(Navarrinho na sucursal do Estadão em Salvador - Foto: Agliberto Lima)
Não
vou dizer que o cara é uma lenda do jornalismo baiano, porque ele está aí bem
ativo na literatura, no jornalismo, nas redes sociais, no mundo real....mas que
Navarrinho (Carlos Navarro Filho) é um excelente personagem que precisava ser
biografado, isso Emiliano José provou com esmero na série
#MemóriasJornalismoEmiliano, publicada na sua página do face, diariamente, de
25 de janeiro a 30 de agosto deste ano.
Isso mesmo, mais de sete meses de doses homeopáticas de uma trajetória das mais brilhantes e reconhecidas da imprensa local. Mas como a série é um exercício de literatura e reportagem do nosso mestre, escritor imortal da Academia de Letras da Bahia, e repórter que não abre mão do faro jornalístico, a história começa bem antes de Navarrinho sonhar em nascer. E bote antes nisso.
Exatamente
em 1880, quando o bisavô do nosso protagonista, Jacob Gerbase, foge da pequena comuna
italiana de Vibonati, da perseguição da inquisição aos judeus e cristãos novos.
Assim a família, já com o nome de Gil-Braz pra disfarçar, desembarca no Brasil.
Primeiro no Sul do país, depois na Bahia. Seis filhos e pouca bagagem. Cada
filho foi para um lado, importante era garantir a sobrevivência.
A verve literária de Emiliano transformou a saga dos Gil-Braz numa verdadeira aventura, até chegarmos a Navarrinho. Nascido em Iaçu, terra que adotou também a protagonista anterior da série, Cleidiana Ramos – nem precisa dizer que isso bastou pra o autor recordar Chico Preto.
Emiliano revelou, aqui, várias facetas do jornalista, antes de chegar às redações: jogou bola, foi seminarista, líder estudantil, radialista, vereador em Alagoinhas .....fez “de um tudo”, como se diz. Para surpresa de muitos colegas, inclusive eu, que só o conheciam das excelentes reportagens e livros.
Navarrinho e Emiliano compartilharam as mesmas máquinas de datilografia da sucursal do Estadão em Salvador. O primeiro chefiando, o segundo parecendo pinto no lixo para segurar com unhas e dentes a chance de ouro – ser repórter de sucursal de jornal “do Sul” era status. Nas coletivas se destacavam. Imaginem essa acolhida para um ex-preso político, ainda nos resquícios da ditadura militar? Emiliano sabia que era a sua oportunidade e não ia deixar escapar. Deu sorte. Foi cair justamente nas graças de Navarrinho, até hoje considerado uma unanimidade na categoria. Simpatia, humildade, talento, profissionalismo, generosidade, educação, gentileza, serenidade....todas essas adjetivações foram pescadas de colegas, definindo nosso protagonista nos comentários que também fazem parte desta verdadeira homenagem feita por Emiliano.
Um
obrigada especial aos irmãos fotógrafos, ou melhor artistas da imagem, Agliberto
Lima, nosso querido Bel, e Lúcia Correia Lima, que nos presentearam com fotos
maravilhosas. Boa leitura a todos
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(Em 1979 na sucursal do Estadão - Foto Agliberto Lima)
Emiliano José
25
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: meus primórdios,
os primeiros
chefes a gente nunca
esquece, volta a
Iaçu, filho de telegrafista.
Hora
de enfunar velas em outra direção.
Voltar
a proa no caminho de outro personagem.
Ontem,
quase melancolicamente, deixei Cleidiana às margens do Paraguaçu, cuidando de
Nazinha de Chico Preto, a querida mãe.
Dar
outro passo.
Eu
próprio tenho de voltar um pouco no tempo.
Aos
meus primórdios do jornalismo.
Já
revelei, mas o leitor não é obrigado a se recordar.
Chegara
à "Tribuna da Bahia" no final de outubro de 1974, recém-saído da
prisão.
Desembarquei
no "Jornal da Bahia" no dia 21 de fevereiro de 1975.
Voltei
para a "Tribuna" em 3 de setembro de 1975.
E
aportei no "Estadão" em maio de 1976, embora carteira assinada apenas
em 1º de julho.
Morava
na Ladeira da Cruz da Redenção, em Brotas.
Chego
ao "Estadão" porque o texto agora me leva a Navarrinho.
Os
colegas o conhecem assim.
Tive
vários mestres nessa fase inicial.
Poderia
citar tantos, e ao fazer a listagem, cometeria injustiças.
Destaco,
no entanto, três, os mais importantes, mestres e chefes, conforme fui encontrando-os pelo caminho:
José Barreto de Jesus, Césio Oliveira e Carlos Navarro Filho.
Barretinho,
na "Tribuna".
Césio,
no "Jornal da Bahia".
Navarrinho,
no "Estadão".
Já
falei dos dois primeiros nessa série, certamente de modo insuficiente, eles
merecem muito mais.
Agora,
vou dizer de Navarrinho.
Vamos
ver se ele me ajuda.
Se
encontra tempo pra seu velho repórter de caneta na mão.
Velas
enfunadas, ele não tem saída.
Nem
eu.
A
pauta, desta vez, eu decidi.
Ele,
a fonte.
Tentarei
encontrar espaço na agenda lotada dele.
Gozado,
ironia da história: dou voltas e a vida me leva de novo a Iaçu, às águas do
Paraguaçu.
Vocês
se recordam: Cleidiana nasceu em Cachoeira, mas veio menina menina para Iaçu.
Navarro,
não.
Nasceu
em Iaçu, sertanejo da gema, da caatinga.
Filho
do telegrafista do lugar.
Telegrafista
filho de italiano e de espanhola...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Sérgio Buarque de Gusmão: Navarrinho...Uma
unanimidade...
Cleidiana Ramos: Opa! Iaçu cada
vez mais encantada...hehe
Jose Jesus Barreto: Navarrinho foi
seminarista, como eu, Seminário Central, onde hj funciona a Católica, na Av
Cardeal da Silva. Amigo, mestre, irmão. Jogava bola, centroavante esperto, boa
técnica, goleador, enjoado. Foi meu chefe tb no Estadão. Rigoroso, decente,
ético. Sempre querido. Boas lembranças, Emiliano.
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto vai lembrando, Barretinho. De mestre pra mestre.
Carlos Pereira Neto Siuffo: Emiliano José
Diante de sua altura, tv fosse melhor ponta. Mas teve Romário,né? Lembro que
Oldack era bom goleiro.
Jose Jesus Barreto: Carlos Pereira
Neto Siuffo pra ser centroavante e baixinho precisa ter habilidade, corpo
plantado e jogar com inteligência. Navarrim sabia.
Jose Jesus Barreto: Como
jornalista, repórter era criterioso e exigente com a apuração, ia fundo nas
fontes, controvérsias, dúvidas. Nisso aprendi muito com ele.
Mônica Bichara: Que maravilha
o novo protagonista desta série deliciosa, Navarrinho é um querido por
todos.....curiosa pra saber onde essa prosa vai parar
Emiliano José: calma. Ainda é cedo pra parar.
Mônica Bichara: Emiliano José
nem pensar, o bonde está só começando a sair do trilho e sei que tem muitas
estações pelo caminho
Emiliano José: Longa estrada.
Graça Azevedo: Vamos de
Carlos Navarro! Esperando o novo personagem.
Manoel Barretto: Navarrinho
morou também em Alagoinhas.
Jogamos
muitos “babas” juntos
Emiliano José: Manoel
Barretto morou, sim. chego lá.
Adilson Borges: Grande
Navarinho!
Isabel Santos: Navarrinho
querido. Nelson Rodrigues que me perdoe, mas existem unanimidades, sim. Este
colega é uma delas. Ansiosa para a 'pena' de Emiliano José poetizar mais uma
rica história/trajetória do nosso Jornalismo.
Lucia Correia Lima: Compartilhar.
P levrar de fato de fotos de loja incendiando na rua Chile
Lucia Correia Lima: Navarro! Sua
serenidade e competência de fazer inveja
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(Navarrinho com Jorge Amado e Zélia - foto Agliberto Lima)
Emiliano José
26
de janeiro de 2021
Carlos Navarro
Filho: unanimidade, chefe
tranquilo,
rigoroso, decente, ético,
paciente, um
mestre, centroavante enjoado
Nos
comentários de ontem sobre a abertura em torno da caminhada de Navarro leio lá
o de Sérgio Buarque de Gusmão:
Navarrinho...
uma unanimidade.
Claro:
um ou outro, poucos, podem ter guardado alguma bronca de Navarrinho.
Sei
de um, e não falo nome.
E
a razão está do lado de Navarro.
Que
a maldade dessa gente é uma arte.
Ataulfo
Alves está coberto de razão.
Um
dos chefes mais tranquilos com que deparei.
Ensinava
sem estardalhaço.
Como
diria José Barreto de Jesus, um dos repórteres do "Estadão" depois de
ter sido chefe de reportagem da "Tribuna da Bahia", Navarrinho era
criterioso e exigente com a apuração, ia fundo nas fontes, controvérsias,
dúvidas.
Queria
tudo explicadinho.
Rigoroso,
decente, ético - palavras de Barretinho, subscritas por mim.
Fui
de uma notável equipe montada por ele, contemporâneo de Césio Oliveira,
Fernando Escariz, Pedro Formigli, Gonzalez Passos, Agliberto Lima, entre
outros, e como Barretinho aprendi muito sob sua direção.
Orientação:
podíamos tomar furo, dar notícia sem comprovação, nunca.
Saí
da "Tribuna da Bahia" pra lá, feliz como pinto no lixo.
Naquele
momento, trabalhar numa sucursal era um orgulho.
Não
fazia questão de parecer chefe.
Nos
tratava como iguais.
Este,
o melhor chefe.
Nunca
o vi perder a paciência.
Bom
humor permanente.
Uma
vez ou outra, ao olhar matéria minha, chamava pacientemente, baixinho:
-
Zapatilha.
Me
chamava assim, diminutivo de Zapata, apelido honroso dado por ele.
E
ai dizia calmamente talvez seja o caso de mudar isso ouvir mais uma vez a fonte
checar melhor o assunto e ia embora dando lições de muitas estradas já
percorridas.
Nunca
me senti tentado a contraditá-lo.
Tinha
razão sempre - eram palavras de mestre.
Não
sabia: era centroavante esperto, excelente domínio da bola, goleador, enjoado -
a definição está nos comentários de Barretinho.
Foram
colegas de seminário.
Disso
certamente falaremos à frente.
Gozado:
amanheci pensando em Vibonati, comuna italiana.
Não,
não pensem esteja delirando.
Navarrinho
tem a ver com ela.
Pensei,
sentei à máquina, eita, o passado a me perseguir, comecei a dedilhar, e a prosa
mudou de rumo, e prometo amanhã começar com a Itália.
Se
não ocorrerem novas tentações.
O
mundo está cheio delas.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Tive o
privilégio de trabalhar temporariamente com Navarro mais recentemente, mas em
assessoria de imprensa. Valeu, Mestre!
Isabel Santos: Sim, esse profissional
competente, ímpar tem algo que também cativa muito, a tranquilidade, a
serenidade no falar, no agir, no comandar. Por tudo isso, Navarrinho é uma
unanimidade entre quem conviveu/convive com ele na nossa profissão.
Mônica Bichara: Concordo, uma
unanimidade. Que nesse caso não é burra
Walmir França Kitekuê: É coisa...
Einar Lima: Conheci
Navarro no Estadão, onde substituí um colega em férias, se não me engano em
1979. Reencontrei na Comissão Estadual da Verdade, em 2015. Educado,
respeitoso, humano. Fácil de gostar.
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Emiliano José
27
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Vibonati, a pequena
comuna de praias
honestas, de muito
turista, onde
nasceu um bisavô esperto
Antes
de enveredar por algum atalho, vamos a Vibonati.
Havia
prometido ontem, vou cumprir.
Às
vezes, as tentações são maiores.
Hoje,
não obstante tenha amanhecido a pensar no Centro do Jornalismo do passado, ali
entre a Barroquinha, Rua Chile e Cidade Baixa, doido para revisitá-lo, resisti.
As
leitoras, Navarrinho acumula muitas, e os leitores, inúmeros, hão de
compreender, senão de imediato, porque tenho de cumprir essa tarefa - é do
jornalismo, exigências do jornalismo.
É
uma comuna pequena.
Muito
pequena.
Pelas
fotos atuais, adorável.
Praias
saudáveis, muito honestas.
Não
estranhem: tenho um amigo muito querido, Venício Lima, notável professor, um
erudito, cujo costume é quando experimenta um bom vinho chamá-lo de honesto:
-
Este é um vinho honesto - comenta, concluindo o saborear.
Numa
licença poética, copio meu amigo.
Sim,
honestas, as praias de Oliveto, Torre Villammare e Santa Maria Le Piane -
limpas, limpas, assim consideradas em 2018.
Receberam
Bandeira Azul da Foundation for Environmetal Education - Fundação para a
Educação Ambiental.
Essa
comuna de pouco mais de 3 mil habitantes nos dias de hoje, recebe coisa de 15
mil turistas no verão por essas praias tão lindas e tão honestas.
Fica
na região da Campania, na província de Salerno.
É
interessante observar: tinha 285 habitantes em 1861.
Dez
anos depois, já contava com quase 3300 pessoas - uma explosão.
Inicia
o século XX, com quase 4 mil habitantes.
E
passado um século e tanto, nada de crescer - 3 mil pessoas vivem em Vibonati,
já dissemos.
O
registro mais velho de nascimento, sempre a partir da Igreja, é o de Biase
Marino, de 1838.
Bem,
certamente há primórdios de Vibonati, aberto a pesquisadores.
Foi
aqui, nessa deliciosa comuna, o nascimento do judeu Jacob Gerbase, bisavô de
Navarrinho.
Eu,
convivendo anos com ele, jamais atinei com essa ancestralidade, tal a discrição
dele.
Sempre
falou muito pouco de si mesmo.
Judeu
esperto, safo, o tal bisavô.
Quando
sentiu a Inquisição bater nos calcanhares...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: um bisavô esperto fugindo da Inquisição, mudando nome
de seis filhos,
distribuindo-os
para não
morrerem de fome, um avô determinado conquistando moça rica...
Jacob
Gerbase, bisavô de Navarrinho, sentiu o clima esquentar na pequena Vibonati.
A
Inquisição, perdendo fôlego no resto do mundo, ainda mantinha algum ímpeto em
terras italianas, e chegava também à esquecida comuna.
Estavam
atrás de judeus, cristãos novos fossem.
Viriam
pra cima dele e família.
Esperar
o quê?
O
velho Jacob não contou conversa.
Arrancou
a página do livro de registros de nascimento da família na paróquia,
providência essencial para não deixar nada nas mãos dos Torquemada italianos.
Juntou
as tralhas, poucas, e ganhou o mar.
Na
direção do Brasil.
Ali
pela década de 1880.
Vinha
com pouca bagagem, quase sem dinheiro, e uma renca de filhos, seis.
Aqui
desembarcado, judeu esperto, completou as providências para não deixar pistas à
Inquisição.
O
sobrenome Gerbase foi convenientemente aportuguesado - todos passaram a ser
Gil-Braz.
Depois
de aportar no Sul do País, acabou na Bahia, onde se fixou.
Na
casa do sem jeito, tomou outra providência: saiu distribuindo os filhos.
Poucos
contatos, mas tinha-os.
Quem
quis, entregou.
Se
não tinha condições de criá-los, melhor distribuí-los.
Prático.
O
avô de Navarrinho, Carlos Gil-Braz, foi recebido pela família Cerqueira.
Era
o terceiro da fileira.
Passa
a se chamar Carlos Gil-Braz de Cerqueira - Navarrinho sabe apenas até aí,
sobrenome.
Nada
mais da origem da família.
Carlos
Gil-Braz, têmpera dura, italianinho duro - a existência o ensinara a ser assim.
Não
lhe sorrira, a vida.
Então,
o que fazer?
Deu
o golpe do baú.
Não,
não sou eu a dizer: é o próprio Navarrinho, que costuma chamar as coisas pelo
nome, não faz arrodeios.
Cercou
a moça.
Era
jeitoso quando queria, foi pra lá, veio pra cá, uma conversinha, outra, e
Júlia Navarro caiu de amores pelo
Carlos.
A
família da espanhola morava na rua do Sodré, perto do Largo Dois de Julho.
Família
rica para os padrões da época.
Baita
casarão, mais tarde transformado no Colégio Sofia Costa Pinto.
Proprietária
de fazenda na região de Dias D'Ávila...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Júlia foi namorar,
uma fazenda, uma
estação de águas,
um Barão, e um
filho de Obaluaê
O avô e Júlia.
Avistou Júlia e
com ela se casou.
Lembrei
de Gil e seu Domingo no Parque, linda.
Carlos
Gil-Braz se deu de boa.
Família
rica, senão milionária.
Aquele
casarão em área nobre da cidade - é, naquele tempo, área nobre.
E
uma fazenda para veranear - nada de praia, melhores os ares do campo.
Ficava,
a propriedade, ali pelos arredores de Dias D'Ávila, ainda muito distante de ser
o município de hoje.
A
família passava meses por lá - estação de águas, porque lá também tinha disso.
No
Rio Imbassaí corriam águas com qualidades terapêuticas, e a lama, dizia-se,
tinha virtudes medicinais, a curar doenças de pele.
Daquelas
águas, daquelas roças, o avô de Navarrinho desfrutou bastante.
Um
casamento de bons frutos, o realizado com Joaquina Júlia Navarro, nome completo
da moça.
Curioso,
Navarrinho foi atrás da origem da família Navarro.
Bom
sempre saber do passado.
Até
agora, sem muito sucesso.
Chegou
a conversar muito com Valdeloir Rego, cujas pesquisas sobre os Navarro chegaram
até a um pomposo Barão do Rio Vermelho.
Barão
não de tradição, mas de título comprado, a indicar riqueza, não necessariamente
nobreza.
Quem
sabe, persistindo nas pesquisas, Navarro consiga mais.
De
Valdeloir Rego, falecido em 2001, tornou-se amigo.
Etnólogo,
historiador, ogan do Ilê Axé Opô Afonjá, estudioso do candomblé.
Amigo
a ponto de conseguir saber, pelo jogo de búzios, qual o orixá de Navarrinho:
Obaluaê.
Pode
também ser chamado de Omolu ou Xapanã.
Está
protegido: é o orixá da cura - cuida da terra e dos homens, e respeita muito os
mais velhos.
Os
filhos de Obaluaê, fala-se, são capazes de completa abstração de seus próprios
interesses e necessidades em prol dos outros - isso está lá no livro de José de
Jesus Barreto: "Candomblé da Bahia - Resistência e identidade de um povo
de fé".
Tudo
a ver com nosso Navarrinho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Seguindo a
trilha...
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto boa trilha, com sua ajuda..
Walmir França Kitekuê: É coisa..
Diogo Assunção: Kabieleci...
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Emiliano José
30
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: o avô se virando nos trinta, agente postal telegráfico, aportando em
Aratuípe,
deparando com a
Dona das Águas,
deslumbrante sereia.
É.
Vovô
Carlos Gil-Braz se deu de boa.
Achou
houvesse encontrado vida fácil.
Mulher
de família de posses.
Tempo
de veraneio na fazenda de Dias D'Ávila.
Vida
boa.
Não
sabia como os ricos pensam.
Devia
se virar.
Não
viver na mamata.
Começaram
a deixar claro.
Cedo,
cedo acabou a colher de chá.
Fosse
constituir família, o fizesse por conta e risco.
Não
seria sustentada com a burra espanhola.
Farta,
mas não pra ele.
Vá
trabalhar, vagabundo.
Dizer,
família espanhola não disse, mas pensar, pensou.
Ele
entendeu o recado.
Encheu-se
de brios e ganhou estrada, buscar do que viver.
Trabalhar,
ganhar a vida com o suor do próprio rosto, seguir o preceito bíblico.
Virou
APT - agente postal telegráfico.
Era
o responsável pelos serviços de correios e telégrafos onde estivesse.
Andou,
andou, e chegou a Aratuípe, o avô de Navarrinho.
Era
início de século XX.
O
local, em seus primórdios, lá pelo século XVI, era Sant´Anna da Aldeia.
Ao
chegar no município, descobre tivera recentemente o nome simplificado para
Aratuípe.
Em
1891, é também elevado à categoria de Vila.
Vira
sede de município.
Justificada
a existência de um APT.
Aratuípe
pode significar vento sereno ou uma ave pacífica, em tupi-guarani.
Há
quem diga referir-se a um cacique ou a uma índia de extraordinária beleza.
Terra
cheia de mitos, o maior deles, o da Dona das Águas.
Em
tempos imemoriais, João Cirilio, um pescador, ao mergulhar deu de cara com uma
sereia, deslumbrante sereia.
Esculpiu
a imagem dela, e anualmente ela é levada em procissão até o Toque - foz do Rio
Jaguaripe, onde teria acontecido o encontro.
Virou
tradição.
Conta-se:
naquele tempo, João Cirilio mergulhava, depositava o presente nas profundezas
das águas.
Quando
saía, enxuto.
Nem
uma gota d´água no corpo.
Sim,
ficava surdo e mudo por três dias para não contar o que vira lá em baixo.
De
histórias de pescador, não se duvida.
Ainda
mais quando se referir à Dona das Águas...
Quiserem
conhecer mais, podem procurar "Pescadores do Sagrado: A Festa da Sereia
como prática cultural no município de
Aratuípe", dissertação de Uberdan Cardoso dos Santos, Uneb.
Nessa
terra mágica, em 1914, nasceu o pai de Navarrinho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
31
de janeiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Aratuípe vai e volta,
maior polo de
cerâmica da América
Latina, terra de
filarmônica não só de
pescadores, avô
paterno de muitos filhos,
avô materno
cafuzo, avó materna
filha de
portugueses branca como a neve.
Os
municípios não têm história linear.
Aratuípe
foi extinto em 1943.
Parece
voltou a pertencer a Nazaré das Farinhas, espécie quase de capital da região.
Mas,
três anos depois, 1946, vê restaurado sua condição de município.
Na
economia, destaca-se pela produção de cerâmica.
É
lá a famosa Feira de Maragogipinho - obras e obras de arte em cerâmica,
desenvolvidas pelos artistas locais, expostas anualmente.
Não
se sabe se exagero, em terra de pescador pode acontecer algum excesso, nunca
mentira: de Maragogipinho se diz ser o maior polo de cerâmica da América
Latina.
A
Sociedade Filarmônica Lyra Ceciliana de Aratuípe nasceu também em 1914, mesmo
ano de nascimento do pai de Navarrinho.
Além
de pescadores, músicos.
Era
tempo de filarmônicas.
Os
municípios se orgulhavam delas.
Se
quisermos voltar um pouquinho, falar mais do velho Carlos Gil-Braz de
Cerqueira, o avô, não custa lembrar: teve dez filhos.
Do
primeiro casamento, seis.
Quatro
meninas e dois meninos.
Quando
Júlia, a espanhola, morreu, o avô não perdeu tempo: casou-se novamente.
Vieram
mais quatro filhos, todos homens.
Brincadeira,
não.
Pensar
um pouco agora nas origens do lado materno.
O
avô materno, nas palavras de Navarrinho, era um cafuzo, bem mulato, cabelo
liso.
Nome
bem brasileiro: João Alves dos Santos.
A
avó materna: Maria Alves Oliveira.
Filha
de portugueses, branca, branca, uma alvura só, como a neve, e deslumbrantes
olhos azuis.
Como
se conheceram, nem Navarrinho sabe.
Mas
se conheceram e se casaram.
Quando
Carlos Gil-Braz, o avô paterno, morreu, o pai de Navarrinho, Carlos Navarro
Gil-Braz, assumiu o serviço dos correios e telégrafos.
Funcionário
de múltipla serventia, o chamado APT: escrevia cartas, redigia telegramas,
tantos outros documentos, cartas de amor, quem sabe, enviava tudo pra onde o
freguês quisesse.
Era
um mão na roda...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
1º
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: estudo na capital, avô
morre, o pai
assume os correios, mudança
para Iaçu, terra
de domínio de coronel.
Como
quase todo mundo à época, os pais em condições, filhos chegados à idade escolar
eram mandados pra Salvador.
Claro:
havia a alternativa de Nazaré das Farinhas, um centro bem adiantado, mas o
velho Carlos Gil-Braz de Cerqueira preferiu mandar o filho Carlos Navarro
Gil-Braz para a capital.
Repetem-se
os nomes para não deixar o leitor confuso.
Até
porque Navarrinho chama-se Carlos Navarro Filho.
Parênteses.
O
pai, em 1945, quando Navarrinho nasceu, foi registrá-lo, e tentava, tentava
fazer o escrivão escrever Gerbase, o sobrenome original italiano.
Queria
deixar as origens no nome do filho.
O
escrivão, nada.
Não
conseguia de jeito nenhum.
Perdeu
a paciência:
-
Tá bem, esquece o Gerbase, põe só Navarro mesmo.
Exigiu,
no entanto:
-
Mas, por favor não esqueça o Filho porque eu não sou dois.
Bem,
mas aqui estamos colocando o carro adiante dos bois.
Voltemos.
Navarrinho
situa a morte do avô entre meados dos anos 1920 e 1930.
Não
tem certeza onde ele estava quando morreu, se em Aratuípe se em Baixa Grande.
Agente
postal telegráfico volta e meia mudava de município.
O
certo: em Aratuípe ou em Baixa Grande, o pai de Navarrinho, Carlos Navarro
Gil-Braz assumiu o posto de APT.
Ainda
não completara 18 anos.
Nessas
andanças, foi parar em Iaçu.
Não
pensem na cidade de hoje.
Nem
nesse nome.
A
área tem origem lá pelo final do século XVIIl, pertence mais tarde à Fazenda
Sítio Novo, e foi durante largo tempo domínio da família Medrado, e palco de
duras lutas entre posseiros e os Medrado.
O
povoado começou a crescer quando chegou a ferrovia.
O
local se transformou num centro de comércio, de circulação de mercadorias.
Nos
anos 1920, os problemas todos eram resolvidos pelo coronel Manoel Justiniano de
Moura Medrado, proprietário da Fazenda Sítio Novo, ao redor da qual se
constituiu o povoado.
Resolvia-os
como um coronel, e a história conhece os métodos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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( 1 - Navarrinho, Mariazinha, João da Roça Velha, Mariana e Juana
Emiliano José
2
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: pai chegando à Vila
do Paraguaçu
para instalar correios,
avô materno e
seus 13 filhos,
Mariazinha do
Boqueirão
e disposição
para o trabalho.
Daquela
Iaçu, já chamada Vila Paraguaçu, nome recebido em 1934, Navarrinho tem doces
lembranças.
Delas,
ainda vamos falar.
Narrador
tem de tomar cuidado, no entanto, para não colocar o carro na frente dos bois.
Atrapalha
o leitor.
Vamos
esperar Navarrinho nascer, começar a vida, e então falaremos de infância de
estrepolias.
De
Nambu e Zabelê, por exemplo.
