente da UBES, em 1969. Vamos nos reencontrar quase dez anos depois, ela já brilhante jornalista.

Emiliano José: Do Vocacional, além dela, jornalistas, lembro de Moacyr Oliveira Filho, William Waack, Isabel Gouvêa (fotógrafa), desde 1978 na Bahia. Poeta, Cristina Santeiro.

Emiliano José: A diretora, Maria Nilde Mascelani, presa e torturada pela ditadura. 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

26 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: João da Roça Velha, Mariazinha do Boqueirão, Nambu e Zabelê, delícia de "Goroba".

 

Não.

Salvador é parte substancial de "Goroba".

Mas não é tudo.

Como iria deixar de lado o velho João?

Como ignorar Mariazinha?

Os dois, daquelas cepas de longa duração.

Os dois, teimosos, querendo vida, muita vida.

Só seguindo viagem ali por perto dos 100 anos, ou mais.

João da Roça Velha.

Mariazinha do Boqueirão.

Pai e filha.

Cada um daria um romance, ou mais.

Dois contos no "Goroba".

Só ganharam isso.

Até agora.

Avô de Navarrinho, velho João da Roça Velha, típico personagem de Euclides da Cunha, um forte, homem do sertão, destemido, corajoso, arretado, desses de dar um boi pra não entrar numa briga, uma boiada pra não sair.

Navarrinho percebeu, como Gabriel García Marquez: a riqueza da literatura está ali, à mão.

Um rico personagem, aquele bugre terceira geração de tupinambás, cor de bronze, baixinho e atarracado.

Nunca brigara, mas quando o provocaram, foi juntar espingardas e facões e esperou os pistoleiros dos Medrado despontarem na estrada e meteu bala e foi pistoleiro cair de cavalo e aquele tropel e aquela fuga dos valentes convertidos em covardes rapidamente.

Juntar espingardas e facões e filhas e filho.

É, Mariazinha do Boqueirão, juntinho juntinho do pai, rente que nem pão quente,  a primeira a disparar, verdes anos, e incapaz de ver pai enfrentar jagunços sozinho.

Que nada: mexeu com pai, mexeu comigo, meteu bala.

Mãe de Navarrinho, Mariazinha do Boqueirão.

Cavalgava e atirava como ninguém.

Tudo aconteceu no santo império de Iaçu, terra natal de Navarrinho, onde durante muito tempo Chico Preto reinou, e Nazinha manda até hoje, e a filha Cleidiana é a primeira na linha sucessória.

Terra de Nambu e Zabelê.

Nambu, o cego, pedindo esmolas nas ruas de Iaçu, Zabelê, fiel companheira, e o capeta do Xuxu, menino de seis, sete anos a atazanar os dois, gritando a plenos pulmões em dia de feira:

- Nambu e Zabelê!

Zabelê, virada no cão, respondia:

- Levanta a saia da mãe que tu vê.

Um dia, Zabelê, em meio à feira de Iaçu, tirou a faca sete tostões do califon e saiu atrás de Xuxu, só não lhe furando o bucho porque ele saltou pra dentro de casa.

Xuxu levou surra de relho fino do pai pra jamais esquecer.

Nem Navarrinho esqueceu.

Xuxu era ele.

Delícia de conto.

Achem logo o livro.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

-------------------------------------------------- 

Emiliano José

27 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: o fascínio das gavetas

dos velhos repórteres, restos amarelecidos,

matéria-prima para romance, de Boquira

a Santo Amaro, padre e mula sem cabeça.

 

Lançou "Goroba" e começou logo a pensar no passo seguinte.

E nasceu um romance: "Boquira".

Estava tudo lá na gaveta.

Repórter é assim, ao menos os mais antigos: tem uma gaveta cheia.

Tanta coisa inexplorada, restos.

Às vezes, ouro em pó.

São fascinantes, as velhas gavetas.

A gente vai lá, mexe, e descobre, redescobre.

Boquira era a história da Cobrac - Companhia Brasileira de Chumbo.

Na real, da presença no Brasil da multinacional francesa Penarroya.

Instalada primeiro em Boquira, a 659 quilômetros de Salvador.

Estive lá em 2014, nas andanças políticas.

Terra de Francisco Alexandria, bravo jornalista baiano, autor de "Dom Carlos Corleone", explosivo livro sobre ACM.

Depois, a Cobrac deslocou-se para Santo Amaro, infestando-a de cádmio, chumbo, e doenças incuráveis em decorrência da presença desses metais pesados.

No "Invasão", alternativo da década de 1970,  escrevi, junto com Linalva Maria de Souza e contando ainda com a colaboração de Navarrinho, a matéria de capa do jornal: "Chumbo neles", Cobrac no centro, ênfase em Santo Amaro.

É história de chumbo, sangue, muita dor, morte, doenças.

Em 1971, cinquenta anos passados, Lamarca é morto ali perto, em Ipupiara, encostado em Brotas de Macaúbas, e o aeroporto construído pela empresa foi base de apoio das tropas assassinas da ditadura.

Navarrinho mexeu nos restos, e que restos, e resolveu então produzir um belo romance.

Tem história de padre namorador e ambicioso e de mula sem cabeça.

E tem caso anterior carece contar, se acalmem.

Os restos tinham história de censura, de autocensura...

Navarrinho, no início dos anos 70, viajou pras terras daquele Oeste, passou dias mourejando, descobriu coisas que até Deus e o Diabo duvidam sobre a tal Cobrac.

Chegou, mandou ver, escreveu tudo, enviou pro "Estadão", e o jornal achou por bem não publicar.

Nem sempre era a ditadura a proibir.

Os restos da empreitada, sobreviveram na gaveta, abandonados.

Ele, então, agora, 2017, remexeu nas poeiras da gaveta, releu páginas de anotações amarelecidas, e teve a ideia do romance, e gostou da ideia, e meteu mãos à obra.

Foi dos sertões ao Recôncavo.

De Boquira a Santo Amaro.

Exumou o cadáver...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

--------------------------------------------------- 

(Navarrinho autografando Boquira em SP para Ricardo Kotsho )

Emiliano José

28 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: ideia de unir vários jornais e enfrentar ditadura com

publicação de reportagem sobre Penarroya,

no fim apenas "Estadão" e "Jornal da Tarde" roeram a corda, e Boquira, o romance.

 

Agoniado.

Navarrinho estava assim.

Perguntando-se: os jornais da Bahia não têm força para publicar essa matéria?

Não lhe saía da cabeça aquela Penarroya, e o silêncio ensurdecedor sobre ela.

Naquele início dos anos 1970, recém-saído da Universidade, mil ideias fervilhando na mente, escolheu concentrar-se naquela: viajar para Boquira, escarafunchar aquela história, e publicar.

Bem, mas havia uma pedra no meio do caminho.

Ou mais de uma, vá se saber quantas.

Sabia: faltava cacife aos jornais locais para topar aquela parada.

Tempos de Médici, o terrível ditador.

Tempos de ditadura.

De terror e medo.

Trabalhando simultaneamente no "Jornal da Bahia" e no "Estadão", uma ideia o acicata, fustiga a mente: por que não juntar forças?

Por que não unir "Estadão", "Jornal da Tarde", e os jornais locais para a reportagem sobre a Penarroya e suas ligas de chumbo, seus milhões de dólares enviados para o exterior, e isso já estou misturando Boquira e Santo Amaro?

Agrupar o "Jornal da Bahia", dirigido por João Carlos Teixeira Gomes e Rafael Pastores, "Diário de Notícias", sob o comando de Tasso Franco, e mais "Estadão" e "Jornal da Tarde", e meter as caras sertão adentro para dissecar a multinacional.

Foi, viu e venceu: convenceu os dois jornalões paulistas, e deu segurança às publicações locais.

A reportagem sairia nos quatro.

E viajou.

Passou bom tempo por aquelas terras áridas.

Na volta, entusiasmado, escreveu.

Os dois jornais do Sul, os mais fortes, destinados a oferecer retaguarda, só publicaram a primeira das quatro reportagens.

Roeram a corda.

Os outros, cumpriram o acordo.