A
curiosidade mata, dizem.
Mata,
não.
Dá
pra segurar.
Um
dia, conto.
Eu
dizia ontem a Mônica Bichara das artes do destino.
Ou
do acaso, se ele existe.
Havia
poucos dias, e eu estava em Iaçu, às voltas com Chico Preto, com Nazinha, e
especialmente com Cleidiana Ramos.
Vou
atrás de Navarro, e me vejo novamente nas terras dos Medrado, antes mesmo de
Iaçu se tornar município, infância de Navarrinho.
E
vou conhecendo um pouco mais da história do lugar.
O
pai de Navarrinho, Carlos Navarro Gil-Braz, deve ter chegado à Vila de
Paraguaçu no iniciozinho da década de 1940 com a missão de implantar o serviço
dos correios.
Vai
se casar ali.
Com
Mariazinha do Boqueirão.
Nela,
precisamos parar um pouquinho.
Um
mulherão.
De
larga, bonita, corajosa história.
Filha
de João Alves dos Santos e de Maria Alves Oliveira, já falamos dos dois.
João
viveu anos na Roça Velha, pequeno pedaço de terra, de onde tirava o sustento e
fazia filhos.
Era
um foreiro dos Medrado - ali até onde a vista alcançava e bem mais tudo era dos
Medrado.
Já
chegou na Roça Velha com dois filhos, e ao longo da vida, Maria Alves teve 13
filhos.
Vingaram
11.
Na
roça era assim: necessário fazer filhos.
Pra
ajudar na lida.
Só
que o casal na primeira fase viu nascer três filhas.
Torcendo
pra surgirem braços de homem, necessários na roça, e vinham mulheres.
Mariazinha,
no entanto, não desapontou: cedo cedo fazia de tudo, ajudava em tudo, e não
deixava o pai sentir falta de braços masculinos, que virão depois.
E
o pai ajudou, com sua pedagogia: fosse azar, o de nascer primeiro, então devia
de aprender cedo o trabalho pesado.
Capinar,
roçar, cuidar das galinhas, tirar leite de cabra, montar, atirar, o diabo a
quatro, ele ia ensinando.
Mariazinha,
ali pelos quatro anos de idade, já estava ajudando na colheita, e foi
aprendendo de tudo um pouco, e rapidamente, e gostava do trabalho, e se
aplicava no aprendizado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Verdade,
Emiliano, Iaçu e seus personagens maravilhosos
Adilson Borges: Muito legal
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Emiliano José
3
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha e sua vida
cheia de arte,
como guará mordendo pé de cana, bebendo mel direto da casa da abelha,
pai bravo, nem
tanto,
Deus não conta
tudo, só o começo.
Mariazinha
foi ganhando jeito na lida.
Pouco
a pouco, foi desvendando os segredos da vida na roça.
Enquanto
aprendia as manhas do campo, ia levando vida de criança, cheia de arte.
Criança
arteira, dizia-se em séculos de antanho, e nem tão de antanho.
Nos
idos de 1923, é Navarrinho o contador dessa história, está lá no livro de
contos dele, "Goroba", ela com seus cinco anos, mais os irmãos
Joaninha, Nega e Francisco, deitavam no chão e danavam-se a morder os pés de
cana.
O
pai, quando percebia, mandava cortar aqueles pés mordidos.
-
Guarás do diabo - vociferava.
Ludibriar
o velho, inocente travessura: podiam então desfrutar daquela doçura.
Doce,
muito doce, era o mel de uruçu e manaçaia.
O
pai, sério, trabalhador, trazia as casas de abelha do mato.
Botava
perto da casa grande.
Usar,
só quando necessitasse.
Nada.
Ela
e os irmãos não resistiam: iam que nem cobra se arrastando pelo chão.
Mariazinha
com um graveto furava a casa das abelhas.
Deitados,
ali embaixo, numa fartura e delícia de um lugar de onde só jorrava mel.
Corriam
depois a limpar o rosto lambuzado, mel por toda a cara.
Às
vezes, pai descobria e o pau comia.
Apanhavam
uma vez ou outra.
Havia
momentos só de esporro.
Um
dia o surpreenderam rindo, depois de uma bronca daquelas.
Fingiram
não ver.
Criança,
costumam dizer não sei se com razão, tem artes com o cão.
Mariazinha
era levada da breca.
Surpreendente,
sempre.
Será
assim por toda a vida.
A
vida no campo, era assim: muito suor, muito sacrifício, o pai reclamando braços
na lida diária, trabalho duro.
Mas,
não, a existência nunca era monótona.
Mariazinha
se sentia parte de tudo, lado a lado com o pai ia vendo o mundo se fazer, os
animais crescendo, a lavoura florindo, uma vaquinha outra dando o leite do café
da manhã, do queijo fabricado em casa.
Gostou
sempre de conversar, desde menina.
Ganhou
sabedoria.
Costumava
dizer, talvez recolhendo lições de sua longa existência:
-
Deus não deixa a gente saber antes a história inteira das coisas. Só o começo.
E
queria sempre estar no começo da história.
Assim,
construía a sequência e o desenlace.
Mulher
esperta, sabida que só o diabo.
Esperta
e valente.
Sobre
a valentia, ainda vamos prosear.
Tenham
calma...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: o incrível poder
dos Medrado a
ocupar toda uma
região, entre a
cruz e a Mangabeira,
terra e
exploração, cobrança de taxa dos foreiros.
Não
custa relembrar o poder da família Medrado.
Não
na Vila Paraguaçu tão somente.
Em
toda a região.
Originários
de Mucugê, os Medrado tornaram-se donos de terra a perder de vista, áreas convertidas
em municípios mais tarde, e Iaçu é um apenas um dos exemplos.
Tem
é tempo isso, esse poder.
A
casa-sede da fazenda Sítio Novo foi construída há coisa de 200 anos, a crer, e
é pra crer, na dissertação de Cleidiana Ramos, "Os caminhos da Água Grande",
transformada em livro.
Na
dissertação, ela cravava 180 anos - e o estudo é datado de 1997.
A
família despertava temor, medo.
Em
Santa Terezinha, município da região, tiveram um poder imenso.
Nele,
de um lado tinha uma fazenda dos Medrado.
De
outro lado, outra fazenda dos Medrado, chamada Mangabeira.
Essa
presença, bem a modo dos coronéis do passado, gerou até ditos espirituosos por
parte do povo.
Se
o sujeito vivia algum dilema, alguma dificuldade, o povo dizia:
-
Você está entre a cruz e a Mangabeira.
O
dito indicava: não havia como fugir dos Medrado, tudo era terra deles, mantida
a ferro e a fogo, ao menos até quando começassem as lutas dos posseiros da
região, bem mais tarde, quando Iaçu já se tornara município, e aí é outra
história.
O
povo aumenta, mas não inventa.
Quando
uma pessoa desejava mal a outra, rogava uma praga:
-
A justiça de Santa Terezinha que lhe persiga.
A
justiça dos Medrado.
O
coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado era o grande potentado da região.
Senhor
de baraço e cutelo.
Mandava
e desmandava.
Arrendava
suas terras aos ocupantes, posseiros.
Acreditava
aquelas terras todas como suas, então era muito justo cobrar uma taxa deles.
Não
tivessem dinheiro, dessem parte da colheita, e ele com ela fazia dinheiro.
Simples,
não?
Agia
assim, e se considerava no direito de assim proceder.
Direito
divino, quem sabe.
Quem
quiser conhecer pouco mais disso, de modo amplo, só dar uma lida em
"Coronelismo, enxada e voto", de Victor Nunes Leal, publicado pela
primeira vez em 1948, onde fica claro o poder político oriundo da propriedade
da terra.
O
pai de Mariazinha, o velho João Alves dos Santos, era um desses foreiros.
Pensava:
ter de trabalhar de sol a sol, derramar o suor na terra, botar os filhos no jeito, e ter de pagar taxa a quem se considerava dono da terra.
Injusto,
mas que fazer?
Tinha
filharada pra criar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Boqueirão, três irmãos cafuzos, três irmãs branquinhas, mascate cheio de
conversa, gravidez em noites de lua cheia, casamentos no meio
da roça, as três
primeiras filhas...
João,
o velho João Alves dos Santos, vinha de outras bandas.
Suor
em outras terras, já derramara.
Morou
no Boqueirão.
Navarrinho
rememora a vida do avô e da avó Maria Alves Oliveira.
Coisas
curiosas.
No
Boqueirão, viviam três irmãos, casados com três irmãs.
Tinham
propriedades próximas umas das outras, poucas léguas umas das outras.
Comunidade.
Os
três irmãos, João entre eles, caboclos descendentes de tupinambás, negros -
cafuzos, denominam-se.
As
três irmãs, filhas de um mascate português.
O
mascate, em noites de luar, engravidou uma cabocla do Boqueirão.
Foi
surgir a lua de novo, dormiu com outra, e não dormiu apenas.
E
sumiu no mundo.
Tinha
nada a ver com isso, não.
Sabe,
né?
Mascate,
tão comum à época com aquela mala de couro, grande, grande, parecença com um
armazém, de onde saia de tudo, cada lindo tecido colorido vindo das índias a
enlouquecer as moças, cada espelho para as penteadeiras, perfume vindo da
Oropa, de preferência perfume francês, quer experimentar?, agua de colônia...
Mascate
chegava, passava uma temporada, vendia, vendia, namorava uma duas, embaraçava
as moças, e ganhava o mundo.
Aconteceu
assim no Boqueirão.
Uma
das moças embaraçadas teve gêmeas.
Aí,
as três irmãs, quase azuis de tão brancas.
E
as três, sabe-se lá de que maneira, engraçaram-se com os três irmãos cafuzos,
negros.
Belas
histórias de amor.
Ali
viveu João por um tempo, muitas noites de lua cheia.
Teve
as três primeiras filhas, Mariazinha uma delas.
O
Boqueirão, o mascate português, os irmãos cafuzos faz o carro passar à frente
dos bois por uns instantes.
Prometo
voltar depois.
Navarrinho,
repórter do "Jornal da Bahia", início de carreira, 1970, 25 anos, é
enviado numa cobertura sobre o Projeto Rondon.
Não
devia ser ele, mas aconteceu.
Cabia
a Fernando Vita, já experiente repórter.
Não quis.
Se
pelava de medo de avião.
Perguntou
a Navarrinho:
-
Não quer ir, não?
Oxente,
como não?
Arrumou
umas pecinhas de roupa, socou na maleta, e seguiu viagem.
Aventura,
com ele mesmo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Projeto Rondon, mergulhando no Brasil profundo, descobrindo índias
brancas de olhos verdes, Boqueirão,
Serra do
Vitorino, comunidade
autossuficiente,
vivendo do que plantavam.
E
lá seguiu Navarrinho pra Amazônia Legal.
Região
de Goiás e Mato Grosso.
Ainda
nem se falava em Mato Grosso do Sul.
Selvas
e mais selvas.
Estradas
e mais estradas, chamá-las assim à falta de outros nomes.
Conhecendo
o Brasil profundo.
Brasília
havia surgido havia uma década, e estava ainda em curso o processo de
integração do Brasil.
Andou
mais de trem.
De
jeep.
Pouco
de avião.
O
Projeto Rondon deu o primeiro passo em meados de 1967, quando uma equipe
formada por 30 universitários e dois professores de universidades do antigo
Estado da Guanabara conheceram de perto a realidade amazônica no então
território federal de Rondônia, fim de mundo à época, e não sei se é possível
dizer não continue assim até os dias atuais.
A
ditadura o abençoou em 28 de junho de 1968, subordinando-o ao Ministério do
Interior, chamando-o "Grupo de Trabalho Projeto Rondon".
Em
1970, quando Navarrinho caiu na estrada, transformado em órgão autônomo da
administração direta, quando se institui a "Fundação Projeto Rondon".
Em
janeiro de 1989, extinto.
É
reativado em 2005, por sugestão da UNE.
Navarrinho
meteu-se por entre as matas, deparou com tribos, com índios por tudo quanto é
lado - como era novo aquele Brasil pra ele.
Pensava:
Vita não sabe o que perdeu.
Deu
de cara com índias brancas de olhos verdes.
Tomou
um susto.
Buscou
as origens desses olhos e daquela branquitude.
Europeus
desembarcavam naqueles ermos, cheios de curiosidade, olhavam pras índias, não
só olhavam.
Mascates,
sempre eles.
Malas
lotadas de encantadoras quinquilharias nunca vistas naqueles ermos.
Portugueses
e árabes, sobretudo.
Engravidavam
as índias.
E
caíam no mundo.
Na
volta, matéria no "Jornal da Bahia" com chamada e foto na primeira
página - índia branca de olhos verdes.
Como
prometido, volto.
Lá
no Boqueirão, principiar do século XX, o avô João Alves dos Santos casou-se com
branquinha, filha de mascate português, a avó Maria Alves Oliveira.
Inevitável
a lembrança.
Ia
compreendendo a formação do povo brasileiro.
Os
três irmãos cafuzos casados com as três irmãs branquinhas filhas do mascate
português organizaram uma comunidade na Serra do Boqueirão.
Situava-se
em região hoje pertencente ao município de Manoel Vitorino.
Muitos
a conheciam como Serra do Vitorino.
Não
era atingida pela seca.
Conseguiam
a autossuficiência.
O
de comer, tiravam da terra.
O
leite, das poucas vacas ou das cabras.
Da
cana, o açúcar.
Iluminação,
da mamona, de onde surgia o óleo para as lamparinas...
Do
algodão, as roupas.
Andavam
com vestimenta fabricada em casa, chambre, espécie de mortalha, daquelas mais
tarde utilizadas no carnaval, e faziam as toalhas, as roupas de cama, tudo.
Não
se apertavam com nada.
Sobreviviam.
Pra
tudo davam um jeito, sem recorrer a ninguém.
João
e Maria viram nascer ali as primeiras três filhas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Três vezes por ano burro
jumento cavalo
no rumo de Jequié,
venda na feira
grão e farinha, compra
de chita, açúcar
refinado, carne do sertão e miraguaia modo a receber bem as visitas.
Ali
no Boqueirão viveram João e Maria por bom tempo.
Com
as filhas, as primeiras.
Mariazinha,
mãe de Navarrinho, na lida.
O
velho havia de se virar nos trinta.
Não
era vida fácil.
Três
vezes por ano, João seguia no rumo de Jequié.
Com
os olhos de hoje, estradas atuais, é um pulo, coisa de 40 quilômetros.
Naquele
tempo, outra coisa, outras distâncias.
Distante
fosse, ele não relutava.
Experiência
não lhe faltava.
Na
juventude, tirou o pão de cada dia em tropa de burros.
Navarrinho
conta tudo isso no seu "Goroba".
João
juntava o burro, o jumento e o cavalo, tropa toda, lotava até mais não poder os alforges e os cestos
também chamados caçuás acomodados nos lombos das montarias e tocava em frente.
Parecia
um Quixote comandando a tropa para a batalha.
Vender
grãos e farinha na feira de Jequié.
Poucos
sabem, mas menino menino, ali pelos 10, 11 anos de idade, morei em Jequié,
início de 1957, creio, andanças de pai caminhoneiro.
E
eu lá ia saber que um dia cidade se acabou em água.
Conta-se
isso.
Chicago
baiana - dizia-se.
Chicago,
quase toda destruída em fogo em 1871.
Jequié,
numa terrível enchente em 1914.
Metáforas
bíblicas, tornadas reais.
João,
com o burro, o jumento e o cavalo, com um dos irmãos e agregados, fazia aquela
viagem de quatro a cinco semanas, mais de mês por aquelas veredas e cidades.
Abancava
na feira de Jequié com todo o trazido, vendia, não levava nada na volta.
Não
levava o que trouxera.
O
dinheiro da venda servia à compra de lindas e finas roupas de chita, só usadas
em ocasiões especiais, quando dispensavam-se as rústicas vestimentas caseiras.
E
alguns outros luxos: um açúcar refinado.
Uma
carne de sertão.
Miraguaia,
peixes para momentos nobres, para quando recebessem visitas, povo do sertão
gosta de receber bem.
Sobrava
algum trocado ainda para os momentos de aperto, quando lavoura não respondesse
como o desejado.
Mariazinha
recebia a comitiva em festa na volta.
Vida
era farta ali.
Às
vezes, Mariazinha gostava.
Muitas
outras, não.
Rotina
diária dura...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: O que lá é
modo a Aqui é modi
Jorginho Ramos: Pena que não
esteja no GRUPO DE RISCO...
Margareth Cunha Lemos: E hj é o
aniversário de Carlos Navarro! Parabéns, Navarro!🥂🍾
Jose Jesus Barreto: vero?
Carlos Navarro: Margareth
Cunha Lemos Obrigado moça, beijo.
Mônica Bichara: Parabéns, Navarrinho.
Pelo aniversário e por essa homenagem em forma de memórias . Jequié também me
traz lembranças, foi a terra das minhas férias quando criança, casa de meu avô
Manoel Dias e minha tia Amada (nome lindo como ela, costureira de mão cheia)
Carlos Navarro: Mônica Bichara
Obrigado, era a feira onde meu avô levava a produção da roça para vender e
comprar sal, carne do sertão, coisas que não tinha no Boqueirão. Beijo.
Mônica Bichara: Carlos Navarro
meu vô Mané Dias tinha uma fábrica de vinagre, Sabiá. Com mais de 70 anos ele
ainda subia numa escadona de madeira pra baldear o vinagre. Eu amava o cheiro,
apesar de muito forte era novidade
Adilson Borges: Parabéns ao
grande Navarinho!
Carlos Navarro: Adilson Borges
Grande Adilson, obrigado velho.
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Emiliano José
8
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: trabalho das crianças,
Mariazinha na
lida, debulhar o milho,
bater feijão,
guardar abóbora, capinar na roça,
ouvindo o trem,
apelo.
A
vida no Boqueirão era boa.
Havia,
havia boa comida, não faltava nada.
Tudo
fruto de muito trabalho.
Na
roça, nas pequenas propriedades, as crianças começam cedo.
Vivi
isso, já contei em outros momentos.
Dei
duro muito cedo.
Os
pais reclamam os braços infantis.
Não
romantizo isso.
Constato.
Mariazinha,
a mãe de Navarrinho, viveu essa realidade.
Vida
farta - e disso gostava, desfrutava.
Mas
dura - e isso, odiava.
Ia
tocando, que jeito?
Três
irmãs, as primeiras barrigas.
Joaninha,
a mais velha.
Em
seguida, Nega.
Terceira,
ela.
Às
três cabia prender e soltar a criação depois de tirar o leite das cabras.
Bater
feijão no terreiro.
Debulhar
o milho na mão grande.
Encher
os paióis de abóbora, batata doce, grãos, mamona seca.
Moer
cana.
Virar-se
na casa de farinha, descascar mandioca.
Uma
verdadeira linha de produção.
Volta
e meia, iam pra lida na roça junto com o pai.
Tão
pequenas, precisavam das mulas.
Duas.
Tiradas
do trabalho pesado para levar as crianças.
Já
haviam se acostumado, as mulas: bastava
sol raiar e iam direto pro toco na frente da casa esperar as meninas.
Já
havia nascido Francisco.
Com
dez anos, ele se mandou mundo afora e a família nunca mais teve notícias.
Uma
das mulas, levava Mariazinha e Nega.
Joaninha
e Francisco, seguiam na outra.
Vida
mansa e dura.
Logo,
logo, outro rumo.
O
velho João sentiu: uma conversa aqui, outra acolá, nas viagens pra Jequié, numa
parada, noutra, o desenvolvimento da região da Fazenda Sítio Novo, depois Vila
de Paraguaçu.
João
ouviu de longe o apito do trem.
Por
onde chegasse, a locomotiva atraía, seduzia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: a poesia do trem, tem
gente que chega
pra ficar tem gente que
vai pra nunca
mais, bandeirante do
desenvolvimento
capitalista, João ouvindo
o apito do trem
e se tocando pra Sítio Novo.
Quem
não sente saudades de uma viagem de trem?
Até
quem não viajou, sente.
Imagine
quem viu o tempo e a paisagem passarem pelo vidro da janela, sentiu a escuridão
quando no túnel, os abismos passando ao largo.
Todos
os dias é um vai-e-vem a vida se repete na estação tem gente que chega pra
ficar tem gente que vai pra nunca mais são só dois lados da mesma viagem o trem
que chega é o mesmo trem da partida a hora do encontro é também despedida a
plataforma dessa estação é a vida desse meu lugar é a vida desse meu lugar é a
vida.
Em
"Encontros e despedidas", Fernando Brandt e Milton Nascimento lembram
a vida, a poesia, a cultura, os sonhos trazidos pelo trem.
Chegou
à Fazenda Sítio Novo, a futura Vila Paraguaçu, depois Iaçu, ali por volta do
final do século XIX.
Acontecimento.
O
trem tem poesia.
Mas...
Tem
a força do desenvolvimento capitalista.
Foi
uma espécie de bandeirante desse modo de produção em todo o mundo.
Para
o bem.
Para
o mal.
É
sempre uma revolução.
Foi
assim com Sítio Novo.
Cresceu,
desenvolveu-se.
Comércio
cresceu.
No
trem, podia seguir boiada e feijão.
E
gente.
O
velho João ouviu o apito do trem.
Tinha
que ir algumas vezes no ano a Jequié para vender sua produção.
Uma
trabalheira danada, pra mais de mês, toda aquela caravana por veredas que até
os burros pelejavam pra passar, ir e voltar.
Pensou
com seus botões: a vida fica mais fácil com trem por perto.
Chamou
a família e deu voz de comando: nós vamos partir, e seja o que Deus quiser.
Saiu
de caso pensado, rumo certo: pras terras de Sítio Novo.
Olhou
pras terras do que saberá ser a Roça Velha.
Se
terra de ninguém, iria ali se abancar.
Mariazinha,
vivendo a mudança, as novidades...
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Emiliano José
10
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: desbravando o sertão, o bravo João, "Os sertões", ABC do
Preguiçoso, preguiça e rompante do sertanejo, chegada a Sítio Novo, olhando o
caramanchão...
Quando
penso na exaustiva e demorada viagem do velho João, o avô de Navarrinho, em
busca de novos amanhãs, à frente das carroças, das mulas com seus caçuás
lotados, as crianças ora em cima das alimárias, ora a pé, Mariazinha sempre
esperta, os cachorros vigilantes, o balido das cabras, a mulher Maria
prestimosa com todos, a fogueira acesa às noites quando obrigados a parar, as
refeições apressadas, ele sempre atento às veredas, arriscosas, tropeiro mal
cochila, há gente maldosa pelos caminhos, quando penso nisso, e penso em meados
dos anos 1920, quando essa caravana ganhou estrada em busca do Eldorado
Paraguaçu, do Sítio Novo, logo me vem à mente a figura do sertanejo.
Foi
ele, o homem dos sertões, o desbravador desse País.
"Os
Sertões" é obra insuperável.
Primeiro,
por revelar o massacre dos milhares de sertanejos, a destruição de uma cidade
inteira, arraial se dizia, 5.200 casas cuidadosamente contadas e destruídas.
É
só multiplicar pelo número de moradores de cada uma pra se ver o tamanho da
mortandade na cruzada final do exército republicano a 5 de outubro de 1897.
Segundo,
e só falo de duas razões para não me estender, pela capacidade de Euclides da
Cunha de apreender a personalidade do sertanejo.
Quem
não sabe dele, vá lá, e cuidado para não pisar em falso.
Ele
pode lhe enganar.
Está
ali num canto, quietinho, descansando, refletindo preguiça, assim como o
descreve o ABC do Preguiçoso, de Xangai, e de repente é outro, transfigurado,
energias adormecidas se revelando de modo surpreendente.
Toda
a aparência do cansaço ilude - dirá Euclides da Cunha.
É
um bravo, o sertanejo.
João,
o velho João, um bravo.
A
romper estradas, buscar novos rumos, garantir a vida da família.
Coragem
e ousadia.
Andou,
andou, e de repente deparou com terra de ninguém, já nas cercanias de Sítio
Novo.
Roça
Velha, o nome da roça caatingueira.
Ninguém
queria, ele quis.
Não
havia casa no lugar.
Havia
um caramanchão mal ajambrado, quem sabe pouso de viajantes apressados, indigno
de moradia de gente, incapaz de abrigar sua família e todas suas tralhas.
Fincar
estacas, amarrar as mulas, descarregar, ajeitar as crianças, e meter mãos à
obra para construir a casa.
Casa
decente, onde coubessem a filharada, ele, a mulher.
E
depois, tentar tirar da terra o sustento de todo mundo.
Mariazinha,
ali, na espreita, sentindo os novos ares...
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Emiliano José
11
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: a escolha da Roça Velha,
Maria com
saudades do Boqueirão, galo
cantando na
madrugada, entre duas
rochas a
construção da casa de
sopapo, alegria
de ver levantada a nova residência.
João
acreditou ser ali o seu lugar.
Vá
la se saber por quê.
O
sertanejo tem dessas coisas: andando em
busca de terra, olha prum lugar, sente o cheiro, o vento sacudindo a vegetação,
de cócoras olha o horizonte, pega um bocado de terra nas mãos e deixa escapar
entre os dedos, e decide ser ali o lugar de onde vai tirar o sustento dos
filhos, onde vai morar, viver.
É
uma intuição, fundada no conhecimento, na experiência tirada da longa estrada
da vida.
Foi
assim com João, avô de Navarrinho.
Passou
os olhos demoradamente, examinou o entorno, e decidiu-se.
É
provável que a mulher Maria tenha olhado atravessado pra ele.
Quem
sabe, Mariazinha, próxima dos oito anos, também.
Tinham
vindo de vida farta, boa, e de repente se viam jogadas naquele ermo
caatingueiro.
Provavelmente,
ao descarregar as tralhas, levar para o caramanchão, Maria sentiu saudades do
Boqueirão, mas que fazer?
Era
a sina sertaneja, caminhar pelos sertões, ia aprendendo.
Ela
e Mariazinha.
João
ajeitou a trempe, Maria levou o que podia ao fogo, comeram, e se ajeitaram no
caramanchão naquela primeira noite.
Às
quatro da manhã, o galo cantou.
Trouxeram
o galo, galinhas.
João,
antes dos demais acordarem, preparou o café na trempe, olhou satisfeito para os
primeiros raios de sol surgindo, e começou a pensar nos desafios.
O
primeiro deles, construir uma casa.
Sua
família não ia morar numa miséria daquela, aquele caramanchão todo
desconjuntado.
Sertanejo
tem olhar de arquiteto, do seu jeito.
João
olhou: no terreno, havia duas rochas, uma perto da outra.
Nada
melhor: levantar a residência entre elas, aproveitando o benefício da natureza.
Casa
grande para família numerosa.
De
sopapo, pau a pique, como acontecia por todo o sertão.
Dormiam
no caramanchão, e durante todo o dia, mãos à obra.
João
buscou o madeira fina na caatinga, foi fincando-a no solo, entrelaçando-a na
horizontal e na vertical, tudo amarrado com cipós conseguidos por ali mesmo, e
depois preenchendo os vãos com o barro amassado, a ajuda de Maria e das
meninas, as paredes ganhando forma, consistência.
Trabalho
duro pra mais de quinze dias.
Festa,
alegria quando viram aquele casarão de chão batido, sala, cozinha, tudo
espaçoso, vários quartos, a meninada se fartando, nem saudade do Boqueirão
sentiam mais.
Agora
todos saudavam: Roça Velha é o nosso lugar, nosso chão...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: com o suor do rosto o pão de cada dia, a casa de farinha sobe num dia,
lembranças de um tropeiro, ouvir o galo campina que quando canta muda de cor,
moiando os pés no riacho.
Ter
um lugar.
Um
chão.
Uma
terra onde lavrar.
O
galo cantando na madrugada.
Galinha
botando ovos todo dia.
Cabras,
e o leite.
Mulas,
pra qualquer serviço.
João
levantou-se feliz na primeira madrugada depois do primeiro sono sob o novo
teto.
Agora,
os outros desafios.
Era
econômico, seguro.
Mas,
restavam poucos vinténs na algibeira.
Carecia
botar o mundo pra rodar.
Fazer
da Roça Velha um lugar de produção.
De
onde, eita vida dura, tirasse o pão de cada dia da família.
Nessa
manhã, primeiro café feito ali no fogão da nova casa, ainda sentindo a lenha
crepitar, pôs-se a pensar.
Fora
assim, né?
Desde
os primeiros tempos.
Deus
quisera assim.
Disse,
está lá no livro sagrado: o homem, com sofrimento, se nutrirá do solo todos os
dias de sua vida, com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao
solo.
Assim
seja, assim será - murmurou, enquanto dava um outro gole na caneca de alumínio,
sua preferida.
Bateu
palmas, chamou todo mundo, hora de trabalhar.
A
Roça Velha estava a uma légua, légua e meia do povoado de Sítio Novo.
Distância
quase nada.
Tabaréu
tira caminhando sem sentir, como se fosse ali na esquina comprar velas pra
alumiar a escuridão ou óleo pra lamparina.
Na
parte mais alta do terreno, no topo da Roça Velha, a casa recém construída.
João
logo botou mão na massa, era um danado esse avô de Navarrinho.
Convocou
adjutório da família e como num milagre num dia subiu a casa de farinha, também
ali no topo.
Ao
mesmo tempo, ia lavrando a terra.
Fora
tropeiro, disso conhecia, e muito, e disso gostava.
Correu
mundo tocando tropa de burros lotados de produtos da roça para vender nas
muitas feiras por que passou, viu o orvaio beijando as flô, viu de perto o galo
campina que quando canta muda de cor, moiou os pés no riacho, oiou coisa a
grané - desculpem, Luiz Gonzaga ultrapassa a lógica fria do tempo.
Mas
conhecia também de outras manhas, sabedoria não lhe faltava.
A
vida tem muitos saberes, e ai de quem não entender isso.
A
terra não lhe era estranha...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lis Braga: Que texto
lindo, Emil! Deu saudade de Adamastor, meu galo.
Reinaldo Queiroga: Show de texto
!!👏⭐⚽
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Emiliano José
13
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: mexer com a terra,
conhecer o chão,
viver no deserto,
em nome do Pai,
obediência dos filhos,
aprendendo de
tudo, velha e útil pedagogia...
A
terra era praia dele, também.
Não
conhecia só da vida de tropeiro de burros, não.
Desde
cedo, alternara: na estrada e na terra.
Aprendeu
os segredos.
Que
não são poucos.
Único
jeito de aprender: mexendo com ela.
Sentindo
seu cheiro.
Vendo
como ela reage.
Como
a plantação vai surgindo depois de jogada a semente, colocada a muda.
João
pensou: quando você visita a Bíblia, e ele visitava sempre, está lá o deserto,
e o homem vivendo nele com suas famílias.
Não
há nada impossível para os homens crentes no Senhor - era seu pensamento fixo.
Não
era sina do homem o trabalho, tirar do solo o seu sustento?
Como
não ia transformar aquela caatinga?
Como
não ia tirar ali o pão dos filhos?
Ia,
sim senhor.
Mão
de obra, tinha.
Está
certo: eram meninas, e ainda pequenas.
Mas,
braços para a lida.
A
mulher ainda não havia parido meninos, então as meninas deviam fazer o papel
dos filhos homens.
Com
ele, não tinha conversinha mole: todos tinham de ajudar, trabalhar duro.
Era
um pai.
Tudo
girava em torno dele: em nome do Pai.
Naquele
sentido antigo: palavra dele era lei, ordem dele não se discutia.
Não,
não precisava violência, bater em filhos, nada disso.
Bastava
a palavra segura, o olhar severo.
Obediência
nascia disso.
Mariazinha,
a mãe de Navarrinho, não aprendeu a arrear animais, montar, tirar leite de
cabra, atirar, plantar, capinar, roçar, limpar currais, colher não porque
seguisse o pai no dia a dia com admiração.
Não.
Fazia
tudo por obediência, maioria das vezes bem contrariada mas sem dar um pio,
poucas vezes alegremente como quando montava ou quando o pai pegava das armas e
a iniciava no manejo delas.
Aprendeu
desde cedo o quanto a vida era dura.
Nada
vem de mão beijada.
Enfrentá-la
requeria coragem, disciplina, capacidade de enfrentar dificuldades.
Vai
levar vida afora as lições desse tempo.
Será
mãe-pai mais tarde, e daquelas cujas ordens os filhos aprenderam a não
discutir.
Para
o bem ou para o mal, foi pedagogia aprendida desde a Serra do Boqueirão, seguida
na Roça Velha.
A
pedagogia do velho João, reconhecerá mais tarde, de boa serventia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: terra conhece a
mão de quem a
toca, proximidade
do rio
Paraguaçu, e evem jerimum,
feijão, andu,
feijão de corda, mangalô,
macaxeira, verde
se espalhando que
nem cobra pelo
chão, como Deus
mandou tirava do
solo o sustento da família.
Essa
história de terra ruim é conversa mole pra boi dormir.
Terra
conhece quem lavra.
Pode
ser ruim, o lavrador.
E
se ruim, ela responde mal.
Mas
há o conhecedor de suas manhas, de suas artes, seus trejeitos.
E
então ela responde bem.
Ao
primeiro toque, ela já sabe de quem se trata.
João,
o velho João, avô de Navarrinho, pensava assim.
Bastava
tratar bem o chão.
Inda
mais que a Rocha Velha ficava próxima ao Paraguaçu, rio abençoado, de águas
cristalinas, a tornar fértil todo o derredor.
Quando
ele olhava praquelas águas e via os peixes cheios de alegria ali dentro, é, ele
os via tão límpidas as águas, tinha sonhos de abundância, a água lhe dava essa
sensação, como se fosse fonte de alimento - e quem disse não fosse?
Não
compreendia muito não: por que aquela terra fora desprezada por tanto tempo?
Por
que tanta gente chegou por aquelas bandas, olhou, e desdenhou.
Fez
muxoxo.
Não,
não entendia.
Foi
ele botar os olhos, e ser tomado de bem querer.
E
nada houvesse, ouvia lá de cima a palavra de Deus, o homem devia tirar o
sustento do solo onde pisava, com o suor de seu rosto.
Depois
de construída a casa, lavrar.
Foi
meter a mão na terra, e ela responder.
Foi
como se a terra dissesse: este, sabe das coisas.
Fez
a roça de jerimum - adorava ver a abóbora, o nome vareia, ir crescendo
devagarinho, devagarinho, e num dia acordava, ia olhar, e lá estava ela
gigante, elas, muitas delas.
Servia
pra tudo - a festa mesmo era o doce de abóbora, quando as crianças se fartavam.
As
filhas, ali, ao lado, aprendendo a lidar, mexer na terra, Mariazinha junto.
Era
de lei - tinha de caprichar na roça de feijão.
Como
não?
Suporte
da mesa, todo dia.
Sozinho,
ou com uma carne de sertão.
Sabia:
sem o feijão, meninada não cresce: nele estava o cálcio, ferro, tanta coisa.
Dava
gosto ver o verde que te quero verde da plantação.
Não
só o comum.
Plantou
também o feijão de corda.
O
andu, mangalô, outros tipos de feijões, de fácil manejo e muitas utilidades.
Variava,
diversificava sua roça.
E
como não plantar aipim?
Mandioca,
macaxeira, pão-de-pobre, maniva - tantos nomes por esse sertão afora.
De
serventia variada na cozinha
E
da cozinha, dona Maria entendia, e muito...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
15
de fevereiro
Carlos Navarro
Filho: cuidando de roças
e de frutas,
maxixe e jabuticabeira,
quixabeira,
pinheira, na roça nada se perde, terra arrendada do imenso latifúndio
dos Medrado,
xingando de comunista.
E
ele, o velho João, foi plantando.
Ali
era assim mesmo: em se plantando, tudo dava.
E
veio o maxixe - há quem adore e quem deteste.
No
Nordeste, muito comum, maioria adora.
Bem
cuidado, se alastra.
Muita
coisa.
Cuidou
das árvores frutíferas.
Da
jabuticabeira - fazia a delícia da criançada, jabuticaba é delícia, mel.
Da
quixabeira - pela fruta e pelas virtudes medicinais da casca.
Dela,
surgem remédios caseiros para os rins e para diabetes e serve também para a
cicatrização de ferimentos.
Na
roça, tudo se aproveita.
Da
pinheira - pinha é uma fruta deliciosa e repleta de vitaminas, minerais:
cálcio, ferro, potássio, magnésio.
A
Rocha Velha pouco a pouco ganhou cara, um novo formato, vida.
Mariazinha,
aprendendo, assuntando.
Claro,
logo ao chegar, João, o avô de Navarrinho, tomou tento:
aquelas
terras não eram terra de ninguém.
Tinham
dono.
Desde
priscas eras, latifundiários delas se apossaram.
Àquele
tempo, e desde há muito, os considerados donos eram os Medrado.
Já
se disse: terra a perder de vista.
Roça
Velha, dentro do território considerado da família.
O
lavrador chegava, metia-se na lida, e apalavrava o arrendamento: um pagamento
mensal ao latifúndio, aos Medrado.
O
todo-poderoso, à época, era o coronel Manoel Justiniano de Moura Medrado.
Curiosa
a noção dos próprios Medrado: Edgard Medrado, delegado em Salvador durante
muito tempo, considerava o pai um "precursor do socialismo".
Isso.
Porque
o velho Mourinha, assim conhecido o coronel Manoel Justiniano, arrendava
terras.
Está
no livro de Cleidiana Ramos: "Os caminhos da Água Grande".
Um
socialista explorador, então, não?
Ao
mesmo tempo, o tal Edgar Medrado gritou durante comício em Iaçu fosse eu um
comunista, eu no palanque ao lado de Roberto Santos, candidato a governador
pelo PMDB, em 1982.
Acreditava
me xingar - eu até orgulhoso fiquei, negar por quê?
A
vida seguia na Roça Velha, terra dos Medrado, lavra do velho João, obrigado a
pagar renda...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: dia de feira, levantar ainda de noite, preparar caravana,
encher os caçuás
e alforjes,
e pegar o
estradão, um dia inteiro
vendendo, volta
antes do por do sol.
Era
a vida.
João,
o velho João, pensava: não fora assim desde que Adão comeu da maçã ofertada por
Eva, desde o pecado original?
Tirar
do solo o seu sustento?
Foi
pecar, comer do fruto proibido, aguente.
Maldição
de que não se foge.
E
não reclame.
E
não houvera sempre os ricos, os donos, senhores da terra?
Pagaria
a renda.
Agora,
não pisassem em seu calo.
Cuidava
daquela roça como se sua.
Cumpria
seus tratos.
Então,
o deixassem em paz.
Aquela
produção toda, desenvolvida por ele e pelos filhos, servia à alimentação da
família.
Não
precisava comprar nada fora.
Como
no Boqueirão.
Não
consumia tudo.
A
sobra, nem se deva chamar assim, coisa que só o diabo, farinha de mandioca
muita e todo o restante, a sobra era vendida na feira de Sítio Novo, no
povoado, fervendo cada vez mais, ajudada pelo trem.
Além
da farinha e de todo o resto, levava também carne de bode seca, desossada,
aberta, parecença de uma grande folha de papel, artes de sertanejo, desejo de
muita gente.
Muita
gente se ajuntava naquela feira.
Era
dia especial.
João,
o avô de Navarrinho, levantava antes do galo cantar, muito antes, noite ainda,
ali pelas três da manhã.
Acendia
a lenha do fogão, começava a preparar o café, chamava Maria, começava a
despertar a meninada.
Juntava
seus burros jumento e o cavalo, enchia os caçuás, os alforjes até não mais
poder, arreunia as meninas, e seguia marcha, correndo o estradão, cobrindo a
légua e meia pra chegar ao nervoso e alegre Sítio Novo, mais nervoso e alegre
em dia de feira.
Saía
antes do sol botar as caras pra valer.
Mariazinha
desde cedo preferiu ir montada, ela própria manejando as rédeas da montaria.
Aprendeu
muito cedo.
Não
era assim uma feira de Jequié, tão conhecida do velho João, aquela coisa
gigante, a perder de vista.
Mas,
não era uma feirinha.
Povo
comprava.
Dinheiro
pouco, mas comprava.
A
caravana voltava sem produto nenhum, caçuás e alforjes vazios, burro jumento
cavalo mais leves, alegres por se livrar do peso no lombo.
Já
impunha respeito, a feira.
Fazia
barulho em toda a região.
E
ao mesmo tempo, ele se lembrava: mais de mês levado pra ir e voltar de Jequié,
sacrifício danado quando no Boqueirão.
A
jornada agora era um bateu levou: saía de madrugadinha, antes do por do sol
estava em casa - maravilha.
Fosse,
então: pagava a renda, mas o deixassem em paz em sua Roça Velha.
Não
mexessem com ele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: cabra ladino o
velho João,
cacimba natural entre
as pedras,
lavoura de subsistência
no alto, a
criação, cabras, ovelhas,
vaquinhas,
requeijão, a caatinga
seca e dura, a
explosão com
as águas, verde
exuberante.
A
Roça Velha tinha uma configuração interessante.
As
roças de subsistência ficavam também no alto.
Vocês
sabem: sujeito experiente, de olhar esperto, aproveita tudo para produzir.
Procura
fazer o serviço de forma mais produtiva.
Velho
João, o avô de Navarrinho, era desses, cabra ladino.
Logo
ao chegar, havia notado: na parte mais alta, jazia uma cacimba natural entre as
pedras.
Alimentada
por uma pequena nascente e pelas águas da chuva.
Então,
era ali: e foi ali o esparramo das roças de subsistência.
Rocha
Velha, no entanto, era mais, muito mais.
Maior
parte, ocupada pelas criações.
Delas,
o velho gostava, como gostava.
E
organizou os pastos das cabras, das ovelhas.
E
de uma poucas vacas pé duro para o leite, o requeijão da família - quer coisa
melhor que isso?
A
criançada se deliciava de assistir ao esmero, aos cuidados da mãe, o manejo
daquela panela grande cheia de leite no fogão de lenha coberta por um pano,
dois dias de descanso até virar coalhada, e aí todos os outros procedimentos,
até surgir o bendito fruto das benditas mãos, o requeijão, delícia
incomparável.
Roça
Velha tinha disso, milagre das criações cuidadas pelo velho João e das mãos
milagrosas de Maria.
O
velho João levantava cedo, tirava o leite das vacas, dava de comer à bicharada,
alisava uma cabra, uma vaquinha, tirava um berne, era só carinho.
Bem,
Roça Velha era caatinga.
Vegetação
classificada como de savana estépica.
O
sertão é caatinga.
Roça
Velha, favorecida pela proximidade do rio Paraguaçu, estava na caatinga.
Muita
pedra, mandacaru, vegetação não muito densa , grande parte rasteira, pequenas
árvores, boa parte do tempo sob a seca, aquele panorama levemente amarronzado,
o vento levantando poeira de quando em vez, aqueles redemoinhos, aqueles pés de
vento, o diabo vinha dentro deles, e nos povoados era arriscoso levantar as
vestimentas das meninas, só ver e elas seguravam a barra da saia pro diabo não
atentar, sabiam do vento com suas manhas endiabradas, melhor não facilitar...
Havia
a palma, aproveitada para os animais, depois de cortados os espinhos.
Havia
pés de licuri.
Seca,
aquela paisagem de desilusão às vezes.
É,
mas bastasse um pouco de chuva, e a explosão verdejante, a caatinga assumia sua
cara exuberante com o beijo carinhoso, sensual das águas.
Era
assim a vida na Roça Velha.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: vida dura,
alguns gostos de
Mariazinha,
montar e lidar
com armas,
o pai ensinando,
quem sabe um dia...
Às
vezes, quando falamos da vida de um pequeno agricultor familiar, corremos o
risco de dar uma falsa impressão.
Romantizar
as coisas.
Não,
ali a vida é dura.
Foi
ontem.
É
hoje.
Não
há maldade no pai levado a colocar a filharada na lida.
É
a pura necessidade.
Experimentei
isso diretamente.
A
dureza do pai ou da mãe era parte daquele tempo.
Não
podemos olhar o passado com o olhar atual.
O
velho João, avô de Navarrinho, tinha formação religiosa, rigorosa, cristã, e
além disso precisava dos braços das meninas, primeiro, dos meninos depois.
Na
roça, se fazia filhos a granel.
Somados,
o casal pôde contar 13 filhos vivos.
Brinquedo,
não.
João,
chegado na Roça Velha, jogou as meninas na lida, as três primeiras a nascer.
Mariazinha,
a mais nova delas, ali pelos meados dos anos 1920, cedo cedo viu crescer calos
nas mãos.
Nascera
em 1918, estava com sete, oito anos quando chegou na Roça Velha.
Dali
em diante, foi um aprendizado só.
Tomou
ciência de tudo.
Querendo
ou não, obediente
E
ai não fosse.
Aprendeu
a ser.
Relutava
em algum momento, o pai lançava um daqueles olhares severos, e ela estava de
prontidão, mão na massa, fosse o que fosse.
Gostar,
gostar mesmo, montar.
Aprendeu
a pegar animal no pasto.
Jogar
a manta, a sela, puxar a barrigueira, e depois de um tempo, já um pouquinho
maior, sozinha, meter o pé esquerdo no estribo, montar, e sair garbosa, mãos
firmes nas rédeas, o animal sentindo o poder da cavaleira.
O
pai, não podia negar, sentia um certo orgulho de ver a filha tão segura em cima
de um cavalo, de um burro.
Mas,
ela tinha outro gosto.
Mexer
com armas.
Estranho,
não?
Era
ver o pai tomar de uma espingarda, de um clavinote, e ela encostava.
Os
olhos, brilhando.
E
o pai não se fazia de rogado, nesse caso.
Quem
sabe, um dia, ela necessite - pensava a sério, esse mundo é cheio de surpresas.
E
foi ensinando, e ela aprendeu também a atirar, cedo, cedo.
Menina
danada, essa mãe de Navarrinho.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: a feira, a festa, o
festival de
cores e de alegria, Mariazinha
se acostumando e
gostando,
enjoando da
boneca, os homens já olhando...
Era
um vai e vem permanente.
Toda
semana, dia de feira, antes do galo cantar, o velho João, o avô de Navarrinho,
se alevantava, ia pra beira do fogão, fazia o café, e começava logo a bater
palmas pra chamar a meninada.
Dia
anterior, já havia juntado os produtos.
Preparar
os burros, encher os caçuás, organizar direitinho a caravana e cair na estrada,
aquela légua e meia.
Sol
nascia, ao partir.
Devagar,
seguia.
Carecia
pressa, não.
Inda
assim, dos primeiros a chegar, sempre.
Mariazinha
fez disso rotina.
Depois
das primeiras experiências, passou a gostar.
Feira
é um acontecimento.
Uma
cultura.
Encontro.
É
comércio.
Festa.
Um
colorido só.
Gritaria
- não há feira sem gritaria, conversa em voz alta.
Uma
briga ou outra, só barulho, esparramo, nada demais.
As
frutas, as verduras espalhadas pelo chão, ou nos tabuleiros.
Cada
um gritando seu preço, o melhor.
Os
tecidos esvoaçantes, a provocar a imaginação das meninas.
Às
vezes, até o homem da cobra.
A
cidade, o povoado, qualquer aglomeração, pode estar na modorra, aquele
paradeiro, nada acontecendo.
E
de repente é a feira: muda tudo.
É
como se a feira desse uma chacoalhada no mundo.
Como
se dissesse acorda pra vida.
Mariazinha,
descobrindo pouco a pouco esse mundo, chegou um tempo, enjoada da boneca,
começou a se arrumar pra seguir pra feira.
Não
tanto porque não tinha tanta roupa.
Botava
a melhorzinha.
Um
batom, suave, senão pai briga.
Uma
flor no cabelo.
Adolescência,
cês sabem, né?
Noção
já de mulher.
Chegada
aos 15 anos, mulher feita diz o povo, não a lei.
Bonita
de fazer gosto.
De
atiçar, incendiar, iluminar os olhos dos homens, dos mais novos e dos mais
velhos.
E
naquele tempo, as meninas casavam cedo.
Alguns,
sabendo Mariazinha moça de família, de pai rigoroso, sabiam: chegar perto, se assanhar, arrastar
asa pra moça, era arriscoso, perigo chegar ao altar.
Muitos
olhavam, mas chegar perto mesmo, não.
E
o medo do velho?
Ocorre,
no entanto, um porém.
Um
dia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: rio a marcar a vida,
Paraguaçu, e a
confundir histórias,
Sítio Novo e
Paraguaçu, Mariazinha
vendendo na
feira, um olhar
acintoso,
invasivo, a mexer com ela...
Estava
aqui a contar histórias da mulher surgindo, Mariazinha já formosura, cobiça dos
homens crescendo, lascívia arrodeando.
Tenho,
no entanto, de resolver pendência.
Pendência,
cês sabem, não é bom deixar se arrastar.
Deixar,
complica.
Já
tem algum tempo venho me ocupando de Iaçu.
Vá
lá descobrir por que as águas do Paraguaçu me seduziram.
Fui
antes até Cachoeira, onde as águas do gigante também correm.
Minha
protagonista, durante coisa de quatro meses, foi a quase-freira Cleidiana
Ramos, hoje sob o manto dos orixás, filha de Oxum.
Agora,
Navarrinho, nascido também à beira do Paraguaçu.
E
ainda, no correr da pena, tem chão até ele enxergar o sol.
Não
nasceu ainda.
De
acontecer, vinha chamando o povoado mais tarde chamado Iaçu como Sítio Novo.
Navarrinho,
repórter esperto, experiente, me alertou: soubesse, e sabia desde menino, a
antiga Fazenda Sítio Novo era conhecida como Paraguaçu desde o início do século
XX.
Passou
a chamar-se assim oficialmente por resolução municipal número 3, de 19 de abril
de 1922, a completar um século, portanto, ano que vem.
Resolução
municipal de Santa Terezinha, município ao qual pertencia o povoado.
Tal
resolução chegou a ser aprovada por lei estadual - a de número 1569, de 3 de
agosto de 1922.
Tudo
das anotações de Navarrinho.
Nas
pesquisas de Cleidiana, o povoado ganhou o nome de Vila Paraguaçu em 1934, para
em 1954 chegar a distrito.
Creio
ser possível compatibilizar as duas visões.
Muito
provavelmente, Navarrinho tem razão, num primeiro olhar.
A
proximidade do rio levou à consagração do nome, povo batiza e pronto.
Num
segundo olhar, também deve ser considerada a opinião de Cleidiana.
Nas
últimas horas, me disse ouvir dos mais velhos, com muita frequência, a
denominação Sítio Novo, em referência à velha propriedade dos Medrado, sem
deixar de ouvir também o nome Paraguaçu.
Tocando
em frente.
O
leitor já sabe do poder dos Medrado.
Um
poder àquela época incontrastável.
Estava
Mariazinha nos seus verdejantes quinze anos na feira, à solta, vendendo
abóboras, feijão, aipim, farinha de mandioca, carne de bode seca, o diabo a
quatro.
O
pai à distância, só assuntando, e trocando dois dedos de prosa com amigos.
Tirar
os olhos da filha, ah, não tirava não.
Mariazinha,
ativa, atendia com atenção toda a
freguesia.
Atendia
uma freguesa, outra, outro.
E
de repente sentiu um olhar insistente.
Um
freguês.
Mexia
num produto, noutro, perguntava o preço de uma coisa, de outra.
Parecia
não saber o que comprar.
Mas,
não tirava os olhos dela, parecia querer arrastá-la para dentro de si.
Um
olhar acintoso, incomodava, mexia com ela.
Não,
não era desrespeitoso.
Desejoso?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha sob cerco,
um Medrado botou
os olhos e não mais
tirou, velho
João ressabiado, o Medrado
vai pra cima do
pai, a resposta não sai de pronto...
Naquele
primeiro dia de feira, do primeiro insistente olhar, Mariazinha se saiu,
continuou a vender como se nada estivesse ocorrendo, sobretudo depois de o
velho João encostar, dar dois três dedos de prosa com o homem, parecia
conhecido do pai.
Distraiu
aqueles olhos.
O
avô de Navarrinho, ciente: a filha se fazia mulher, e marmanjo cercava, olhava,
e se pudesse mais, mais.
Cuidava
da cria.
Mulher.
Mulher
jovem.
Mulher
bonita.
Então,
bom não descuidar.
Teve
outra feira, mais outra.
E
sem descanso, lá vinha o homem querer comprar, e quase nada comprando.
Era
um sujeito bem apessoado, roupa de gente importante, via-se.
Quando
descia do cavalo notava-se a bota engraxada, e esporas, rebenque nas mãos,
colete, corrente do relógio de bolso à vista.
Sinais
de poder.
E
já avançado nos anos.
Não
tirava os olhos de Mariazinha.
Até
que um dia ganhou coragem.
Depois
de arrodear Mariazinha, perguntar de preços, e olhar, olhar no fundo dos olhos
dela, olhou pros cantos, e viu o velho João, sempre atento, um pouco distante.
Caminhou
na direção dele.
Deu
bom dia, perguntou da Roça Velha, elogiou a produção, coisa de terra bem
cuidada foi dizendo, parecia ao velho João ser um cerca-Lourenço, quase
perguntou logo das pretensões, mas esperou com paciência.
Depois
de falar de safras, da chegada do trem, das cheias do Paraguaçu, do Nego D'Água,
das rezas do padre, de muito enrola-enrola, foi ao ponto:
-
João, já tenho alguma idade, está se vendo, não preciso dar muita volta: é
sobre essa menina, sua filha.
-
Que é que tem Mariazinha? perguntou o avô de Navarrinho, já um pouco
ressabiado.
-
Preciso que compreenda: quero casar com ela - disse o homem de bota e espora,
assim, causando um choque.
João
o conhecia.
Era
um dos Medrado - como não conhecer?
Levou
um susto.