Raul Bastos, colega nosso de "Estadão", dirá mais tarde a um choroso Navarrinho:

- Essas reportagens foram censuradas por quem era contra a censura.

Contra até certo ponto, como se vê. 

Navarrinho, um nó na garganta.

E uma certeza: um dia todo aquele material seria publicado.

Promessa dele, de repórter.

Embora agora revelado num romance: "Boquira".

E vocês, leitores, quiserem conhecer a empolgante história da Penarroya, sentir o calor do sertão, tornar-se íntimo das malandragens de Padre Nazário, dos prejuízos causados pela multinacional ao povo de Boquira e de Santo Amaro da Purificação, tratem de ir atrás do livro.

Podem ter certeza: vale a pena.

Dá um bom filme.

Contatem o autor: ele gosta de autografar.

Envia pelo correio...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Isabel Santos: Sim, vale a pena ler Boquira. Reportagem maravilhosa, que nos faz refletir.

Joaquim Lisboa Neto: Cê sabe mais do que eu, Francisco Alexandria pegou cárcere por denunciar a Penarroya

Joaquim Lisboa Neto: Li reportagem no Boca do Inferno

Emiliano José: Teve também no Invasão

Carlos Navarro: Zapatilla os dois primeiros repórteres a irem a Boquira, pautados por mim, foram Agliberto Lima (Estadão) e Dailton Mascarenhas (DN). Aos dois dediquei o livro.

Carlos Navarro: Eu fui depois atualizar os dados e reunir mais elementos para o livro.

Carlos Navarro: Obrigado por falar no Boquira, se alguém se interessar pode me ligar, embora esteja à venda na LDM e no Amazon. 

------------------------------------------------------------- 

(Lançamento de Goroba, em 2016)

Emiliano José

29 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: Visitação de Eça,

Goroba I, Goroba II, Jorge Amado e

García Marquez, ideia de novo romance.

 

Sei não.

Mas andaram dizendo de novas artes.

Navarrinho desde cedo foi arteiro, desde as ruas de Iaçu, nem Iaçu de verdade era ainda e ele já vivia de atazanar cego e guia Nambu e Zabelê levanta a saia que tu vê e tome-lhe relho fino do velho tão novo e tão novo morreu o pai Carlos Navarro.

De novas artes, ouvi dizer, é novo romance, sabe-se lá qual.

Ouvi, não sei onde, de leituras, ele fuçando Eça de Queiroz, não sei se O crime do padre Amaro, se O primo Basílio, se os Maias, tantos, porque Eça é quase infinito.

Tive a tentação, com ele não corro risco, de propor empréstimo: tenho comigo as obras completas do português.

Se quer mesmo içar velas, e navegar pela obra de Eça, empresto os três grossos volumes - corro o risco de propor:  pode ser já o tenha.

Aí o vinho pra comemorar a volta de "Invasão" pode ser, ou não, comemoração também, devolução de Eça, tiver terminado a leitura.

Navarrinho é leitor voraz, vou descobrindo.

Autor em construção, como todo sujeito a mergulhar na ficção.

Seu "Goroba e amores errantes", nascido em meio à pandemia, é até agora o ponto alto de sua caminhada literária, iniciada, alguns podem dizer, tardiamente: besteira - não tem tardiamente em literatura. 

Goroba é irmão.

Subcaçula dos tantos filhos de Mariazinha do Boqueirão.

É o conto de número 13 de "Goroba - contos", de 2015.

Percebe-se o quanto o endiabrado irmão o marcou.

Viria o Goroba da pandemia.

A gente fala irmão para apresentar.

Mas, Navarrinho, nesse último romance ou novela, o desliga da materialidade familiar e o joga no panteão de personagens dignos de um Jorge Amado e de um Gabriel García Marquez, revelando um gênio inventivo surpreendente, realismo mágico, a causar em mim alguma inveja: evidencia capacidade de se desligar da maldição dos fatos, maldição a acompanhar velhos jornalistas como eu.

Não, não vou resenhar.

As leitoras, admiradoras, sei, há muitas, hão de procurar por aí, comprar, e pedir autógrafo ao autor.