Era
um sujeito já acumulado nos anos, de quarenta pra lá, dificultoso pensar pudesse
casar com sua filha, tão novinha.
Mariazinha,
de longe, só assuntando, desconfiando pudesse ser ela o motivo da prosa, só na
encolha.
O
velho João, de poucas palavras, pediu tempo.
A
um Medrado, não se diz não assim de pronto.
Nem
sim, para não parecer submissão.
Deixou
o assunto no ar.
E
o homem de bota e espora, partiu sem saber de resposta.
Que
será, que será?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: silêncio no retorno,
silêncio em
casa,decisão, conversa com Maria, conversa com Mariazinha, resposta ao
homem de botina
e esporas, casamento.
O
velho João não dava uma palavra na volta para casa depois de ouvir o pedido.
Um
quarentão pretendia a mão de sua filha.
E
um Medrado, da família dona do céu e da terra.
Mariazinha,
também um túmulo.
Sabia
ser o motivo.
A
légua e meia da volta não foi alegre.
Sorumbática,
melancólica.
Todo
mundo jururu porque o clima pegou a todos.
João
chegou em casa, descarregou os burros, o pouco ainda nos caçuás, passou água
nas mãos, lavou o rosto, esperou Maria botar o jantar.
Maria
não entendia o silêncio.
Não
se arriscou a perguntar.
Antes de dormir, o avô de Navarrinho danou-se
a pensar.
Encontrava
rumo sempre na palavra de Deus.
Refletiu
sobre o destino da mulher.
Na
dor, ter filhos.
O
desejo a empurrá-la ao marido.
O
marido, seu amo.
Ouviu
muito isso, da tradição.
Tá
certo - era ainda muito nova.
Mas,
já mulher.
Surgira
um pretendente.
Casar,
deveria.
Então,
por que não?
Pensou,
refletiu, e foi se aprochegando de uma decisão.
E
aí, dia seguinte, uma folga, e conversou com a mulher.
Maria,
um pouco ressabiada no princípio, ouvindo, ouvindo, se acostumando com a ideia.
Conversaram
então com Mariazinha.
Desconfiava.
Pensou:
o homem de botina e esporas não estaria olhando daquele jeito não tivesse
intenções mais alargadas.
Sentiu
os olhos faiscando, e as faíscas eram por ela.
Casar,
tinha de casar.
Então,
fosse.
Demorou
uma semana, duas, e o velho João deu a resposta.
Deixou
o homem de botina e esporas feliz da vida.
Parecia
estranho, mas um dos Medrado fora buscar para mulher uma filha de posseiro,
arrendatário, situação incomum.
Não
se sabe se o resto dos Medrado concordava.
Mas,
o quarentão não quis nem saber.
E
ele e Mariazinha se casaram...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: mundo girou, casada,
se ajeita, passa
a morar na Vila do Paraguaçu,
marido morre, os
Medrado querem
tomar a casa,
ela resiste, e vida segue.
Giro
de 180 graus.
A
vida mudou inteiramente.
Mariazinha,
casada com um homem bem mais velho, de posses, formado em faculdade de cidade
grande, de família poderosa, a mais poderosa da região.
Havia
falado em homem quarentão.
Nada.
Pra
lá de cinquentão.
Bem
mais velho.
Mas,
ela sabia como se virar, como se adaptar.
Se
houve a decisão do casório, se virasse nos trinta.
E
se virou.
Ela
e marido mudaram-se para a vila de Paraguaçu.
Pequena
fosse, vida de cidade, bem diferente do dia a dia da Roça Velha.
Era
início dos anos 1930, ali por 1933, 1934.
Dona
de casa - precocemente adaptou-se.
Os
avós, João e Maria, também se acostumaram a não ter a filha por perto todo dia.
E
afinal o povoado ficava a légua e meia, um pulo.
Mais
conforto, Mariazinha não podia negar.
O
homem botou tudo em casa.
Mas,
o marido era velho, sabe-se.
E
o tempo cobra preço, às vezes cobra mais cedo do que o esperado.
Um
ano e meses depois do casamento, ela já se acostumando, não sei se digo
gostando, o Medrado bate as botas.
Os
pais logo disseram: volte pra Roça Velha, morar com a gente de novo.
Nada:
Mariazinha havia se dado bem com os costumes da Vila.
Pequena
fosse, vida de cidade.
Quis
não.
Bateu
pé: daqui não saio daqui ninguém me tira.
Os
Medrado, família sovina da porra, quiseram tomar a casa onde ela morava.
E
quiseram apesar do desejo manifestado pelo marido no leito de morte: a casa é
de Mariazinha e ninguém tasque.
Ela
se agarrou no direito adquirido, e os Medrado tiveram de recuar.
Menina
do cão - murmurava a família.
Que
murmurassem, mas dali não sairia.
E
isso era mais um argumento com pai e mãe para não voltar para a Roça Velha.
A
mãe de Navarrinho não era brinquedo, não...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: um quintal grande,
uma fábrica de
sabão, vizinhança
de narinas
sensíveis, reclamações,
dar a volta por
cima, fábrica de vinagre, paz na vila.
Mariazinha
guardava lembranças boas do casamento.
Não
fora convivência difícil, não obstante a diferença de idade.
E
ela, ladina, ladina, foi se valendo dos conhecimentos do marido.
Aprendendo.
O
homem tinha feito faculdade, sabia coisa que só o diabo.
Bom
prestar atenção.
Prestava.
Aprendeu
muita coisa nova.
Até
química aprendeu um pouco.
Voltar
pra Roça Velha, nem pensar.
Não
se adaptaria mais.
Encontraria
os pais quando viessem à vila.
Precisava,
no entanto, dar um jeito de ganhar a vida.
Tinha
a casa, mas e o de comer?
E
as despesas do dia a dia?
Marido,
não tinha mais.
Pais,
vivendo no limite, dinheirinho curto da produção da roça.
Do
casamento, não viera filho, mas tinha despesas, ora sim, senhor.
Meter
as caras.
Olhou
praquele quintal grande, e pensou pudesse ter alguma serventia.
Teve:
ali construiu uma fábrica de sabão.
Fábrica,
exagero: uma fabriqueta.
E
tome-lhe a produzir sabão.
E
arregimentou freguesia: havia a freguesa do sabão massa, a do sabão azul, foi
garantindo fidelidades.
Mas
há sempre quem bote gosto ruim.
Apareceram
vizinhos a reclamar do cheiro de sebo bovino, soda cáustica, tantos outros
ingredientes necessários à produção de suas mercadorias.
Gente
chata, invejosa.
Gente
pobre mas metida a besta.
Na
vila, não havia ninguém rico.
Naquelas
paragens, rico, rico mesmo, de poder falar de boca cheia, só os Medrado.
E
nem viviam ali.
Restante,
no máximo remediado, maioria pobre pobre de marré deci.
Tocou
a fábrica por algum tempo, mas recuou.
Briga
com vizinho é a pior coisa do mundo.
Mariazinha,
a mãe de Navarrinho, resolveu, então, com seus conhecimentos de química,
produzir alguma coisa de aroma mais agradável, mais afeito às narinas sensíveis
da vizinhança, e de seu caldeirão mágico apareceu uma fabriqueta de vinagre.
Produziu,
produziu, e não houve reclamação.
Afinal,
vinagre é produto na mesa de todo mundo.
Em
paz com a vizinhança.
Parada,
não ficava.
Ganhava
algum dinheiro, resolvia suas despesas e ainda dava algum adjutório pra
família.
Hoje,
estaria com folga no campo do empreendedorismo.
Talvez
dando cursos.
Pretensiosamente,
poderia estar andando por aí, ganhando dinheiro com palestras, uma coaching.
Tanta
gente faz isso, não?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Fiquei fã de
Mariazinha🥰, danada de boa de luta.
Isabel Santos: Joana D'arck
danada de boa como dona Elza e dona Maria Aparecida. Mulheres exemplos de muita
garra e de ternura.
Nadya Argôlo: Êta Mariazinha
retada!
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Emiliano José
25
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: o vinagre foi pro saco,
o milagre do
lambe-lambe, na porta
da igreja as
pessoas se aglomerando,
ela entregando
as fotos,
os olhos da
freguesia brilhando.
Não.
Mariazinha
não era uma qualquer.
Do
vinagre, saltou para o lambe-lambe.
As
novas gerações certamente não atinam com isso.
Nem
imaginam.
Lambe-lambe
era o fotógrafo de rua.
Você
ia andando por uma praça, uma rua, um jardim, e de repente deparava com um
deles.
Estavam
por todo canto do Brasil.
Não
tem tanto tempo assim, e ainda era possível encontrá-los por ai, encapuzados,
fundidos a caixotes sobre tripés.
Ao
que se sabe, ganharam força a partir do final do século XIX.
Realizavam
o trabalho com uma câmera-laboratório: uma caixa de madeira com uma lente
apoiada num tripé.
Câmera
dividida em duas partes: a inferior continha os dois banhos, revelador e
fixador, utilizados ao mesmo tempo para o processamento químico de filmes e
papéis.
As
fotos, e isso encantava a freguesia, eram reveladas no ato.
Quase
uma selfie.
O
fotógrafo não precisava ir ao laboratório para revelar os filmes.
Coisa
de mágico, a magia do final do século XIX, um século cheio de proezas, coisas
inimagináveis.
Bom
lembrar nesses tempos de tantas invenções - a imaginação humana é criativa
desde sempre.
Mariazinha
já ouvira falar daquilo, conversara com o marido, havia química pelo meio, mas
nunca imaginara um dia despertar para esse milagre.
Um
dia, viu um lambe-lambe.
De
passagem pela vila Paraguaçu.
Ficou
pouco tempo por ali.
Conversou
um pouco, bisbilhotou, pediu para enfiar a cabeça naquela máquina estranha.
Encantou-se.
O
vinagre foi pro saco.
Com
seu tripé, instalou-se na porta da igreja.
Impressionou-se
como as pessoas se acercavam daquela geringonça e como desejavam fotografar-se.
Pagavam
com gosto, coisa barata.
Pagavam
e saíam com os olhos brilhando de entusiasmo ao verem-se ali, reproduzidas,
outras e as mesmas pessoas.
A
fotografia é magia antiga.
É
magia.
E
Mariazinha percebeu isso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: Paraguaçu não tinha vigário, igreja abria de caju em caju,
de quando em
quando missa, e aí
Mariazinha fazia
a festa com seu tripé, e um dia depara com Carlos Navarro Gil-Braz.
Contando
assim aligeirado, parece uma vida sorridente, fácil, a de Mariazinha.
Era
não.
Igreja,
na Vila Paraguaçu, não abria todo dia.
Só
de vez em quando.
Missa,
só de caju em caju.
A
vila não contava com vigário.
De
tempo em tempo, aparecia um pra celebrar missa, consolar as almas do lugar.
As
almas pedem consolo, as vivas e as mortas- inquietas, as almas.
Aí,
então era aquele ajuntamento.
Das
carolas, por hábito.
Dos
dados à fé, por fervor.
E
até graúdos, por conveniência.
Os
homens, melhores roupas, chapéu nas mãos.
Mulheres,
vestidos abaixo do joelho, véus negros, purgando pecados, houvessem.
Lembram
da expressão?
Roupa
de ver missa?
Ou
roupa de ver a Deus?
Pois
é.
Aí,
sim: Mariazinha fazia a festa.
Na
entrada e na saída.
Era
um tal de pedir fotos.
Casais
de namorados.
Noivos.
Marido
e mulher.
Sujeito
montado a cavalo.
Família
inteira, filharada sorrindo.
Missa,
alegria, alegria.
Ainda
assim, quando a igreja abria na entressafra, e abria várias vezes, entrava
gente pra orar, as carolas e algumas outras, poucos homens, lá estava ela com
seu tripé, a postos.
Inquieta,
difícil de esquentar lugar, começa a duvidar do negócio.
Foi
nesses afazeres da câmara escura, naquele lufa-lufa maior parte encapuzada, o
encontro com o marido.
Com
o próximo marido.
Carlos
Navarro Gil-Braz.
Já
falamos muito da mãe, da mãe de Navarrinho, a vir a ser - logo logo ele
nascerá, peço paciência ao leitor, à leitora.
Falamos
do pai, antes, assim ligeirinho: nasceu em 1914, vinda dele para Vila
Paraguaçu.
Depois
da morte do pai, ocupando a mesma função dele.
Agente
Postal Telegráfico, homem das comunicações, iniciozinho dos anos 1940.
A
passagem do trem por ali exigia isso, um Agente Postal Telegráfico.
Creio
já ter dito, mas quem lê não é obrigado a voltar atrás.
O
APT era gente importante, ainda mais numa pequena vila.
Pequena,
mas fervilhante por conta da Estação Ferroviária.
Cuidava,
de modo geral, das comunicações daquele povoado com o mundo.
Até
escrever cartas, escrevia.
Além,
claro, de enviá-las, recebê-las.
Aos
poucos, ele foi se ambientando, e gostando daquela vidinha...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Na vila havia
duas otoridades: o coronel e o APT, este é quem escrevia as cartas dos
moradores e lia as respostas chegadas pelo Correio. Eu, aos 5 anos já ganhava
uns trocados pra comprar rapadura, entregando telegramas.
Emiliano José: Carlos Navarro
Tenha calma, você nasce daqui a pouco...
Carlos Navarro: Emiliano José
kkk
Sérgio Buarque de Gusmão: Interessante
esse "Gil Braz"...Na ancestralidade de Navarrinho cintila a ´História
de Gil Braz de Santilhana´, a novela picaresca de Alain René Le Sage?
Emiliano José: Sérgio Buarque
de Gusmão Quem sabe...
Nadya Argôlo: Adorando ler
as hostórias de Mariazinha...
Carlos Navarro: Emiliano José
pois é, quem sabe né?
Mônica Bichara: Navarrinho
ainda nem sonha em nascer e já quer adiantar a história, né Emiliano José?
kkkkkkk Calma, moço
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Emiliano José
27
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: o pai, bam bam bam
dali, senhor das
intimidades, o escrevinhador,
segunda
autoridade da Vila Paraguaçu.
Passamos
um tempo falando de Mariazinha, a mãe.
Voltamos
nossos olhos agora para o pai de Navarrinho.
Em
nome do pai.
Mariazinha
era levada da breca.
Impetuosa,
decidida, metia as caras.
A
vida era pra ser enfrentada.
Nada
de chororô, nem de mimimi.
O
pai, um pouco diferente.
Um
pouco.
Também
aprendera cedo a enfrentar a vida.
Carlos
Navarro Gil-Braz chegou a Iaçu com coisa de 25, 26 anos.
Iaçu,
nada.
Vila
Paraguaçu.
Iaçu
só mais tarde, bem mais tarde.
Já
chegou como Agente Postal Telegráfico, o bam bam bam.
O
povoado contava com duas autoridades.
A
primeira, o condestável e incontestável coronel Manoel Justiniano de Moura
Medrado, dono dali e daqui, de terras a perder de vista, tudo ali era dele.
Era
quem mandava.
Prefeito,
vereador, delegado, juiz por aquelas bandas, adereços.
A
segunda autoridade, ele, Carlos Navarro, pai.
Não
era de muita pose, mas chegou com tudo.
O
cara chega e já se mete com as intimidades das pessoas.
É.
Chegava
a senhora, e dizia:
-
Moço, meu marido foi pra São Paulo, e eu tencionava dizer umas coisinhas pra
ele, e não sei escrever, o senhor sabe, né?
Ele,
atento:
-
Será que o senhor pode escrever uma cartinha pra ele, e mandar? - perguntava
humildemente.
-
Claro - respondia Gil-Braz.
Essa
cena se repetia de modo impressionante.
Central
do Brasil do sertão.
Grande
parte do povoado não sabia ler nem escrever.
Quem
sabia, tinha poder.
Ainda
mais se fosse também correio.
De
vez em quando, chegava uma moça, ressabiada, tímida, cartinha à mão, e
perguntava:
-
Meu senhor, recebi carta de meu noivo, não sei ler. Eu incomodo se lhe pedir
pra ler?
-
Não senhorita, leio, com prazer. Não incomoda de jeito nenhum.
Às
vezes, ele sofria - era o rapaz dizendo adeus.
Como
a dizer isso à moça apaixonada, esperançosa de casório, igreja, véu e grinalda?
Tinha
de dizer.
Navarrinho,
menino de calças curtas - é, vou dar licença a ele de chegar à cena embora na
nossa história não tenha nascido ainda -, Navarrinho com cinco anos de idade já
se atrevia a entregar telegramas.
Em
troca, o pai lhe dava uns trocadinhos para comprar rapadura, quando ele
compreendeu que rapadura é doce mas é dura, mas mesmo dura, uma delícia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de fevereiro 2021
Carlos Navarro
Filho: no meio do caminho um Dom Quixote, um Gil Braz do século XVIII, esperto,
amigo do rei, rico, e o Gil-Braz do Paraguaçu, esperto também, diligente, e
Navarrinho recolhendo vinténs para a rapadura.
Juro:
fiquei curioso.
Sérgio
Buarque de Gusmão andou perguntando não houvesse alguma influência ancestral
recolhida pelo pai de Navarrinho, de sobrenome Gil-Braz.
Nos
comentários.
Fui
perguntar por aí.
Afinal,
quando um Buarque indaga, é bom saber, tentar saber.
Viria
lá de muito antigamente, a influência, ou os fluidos ancestrais, houvesse.
A
História de Gil Braz de Santilhana é contada por um escritor francês, de nome
Alain René Lesage.
Primeira
edição, 1715.
Tem
parentesco literário com Dom Quixote, disseram-me.
Um
jovem no início da vida vai estudar na Universidade de Salamanca.
Acaba
coagido a ajudar bandoleiros.
Dizem
coagido.
Esperto
que só a porra, termina amigo do rei.
E
o melhor, rico.
Termina
a vida gozando a fortuna num belo e confortável castelo.
Sérgio
Buarque de Gusmão há de corrigir os erros dessa passagem rápida.
Após
saber dessas coisas, tive a tentação de adquirir o livro.
Desisti:
são quatro volumes, e a lista de prioridades da mesa de cabeceira é grande.
Talvez,
dessa ancestralidade, Carlos Navarro Gil-Braz, o pai de Navarrinho, tenha
recolhido a esperteza, sabedoria para enfrentar a vida, nunca uma esperteza
capaz de dar rasteira em ninguém.
Amigo
do rei, jamais.
Rico,
ah, ah, nunca.
Chegou
no povoado de Paraguaçu para começar do zero a instalação do serviço de
correios.
Não
existia nada.
Meteu
mãos à obra, e logo logo o serviço estava funcionando.
Esperto,
nesse sentido, era.
E
diligente.
Navarrinho,
o filho, logo ao entrar na história, me corrigiu:
-
Não, meu pai não me dava dinheiro quando voltava da entrega de telegramas.
Nada.
Ia
ligeiro, apertando o passo com suas pernas curtas de cinco, seis anos, chegava
na casa, batia na porta, e entregava.
Não,
não pedia nada.
Não
ficaria bem.
Entregava,
e esperava alguns segundos, não muito pra não dar na vista.
Normalmente,
a pessoa, agradecida, ia buscar algum vintém.
Pouco
fosse, permitia-lhe comprar um pedaço de rapadura, delícia da vida.
Mas,
eu já avisei: não nasceu ainda.
Terá
de esperar mais um pouco para falar com mais desenvoltura aqui nessa história.
É
o protagonista, mas às vezes mesmo o protagonista, e por sê-lo, deve ter
paciência, e depois falar à vontade, e terá muito para contar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Sergião é
amigo e foi colega no Estadão. Com ele eu e Popoia conhecemos jambu e tacacá,
em São Paulo, lá nos anos 70. Um dos melhores jornalistas que conheço e após a
redação revelou-se um grande e estudioso intelectual.
Emiliano José: Carlos Navarro
Como você percebeu, conhecedor de prováveis antepassados seus...
Mônica Bichara: É cada uma...
a criatura nem nasceu e já quer dar palpite
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Emiliano José
1º
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Gil-Braz, deixa a vida me
levar, bom de
conversa, amizades políticas,
terno de linho
branco, chapéu Panamá quando
andando por
Salvador, dizia-se
ser homem
esquentado paradoxalmente.
Carlos
Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, era homem de metro e setenta, metro e
setenta e cinco por aí.
Nem
tão alto, nem tão baixo.
Navarrinho,
como eu, sairá baixinho.
Aliás,
havia quem nos desse como muito parecidos.
Acho
não.
Muito
responsável, mas ao mesmo tempo um pouco Zeca Pagodinho, o nosso Gil-Braz.
Deixa
a vida me levar vida leva eu sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu.
Enfrentava
de peito aberto a vida, mas qualquer coisa desse errada, ele não caía em
desespero.
Aos
trancos e barrancos. seguia em frente.
Meu
coração é nobre, foi assim que Deus me fez - parecia ouvir muito antes a canção
de Zeca Pagodinho.
Bem
falante, bem relacionado, cultivava amizades políticas, não era trancado em si
mesmo.
Era
da boa política, em sentido amplo, sem nunca ter sido político propriamente,
nem querer.
Da
boa vizinhança.
De
políticos, lembre-se de Régis Pacheco.
Com
ele fez amizade antes mesmo dele se tornar governador.
Talvez
o tenha alcançado ainda como prefeito de Vitória da Conquista, cargo ocupado
por ele até 1945.
Em
1950, se elege governador, assume em janeiro de 1951.
Dele,
sei alguma coisa.
Waldir,
sobre quem escrevi biografia de dois volumes, será secretário de Pacheco com 24
anos de idade.
Mas,
sabe-se, Gil-Braz cruzou com Pacheco também pelos bares da vida na capital.
Sabia
construir e cultivar amizades, com os de baixo, com os de cima.
E
chegando à Vila de Paraguaçu, rapidamente formou um amplo círculo de amigos.
Sujeito
popular.
Navarrinho,
quando nascer, vai nos contar.
E
soube: gostava muito de andar bem vestido.
Terno
de linho branco, com ele mesmo.
Não
dispensava um chapéu.
De
feltro.
Ou
Panamá.
Chapéu
compunha a indumentária masculina à época.
Uma
elegância só.
Esse
luxo todo, claro, reservava para as viagens a Salvador, muito comuns.
No
comum dos dias, vestia-se de modo simples, nunca descuidado.
Nada
de terno.
Uma
calça cáqui, camisa de manga comprida, ou mesmo de manga curta.
Curioso:
dava impressão de ser esquentado...
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Emiliano José
2
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: sangue italiano
com espanhol não
dá boa coisa, pai
estourado, Gil-braz violão e cavaquinho na mesa do bar
de Policarpo, Navarrinho
lavando a jega,
pai voltando pra
casa no meio da
tarde, enrolando Mariazinha.
Navarrinho,
nas memórias ainda não escritas, mas faladas por aí, costuma dizer, para
referir-se ao pai: sangue italiano misturado com espanhol, não dá boa coisa.
Só
podia sair um sujeito esquentado, meio estourado, não engolia desaforo.
Ele,
Navarrinho, admite ser também assim.
Aí,
concordo não.
Taí
um sujeito paciente.
Reage:
é mas se chega no meu limite, sai de baixo.
Pode
ser.
Ainda
não vi.
Ele,
o pai, não tinha a paciência de Navarrinho.
Por
qualquer coisa, explodia.
Mas,
depois esfriava, as coisas se ajeitavam, não arrumava inimizades.
Era
do fuzuê.
Do
botequim.
Do
violão.
Do
cavaquinho.
Com
ele mesmo.
Terá
tido a chance de beber da fonte de Waldir Azevedo, cujo sucesso na discografia
começou no início dos 1950, embora já tivesse despontado havia algum tempo?
Não
se sabe.
Das
memórias faladas de Navarrinho, ouvi:
-
Eu chegava da escola, minha mãe ia logo dizendo vá no correio pegar seu pai pra
ele não sair fazendo farra por aí.
Claro,
o leitor há de me alertar: você não está colocando o carro à frente dos bois?
Afinal,
Gil-Braz e Mariazinha sequer se casaram.
Verdade.
Perdoem,
mas agora carece completar.
Navarrinho
chegava nos correios, o pai o recebia sorridente, pegava o filho pelas mãos, e
seguia direto pro bar de Policarpo.
Era
amigo dele, o Policarpo.
Bar
na rua principal, rua da estação.
Gil-Braz
colocava Navarrinho em cima do balcão, e sorrindo dizia:
-
Pode comer o que quiser, pedir o que quiser.
Era
cocada, gasosa de limão grande da Frateli Vita, lavando a jega.
Uma
festa.
Nem
se lembrava das recomendações da mãe.
O
pai sentava, violão ou cavaquinho à mão, a roda se abria, ele e os amigos a
cantar e beber, e ali pelas três horas da tarde, três e meia, lá ia Navarrinho
puxado pela mão para casa.
Chegavam,
mãe emburrada, puta da vida, Gil-Braz, embalado pelo álcool, sorrindo, conversa
mole, amaciando a mulher, pedindo desculpas, não vai acontecer mais, sempre
assim, e isso se repetia inúmeras vezes...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
3
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: bom de conversa o nosso
Gil-Braz,
Mariazinha sempre cedia,
um dia
espingarda de passarinhar,
de resto homem
do diálogo, até do
hospital olhando
as meninas passarem, escrevia cartas de amor para a mulher, um sedutor.
É.
A
mãe era brava.
Mariazinha
estourava por pouca coisa.
Mas
Gil-Braz, o pai de Navarrinho, tinha conversa doce, mel puro.
Mariazinha
cedia, sempre.
Depois
da bronca, conversinha mole dele, colocava o almoço, tarde fosse, quando ele
voltava de seu cavaquinho, de sua viola, do bar do amigo Policarpo.
Navarrinho
olhava, na sua inocência, e ia aprendendo.
Os
olhos cresciam de admiração pelo pai.
Bravo,
mas um coração do tamanho do mundo.
Não
tinha inimigos.
E
isso é sinal de sujeito capaz de conviver, cidadão.
Teve
uma vez, única: o filho testemunhou-o fora de controle.
Um
bêbado sobre um cavalo, sabe-se lá equilibrando-se como, passou a todo galope
tirando um fino danado em Navarrinho e na mãe, sentados à porta da casa.
Mariazinha
levantou-se, contou pra Gil-Braz, ocupado dentro de casa.
Não
contou conversa: tomou da espingarda de passarinhar, e saiu atrás do sujeito,
disposto a matá-lo.
O
passarinho sumiu.
Felizmente.
Resumo
da ópera, colhido nas memórias faladas de Navarrinho: o pai era um sedutor.
Dos
bons.
Teve
à mão uma carta dele, enviada do Hospital das Clínicas, onde esteve internado
por dois anos - internação a ser contada melhor à frente.
Carta
enviada a Mariazinha.
Falava
das tantas moças bonitas passando, ele olhando da balaustrada do hospital, e se
desmanchava, não por elas - garantia.
Por
Mariazinha - só penso em você minha morena, a mais bela de todas, e Mariazinha
quase sentia as lágrimas dele cheias de saudades...
Tivesse
tempo e atenderia a indicação de Sérgio Buarque de Gusmão.
Conhecer
a história de Gil Braz de Santilhana - creio haver alguma influência ancestral
nessa capacidade de sedução do pai de Navarrinho.
Coloquei
o carro adiante dos bois.
Resta
casar Mariazinha e Carlos Navarro Gil-Braz.
Narrador,
às vezes se perde.
Especialmente
quando há personagens sedutores pelo caminho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Sérgio Buarque de Gusmão: "Navarrinho
olhava, na sua inocência, e ia aprendendo"...aprendeu muito bem...
Emiliano José: Sérgio Buarque
de Gusmão Como chefe e amigo, sei. O resto... só os orixás...
Jose Jesus Barreto: com Mariazinha
e um pai 'safado' desse tinha de dar um Navarrinho, né?
Paulo Pereclis: Gil Braz e Tia
Mariazinha Meus Amores Meus Tios Navarrinho Meu Querido Primo
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Emiliano José
4
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: em nome do pai,
fortes
lembranças apesar das surras,
admiração,
trabalho duro na fase
inicial, missa,
um tripé no meio
do caminho, moça encapuzada,
e de repente um
rosto, espanto, susto.
A
lembrança do pai ainda emociona Navarrinho.
Apesar
de também não se esquecer das boas surras.
Dá
boas risadas ao falar delas.
O
tempo.
Para
alguns, pensar isso nos dias de hoje levaria a uma condenação àquele tipo de,
chamemos assim, pedagogia.
Navarrinho
não pensa dessa maneira.
Menos
das surras, e mais do afeto, do carinho, dos estímulos recebidos, são as
lembranças do Pai.
Conviverá
pouco com ele, até os oito anos, morrerá cedo.
O
suficiente para admirá-lo, tê-lo como referência essencial na vida.
Vamos
ao encontro de Mariazinha e ele.
Carlos
Navarro Gil-Braz chegara havia pouco tempo à Vila Paraguaçu.
E
chegou sem tempo pra pensar em nada.
Toda
suas energias, voltadas para a implantação do serviço de correio.
Trabalhava
feito um mouro, como se dizia à época.
À
noite, nada de farras.
Era
chegar em casa, desabar.
Dormia
feito um padre - sem pecado.
Quando
diminuiu o ritmo, começou a olhar pros lados.
A
vila era movimentada.
O
trem, indo e vindo, ajudava.
Era
gente partindo, gente chegando.
A
vida se dava na estação e em torno dela, razão da existência daquela vila,
desde o fim do século XIX.
Tinha
olhos para as moças, e não eram poucas.
Um
dia de domingo, missa.
Botou
a melhor roupa.
Terno
de linho branco, tremeluzindo.
Ele
mesmo passara a ferro.
Chapéu
de feltro.
Sapato
engraxado, de brilhar, que disso entendia.
De
rezar, não era.
Ou
ao menos não tão frequentemente.
Mal
não faria, um pai-nosso fosse, uma ave-maria, nem precisava uma salve-rainha.
E
missa, era missa.
Ponto
de encontro, fazer amizades, nem em namoro pensava.
Missa,
naquele tempo, era acontecimento.
Da
devoção, mas também tantas outras coisas - e delas, os padres não gostavam
muito de saber.
Na
entrada, prestou atenção ao tripé.
No
lambe-lambe em frente da igreja.
Cuidando,
percebeu tratar-se de mulher.
Na
saída, viu o rosto da moça, até ali encapuzado sob aquela estranha geringonça.
Ah,
para que a moça foi despontar na sua frente assim, de repente, sem avisar nem
nada?
Espanto,
susto...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de março 202’
Carlos Navarro
Filho: olhos incendiados,
a hora do
espanto, Niemeyer e Pedro Tierra,
namoro, querendo
casar, à espera do padre, subindo ao altar.
Aqueles
olhos.
Ele
olhou, ela sentiu.
Espanto.
Dos
dois.
A
vida é feito de espantos - a afirmação é de Oscar Niemeyer, o sábio.
Tão
sábio que ultrapassou a casa dos 100 anos.
Pedro
Tierra, o poeta, me lembrou novamente isso esses dias, numa roda de conversa,
chamada também de live.
Os
espantos alegram a vida, são a poesia dela.
Os
dois, Gil-Braz e Mariazinha, se olharam, e houve o espanto.
O
milagre do encontro.
A
Gil-Braz, aqueles olhos afiguravam-se como olhos de ressaca, arrastavam-no
irresistivelmente.
A
Mariazinha, os olhos de Gil-Braz traziam paz e fogo, ela não sabia definir a
predominância de um e de outro.
Gil-Braz
cercou a moça.
Elegantemente.
Esperou
se desvencilhasse, daquele entra e sai da geringonça, sem tirar o olhar dela, e
quando ela se preparava pra ir embora, deitou falação.
Suavemente.
Um
Don Juan.
Nem
precisava tanta prosopopeia.
A
ela, bastaram os olhares, a trazer-lhe tanta paz e tanto fogo.
Foi
ligeiro: namoro começou logo ali, dois dedos de prosa, e resolveram casar.
Combinaram:
primeira visita do padre à cidade, e subiriam ao altar.
Os
dois não cabiam em si de felicidade.
Ele,
primeira vez, a alegria da primeira vez.
Ela,
segunda.
Frustrada
no primeiro casamento, agora queria ter filhos.
Rapaz
novo, com esse não haveria erro.
Combinaram
com a senhora que cuidava da igreja, disseram das santas intenções.
Deixasse
anotado o casório para não haver dúvidas.
E
um dia, padre chegou.
Nem
demorou tanto.
No
altar da igreja da Vila do Paraguaçu, os dois fizeram juras de amor eterno,
cuidar um do outro sempre, e o padre eu os declaro marido e mulher e autorizou
o beijo, o primeiro beijo na boca, que Gil-Braz era sujeito muito
respeitador...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Gil-Braz e sua conversa
sedutora,
despedida de solteiro já casado,
viola minha
viola, boas rodadas de bebida,
madrugada alta,
chegada em casa, Mariazinha
chateada,
culpando os amigos, beijos, e a noite foi quente.
Enfim
casados.
Mas
nada de enfim sós.
Gil-Braz,
e eu não me canso de lembrar de Sérgio Buarque de Gusmão e de seu esperto Gil
Braz de Santilhana, finda a cerimônia, ainda várias pessoas por ali, chama
Mariazinha de lado, meu amor amor da minha vida vou fazer uma comemoraçãozinha
com meus amigos assim coisa de bota fora despedida de solteiro um pouco
atrasada cê sabe né se não faço pessoal fica de cara amarrada é costume por
aqui convém respeitar.
Mariazinha,
já com alguma experiência, nova mas curtida pela vida, olhou pra ele
ressabiada.
Mas
pensou com seu botões: melhor aceitar.
Primeiro
dia de casamento.
Não
ia estragar.
-
Vá. Eu lhe espero.
Recebeu
outro beijo na boca.
Caloroso.
Carlos
Navarro Gil-Braz não era brinquedo, não.
Tinha
ancestral de respeito, de boa linhagem.
E
aí ele foi pra farra.
Viola
minha viola.
Pouca
gente, os mais próximos.
Uma
esbórnia das boas.
Brito,
da Estação.
Policarpo,
do bar.
Rubem,
dos correios.
Arlindo
Guarda-Fio.
Os
convivas do dia-a-dia.
Não
faltou bebida.
Nem
cantoria.
Juntou
mais gente, muita alegria, Vila Paraguaçu soube.
Gentilmente,
havia deixado Mariazinha em casa.
Garantindo
não demoraria.
Demorasse,
saberia como dar jeito quando chegasse.
Chegou
em casa madrugada alta, espírito animado por muitas doses, Mariazinha acordada,
chateada, ele logo culpando os amigos pela demora, queria sair não deixavam,
cobriu-a de beijos, ela sorriu, cedeu, e a noite foi quente naquele início de
1942...
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Emiliano José
7
de março 2021
Carlos Navarro Filho:
Mariazinha conhecendo
o marido, homem
de bem, mais qualidades
que defeitos,
muitas barrigas, muitos filhos.
Mariazinha
deve ter refletido logo ali naqueles primeiros dias: será um casamento feliz.
Do
que ouvira, do que sabia, Gil-Braz era sujeito do bem.
Tem
um defeito, diziam: adora uma farra.
Nada
demais: tocar uma viola, juntar amigos, beber uma coisinha.
Isso
não fazia mal a ninguém.
Cuidasse
dos filhos, e já seria bom o casamento.
Fosse
ameno, carinhoso, melhor ainda.
Soubesse
amar, paraíso.
Trabalhador,
isso já sabia - rigoroso com seus afazeres, como poucos.
Trouxesse
o pão de cada dia, ótimo - trazia.
E
foi conhecendo-o, sentindo-o, e vendo as tantas qualidades dele, a compensar os
poucos defeitos.
Sentiu:
esse será um casamento duradouro.
Foi.
Durou
dez anos, e só terminou porque Carlos Navarro Gil-Braz partiu precocemente -
vamos contar isso mais adiante.
Filhos,
vieram, e não foram poucos.
Navarrinho,
o primeiro.
Nasceu
em 1945 - enfim veio à luz.
Depois,
Dalva.
Em
seguida, Marina.
Na
sequência, Gilson e Tuca.
Jurandir
veio ao mundo e morreu com menos de um ano.
Mariazinha
ainda daria a luz a Salvador - o Goroba, título de um livro de contos de
Navarrinho.
E
por fim, Eduardo, o caçula.
Um
atrás do outro, conta Navarrinho, já podendo falar, por já nascido.
Minha
mãe, de oito barrigas, seis filhos, 95 anos neste 2021, completados em novembro
do ano passado, sempre bem humorada, lúcida, costuma brincar "eu era igual
igreja de São Bento um fora outro dentro". Amanhã deve tomar a segunda
dose da vacina contra o covid, em São Paulo, onde mora.
Mariazinha
não foi diferente.
Foram
nove barrigas.
Vingaram
sete.
Foi
vida de milhões de mulheres por esse Brasil afora, sertões, fundões, mares e
favelas: fazer e criar filhos, desdobrarem-se em mil, amor e cuidados, a casa
nas mãos, muitas vezes sem o marido, fugido, morrido, matado.
Ainda
é, um outro Brasil, mas ainda acontece muito.
Com
Mariazinha foi assim.
Cedo,
cedo, viu-se sem Gil-Braz, não por fugido, mas por morrido. enfermidade o
levou, novo, novo, 38 anos.
Leitor
vai reclamar e vou pedir paciência.
Conto,
não se avexem...
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Emiliano José
8
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha casada
mas muito ligada
aos pais, eles iam à
Vila, ela ia à
Roça Velha, e um dia
quebra-facas de
Mourinha aparecem
na terra de
João, traziam recado de Mourinha...
Narrador
carrega a ilusão de mandar na escrita.
Manda
não.
Até
porque os personagens estão ao lado, atentos.
Não
deixam ninguém dormir.
Imaginei
pudesse falar do casamento, do nascimento da criançada, do primogênito
Navarrinho, a fileira dos sete, então seguir adiante.
À
noite, tentando conciliar o sono, um cafuso João, me alerta.
Mariazinha,
me sacode.
Antes
do nascimento de Navarrinho tem história pra contar.
Cobrança
dos dois.
Tenho
de concordar.
Volto,
então.
Casaram.
Carlos
Navarro Gil-Braz e Mariazinha, levando a vida, morando na Vila Paraguaçu.
O
velho João Alves, a mulher Maria Alves, pais de Mariazinha seguiam tocando a
Roça Velha.
Volta
e meia, os dois apareciam na cidade - é, podia ser chamada assim a vila em
contraposição à Roça Velha.
Mariazinha,
de vez em sempre, os visitava, saudades deles e da vida na roça.
Muito
ligados.
Estava
o velho João numa segunda-feira do início dos anos 40, ali por 1943, 1944,
cuidando do eito, bem próximo à morada da Roça Velha, e ouviu um tropel de
cavalos.
Foi
logo ver o que era.
Dois
cavaleiros.
-
Bom dia, seu João, disse um deles, sem tirar o chapéu e de modo um pouco áspero.
-
Bom dia - respondeu o velho João, no mesmo tom.
Não
desceram dos cavalos.
-
A que devo a razão da visita? - perguntou João, ainda mantendo a educação.
-
Nós estamos aqui a mando de Mourinha - disse um deles, prenunciando trovoada,
voz de quase ameaça, modo a desagradar o velho João.
O
leitor deve se lembrar, mas em todo caso, vamos recordar: Mourinha era o nome
do mandachuva, do coronel, do dono de terras até onde a vista alcançava e bem
além.
Nome
de batismo: Manoel Justiniano de Moura Medrado.
Era
ouvir esse nome, e as pessoas tremiam.
Coronel,
chefe de todos os Medrado, inclusive do antigo marido de Mariazinha, que Deus o
tenha.
João
os conhecia bem.
Sabia
conviver, admitiu até o casamento de Mariazinha com um deles.
Afinal,
a terra era de Mourinha - assim ele proclamava.
Respeitava,
mas nunca de modo a baixar a cabeça.
E
não tremia à toa.
-
E que mal pergunte, Mourinha os mandou
aqui para quê?
João
perguntava por perguntar.
Sabia
mais ou menos qual o recado trazido pelos quebra-facas do coronel...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: capangas chegando
com aviso de
incêndio, Mourinha dando
ordem para a
produção de pó de palha
de licuri, isso
ou cinzas, um fogaréu,
coronel não
estava para brincadeira
Sabia, ele sabia
a pretensão de Mourinha.
Mas,
queria ouvir.
Olhava
pros dois quebra-facas.
Por
lá também chamavam capangas.
Melhor
assim - pistoleiros, mais pesado.
Ancestralidade
indígena, cafuzo todo, os olhos do velho João, avô de Navarrinho, vigiavam
tudo.
Um
viera num cavalo manso, sela arrumada, sujeito meio amuado, jeito de quem só
espia, não dá palavra, só assunta.
Com
esse, bom ter cuidado - pensava João.
O
calado, sempre mais astuto, perigoso.
Outro,
parecia mais esperto, de montaria imponente.
O
cavalo, seguro no freio pelo cavaleiro, resfolegava o tempo todo, batia as
patas no chão, nervoso.
Impressionava
pelo porte.
O
nervosismo talvez se explicasse também pelas esporas do cavaleiro.
As
marcas estavam lá, nas virilhas da montaria.
Ao
lado de cada sela, pendia uma espingarda - conhecia armas bem.
Não
era homem de assustar com pouca coisa.
Vida
era uma só.
Arma
era coisa de homem - só assustava quem não fosse.
-
O que o Mourinha quer mesmo?
Maria,
a mulher, na soleira da porta da casa da Roça Velha, tensa, preocupada.
Tinha
ciência sobre Mourinha.
Gente perigosa.
Perversa.
E
conhecia o temperamento do marido.
Quieto,
calado, mas não mexessem com ele.
Não
dava coisa boa.
Quando
João perguntou de novo, o mais adiantado, o falante, de cavalo baio arisco,
pigarreou, não se sabe se de tanto cigarro de palha ou de nervosismo, da tensão
no ar, e disse:
-
O senhor precisa passar a produzir pó de palha de licuri - imperativo,
grosseiro.
-
Quem está dando essa ordem? - o velho João perguntou, fingindo inocência.
-
A ordem é de Mourinha - disse o quebra-faca, agora com voz ainda mais arrogante.
-
E se eu não fizer isso? - arriscou o velho João, esticando a corda,
conscientemente.
-
Ou faz pó de palha de licuri ou vamos tocar fogo em tudo - disse o capataz,
olhando em volta, decidido.
-
Tudo isso aqui vira um mundaréu de cinzas - completou.
Depois
disso, esperava assentimento.
Ninguém
se dispunha a enfrentar Mourinha.
Ninguém?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de março 2021
Carlos Navarro Filho: Brasil do
latifúndio
e dos coronéis, domínio pelo terror e
medo, velho João indignado com ousadia
dos capangas, o Diabo que venha em
pessoa,
não mande recado por quebra-facas,
viesse.
Talvez
seja difícil pensar no Brasil de quase 80 anos atrás.
Sobretudo
o Brasil dos fundões.
Dos
sertões.
Não
passara tanto tempo assim desde a matança de Conselheiro e seus seguidores
camponeses.
Os
coronéis desses ermos eram senhores da vida e da morte.
Infundiam
medo.
Terror.
O
domínio deles Brasil afora era exercido pelo medo, pela violência, pela força
das armas.
Mourinha
era uma dessas figuras.
Talvez
coubesse como personagem de "Coronelismo, Enxada e Voto", clássico
sobre o fenômeno do latifúndio, de Victor Nunes Leal, amigo de Waldir Pires,
defenestrado do STF por não ter concordado com o AI-5.
Difícil
pensar aquele País onde nos sertões os coronéis ainda mandavam, embora
houvessem perdido poder no conjunto da Nação, caminhando para se
industrializar.
Mourinha
tinha certeza de seu poder, de seu mando.
Considerava
impossível não ser obedecido.
Tinha
razões para pensar assim.
Não
conhecia bem o velho João Alves dos Santos, avô de Navarrinho.
Ouvira
aquela fala imperativa do capanga mais falante, do cavalo mais elegante, das
esporas brilhantes, e achara um desaforo, um desrespeito.
-
Como? - pensou, de si para si.
-
Se eu não obedecer, vão tocar fogo em tudo? - repetia intimamente.
Tinha
de confessar: o sangue ferveu.
Sangue
cafuzo não é brinquedo, ancestralidade forte.
-
Como é que um sujeito vem à minha casa, à porta da minha casa, fazer uma ameaça
dessas?
Tudo
isso passou pela cabeça em poucos segundos.
Deu
uns dois passos adiante, aproximou-se do cavalo elegante quase amistosamente,
lentamente, sem tirar os olhos do quebra-facas, alisou a bela crina do baio a
resfolegar, a montaria se aquietando parece gostando do carinho, o capanga sem
entender aquilo, e aí olhou nos olhos dele, e disse:
-
Deixa eu lhes dizer uma coisa: quero que vocês dois voltem, e digam ao Mourinha
que não mandem mais vocês aqui não.
Os
dois, particularmente o do cavalo elegante, olhos esbugalhados, impressionados
com a ousadia.
-
Vocês são tão pobres como eu - acrescentou, num tom de lamento, sem altear a
voz.
E
mandou o recado, subindo o tom:
-
Digam a Mourinha pra ele mesmo vir tocar fogo.
Os
dois sentiram a determinação, a autoridade moral do velho João, a voz segura,
sem qualquer hesitação, olho no olho.
Matar
ali o velho, não iriam.
Seguiram
de volta.
O
velho João viu cavalos e cavaleiros a galope sumirem no horizonte, levantando
poeira.
-
O Diabo que viesse em pessoa, não mandasse recado - murmurou João.
Entrou
em casa, junto com a mulher, morta de preocupação.
A
semana começara quente na Roça Velha...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
11
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: preocupação, insônia
do velho João,
inquietação da mulher Maria,
o zum-zum-zum na
Vila, movimentação
dos puxa-sacos,
solidariedade silenciosa
de muitos,
jagunços se movimentando,
Mariazinha
tomando as dores do pai.
O
velho João, avô de Navarrinho, foi dormir preocupado aquela segunda-feira.
Sabia:
a resposta dada aos quebra-facas fora quase uma declaração de guerra.
Uma
afronta.
Mas,
como não dar aquela palavra?
Aprendera
com seus pais: homem pode perder tudo, tudo mesmo, e a vida às vezes carrega o
vivente para uma situação dessas.
Perder
tudo, sim.
Menos
a honra.
Essa,
inegociável.
Isso
o levou a dar aquela resposta.
Demorou
pra conciliar o sono, ele desacostumado à insônia.
Percebeu
a inquietação de Maria.
E
tinha certeza de sua solidariedade, não obstante o medo, natural.
A
notícia correu pela Vila do Paraguaçu como um rastilho de pólvora.
Não
havia quem não soubesse da resposta do velho João.
Os
puxa-sacos de Mourinha, defendendo-o.
E
esperando a merecida lição no posseiro da Roça Velha.
Como
afrontar assim o padrinho de todos nós? - perguntavam.
Vocês
sabem: puxa-saco há em qualquer lugar.
Subservientes,
também.
Servidão
voluntária está espalhada por aí.
Mas,
há gente boa, solidária.
Havia
lá na Vila.
Gente
ao lado do velho João.
Preocupada
com ele.
Essa
gente não falava muito, só assuntava.
Que
ia fazer?
Não
ia dar murro em ponta de faca.
Torcia
para que nada acontecesse ao lavrador da Roça Velha.
Afinal,
vivera em paz ali, de sol a sol, por longos 11 anos.
Era
uma sina.
Trabalhar
duro, pagar a renda do dono das terras, ver sobrar pouco para dar de comer à
família.
Tinha
sido essa a sina do velho João até ali.
E
agora, bastava uma palavra mais forte, e as pessoas iguais a ele na Vila viam
os capangas se armando, prontos para desalojá-lo da terra.
Nas
primeiras horas da quinta-feira da mesma semana correu o zum-zum-zum: jagunços
de Mourinha iam desocupar a Roça Velha naquele dia.
À
bala.
Mariazinha
soube.
Tomou
as dores.
Como
não tomar?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Um cavalo, uma espingarda debaixo da saia, uma caixa de cartuchos,
Mariazinha na estrada
pronta para
enfrentar jagunços de
Mourinha, João
da Roça Velha e as
lembranças dos
últimos 11
anos,
transformando aquela
terra em lugar
bom de se viver.
Mariazinha
estava casada fazia dois anos.
Não
se enganara: Lalinho era excelente marido.
Carlos
Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, era chamado assim por ela.
Vocês
não sabem por quê?
Nem
eu.
Esses
apelidos surgem de repente da intimidade de marido e mulher.
Gostava
muito de Lalinho.
Infelizmente
até ali não tivera filhos.
Tentaram.
Mas,
dois abortos espontâneos naqueles primeiros dois anos de casamento haviam
impedido.
Navarrinho
será o primeiro e ainda não havia nascido nesses dias tempestuosos da investida
de Mourinha contra o velho João.
Quando
soube de capangas se arrumando, muito cedo, foi pro quintal, arriou o cavalo,
meteu o pé esquerdo no estribo, montou, e seguiu pra Roça Velha.
A
galope.
Conhecia
os caminhos, atalhos, veredas, por onde foi ninguém a interceptaria.
Sob
a saia, a espingarda 20 de caça, de uso de Gil-Braz.
No
alforje da sela, uma caixa de cartuchos.
Se
era pra resolver na bala, fosse.
Atirar,
sabia, desde menina.
Nada
de avisar o marido.
De
si para si, já montada, murmurou:
-
Eles não sabem com quem estão se metendo.
Indignada,
com muita raiva, continuou:
-
Se botar meu pai na rua, esse coronel não vai gostar do que vai ver.
E
completou:
-
Lalinho depois que resolva com ele.
João,
o João da Roça Velha, assim conhecido de tão ligado era à terra, passara
aqueles dias, desde a segunda-feira, refletindo sobre a vida.
Quando
levantou naquela quinta-feira, sol ainda não havia surgido.
Vida
longa ou curta, há de ser vivida com dignidade - pensava.
Cor
de bronze, bronzeado ajudado pelo sol dos sertões, terceira geração de
tupinambás, baixinho.
Gostava
de exibir os muques para netos e bisnetos, adquiridos no trabalho da roça e na
lida de levar mula de tropa mundo afora.
Vida
dura, a da Roça Velha.
No
Boqueirão, muito melhor.
Mas,
na Roça Velha havia passado os últimos 11 anos.
O
lugar agora parecia coisa de gente.
Dava
gosto de viver.
E
foi necessário muito trabalho, suor derramado até chegar a isso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: a hora e a vez, ouvindo
tropel de
cavalos velho João pensa,
providenciando
carne de mocó ou de preá,
sanguessugas
chupando o sangue da perna
de Mariazinha,
óleo de licuri pra
alumiar a
escuridão, maldade da sussuarana
Ao
levantar-se, deixar Maria ainda dormindo, o velho João, enquanto toca fogo na
lenha do fogão, começa a preparar o café, rememora a vida.
Como
se carecesse.
Como
se fosse a hora e a vez dele, sensação.
Como
se ouvisse o tropel dos cavalos do coronel se aprochegando.
Nesses
momentos, a vida passa como num filme.
Mourinha
não havia de perdoar a palavra dura, tinha ciência disso.
Então,
bom rememorar, a vida é esse amontoado de lembranças, amontoado a nos tornar
homens.
Era
como se mexesse num velho caçuá, a remexer em tanta coisa.
Aquela
terra, agora sob a mira dos clavinotes de Mourinha, foi cavucada com muito
esforço.
No
começo, foi tudo difícil.
Todos
trabalhando, as meninas também.
Era
o sol raiar, e caminho da roça.
Carne,
a de caça.
Tomava
da espingarda de socar, e se criançada ouvia tiro, sabia:
feijão
com farinha vai ter reforço de mocó ou de preá.
Mourinha
não deixava criar boi - só bode e porco.
Perverso.
Vinham
saudades do Boqueirão, onde havia todo tipo de carne.
Corria
assim a vida.
Mariazinha,
a filha, sofria com a colheita do arroz. O charco infestado de sanguessugas
grudando nas pernas, sem chance de tirá-las, e saindo depois de empanturradas
do sangue novinho.
O
licuri é nativo, nasce por aí.
Pela
vontade de Deus, esparrama-se pelo mundo.
Além
do coquinho, delícia da garotada, permite a feitura do óleo a encher as
lamparinas e alumiar a noite escura.
E
com esse óleo, feito por Maria, a mulher, avó de Navarrinho, o velho João movia
os dois motores de meio cavalo, adaptados na moenda de cana e na casa de
farinha.
E
Mourinha agora inventara outra serventia pro licuri, só para desfrute dele.
Perversidade.
Pensava,
o pensamento parecia coisa à toa, lembrança e lembrança.
E
será, que será?
Os
homens de Mourinha já estão a caminho? - perguntava-se à beira do fogão, madrugada,
noite ainda daquela quinta-feira.
Tinha
ido, nos dias anteriores, azeitar as armas.
Tivesse
precisão, não lhe faltariam.
Estavam
ali, a postos.
Ele
e as armas.
Viessem.
A
hora e a vez.
Se
medo não tivera de onça, da pintada ou da preta, de homem iria ter?
Abateu
algumas para proteger seus cabritos, garantir vida à criação.
Pensou
na sussuarana - muito malvada.
Mata
e não carrega - apenas chupa o sangue quando está saciada.
Lembrou
de pronto de Mourinha, nem sabe por quê.
Parece
destino da humanidade: quanto mais o sujeito tem, mais quer.
Medo,
não aprendera.
Àquela
altura da vida, não aprenderia mais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: pó de licuri a nova
moda de
Mourinha, pagamento da renda
no final de ano,
chegando o plástico,
desaparecendo a
gamela de madeira,
velho João
resistindo, Mariazinha
na estrada,
recordações da Roça Velha.