Leitores, também.

Vale a pena.

Sem exagero: dá filme, como 'Boquira".

Só gostaria, e muito, de descobrir o que a leitura de Eça está a sugerir à mente inquieta do autor.

Gostaria, mas parece segredo guardado a sete chaves...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Carlos Navarro: Provocações, provocações. Grato pela oferta, tenho os clássicos de Eça. Mas estou, efetivamente, engatinhando em novo projeto. Se vingar vamos ver o que dará. 

----------------------------------------------------- 

(Marileni e Navarrinho - Place De l’Ecole,  na entrada na Sorbonne)

Emiliano José

30 de agosto de 2021

Carlos Navarro Filho: fim de jornada,

e longa vida literária para Navarrinho,

alegria por ter compartilhado tanta história.

 

É preciso saber dar ponto final.

Fácil né não.

Vontade de seguir contando.

Comecei essa jornada no final de janeiro deste 2021.

Percorri longo trajeto, a me cobrar sete meses, mais um tiquinho.

Caminhada diária, sem falhar um dia.

E chego ao fim.

Não da história de Carlos Navarro Filho, viva, forte, presente.

Confesso a dificuldade.

Querendo continuar a convivência com Mariazinha do Boqueirão, com João da Roça Velha, com Goroba, queria ainda acompanhar outros tiroteios, andar pelas ruas e roças de Iaçu, nem Iaçu ainda, Paraguaçu, um buliçoso arruado, transitar pela via férrea, a de lá e a de Alagoinhas.

Curioso, muito: convivi com Navarrinho, foi meu chefe, e depois sempre nos encontramos, amizade serena e forte.

Mas, conhecê-lo mesmo, agora, puxando pelo fio de sua história de vida.

Ele, retraído, me mandou poucas linhas quando propus essa caminhada.

Percebi.

Repórter formado por ele, fui perguntando.

E despontou um forte personagem.

Sobretudo, um grande jornalista.

Brilhante e digno.

Formou muita gente, eu me incluo entre seus discípulos.

Sempre me impressionaram as histórias contadas por ele, e dizia: escreva.

Começou, e olhando melhor descobri o enorme talento dele para a ficção.

O último livro dele, "Goroba e os amores errantes" é coisa de gente grande.

Tenho convicção de ter conseguido revelar apenas uma pequena parcela da vida dele.

Sinalizei, quem sabe, para uma autobiografia, certamente muito rica.

Tornei-me ainda mais íntimo de Iaçu: terra de Navarrinho, de Chico Preto, de Nazinha, de Cleidiana, esta também uma de minhas personagens nessa contação de histórias de jornalistas, e das mãos de quem recebi título de nobreza do Santo Império de Iaçu, pergaminho folhado a ouro a ser entregue proximamente.

Vida que segue, como diria nosso companheiro de "Estadão", Ricardo Kotscho.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS


Carlos Navarro: Pois é Zapatilla, só mesmo repórter fuçador e com veia de historiador. Nunca falei tanto de mim com um amigo. No fim ficou um belo trabalho, não pelo entrevistado, mas pela capacidade do perguntador de reagir rápido em cima de um fato novo, ou de um viés que o entrevistado não imaginou. Abração e parabéns.

Emiliano José: O mérito é do personagem

Mônica Bichara: Esse personagem daria fácil um ano inteiro de capítulos diários, que história rica que foi surgindo nesse novelo desenrolado por Emiliano. Ainda bem que nosso noveleiro não se acomodou com as poucas linhas recebidas. Uma verdadeira biografia, parabéns aos dois. E agora é comigo, Navarrinho, quero fotos para ilustrar essa contação

Carlos Navarro: Obrigado moça. Vamos nos falar, você vai ter de fazer o mesmo garimpo de Emiliano, me dizer quais preu ir atrás. Valeu. Bj 

----------------------------------------------- 

 

(O genro Ricardo, Navarrinho, Marileni (esposa), Mariana (filha) e os netos Pedro e Luísa) 

(O genro Petter, a netinha Sofia  e a filha Juana, em print de conversa por vídeo com a vovó) 

Comentários