O
velho João, músculos ainda enrijecidos pelo trato da terra, a cabeça
atormentada pelas memórias indo e vindo, pensava no licuri.
-
Que diabo era aquilo de querer obrigar posseiro a parar tudo e só produzir pó
de palha de licuri?
E
o resto?
Tinha
de produzir.
Para
ele e para vender na feira mode a juntar algum dinheiro.
E
juntar para no final do ano entregar tudo ao coronel Mourinha.
Dinheiro,
dinheiro mesmo, todo o amealhado, era pra ele.
Agora
vinha com essa...
Levantou
a caneca esmaltada já desgastada pelo uso, tomou um gole de café, ouviu o
cantar do galo chamando a todos, viu os primeiros raios de sol começando a
invadir o chão de terra batida da cozinha.
Contava-se
por tudo quanto é ermo naquelas bandas, nas terras arrendadas por Mourinha, as
ordens chegavam e deviam ser cumpridas: todos deviam produzir pó de palha de
licuri, coronel único comprador, ditava o preço, e ai de quem tentasse vender a
terceiros.
O
posseiro perguntava pra que diabo servia aquilo, e não tinha resposta.
Ordem
de Mourinha - e ponto.
Alguns
poucos souberam: o pó de palha seria cozido em alta temperatura, transformado
em celulose e depois em galatite.
Era
o sabido, comentado, sem comprovação de verdade.
A
galatite era matéria-prima para fabricar copos e bacias de plástico.
Sumiriam
nas asas do tempo as velhas gamelas de madeira.
E
os tantos utensílios esmaltados ou de cobre.
Com
ele, não.
Mourinha
fosse tratar disso com outros, os conformistas, os do reino do sim senhor.
Respeito
sim, nunca faltou.
Submissão,
nunca.
Mariazinha
saiu da Vila Paraguaçu a galope, cedo, cedo, espingarda e cartuchos a tiracolo.
Pai
não iria ficar sozinho.
-
Mexeu com pai, mexeu comigo - ia repetindo, diminuindo o galope nas veredas.
O
pai passara por poucas e boas para tornar a Roça Velha local habitável.
Ouvira
falar de menina naquela coisa de terra de leite e mel como terra da felicidade.
Nem
tanto - teve tempo de odiar mel, tanto mel na Roça Velha.
Lambuzava-se
de mel no chá, no café, com farinha, no mamão, na abóbora, no aipim, chega um
dia enjoa, vira remédio.
Roça
Velha lhe trazia lembranças de um tempo duro, e simultaneamente feliz.
Foi
testemunha do vigor, da força do velho pai.
E
agora queriam fazer guerra com ele?
Querem?
Vão
ter.
Apertou
o passo, exigiu da montaria...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
15
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Por entre atalhos
e veredas segue
Mariazinha,
morando no
bem-bom, consciência
culpada,
encontra família sã e salva
pronta para a
guerra, pai, medo nenhum...
Era
só legua e meia.
Parecia
mais.
Obrigada
a seguir por atalhos, procurar veredas, afastar a galharia do caminho,
Mariazinha tinha de puxar a rédea da montaria, segurar a marcha, nem trotar às
vezes podia, cavalo só no passo.
Quando
a estrada se abria, galope.
Desde
o casório, do primeiro, sentia alguma culpa.
Morava
no bem-bom, casarão na rua principal da Vila do Paraguaçu.
Marido
Medrado providenciou casa grande,
parecia quase palácio quando se olhava o restante das residências.
Família
Medrado ainda tentou tomar depois da morte do marido Medrado, ela fincou pé nos
seus direitos, dali não arredou pé.
Até
cavalo cabia no quintal espaçoso, e foi dali sua partida aquele dia para
encontrar o pai, guerrear ao lado dele, carecesse.
Tão
bem instalada, e os pais lá na Roça Velha, naquela vida dura.
Um
pouco de consciência culpada.
E
além de queda, coice.
Mourinha
agora quer fazer maldade contra o pai.
Nada.
Mexeu
com ele, mexeu comigo.
O
velho João foi dar milho às galinhas, e pensava: além de tudo a seca miserável,
assolando tudo, ele devendo um ano de arrendamento.
E
pobre é o diabo: dívida o incomoda, muito.
Rico,
não.
Chega
a divertir-se com dívida.
Sabe
rolar, sempre.
João,
avô de Navarrinho, andava angustiado pela dívida.
E
vem lhe pedir pra produzir só pó de palha de licuri?
Mariazinha,
meia hora de galope, trote e passo, chegou à Roça Velha.
Encontrou
a família, sã e salva.
É,
sã e salva, mas entrincheirada.
A
postos para a batalha.
O
pai chamara quem tivesse condições de luta.
Por
toda a manhã, se preparou.
Sabia
vinha guerra.
Se
vinha, melhor aprontar-se.
Curioso,
pensava, quase surpreso com ele mesmo:
medo não tinha.]
Nenhum.
Viver
é do risco, sempre.
E
ninguém fica pra semente...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: terreiro lá de casa não se
varre com
vassoura varre com ponta de sabre
bala de
metralhadora, as espingardas e clavinotes ainda não cuspiram fogo, Gil-Braz vai
atrás do coronel para exigir explicação sobre desocupação da Roça Velha.
Amanheci
com cantiga brava na cabeça.
Sei
por que não.
O
terreiro lá de casa não se varre com vassoura varre com ponta de sabre e bala
de metralhadora como a noite traz o dia com tristeza ou com demora terá quem
anda comigo sua vez e sua hora o que sou nunca escondi vantagem nunca contei
fugir nunca fugi nunca abandonei meu chão.
Talvez
a frase: nunca abandonei meu chão.
Talvez
pensando no velho João.
Imaginando
a batalha da Roça Velha.
Fogo
cuspindo das espingardas e clavinotes sangue avermelhando as águas do
Paraguaçu.
De
um lado, pistoleiros de Mourinha.
De
outro, o velho João e filhos e filhas.
Mas,
tenham calma, minhas senhoras e meus senhores.
Leitores,
sei, são impacientes.
Hão
de ter paciência.
Chega
a hora.
Ainda
não.
Batalha
vem depois.
Lá
na Vila de Paraguaçu, logo Mariazinha pegou estrada na direção da Roça Velha,
chegou gente correndo atrás de Carlos Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho:
-
Acode, seu Carlos, acode. Dona Zinha saiu esbaforida a cavalo pra Roça Velha.
Gil-Braz
só então deu-se conta de tudo o que corria no breu das tocas, e disparou na
direção da casa do coronel Mourinha.
Falemos
um pouco de poder.
Na
Vila do Paraguaçu havia duas autoridades.
Uma,
a do coronel, pela tradição e força das armas.
Outra,
a do homem dos correios.
Funcionário
público federal, chefe dos Correios e Telégrafos.
Respeitado
por entre tantas coisas ser o escrevinhador das cartas locais, guardador de
segredos de muita gente, inclusive de pessoas da família do coronel.
Autoridade
conquistada na manha, na delicadeza. mas autoridade.
E
não é qualquer coisa ser um guardador de segredos.
Chegou
à casa do coronel, indignado:
-
O senhor pode me explicar, coronel Mourinha? Vão desocupar a Roça Velha na
bala?
Mourinha
engatou um veja bem, confirmou a escaramuça, mas jurou de pé junto jamais ter
autorizado a desocupação da Roça Velha.
Como
o uso do cachimbo faz a boca torta, coronel é coronel, sacou das armas de
latifundiário, de dono de todas aquelas terras, Roça Velha incluída:
-
Não posso deixar de dizer ao ilustre telegrafista: seu sogro está devendo dois
anos de arrendamento e se a notícia espalha ninguém mais vai querer pagar.
Que
soubesse, era um ano de atraso, não dois.
Fosse
quanto fosse, era razão pra resolver a coisa na bala?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Cleidiana Ramos: Esse Mourinha
é o mesmo Justiano de Moura Medrado? E olhe que na segunda onda de batalha ele
era tido como mais "ameno" que o filho ...imagine.
Emiliano José: Cleidiana
Ramos o mesmo
Cleidiana Ramos: Emiliano José
...olha só!
Carlos Navarro: Era o próprio,
o conheci. Eu muito criança. Lembro que não era brabo, o filho Raul também não.
Mas Mourinha era muito duro e cercado por gente ruim. Edgar um dos filhos era o
cão em figura de gente.
Carlos Navarro: O nome correto
é Justiniano.
Cleidiana Ramos: Carlos
Navarro, pois é. Quando fiz a entrevista com alguns dos posseiros eles sempre
diziam que o velho era mais ameno e Edgar....tinha um que o chamava de
"demônio"....se recusava a citar o nome dele..Edgar entrevistei
algumas vezes. A melhor foi quando pude contar a ele, finalmente, que Vladimir
Pomar estava vivo....o choque dele foi algo digno de nota hehehe....
Cleidiana Ramos: A digitação me
traiu na hora de me referir ao nome do coronel, mas "Mourinha" é
realmente novo..rsrs..o povo que entrevistei sempre dizia "o coronel
Moura", ou "seu Moura"....por isso fiquei a princípio se era o
mesmo.
Carlos Navarro: Cleidiana
Ramos era muito "seu Moura", mas a verve de escritor do nosso
Emiliano criou o Mourinha (aliás meu pai o chamava assim) porque ele era
pequeno. Quanto a Edgar era delegado importante aqui em Salvador e foi se
queixar a minha mãe, que morava na Joana Angélica, defronte ao convento da
Lapa, por causa da denúncia que fiz por uma das muitas sacanagens que fez com
posseiros lá.
Carlos Navarro: Eles se
conheciam desde adolescentes e Mariazinha deu um passa fora nele, dizendo que
se quisesse fosse me procurar. Por sorte não veio porque eu era um moleque
ousado.
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Emiliano José
17
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: se entrega Corisco, não
me entrego não,
não sou passarinho pra viver
lá na prisão,
Guerra do velho João, Guerra do
Licuri,
Mariazinha apeando do cavalo 20
nas mãos, Maria
José suplicando pra ir
embora, João
preparando as armas de
fogo, e as
brancas afiadas, carecesse.
Músicas
andam apertando minha mente.
E
elas surgem não sei de que mundo.
Não
decifro totalmente os recados.
Encantados
do sertão saberiam responder.
Eu
não.
Penso
na perseguição.
Ouço
o grito:
-
Se entrega, Corisco!
A
resposta:
-
Eu não me entrego não!
Porra
nenhuma:
-
Eu não sou passarinho pra viver lá na prisão.
-
Se entrega Corisco!
Porra
nenhuma:
-
Não me entrego ao tenente não me entrego ao capitão eu me entrego só na morte
de parabelo na mão.
É,
mais fortes são os poderes do povo.
Por
que Sérgio Ricardo e Glauber Rocha vem me atazanar o juízo?
Desconfio:
é a Guerra da Roça Velha, é a luta do velho João.
Chamo
assim: Guerra da Roça Velha?
Ou
Guerra do Licuri?
Sei
não, o leitor vai decidindo, e eu toco a
história.
Naquela
quinta-feira, ainda era manhã e o velho João viu poeira na estrada.
Pensou
no pior.
Nada:
um cavaleiro só.
Não
carecia apreensão.
Mourinha
só anda de bando.
E
se tem de mandar fazer maldade, só manda bando.
Esperou
e viu: era Mariazinha.
Desceu
de um pulo só do cavalo, a 20 nas mãos:
-
Que faz aqui? - perguntou o pai.
Por
perguntar, já sabia.
-
Sua guerra é minha guerra - disse a filha.
Comandante
de tropa, o velho João, avô de Navarrinho, juntou o batalhão e as armas.
Não
era grande o arsenal: duas espingardas de socar, uma de dois canos destinada a
matar onça e qualquer outro bicho grande, uma calibre 32.
Carecesse,
levava ainda quatro facões Solinger amolados a capricho nas noites anteriores,
e seis foices, também tinindo no corte.
Faltou
bala, tem arma branca, de boa serventia quando escasseia a munição.
Maria
José, a mulher, rogava rogava vamos embora de vez ao menos vamos salvar a vida
de nossos fiinhos cê sabe jagunço não perdoa quando vem destrói tudo não deixa
nada em pé nem ninguém pra contar história Deus nos livre guarde vambora João.
O
velho João, preparando armas, nem ouvia, não queria ouvir...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: prepare o seu coração pras coisas que eu contar, velho João
e a insônia,
evocações das tropas
de mula, morte
de onças, lágrimas
no meio da
noite, certeza da batalha
no porvir,
levantando-se pronto pro embate.
Hoje,
o coração amanheceu em disparada.
Prepare
o seu coração pras coisas que eu vou contar eu venho lá do sertão e posso não
lhe agradar aprendi a dizer não ver a morte sem chorar e a morte e o destino
tudo estava fora de lugar na boiada já fui boi mas um dia me montei o mundo foi
rodando nas patas do meu cavalo as visões se clareando até que um dia acordei
agora sou cavaleiro laço firme braço forte de um reino que não tem rei.
O
velho João e sua encruzilhada provocam rememorações, embaladas pela música.
Na
noite de quarta para a quinta-feira, demorou pra dormir, pensando no dia
seguinte.
Já
soubera das movimentações dos homens de Mourinha.
Pegar
no sono, um custo.
Gozado:
pensou nas tropas de mula, nos longos trajetos levando mula pra lá e pra cá,
dormindo no mato, vigilante, olhos semiabertos modo a vigiar onça atrevida,
bicho qualquer, noites de estrelas.
Aquelas
paradas, conversas, a trempe improvisada para preparar a xepa.
Nas
viagens do Boqueirão para Jequié, ida e volta, coisa pra mais de mês.
Vida
dura, mas boa.
Não,
nunca tivera desavenças mais sérias.
Quando
houve, enfrentou sem precisão de armas.
Agora
parece fosse exigir.
Dormiu,
mas no meio da noite, bem antes do galo cantar, e por mais de uma vez,
levantou-se.
Preocupar-se,
fosse sozinho.
Deixasse
Maria dormir sossegada.
Não
incomodasse os filhos.
Descobriu-se
chorando.
Bom
fosse só.
De
primeiro, assustou-se.
Depois,
deixou-se chorar.
Uma
boa sensação.
Adulto,
nunca mais conhecera isso, lágrimas.
O
que estava feito, feito estava.
Na
vida há coisas sem volta.
Carece
só enfrentar.
Os
homens de Mourinha iam bater em sua roça.
E
a ele carecia defender a família.
Destino
de homem.
Já
matara muita onça pra defender a criação, os cabritos.
Refletiu:
homem também pode tombar pelo trompaço de balas.
Podia
ser ele.
Mas
podia também ser os homens de Mourinha.
Levantou
pronto pro embate.
As
lágrimas já tinham sucumbido...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: velho João acuado,
sabendo chegada
a hora, escolhendo
campo de
batalha, preparando localização
do exército,
pontos de tiro, demora,
esperança na
desistência de Mourinha
Penso
no velho João.
Avô
de Navarrinho, horas decisivas.
Lembro
de meu pai, sentado à beira da cama, revólver na mão.
Lá
na Fazenda Cascavel, em Monte Alto, São Paulo.
Eu
ali na casa dos seis, sete anos.
À
espera de alguém, não sei quem.
Viesse,
pronto para o embate.
Sentia
a tensão dele, e ao mesmo tempo, a disposição para o que desse e viesse.
Ninguém.
Bem,
o velho João tinha certeza da vinda dos homens de Mourinha.
Levantou-se
naquela quinta-feira sentindo-se uma fera acuada.
Acuado
pela mulher, Maria, cuja pretensão era pegar todas as tralhas filharada gato
cachorro cabrito galo galinha e sumir na estrada certeza do estrago de jagunços
quando chegam.
Acuado
por Mourinha, os capangas certamente a caminho.
Acuado.
Experimentado,
acostumado a olhar trilhas, divisar montes, adivinhar matas, sentir bicho bravo
chegando, sabia localizar-se nos terrenos.
Não
carecia ninguém lhe ensinar sobre lugar de combate.
Guerra
quando chega melhor saber como fazer.
Se
eles vinham, bom ficar na espreita, e em um bom sítio para guerrear.
Primeiro,
precisava ficar nem tão longe nem tão perto da casa mode a poder recuar de
maneira segura, carecesse.
Escolheu
um lajedo logo adiante, do lado direito da estradinha de roça que subia para a
casa da família.
Dali
podia olhar o horizonte, mais ao longe, perceber a chegada dos malditos,
viessem, e meter bala, guerra é guerra.
Na
guerra, importante é perceber a movimentação do inimigo.
Com
ele, seu exército: as duas filhas, Joaninha e Nega, e Francisco, o filho homem,
novo mas em condições de combate - naquelas condições não podia dispensar quem
pudesse combater.
E
mais naturalmente, Mariazinha, importante reforço chegada da Vila Paraguaçu,
filha a valer por muitos homens.
Ele,
Mariazinha e Francisco ocuparam o lajedo do lado direito.
Joaninha
e Nega, do outro lado, morrete mais alto, mais bem protegidas das balas dos
capangas.
O
sol subia, chegava a tarde.
O
velho João não ouvia nenhum tropel de cavalos, nada de poeira subindo na
estrada.
É
curioso o coração dos homens: aquela demora aguçou uma ponta de esperança no
velho João.
Talvez
um milagre, e Mourinha, quem sabe, tivesse desistido...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: velho João ainda esperançoso na desistência, mas exército
de prontidão
Joaninha Nega Francisco Mariazinha pronto para o combate, espingardas embaladas
facões e foices afiadas, rezando o santo rosário, poeira na estrada, chegada a
hora, jeito mais não.
O
velho João olhava olhava o horizonte.
Não
via se alevantar poeira nenhuma a denunciar a chegada dos capangas de Mourinha.
Acendeu-se
uma chama em seu coração.
Quem
sabe, o coronel tivesse desistido daquela empreitada.
Quem
sabe, tivesse resolvido deixá-lo quieto na Roça Velha, abandonado aquela idéia
do pó de palha de licuri.
Quem
sabe, quisesse conversar ao invés de simplesmente impor pela força das armas a
sua ideia.
E
quem sabe não ocorresse a Batalha da Roça Velha.
De
qualquer modo, estava ali com seu exército.
Seguro
morreu de velho.
Joaninha,
a filha mais velha, beirando ali quem sabe pouco mais pouco menos os 26 anos.
Nega,
nascida logo após, 24, 25 anos.
Mariazinha,
a terceira, 22, 23 anos.
Francisco,
chegando à idade adulta, coisa de 18 anos, já em condições de pegar em armas.
Velho
João, Mariazinha e Francisco de um lado.
Joaninha
e Nega, do outro.
Chegassem
na estrada os capangas, chumbo.
O
velho João, com espingardas e facões.
Joaninha
e Nega, com as foices.
Mariazinha,
com a 20 trazida da Vila.
Aquela
espera deixava a todos à beira de um ataque de nervos.
Nessas
situações, o vivente quer logo o desenlace.
Fosse
guerra, viesse logo.
Numa
hora dessas, quando carece proteção, bom apelar ao bom Deus e à Virgem Maria
mode a pedir licença pra continuar nessa terra.
Os
cinco pegaram a rezar o terço.
O
santo rosário embalava o espírito, aumentava a fé, revigorava a disposição para
o combate.
Joaninha
dedilhava o rosário, puxava as ave-marias e os pai-nossos, e todos a
acompanhavam em voz alta, como era do hábito sertões afora.
De
repente, o velho João, avô de Navarrinho, pediu silêncio, fez parar o santo
rosário, aguçou os ouvidos.
Ao
longe, um tropel.
Olhou
com atenção, e viu poeira se alevantando distante.
Não
era poeira de um só cavaleiro.
Só
não sabia quantos.
Chegada
a hora.
Jeito
mais não....
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Angelica Rodrigues Oliveira: Estimado Imortal,
que honra ouvir seu discurso de Posse! Um belo e profundo livro pesquisado com
afinco. Nascendo uma nova biografia
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Emiliano José
21
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Grande Sertão, releitura,
viver é
perigoso, na boca do trabuco, no
té-retê-retém,
no sertão Deus se vier
que venha
armado, o pavor, a tremedeira, a volta a si mesmo, ordem de combate, espingarda
mirando inimigo.
Sei
não, mas já ouvi, isso ouvi: acaso existe não.
Fui
atrás de "Grande Sertão Veredas".
Reler.
Besteira
esse negócio de reler, não corresponde.
Chamamos
assim por hábito.
É
tudo novo quando você pega o livro novamente.
Acaso
nada: foi o velho João e sua história, seu momento de tomar das armas, passar
óleo nas espingardas, afiar facas e foices, esperar o momento de terçar.
Olhe,
foi botar os olhos nas primeiras linhas, e deslumbramento.
João,
avô de Navarrinho, podia dizer com o velho Rosa: viver é muito perigoso, falar
do perigo que é viver.
Desejar
a chegada de um tempo em que não se usa mais matar gente.
Podia
concordar com Guimarães Rosa: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais
forte do que o poder do lugar.
O
senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.
Deus
mesmo, quando vier, que venha armado.
Ou
dizer chegassem viessem aqui com guerra em mim, com más partes, aí, é na boca
do trabuco: é no té-retê-retém.
Rosa
é poesia e verdade.
Vieram
com guerra contra ele, contra o velho João, agora teria de ser na boca do
trabuco.
Era
o diabo com sua cara feia, no meio do redemoinho.
Ouviu
o tropel, viu a poeira alevantando no horizonte, cavaleiros chegando, quantos
não sabia, olhar não alcançava.
Não
sabe por que, não sabe se Deus se o Diabo, ora, ora, ele sempre cheio de
coragem até ali sem um pingo de medo, não sabe de onde veio aquele pavor.
O
rumor crescendo, tropel barulhento, e o pavor.
Não
se entendia.
O
corpo não se governava.
Começou
a tremer.
De
repente, a pernas travaram, duras que nem pau.
Os
olhos estáticos, parados, fixados na pedra.
Os
filhos, seu exército, assustados, percebendo o estado do pai: que fazer sem o
comandante?
Fosse
Deus fosse o Diabo, foi passagem rápida.
Voltou
dono de si.
O
pavor, levado pelo vento.
A
tremedeira, virou pó.
Mercê
de Deus.
Voltou
a comandar.
Persignou-se,
e gritou, ouvindo o galopar dos cavalos bem próximo:
-
Mariazinha, Joaninha, o primeiro tiro eu dou.
-
Vocês só atiram depois de mim.
Filharada
sentiu firmeza, era o velho pai.
Gozado,
batalha próxima, e a filharada sentiu
tranquilidade - o pai no comando, tudo daria certo.
Velho
João apontou a espingarda de dois canos para a curva da estrada onde os
capangas de Mourinha iam aparecer...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: suspense da
porra, véi!
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto o bom taí, véi...
Jose Jesus Barreto: parecendo a
novela radiofônica "Jerônimo, o Herói do Sertão ", da minha infância.
com o Moleque Saci. lembra?
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto muito
Emiliano José: Jose Jesus
Barreto tá lá na memória...
Isabel Santos: Jose Jesus
Barreto ha,ha,ha...gostava dessa novela. Boa lembrança, que estava esquecida na
minha memória. Só Emiliano José mesmo para reavivar tantos momentos marcantes.
Essa história de Navarrinho tá danado de boa😘😘
Joaquim Lisboa Neto: O Rosa que
empurrou Osório a publicar Porto Calendário, aí o pau quebrou, o comunista
santa-mariense montou no Jabuti, prêmio!
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Emiliano José
22
de março de 2021
Carlos Navarro
Filho: quieto no canto
e aparece uma
guerra, quando o diabo desponta não se recusa peleja,
Maria mulher de
ouro, Mariazinha
chamando a
guerra pra si,
o tropel se
aproximando, hora chegando.
Eu
digo, sou eu João Alves dos Santos a seu dispor, de mim não procurei guerra.
Vocês
são testemunha.
Estava
bem quieto no meu canto quieto plantando colhendo cuidando dos cabritos
vendendo coisa na feira pra pagar renda.
Me
suficientava.
Pensava
enquanto olhava pra curva da estrada onde os capangas de Mourinha deviam
despontar.
Nesses
momentos, quando a vida parece por um fio, o tempo corre corre feito o demo
velocidade sem conta.
E
às vezes parece parar.
Abre
espaço pra pensar.
A
espingarda de dois canos em ponto de bala.
Estava
quieto sem mexer com ninguém quando vieram os homens de Mourinha como se
pudessem me dar ordens.
Podem
não.
Por
isso, estou agora aqui no meio de guerra.
Vocês
sabem: não busquei.
Se
veio, seja.
Quando
o diabo aparece, não cabe recusar peleja.
Pensou:
cavaleiros devem ter diminuído o passo, quem sabe assuntando terreno.
Em
guerra de sertão, ninguém entra de peito aberto.
Olha
antes, tiro pode vir de qualquer lugar.
Pensamento
na mulher.
No
tanto de súplica dela para partir, todos ganharem estrada, falando no tanto de
maldade dos homens de Mourinha.
Ele
negando, firme e triste ao mesmo tempo.
Mulher
como Maria não se encontra à toa não, digo, isso digo a vocês por verdade
verdadeira, dou testemunho.
De
fibra, coragem, daquelas de nunca faltar.
Do
Boqueirão até os dias de hoje, ela ali, na boca do fogão, na arrumação da casa,
na limpeza do quintal, nas conversas da noite a me guiar a vida.
E
me deu esses fiim todos, alegria da existência, e cuidou deles como ninguém,
educou cada um, deu lições de caráter a todos.
Nunca,
nunca faltou.
De
ouro.
Por
isso, triste quando disse vou pra guerra homem não hesita quando ameaçado se
fraquejar deixa de ser homem.
Sabe:
ela está em casa, coração na mão, o rosário girando girando ave-maria cheia de
graça pai-nosso que estais no céu...
Acredita:
oração desvia bala.
E
ele ali, o olho na curva da estrada, só esperando pra puxar o gatilho.
Pensou
nos filhos: não sabe o que seria a vida sem eles.
Estava
ali pronto para uma batalha sem destino certo, e eles ali, as meninas e o
menino, sem relutar, dispostos a matar e a morrer junto com ele, uma graça do Senhor
meu Deus.
Tem
de confessar, e aqui é confissão, não é para todos ouvirem: impressionou-se
mesmo foi com Mariazinha.
Despencar-se
da Vila do Paraguaçu, largar o conforto de sua casa, nem avisar marido,
munir-se de 20 e de cartuchos, chamar a guerra pra si, como se dela fosse, dela
sendo agora.
É
certo, pai, mãe costumam dizer: amam os filhos de modo igual.
Pode
até ser, mas naquele momento, o avô de Navarrinho não escondia uma ponta de
orgulho por aquela filha, mais do que uma ponta.
Valia
por dez homens, aquela menina.
Agora,
o tropel parecia mais próximo, a hora e a vez...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: memória desanuvia, Dércio, os primeiros dias na Roça Velha, partida
do irmão pra João Amaro, ele se segurando com os filhos, falta de um
braço para as armas, cavalos chegando, chumbo,
e a
desorganização da quadrilha capangueira
E de repente o
tropel dá um descanso.
Capaz:
capangas parando, na espreita, sentir terreno.
Mais
e mais rememorar.
Alembrar.
Chegou
na Roça Velha, e bote tempo nisso, com o irmão Dércio.
Soube
precisava conversar com coronel Mourinha.
Conversou
arrendou 200 tarefas de terra serviam pra nada era o dito e ele olhou as duas
nascentes e meteu as caras.
Pra
ele, servia
Pra
ele, o irmão e os fiim.
Lembra
de tudo isso acariciando a espingarda de dois canos, na espreita.
Naqueles
primeiros dias as meninas dormiam na tarimba de varas de araçazeiro.
Adultos,
no chão de barro batido.
Como
é bom alembrar, como se a vida voltasse.
A
vida é construção.
A
gente só percebe depois do construído, não no fazimento.
Por
isso, como é bom a memória, deslumbra, desanuvia.
Isso
tudo navegou pela mente, como num sonho, por mode do irmão Dércio.
Como
seria bom estivesse aqui - pensava.
Armas
ao meu lado.
Homem
como eu no combate aos homens de Mourinha.
Foi
embora pra João Amaro, cercanias, espécie de vila-matriz dessas terras.
O
velho João já com sete filhos não quis acompanhar o irmão.
Na
Roça Velha tinha água e arrumava jeito de dar de comer à família.
Agora,
sentia falta.
De
mais um braço para fazer uso de armas, que disso Dércio sabia, não soubesse de
tantas outras artes.
Importa
não, jeito já se deu, os filhos aqui ao lado farão o combate comigo - pensava o
velho João, tentando esquecer a ausência de Dércio.
Velho
João, avô de Navarrinho, agora ouviu o tropel bem ali, pertinho, pertinho.
Já
virado fera, nem pensava em família nem terras nem ninguém nem nada.
-
Se os miserave aparecê vão comer é chumbo, tão querendo, apois seja.
Puxou
o cão do gatilho e esperou.
Galope,
os homens de Mourinha vinham a galope, de bando.
Já
se sabia: dariam ao velho João o prazo de uma semana para juntar suas tralhas e
pegar estrada, ir embora, e não estragasse os roçados, os pés de licuri, as
nascentes d'água, deixasse tudo no zelo.
Vinham
assim de galope, os capangas.
De
repente, um tiro, um estrondo batendo nas pedras, de ricochete, os cavalos
estancando, relinchando, empinando, o ataque capangueiro se desorganizando.
Chumbo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: e tem inicio a Batalha da Roça Velha, velho João mete bala, carrega e
recarrega velha espingarda, Mariazinha e sua 20 vai gastando caixa de
cartuchos, Joaninha atira, fogo cerrado, os capangas apavorados.
O
velho João estava virado no estopô do cabrunco.
Viu
o tropel, os cavalos, capangas montados, poeira.
Bala.
Chumbo.
Tá
certo: ele queria um tempo em que não se usasse mais matar gente.
Melhor
seria.
Mas
não o quisessem fazer de besta.
Não
quisessem lhe botar cangalha.
Seu
lombo não era pra isso.
Mourinha
quis.
Dá
certo, não.
Atirou.
A
bala ricocheteou nas pedras, aquele estrondo de arrepiar.
De
arrepiar os cavalos e os homens.
Todo
mundo quase morrendo de susto.
Que
capanga é brabo enquanto não sente chumbo chegar perto.
Chegou,
bate medo.
Cavalos
empinando, alguns.
Recuando,
outros.
Cavaleiros
sem controle das rédeas.
Um
dos homens caiu.
Deu
de cara com espinhos de cabeça-de-frade.
Soltou
um grito de assustar almas do outro mundo, rosto ensanguentado emoldurado por
espinhos, de dar dó.
Silêncio
- capangas aparvalhados.
Esperavam
não aquela reação do velho João, mormente o soubessem valente.
Mas,
na bala...
De
repente, capangas atiraram de volta, dois tiros de carabina resvalaram na pedra
ali ao lado do velho João, que a mode de Corisco, gritou:
-
Vamos morrer todos aqui mas eles não tocam fogo na minha casa.
E
ele, o avô de Navarrinho, pedia a bucha a Francisco para voltar a recarregar a
espingarda.
Mariazinha
não para de atirar - não precisa recarregar a sua 20, ia gastando sua caixa de
cartuchos, potência de fogo maior.
Valia
por dez homens - murmurava o pai, preparando a velha espingarda pra outro tiro,
e logo mandou fogo de novo.
Joaninha,
do outro lado, também atirava.
Os
capangas, apavorados:
-
Que porra é esta?
-
Como esse velho foi juntar tanta gente?
Valente
perde a valentia diante de fogo cerrado.
Se
puder, galopa de volta, corre, nem se preocupa ser chamado covarde.
Jagunçada
parou de atirar.
E
ouviu-se um grito...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Vixe! Tô
aflita aqui.
Emiliano José: Joana D'arck é
a intenção....
Mônica Bichara: hahahaha Joana
D'arck tá se achando a própria Joaninha na Roça Velha
Joana D'arck: Mônica Bichara
abestada😜🤪
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Emiliano José
25
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: um grito de medo sob o sol, pedido de paz, mais fogo, velho João dá
ordem de cessar, venceram a Batalha da Roça Velha, capangada bate em retirada,
rabo entre
as pernas, nem
passa pela rua principal.
Um
grito.
Daqueles:
de medo.
Fácil
distinguir o grito quando ele é de medo.
E
uma voz, de súplica:
-
Seu João, pelo amor de Deus e de todos os santos, nós viemos em paz.
O
avô de Navarrinho, assuntando, esperando conversa rolar.
E
o capanga prosseguiu, ainda com voz cordata, bandeira branca:
-
E quero lhe dizer Seu João: estamos com um homem ferido. Precisamos cuidar
dele.
Mariazinha
atirou, Joaninha sequenciou.
Porra
nenhuma.
Querem
é bala.
As
duas não davam por menos.
João
da Roça Velha decidiu dar a trégua, não atirou mais, sossegou Mariazinha e o
resto da tropa.
Que
fossem.
Cuidassem
do ferido.
Não
queria era tocassem fogo em sua casa.
Não
fazendo, podiam voltar em paz.
-
De mim, de pé e feliz. Homem, se é homem, não verga com ventania, forte seja -
murmurou, enquanto sentava na pedra, alisando a espingarda de dois canos, de
tanta serventia, e preparava lentamente um cigarro de palha a lhe acalmar o
espírito naquela hora.
Mariazinha,
orgulhosa - de si e do velho pai.
Avisara:
mexam com ele não, dá ruim.
Joaninha,
lembrando da vida - nunca imaginara estar numa guerra, assim, a quente, bala
pra lá e pra cá, satisfeita com a experiência. Susto não tomaria mais na
existência depois dessa.
Francisco,
pensando: dei de ser homem, estreei, estreia forte, guerreando.
Os
homens do coronel, capangada toda, ligeiro ligeiro correndo arrumaram os
arreios, meio desalinhados com os tombos dos cavalos, apertaram as
barrigueiras, peitoral, rabicho, colocaram o ferido na montaria, e voltaram pra
Vila Paraguaçu, a galope, o ferido que aguentasse, exército do velho João podia
vir no encalço.
Todos
iam tensos, preocupados.
Não
era notícia boa a ser dada ao coronel.
Empreitada
fracassada.
E
o ferido, cara deformada, quase perde um olho.
Deu
ruim, né?.
Na
chegada, mode a não dar na vista ao povo daquela tropa derrotada e carregando
ferido, capangas nem entraram pela rua principal da Vila Paraguaçu.
Foram
direto à casa da fazenda, uns quatro quilômetros adiante, na beira do
Paraguaçu.
Falaram
primeiro com Inácio, o capataz...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: capangas queriam vingança, tocar fogo em tudo, conversa
com coronel
Mourinha, repetem a proposta de ir à Roça Velha expulsar velho João e família,
queimar tudo, mas com exército bem maior,
o velho está bem
armado, pronto pra refregas.
No
caminho pra casa da Fazenda, no passo, não no galope mais, os capangas
conversavam.
Queriam
vingança.
Voltar
à Rocha Velha e ensinar ao velho João com quantos paus se faz uma canoa.
Juntar
uns 15 homens armados até os dentes, chefiados pelo coronel Mourinha, ou pelo
capataz Inácio.
Tocar
fogo em tudo.
Expulsar
o velho João e toda sua descendência.
Um
deles ponderou:
-
Ele pode resistir novamente.
O
mais falante, logo adiantou-se:
-
Se resistir, morre ele e a família.
É,
longe, depois de terem saído corridos, rabos entre as pernas, pareciam valentes.
Chegados
à sede da fazenda, procuraram Inácio, o capataz.
Logo,
foram à Casa Grande, contar ao coronel Mourinha, a parte mais difícil.
Na
entrada, um tapete de ferro, todos tirando o barro das botas.
Capangada
toda, chapéu embaixo do braço.
Ali,
na Casa Grande, não se entrava com chapéu na cabeça.
Do
respeito.
O
coronel, circunspecto, cara amarrada, sombria.
Decerto
pensava mando homens meus expulsarem um velho de uma roça, de roça minha, e
eles voltam aparlemados, derrotados, esses pacóvios, e eu tendo que resolver
esse angu de caroço.
Ouvia:
-
Coronel, fomos emboscados por pelo menos 15 homens, uma fuzilaria dos diabos,
todos bem armados com clavinotes e armas de repetição, um exército de assustar.
O
coronel, assuntando.
-
E aí reagimos, metemos bala, mas não teve jeito. Um dos nossos se feriu, e
tivemos que bater em retirada.
-
Hum, hum - reagia o coronel, ressabiado.
-
Com todo respeito coronel, rogamos ao senhor: vamos montar um exército e
expulsar aquele matuto atrevido, queimar as casas, dar exemplo. Temos de ir com
muitos cabras porque o velho está cheio de armas e gente.
Mourinha
decerto pensava: tudo agora ficou mais difícil. Velho João é respeitado, filha
já foi casada com um aparentado meu, agora com segunda autoridade da Vila,
derrota tornada pública, e esses palermas vem me pedir outra guerra, e talvez
não tenha jeito mesmo.
Carlos
Navarro Gil-Braz, pai de Navarrinho, soube da desgraceira na Roça Velha, e foi
correndo dialogar com o coronel.
Diálogo
difícil...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Cleidiana Ramos: Gente..eu aqui
besta com mais esse enredo da minha Iaçu-Macondo...
Emiliano José: Cleidiana
Ramos essa terra né brinquedo, não...
Isabel Santos: Emiliano José
Parece que não mesmo rssssss
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Emiliano José
27
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: duas autoridades
em confronto,
diálogo sereno e duro,
coronel querendo
informar ao governo
de ataque
traiçoeiro, pai de Navarrinho reagindo, contrapropondo negociar
retirada com a
família, Mourinha
refletindo sobre
os riscos de nova guerra.
Soube
e saiu ligeiro para encontrar-se com o coronel Manoel Justiniano de Moura
Medrado.
Gil-Braz,
pai de Navarrinho, era autoridade na Vila Paraguaçu.
Sujeito
respeitado.
Por
chefe dos correios.
Por
escrevinhador das cartas de todo mundo.
Guardador
de segredos.
Por
simpatia.
Pela
capacidade de diálogo.
Coronel
Mourinha o respeitava.
Não
era bobo nem nada, melhor respeitar um homem daquele.
Pelo
ofício e pelo prestígio na Vila.
Coronéis
não agiam só na tora, no tiro.
Verdade,
verdade Gil-Braz não sabia das reações do velho João, não sabia de guerras, e
foi surpreendido com o sumiço de Mariazinha pela manhã, correndo atrás de
refregas.
Agora,
sabendo de tudo, ou de parte, tinha de se haver com o problema.
Nada
de Pôncio Pilatos.
Jeito
era entabolar conversação com o coronel.
Nele
estava a chave da solução, existisse.
Sentaram,
na casa de Mourinha.
Gil-Braz
sentiu eletricidade no ar, tensão ao máximo.
O
coronel não mexia um músculo da face.
Carranca
fechada.
Mourinha,
primeiro a falar:
-
Preciso que o senhor me passe um telegrama ao governo.
Gil-Braz
assentiu:
-
Em que termos?
-
Relate ter havido um ataque traiçoeiro a mim e aos meus homens, que por pouco
eu próprio não fui morto, e que aqueles trabalhadores albergados sob minha
responsabilidade só reagiram ao fogo depois de atacados, em legítima defesa.
Ia
dar sequência, mas Gil-Braz, homem de bons modos, da boa política, mas muito
seguro de si, interrompeu o coronel:
-
Eu vou lhe pedir licença, com todo respeito: assim o senhor me ofende, eu nunca
faria isso. O senhor sabe disso, e compreende, tenho certeza. Se o senhor
quiser conversar, estou aqui para isso, mas não nesses termos.
O
coronel tomou um gole do copo d'água ao lado, pensou alguns segundos, e reagiu:
-
Quero que o senhor então apresente contraproposta. Se de boa serventia, retiro
a proposta do telegrama ao governo.
Gil-Braz,
matutou um pouco, e contrapropôs:
-
Eu vou à Roça Velha, e negocio a saída com a família.
O
coronel pensou, olhou fundo nos olhos do telegrafista, percebeu seriedade,
refletiu sobre a desgraceira de nova guerra, do desgaste para sua imagem, do
custo de juntar tantos homens, tantas armas, de sequer saber direito se ia
derrotar o velho João tão bem armado nessa segunda investida, a gente sabe como
guerra começa nunca como termina, de saber o povo comentando sobre ataque a uma
família com quem já tivera ligações de parentesco, ou quase, e então...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: guerreia não guerreia,
confia não
confia, afinal compromisso
no fio do
bigode, não tem guerra,
família sai da
Roça Velha, dívida
será perdoada,
Gil-Braz no
galope pra
conversa com velho João.
O
coronel Mourinha no devaneio guerreia não guerreia confia não confia
intermináveis segundos.
Gil-Braz,
ali, sentado, à sua frente, esperando decisão.
Sentindo
o excesso de devanear, que o pensamento é sempre uma coisa à toa mais ainda
quando devaneia, ousou:
-
E então, coronel Mourinha, como ficamos?
-
Estamos de acordo. Vou confiar no senhor. Deixe de lado a mensagem ao governo.
O
pai de Navarrinho respirou aliviado.
O
clima desanuviou.
Mourinha
ainda deu corda pra conversa.
Garantiu:
não tinha dado autorização para desocupar a Roça Velha.
A
rapaziada dele havia entendido errado.
Não
faria isso com o velho João, de tanta consideração.
Gil-Braz
ouvindo, diplomata, bom de política, sem acreditar.
Dizer,
não ia.
O
coronel voltou ao ponto:
-
Dou passo atrás no telegrama, mas só porque estou recebendo garantia de que o
senhor resolve o problema.
-
Resolvo - garantiu Gil-Braz.
-
Se o seu sogro sair em uma semana, esqueço tudo e perdoo a dívida.
Alguma
compensação, pensou Gil-Braz.
O
coronel tentava continuar na diplomacia:
-
E eu procedo assim, tenha certeza, em consideração ao senhor, que é funcionário
federal de sobremaneira inteligência, a quem reservo o maior apreço.
Um
aperto de mãos, compromisso no fio do bigode, e Carlos Navarro Gil-Braz tomou
da montaria e seguiu a todo galope pra Roça Velha.
Velho
João e filharada nem haviam saído ainda da trincheira.
Ficaram
ali, parados, meio abobalhados.
Na
memória, ainda o poeirão levantando, os capangas correndo de volta para a Vila
do Paraguaçu, silêncio em torno depois de toda aquela fuzilaria.
Nem
haviam se animado a voltar para casa, ali tão próxima, e viram o tropel.
Francisco,
olhava, nem conseguia articular palavra, apontava a estrada, medo fosse a
capangada no retorno, guerra recomeçando.
Mariazinha
deu um grito:
-
Fica tudo quieto. É o meu marido.
Todos
sossegaram.
-
O que ele vem fazer aqui, meu Deus, podia ter levado tiro. Será que não conhece
o caminho do Canto da Pedra?
Mariazinha
desce a ladeira correndo, Gil-Braz apeou, e subiram conversando:
-
Onde seu pai conseguiu tantos homens e tantas armas pra botar a jagunçada pra
correr?
-
Era o pai, Joaninha, Nega, Francisco e eu. Nenhuma alma a mais.
-
Disseram ao coronel que eram mais de 10 homens, tudo de clavinote na mão.
As
lendas depois das batalhas.
Bem,
agora era a parte mais difícil.
Conversar
com o velho João.
Gil-Braz,
acerto feito, tinha de dar um jeito...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: Gil-Braz negocia com
o sogro a saída
da Roça Velha, o velho João
imerso nas
recordações da existência, noites
levando mulas,
lavoura do Boqueirão, feira
de Jequié, lavra
na Roça Velha, feira
da Vila do
Paraguaçu, e enfim acordo aceito.
O
velho João ouvia.
O
genro Gil-Braz expunha razões.
A
mulher Maria atenta, e sempre assentindo.
Queria
isso, Maria: sumir dali.
Dissera
desde antes, mas não adiantou.
O
marido quis a guerra.
Quem
sabe, agora.
João
da Roça Velha ouvia.
Era
capaz de ouvir, prestar atenção, e deixar o pensamento voar.
O
genro explicava depois daquela guerra arriscosa se desenrolara conversa
complicada com Mourinha e ele fechou
acordo com o coronel.
Ouvia,
o velho João.
Na
cabeceira da mesa grande da cozinha, os filhos arrodeando, o corpo atarracado
se acomodando na cadeira, olhos fixos em Gil-Braz, pai de Navarrinho.
Acordo
seguinte: em uma semana, o velho pegaria todas as tralhas, e ganharia estrada.
Abandonaria
a Roça Velha depois de tantos anos de suor derramado.
Pensou
na dureza da existência.
Olhou
para as mãos enquanto ouvia: um calo só, tanta enxada, tanta foice, tanto
facão.
Viu-se
na estrada, levando tropas de mula, noites e noites.
Na
lavra, no Boqueirão.
Na
feira de Jequié.
Na
lavoura da Roça Velha.
Na
feira da Vila do Paraguaçu.
Dura
a vida, sempre.
E
agora: rua.
Um
conforto, tinha: não se rendera.
Não
saía com o chapéu embaixo do braço.
Filhos
lembrariam dele sempre como um homem, nunca como um covarde.
E
isso é o que se deixa na vida: dignidade, honradez.
Dessa
herança, suas filhas, filhos, podiam se valer, quisessem, fossem capazes, cada
um sabe de si.
Ouviu
ainda o genro dizer:
-
Seu João, o acordo ainda previu o perdão dos dois anos de arrendamento
atrasados.
Consolo,
apenas isso.
Concordou.
Não
tinha direito de sustentar outra beligerância de armas na mão envolvendo a filharada.
E
afinal, pensou, apesar de mais de uma década sobre as terras da Roça Velha, não
eram terras dele.
Era
o destino dos despossuídos.
Havia
de dar outro passo, encontrar outros caminhos.
Gil-Braz
não podia se dizer feliz com o resultado.
Havia
tristeza no ar, inclusive de Mariazinha, a inquieta mulher dele.
Mas,
partiu aliviado.
Sua
palavra, em jogo.
Avisar
ao coronel do cumprimento do acordo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: o pensamento a cavalo,
o fascínio de
Gil-Braz pelo velho João,
admiração e
compaixão, diferença do
homem da terra e
do homem urbano,
mundo não era
justo não, informa
coronel
Mourinha, trato cumprido,
caminhão alugado
para mudança.
Não
apertou o passo da montaria.
Nada
de galope.
Cumprir
aquela légua e meia, pouco mais pouco menos até a Vila Paraguaçu, refletindo.
Andar
a cavalo, passo a passo, era momento para o pensar.
O
velho João não lhe saía da cabeça.
O
sogro o fascinava com sua história sertaneja.
A
palavra curta, a voz de barítono, a pose de patriarca, sem esforço.
Autoridade
natural.
Nascida
da lida com a terra, visceral, vinda da ancestralidade indígena e negra.
Gil-Braz
saiu da Roça Velha com dois sentimentos a lhe atazanar o juízo: admiração e
compaixão.
Admiração
pela coragem, destemor, a defesa da família e da honra, homem incapaz de se
vergar frente às ventanias, armas nas mãos fosse preciso, vida em jogo pouco
importava, destemor.
Compaixão,
talvez um sentimento quase ingênuo: dureza a vida do sujeito cujas raízes
fincadas na terra lhe são subtraídas a todo momento pelos donos dela, aqueles
considerados donos.
Era
injusto - sujeito se embrenha nos matos, desbrava territórios, lavra o terreno,
tira dali o sustento de si e dos filhos, embeleza o lugar de árvores e frutos,
e um belo dia vem o dono e o expulsa.
De
nada vale tanto suor.
Pensava
em si, no reverso.
Era
homem urbano, não obstante urbes pequenas, como esta Vila do Paraguaçu agora,
dominada por Mourinha, com quem se encontraria dali a pouco.
Nascera
filho de telegrafista, continuava telegrafista, homem das modernagens desde
cedo.
Outras
raízes.
Sentia
agora o conflito da cidade e do campo.
Via
de perto a violência do coronelismo - era assim chamado, e
ele
assim sentia.
Capangas
querendo expulsar o velho João à bala.
Era
justo não.
O
mundo não era justo.
E
ele quase chegando na Vila, quase frente a frente com Mourinha.
Informou
ao coronel, de autoridade para autoridade:
-
Trato feito, trato cumprido. Conversei com o sogro. O senhor aguarde uma
semana. E a Roça Velha estará desocupada.
O
coronel recostou-se na cadeira, satisfeito.
Gil-Braz,
o pai de Navarrinho, foi atrás do único caminhão daquelas paragens.
Alugou
e colocou à disposição do velho João...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
31
de março 2021
Carlos Navarro
Filho: vida virada, preparar
a mudança,
enfardar tudo, juntar bicharada, móveis, panelas, tudo, deixar nada pra
trás como queria
Maria, velho João
pensando o
quanto gostava daquele
lugar, raízes
fincadas durante uma
década, duas
viagens de caminhão
pras terras do
primio Odoniel, em João Amaro.
Velho
João havia concordado.
Jeito
não.
Fez
o bom combate, negou fogo não.
Aceitar
o acordo, seja.
Outra
virada na vida.
Acostumado
já com reviravoltas.
Esta,
inesperada, não foi de querença própria.
Maria,
a mulher, já se despachara a embalar coisas, encaixotar.
Se
mudança, e mudança era, fosse.
Filharada
toda na liça.
Parece
simples, mas não é.
Tantos
anos passados, e tanta coisa se acumula.
Eram
os móveis, as roupas, as panelas, os bules, as xícaras.
O
oratório.
O
quadro de Nosso Senhor Jesus Cristo na parede.
E
haviam de pensar no animais - galo, galinhas, gato, cachorro, cabras, os cabritos.
João
ainda olhava pras plantações, a florir.
Por
instantes, nuvens passam por seus olhos.
Gostava
dali.
Não
por acaso ficou o nome associado ao
lugar: João da Roça Velha - olha como são fortes os laços.
Não
podia negar: coração apertado.
-
Você se apega ao lugar, finca raízes, vai se tornando uma coisa só, ele e a
terra, ele e tudo o construído, ele e tudo que a mão dele plasmara - pensava.
Aqueles
currais, aquelas plantações, as árvores de frutas, os animais...
Até
as águas, até o Rio Paraguaçu, tudo uma coisa só, uma unidade carinhosamente
vivida por mais de uma década, nem não é pouca coisa.
Mas,
subitamente voltava à realidade, expulsava aquela estranha melancolia.
Quase
se sacudia de modo a não lhe perturbar o espírito.
O
que tem remédio, remediado está - antiga lição, aprendida desde cedo.
Melancolia
é sentimento perigoso, capaz de desarrumar almas.
E
ele precisava estar inteiro, desperto, em pé, sem vacilação.
E
os braços fortes seguiam arrumando as tralhas e colocando-as no caminhão arrumado
pelo genro Gil-Braz, pai de Navarrinho.
De
vez em quando, chamava um dos filhos pra carregar um ou outro pertence, quando
sozinho não dava conta.
Era
é coisa, um mundo - nem parecia, mas era.
Já
tudo enfardado, partir.
Já
havia predestinado: ia primeiro no rumo do primo Odoniel.
Também
era posseiro em terra de Mourinha - e quem não por aquelas bandas?
Se
abancaria ali, e sabia seria bem recebido, até pudesse pensar em outro destino.
Em
João Amaro, as terras do primo.
Sorte
fosse tão perto.
Em
alguns momentos, quis aconselhar Maria, a mulher: deixa algumas coisas aí, é
tralha demais.
Nada,
Maria nem não queria falar disso - deixar nada, nadinha, levar tudo na mudança,
tudo tudinho, danou-se.
Nisso,
território da casa, o velho João não se dava por capaz de mandar.
Ela
virava fera, e ele, cordato.
Foram
duas viagens pras terras de Odoniel, caminhão sempre lotado.
Nem
olhou pra trás quando o caminhão arrancou na última viagem.
Risco
de fraquejar, lacrimar, e não queria.
Homem
não chora.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Triste partida
!
Emiliano José: Artur Carmel
setembro passou outubro novembro...
Artur Carmel: Emiliano José
Tô acompanhando com muito gosto...
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Emiliano José
1º
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: na casa do primo,
inquietação,
pega o trem rumo a São
Paulo,
assalariado, Paraná logo depois,
ele e filhos
trabalhando nas lavouras
de café,
determinação de um dia
voltar,
novamente na Serra
do Vitorino,
depois saudade Iaçu.
Chegou
ali na casa do primo Odoniel.
Muito
bem recebido.
Família
toda agrupada.
Passou
alguns poucos anos por ali.
Começou
a se inquietar.
Homem
que é homem não se dá bem em permanecer no encosto.
Tinha
braço, tinha força, saúde, não havia de depender de ninguém, malgrado amizades
do parente.
Por
aquelas terras, caminho não havia mais.
Tudo
era do Mourinha.
Não
por escolha dele os dois agora eram inimigos.
Não
podia propor ocupar terra nenhuma dele mais.
Terra
do primo em João Amaro, era coisa pouca.
Não
dava pra sustentar duas famílias.
E
já se sentia incomodando.
Melhor
arribar.
Ouviu
falar de São Paulo, todo mundo ouvia falar.
Pobre,
quando a coisa apertava pelas bandas nordestinas, pensava em partir, e voltar
quando Deus desse bom tempo.
Nem
sempre Deus se alembrava, nem sempre o pobre voltava.
Quase
1950.
Tomou
o trem, baldeou em Monte Azul, e seguiu então pra São Paulo.
Família
toda de junto.
Demorou
pouco.
Dava
sustento, não.
Segue
para o Paraná.
Café
fervia na região.
Ele
e os filhos, assalariados das lavouras de café.
Não
era fácil para um homem acostumado a ter a terrinha, cultivá-la, não obstante
pagando renda, e depois vender seus braços para o fazendeiro, assim direto,
vender os seus e os dos filhos.
Mas,
era da necessidade.
De
comer, ele deu à família - ainda lhe restavam forças.
Não,
acabar a vida por ali, distante de suas raízes, ia não.
Muita
gente, muita mesmo, ia e nunca voltava a ver a terra natal.
Determinou-se
de um dia voltar.
Prometeu
a si mesmo, jurou de pé junto.
Houvera
de cumprir, mais cedo mais tarde.
Voltou
a passar por São Paulo.
Sabe-se
lá como, teve um sitiozinho em Poá.
E
quando a saudade apertou de não mais aguentar, voltou à região da Serra do
Vitorino, nas proximidades do Boqueirão,
como vai contar Navarrinho no seu "Goroba".
Queria
ao menos sentir o cheiro daquelas terras, respirar o ar daquelas matas,
imaginar-se tocando tropa de mulas por aqueles sertões, acendendo fogueiras em
noites enluaradas, embrenhado nas estradas onde carroça não passava seguindo
pra Feira de Jequié levando produtos da roça pra vender...
Como
não viver mais essas imaginações?
Sonhos,
a gente só vive se tiver ousadia.
Teve.
E
reviveu, revirou raízes, se embebedou de origens...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
2
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: personagens intrusos
querendo tomar o
lugar do protagonista,
cuidado com os
Chico Preto, cuidado com
João da Roça
Velha, saudade espécie de
velhice então
acumular muita, convite
de filha para
roça em Rondônia, partiu.
Vocês
sabem de cor e salteado: o protagonista dessa história é Carlos Navarro Filho.
Não
é o pai: Carlos Navarro Gil-Braz.
Não
são os avós: Carlos Gil-Braz de Cerqueira ou João Alves dos Santos.
Só
uma pequena questão: Navarrinho ainda não nasceu.
E
assucede seguinte: há personagens cujo procedimento é de não pedir licença, ir
invadindo a cena, dane-se o protagonista.
Sei
não: águas de Iaçu parecem ter esse efeito.
Já
me disseram desse feitiço, ou se preferirem, encantamento.
Lidei
com um desses personagens tem pouco tempo: o pai de Cleidiana Ramos: Chico
Preto.
Queria
seguir contando história dela, e o pai, surgia assim, num átimo, derrubava todo
o pensar, e pronto, tinha de seguir com ele até cansasse, e ele sempre demorava
a cansar.
Cleidiana
Ramos está aí, jovenzinha jovenzinha, pra não me deixar mentir.
Ontem
imaginei estar chegando ao fim com a trajetória de João Alves dos Santos, avô
materno de Navarrinho.
Lá
de tempos ancestrais, ele irrompe.
E
não com esse nome de batismo.
Vem
como João da Roça Velha, rebatizado ali em Iaçu, ou nas paragens da antiga Vila
Paraguaçu, berço do futuro município.
Seguiu
vida como João da Roça Velha.
Chamei-o
velho João até aqui.
Quase
por hábito.
Não
tinha dimensão da tão longa existência.
Passou
dos cem anos, um a mais.
E
nem de tantas peripécias, idas e vindas Brasil afora.
Só
agora, prosa vai prosa vem com Navarrinho, e coisas vão se revelando.
E
tenho de pedir licença pra contar um pouco dessa trajetória, sob pena de ser
incomodado, porque personagem é bicho traiçoeiro, ataca a noite, atrapalha o
sono, brinquedo não.
Depois
de passar pela Serra do Vitorino em viagem de saudade, ele e a mulher, talvez
quem sabe começasse a considerar o dito de Guimarães Rosa ser toda saudade uma
espécie de velhice, matada aquela saudade voltou ao sítio de Poá, em São Paulo,
que daquela rocinha não se desfez não.
Contece:
estava na paz em Poá, e a filha Ana, ah não me perguntem idade dela que de
filhos contados o velho João teve 13, dos que se sabe, a filha Ana, enfiada em
terras de Rondônia, é, isso, lá nas lonjuras de Rondônia, ali, logo ali onde o
vento faz a curva, desbravadora feito o pai, resolve chamá-lo para
acompanhá-la.
Velho?
Nem
tanto.
Se
toda saudade é uma espécie de velhice, haveria ainda de acumular muita saudade
para completar a existência, um carro de boi de saudades, um caminhão, ou dois.
Não
contou conversa.
Partiu
Rondônia.
Aventura
pelas estradas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: E nada de
Carlos Navarro nascer, né Emiliano!😂😂😂
Emiliano José: Joana D'arck
sem agonia. Comecei tem três meses. Cedo demais, né? Prematuro, tá bem. Mas, de
três meses? ...
Mônica Bichara: Cleidiana
Ramos, óia Chico Preto querendo (?) invadir também a história de Navarrinho.....Falou
de Iaçu ele aparece
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Emiliano José
3
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: seguindo para Rondônia,
avião, ônibus,
caminhão, barco, afunda no
trabalho,
resolve voltar pra Bahia, segue
para Itaetê, faz
sua lavourazinha, animais
começam a comer,
pede espingarda de
presente, ganha,
e passa a meter
bala nos bichos,
fuzuê formado.
Navarrinho
estava em São Paulo quando houve o convite de Ana para o velho João se
embrenhar nas matas de Rondônia.
Quem
sai aos seus não degenera, e a filha andava fazendando por aquelas lonjuras.
Como
o pai reclamava do paradeiro ela disse então vamos pro Norte que lá tem muito a
fazer.
Um
terno cinza-claro foi o presente de Navarrinho para João da Roça Velha - assim
viajaria nos trinques.
Viajou
de avião até Salvador, todo enfatiotado, já com o terno, todo cheio de
gracinhas com as comissárias de bordo, parecia um jovem cheio de vida.
Ana
veio de Rondônia, encontrou-se com ele na capital baiana, e ganharam estrada,
de ônibus até o Pará.
De
lá, seguiram de todo modo que se há pra viajar: carona aqui ou acolá, caminhão,
barco, até chegar à fazenda de Ana, perdida naqueles ermos.
Tudo
normal, não?
Lembrar
apenas que o velho João já estava com mais de 80, em torno de 85, 86 anos.
Muita
idade no lombo pra fazer uma viagem daquela.
E
ele, nem aí.
Chegou
inteiro a Rondônia.
Meteu
os braços no trabalho, desbravando matas.
Passou
coisa de quatro anos por lá, na foice, no machado, na enxada.
Resolve
voltar para a Bahia.
Ana
o leva até o Pará.
De
lá, segue sozinho, de ônibus - já com 90 anos nas costas.
Em
Salvador, encontra com um filho, Leo Bambu - o menino tinha 44 filhos, três
mulheres morando na mesma rua, todas cuidando de uma renca de moleques, mas
essa história não será contada agora sob risco de perdermos o rumo.
O
próximo destino foi Itaetê, na Chapada Diamantina.
Leo
Bambu comprou pra ele uma pequena casa, com uma boa área, nas redondezas da
cidade - uma morada nem totalmente urbana, nem totalmente rural.
Velho
João da Roça Velha olhou praquele quintalzão, e fez sua roça.
Colhia,
e ia vender na feira da cidade, num
carro de mão.
Uma
vez pede a Navarrinho uma espingarda de presente - queria passarinhar.
O
neto não se fez de rogado - deu o presente: uma espingarda 32, de cartucho,
moderna.
Ele
não havia contado da missa metade.
Os
animais dos vizinhos rompiam a frágil cerca do pequeno terreno, e comiam a
plantação dele.
Com
a espingarda, começou a meter bala nos bichos.
-
Que porra de virem no meu quintal e comer minha lavoura?
Matou
um bocado de animais.
Os
vizinhos, querendo comer o fígado dele.
Mariazinha,
mãe de Navarrinho, um dia chega a Itaetê e encontra o fuzuê formado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: outra guerra do velho João, descem policiais para resolver a situação,
prendo e arrebento o grito, simulação de paz, volta a guerra, o pai vem pra
capital,
Abrigo do
Salvador, e João dana a cantar
as colegas de
hospedaria, Navarrinho
compra presentes
para jogo de sedução.
Mariazinha
chega em Itaetê e vai tentando entender a situação.
Ela
ia uma vez por mês lá.
Pouco
a entender.
Ele
tinha se arretado, e metido bala nos animais dos vizinhos, e não queria muita
conversa.
Era
ver um porco, um cabrito bulindo em suas hortaliças, e bala, um corpo estendido
no chão.
Afinal,
mantivessem a criação presa, não a deixassem solta pra destruir sua plantação,
ganha-pão com o que se distraía naquele outono da vida.
-
Mas, meu pai, estão aí fora querendo lhe matar.
-
Que venham, aqui não falta chumbo - dizia o velho João, acariciando a 32
carregada, a caixa de cartuchos do lado, presentes do neto Navarrinho.
A
mãe desesperada informa Navarrinho, e ele se movimenta de modo a contornar a
contenda - velho João era dos que dava um boi pra não entrar numa briga, uma
boiada para não sair.
Conversa
com João Laranjeira, respeitado delegado, amigo, pede ajuda.
O
policial não relutou:
-
Deixa comigo. Eu resolvo.
Manda
uns cinco ou seis policiais, de Itaberaba pra Itaetê.
A
pequena cidade nunca vira tamanho contingente.
Tudo
pra solucionar a guerra do velho João da Roça Velha.
Os
policiais deram grito pra todo lado, foi um tal de prendo e arrebento,
espanaram a vizinhança toda, deixem o velho em paz, não bateram nem prenderam
ninguém, mas ameaçaram que só a porra.
Os
vizinhos recuaram, quietinhos em suas casas.
Parecia
a paz.
Nada.
Foi
a polícia sair, e eles voltaram mais virulentos ainda.
Queriam
a cabeça do velho João.
Mariazinha
compreendeu não haver outro caminho: pegou o pai, meteu no ônibus, e o trouxe
para a casa dela.
Fim
daquela guerra.
Logo
depois, para que ele ficasse mais confortável, passa a morar, por iniciativa
dos filhos e pedido dele, no Abrigo do Salvador, em Brotas, bairro da capital.
Navarrinho
obteve autorização das freiras para que ele fizesse uma pequena horta, e ali
passou quase dois anos.
Não
se aquietava: já viúvo, cantava as suas colegas de hospedaria, dizia de sua
intenção de casar novamente e desfiava o modelo de mulher pretendida: tivesse
cabelo comprido, trabalhadeira, e não bebesse.
Esta,
a princesa.
Vivia
a pedir a Navarrinho lhe comprasse presentes para seu jogo de sedução:
sabonetes, perfumes, talcos, espelhos.
Um
dia surgiria a princesa de seus sonhos, havia várias candidatas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de abril
Carlos Navarro
Filho: João da Roça Velha não
encontra noiva,
Ana o convida para ir pra
Eunápolis à
falta de ter encontrado noiva
no Abrigo, ele
não reluta, como não se fazia
mais mulheres
como antigamente melhor
aventurar lá
pelas bandas do Sul, não
importavam os
101 anos, seguiu viagem, morreu no ônibus.
Ele
lá alvoroçado à procura da noiva, e reaparece Ana.
A
de Rondônia.
Filha
de espírito tão agitado quanto o do pai.
Gostou
não de ver o pai naquele asilo:
-
Zinha, meu pai não vai morrer aí nesse asilo, preso desse jeito.
Conversou
com o velho João, e perguntou:
-
Você não quer ir comigo pra Eunápolis?
Virada
da breca, Ana agora havia conseguido terra naquele Sul da Bahia.
Eunápolis
fora uma espécie de terra de sem lei.
Área
de desbravamento.
Chamaram
o local durante algum tempo de "o maior povoado do mundo" antes de
virar município, gente chegando de todo canto do País, terra e madeira,
pistolagem não faltava por aquelas bandas.
Ana
sentara praça ali.
Parece
gostava mesmo era das chamadas zonas de expansão da fronteira agrícola.
O
pai topou - mais aventuroso do que o abrigo.
Quem
sabe encontrasse uma noiva lá pelas bandas do Sul.
No
abrigo, não obstante os penduricalhos distribuídos, os muitos presentes à guisa
de sedução, não apareceu noiva nenhuma, até porque não achava uma de cabelos
compridos, trabalhadeira e inteiramente avessa ao álcool, é, não se faziam mais mulheres como antigamente.
Estava
no frescor dos seus 101 anos.
Viajou
com Ana, ônibus leito.
O
coletivo partiu às 22 horas.
Quando
estavam passando por Feira de Santana, quase meia noite, Ana reclamou do pai.
Pediu
falasse mais baixo.
O
vozeirão dele incomodava os demais passageiros.
João
da Roça Velha fez um muxoxo, e dormiu.
Às
cinco da manhã, Ana o sacode:
-
Pai, pai, acorde, estamos chegando.
Não
acordou.
Estava
morto.
Ana
carregou consigo muita culpa vida afora: o médico havia recomendado fosse pegar
no Abrigo do Salvador os remédios usados por ele para o coração.
Ela
não lembrou.
Partiu
o velho João da Roça Velha.
Mais
de um século de uma vida pra não esquecer.
Dele,
Navarrinho lembra amiúde, e sempre com alegria, porque há um sem número de
estrepulias a contar, e algumas guerras.
Além
de muitos filhos, deixou também doces e divertidas lembranças...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Que maravilha.
Um mundo histórias. Um privilégio, hein, Navarrinho? Bj. Lembrando aqui que
conheci Eunápolis quando era um povoado, na década de 80. Não foi a trabalho,
mas numa feliz aventura! rsss
Carlos Navarro: Isabel Santos
Já era uma grande cidade Bel.
Graça Azevedo: Carlos Navarro
Fiquei encantada com a história do seu avô!
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Emiliano José
6
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: João da Roça Velha
produto de um
século, lida com a terra e
aprendiz depois
mestre de ofícios,
fazedor de seu
mascavo, voltando de
Rondônia, sem
tostão no bolso pedindo
ajuda no templo,
fabricando bancos para a igreja...
Com
ele, foi embora um tempo.
João
da Rocha Velha é sinal de um século.
Do
homem nascido e vivido nos sertões.
Do
sujeito levado a aprender de tudo.
Primeiro,
na lida com a terra.
Lembro
longe longe Milton Nascimento e Pena Branca e Xavantinho.
Debulhar
o trigo forjar no trigo o milagre do pão e se fartar de pão decepar a cana
recolher a garapa da cana roubar da cana a doçura do mel se lambuzar de mel
afagar a terra conhecer os desejos da terra fecundar o chão.
Era
tudo no braço, enxada, foice, machado, arado no máximo, na mão grande ou puxado
a burro.
E
sabedor de ofícios.
Homem
a se suficientar de tudo, nada de comprar na feira, ou quase nada.
Nem
roupa.
Tudo
feito em casa.
Navarrinho,
embebido de lembranças do avô, recorda: já morando na cidade, por força da
idade, não queria de modo nenhum o açúcar refinado.
Queria
o demerara.
E
muitas vezes, ele próprio dava um jeito de produzir o demerara, ou açúcar
mascavo.
Refinado,
dizia, não presta, faz mal à saúde.
Talvez
por isso chegado aos 101.
Um
dia, vinha de Rondônia, de volta das lonjuras das terras de Ana.
De
ônibus, carona, qualquer jeito.
Chegou
em Petrolina, e viu-se sem único tostão no bolso.
Procurou
uma igreja.
Afinal,
era casa de Deus, onde os necessitados pedem socorro.
Entrou,
explicou pro padre a situação.
Conversa
vai, conversa vem, até dos evangelhos falaram, do Jesus marceneiro, e o
sacerdote descobre: o viajante entendia de carpintaria e de marcenaria.
Ora,
ora - todos os móveis das casas do velho João haviam nascido das mãos dele.
Disso
sabia e como.
Assim,
mão lava a outra: o padre necessitava de bancos para a igreja, ele, de dinheiro
pra seguir viagem.
Ficou
um tempo por lá, até encher o templo de bancos.
Até
envernizar, envernizou.
Fiéis,
satisfeitos.
O
padre, feliz.
Terminado
o serviço, dinheiro suficiente para seguir para Salvador, partiu.
Aperto,
só para quem não tinha disposição para o trabalho e não tivesse ofício -
costumava gabar-se.
Disposição,
tinha de sobra.
Ofícios,
sabia de montão.
E por
isso, nunca houve situação da qual não se safasse.
Filhos,
netos, descendentes podem se orgulhar e celebrar a cada sucesso: quem sai aos
seus não degenera.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: sentindo falta do velho
João, Mariazinha
do Boqueirão, Navarrinho
quase nascendo,
ano de 1945, bendito ano
do fim da
Segunda Guerra Mundial, fim da ameaça do nazi-fascismo, a custar a vida de mais
de mais de 80 milhões de pessoas.
É
curiosa essa relação entre personagem e escriba.
Amanheci
pensando nisso.
Já
havia me habituado ao velho João da Roça Velha.
É
como se ele cheirasse a sertão, sertões, bravuras, tudo de que me afeiçoo, tudo
de meu bem-querer, estrepulias, guerras.
Inda
mais lendo relendo Rosa e seu grande sertão suas veredas.
O
senhor sabe. Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura
nuca e mão quadrada.
Esquisitices
do sertão, coisas só de domínio do sertanejo, e de Guimarães Rosa.
E
do velho João da Roça Velha.
Queria
prosseguir com ele, velho João.
Mas,
partiu.
E
os encantados pedem respeito.
Melhor
não mexer.
Voltam
quando dá na telha.
Sou
levado a retornar a Mariazinha.
Levou
nome de Mariazinha do Boqueirão.
Morreu
com quase 100 anos - gente danada de longeva, tal pai, tal filha, e quem sabe,
tal filho, tal neto, Navarrinho gosta de pensar nisso e nos séculos pela
frente, que os orixás o abençoem, ele já abençoado, filho de Obaluaiê.
Retornar
só para dizer por enquanto das proximidades do nascimento de Navarrinho -
afinal, temos adiado esse nascimento.
Adiado,
não.
Outros
personagens, último o velho João, se meteram na história, e o nascimento dele
foi ficando para trás.
Nossa
história nessas preliminares, já vai chegando a três meses, e nada dele nascer.
Encruado.
Mas,
chega o dia.
Nasceu
em 1945.
Ano
bendito.
Simbólico.
Não
é qualquer coisa nascer no ano do fim de um tormento.
Da
segunda guerra, iniciada em 1939 com a invasão da Polônia por Hitler.
Estima-se
a morte de entre 75 a 85 milhões de pessoas nesse tsunami.
Terminava
o pesadelo nazifascista.
Uma
espécie de primavera se iniciava. Será um período, logo após a Segunda Guerra,
de melhorias para a humanidade.
Pelo
avanço do socialismo e pela afirmação do chamado Estado de Bem-Estar Social, ao
menos neste caso tomamos a Europa como exemplo.
Não
é qualquer coisa nascer num ano assim, de uma nova alvorada, promessa de novos
tempos.
E
Mariazinha do Boqueirão, também conhecida como Zinha, via nascer o primeiro
filho, depois de dois abortos espontâneos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Milton Pinheiro: Muito belo...
Mônica Bichara: Nasceeeeeeeeu!!!!!!!
Seja bem-vindo a esse mundo, Navarrinho Carlos Navarro
Isabel Santos: Na expectativa
dessa trajetória e do seu relato pela 'pena' poética do nosso Imortal.
Vivaaaaaa!
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Emiliano José
8
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: casal acostumando-se
à Vila
Paraguaçu, paz com os Medrado,
muitas barrigas,
muitos filhos, uma rua
larga, a rua do
nem não tinha nada,
poeira, o diabo
na rua do meio do
redemunho,
Navarrinho e a grandeza do mundo.
Navarrinho
nasceu.
Para
imensa felicidade de Mariazinha.
E
do pai Carlos Navarro Gil-Braz.
Mariazinha
acostumou-se: será uma fileira de barrigas até o marido morrer - foram dez,
vingaram sete.
Seriam
mais não fosse a morte prematura de Gil-Braz, nem quarenta anos completados.
A
cada ano, religiosamente, uma barriga.
Tinha
falha, não.
Minha
mãe, com 95 anos nesse momento, costuma lembrar-se de suas barrigas - igreja de
São Bento, uma fora, outra dentro.
Assim,
Mariazinha.
Os
dois gostavam da folia - quero dizer, para que não confundam, não incorram em
maldades, interpretações indevidas: a folia de ver os filhos nascer.
Foram-se
amoldando mais e mais à Vila Paraguaçu.
O
velho Medrado continuava a respeitar a autoridade de Gil-Braz.
Não
queria mais refregas com a família - a experiência com a guerra da Roça Velha
fora uma dura lição.
O
velho João fora embora, melhor cultivar a paz.
A
vila, movimentada naqueles anos 40, início dos 50 do século passado.
Movimentada,
mas uma vila.
Movimentada
pelo trem, os chegados e os partidos.
Dia
a dia, silêncio, rua vazia.
Uma
rua de terra batida, ligando a ponte, no rio, à Estação do trem de ferro.
Rua
larga, e mais larga ficava tornando-se quase praça ao se aproximar da igreja
sem deixar de ser rua.
Nem
não tinha nada: não tinha coreto, não tinha bancos, não tinha jardins.
Nem
não tinha casais passeando, nem se via casais namorando.
Quisesse
namorar, namorasse em casa, junto dos pais, era tempo de muito respeito.
Nem
não tinha aposentados com seus tabuleiros de dominó.
Tinha
vez parecia fosse um deserto, noves fora os dias de missa, quando todo mundo se
engalanava com sua melhor roupa pra rezar e se amostrar quem sabe namorar,
que naquele dia Deus perdoava.
A
Vila era apenas um largo de terra.
Uma
poeira de cegar gente, cuidado não tomasse.
E
os perigosos redemoinhos, quando o diabo vinha junto, escondidinho.
Que
me desculpem, mas estou vidrado em Guimarães Rosa:
"O
diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até:
nas crianças - eu digo. Pois não é ditado: "menino - trem do diabo"?
E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes..."
O
diabo na rua no meio do redemunho - Guimarães completa, e disso Navarrinho se
lembra, menino, menino, sem saber de diabo, mas daquele estranho vento se
ajuntando e dançando voluptuosamente pela rua larga levantando poeira,
assustando e deslumbrando, dando vontade de seguir viagem rodopiando pelo
mundo, mundo mundo estranho belo mundo mal descoberto ainda.
A
Vila Paraguaçu lhe aparecia grande, grande, cheia de mistérios...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho ainda não tinha idade para conhecer os mistérios da Rua do
Cref, a zona, meretrício, território da tentação, a assustar a sociedade de bem
da Vila do Paraguaçu, o tráfico de mulheres, homens carecendo de raparigagem.
Não
chegou porque tempo ainda não era de conhecer os mistérios da Rua do Cref.
Navarrinho
os desvendará mais tarde, não ali naquela rua, nem naquela vila.
O
largo, o grande largo, ia se estreitando, e voltava a ser rua, dos fundos da
igreja até a ponte.
A
sociedade local, os homens e mulheres de bem, é, tem sempre gente a se
considerar assim, não gostavam nada nadinha daquela rua.
Era
uma zona.
A
zona.
O
meretrício.
As
donas de casa, casadas de aliança e tudo, ficavam iradas só de ouvir falar.
Era
rua da perdição.
Ali
morava o demo, o Cramulhão, o Coisa-Ruim.
Território
da tentação.
Botava
os homens tudo a perder.
Orgias
e pecados.
Não
é que os homens quisessem, elas tentavam explicar em suas conversas de comadres
- com seus lábios de carmim cruéis tentadores, suas pernas à mostra duras e
belas, os seios insinuados, às vezes mais, empinados, elas tentavam seus
maridos e às vezes mais do que às vezes eles cediam não se contentavam com o
material caseiro ainda em bom estado sabem homens são fracos não resistem às
tentações e o diabo está sempre aí para atentar e mulher é o diabo...
Os
homens simulavam o desagrado deles com a rua durante o dia, e de noite
afundavam a cara nas casas da rua do Cref, famosa desde o início da Vila.
Era
o centro principal de raparigagem da região.
Lá
nos inícios, os tropeiros chegavam trazendo mercadorias para enfiar no trem e
logo logo começaram também a trazer mulheres, algumas desembarcadas ali mesmo,
a fazer a vida ali na rua do Cref.
Outras
com destino a Salvador, tantas outras seguindo pra Cachoeira de onde eram
distribuídas para municípios do Recôncavo, Sul do Estado, e Bahia afora, quase
todas elas meninas meninas virgens virgens, mercadoria procurada, desejada,
rentável.
Contam,
e não se duvide: muito do desenvolvimento de Sítio Novo, depois Vila Paraguaçu,
mais tarde Iaçu, teve a ver com o tráfico de mulheres, com essas meninas sem
pai nem mãe sem eira nem beira só o corpo pra vender jogadas no mundo a peso de
ouro, ao menos para os traficantes.
Carecia
uma zona de raparigagem em qualquer lugar.
Gozado,
falo de qualquer coisa, e Guimarães Rosa me cutuca - é como se me dissesse, se
está falando de sertões, deixa comigo.
Riobaldo,
nas horas vagas, quando não estava ensinando letras a Zé Bebelo, também
procurava o lugar aonde estavam arranchadas as mulheres, mais de cinquenta.
E
Zé Bebelo aprovava:
-
Onde é que já se viu homem valer, se não tem a mão estadas raparigas? Ond'é?
Pois
é, ond'é?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: rua do Cref
era a ZBM.
Paulo Mascarenhas: No Prado,
minha terra, era chamado de "fovoco" (leia-se fôvôco)...
Jose Jesus Barreto: um bom e
sonoro nome para a muvuca do ofício
Aécio Pamponet Sampaio: Jose Jesus
Barreto , em minha terra, o brega tinha nome sugestivo: Vai-quem-quer ! Ganhou
até poesia do modernista feirense Eurico Alves, que foi Pretor (espécie de
Juiz-Substituto) lá (em Macajuba, não na Rua do Vai-quem-quer...) na década de
30.
Jose Jesus Barreto: "Vai quem
quer" é ótimo. Fui um bom querente.
Arnaldo Mariano Mariano: Em Barreiras ,
era Céu Azul.
Arnaldo
Mariano Mariano
A
primeira blenoragia, curada por Dr Haroldo, quando aplicava Benzetacil, sempre
dizia, quando tava no bem bom não se lembrava e agora ,ai, ai, Dr Haroldo.
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Emiliano José
10
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: Cleidiana Ramos
e Chico Preto,
tempo já de Edgar Medrado,
na Vila
Paraguaçu feira livre e missa os
acontecimentos, transporte bestas
de carga,
rememorações de Macondo.
Já
andei muito pela Vila Paraguaçu quando Cleidiana Ramos me levou pelas mãos tem
pouco tempo.
Ela
e Chico Preto, o pai.
Com
ele, o velho Chico Preto, estivera por lá umas tantas vezes.
E
depois quando falava da filha em minhas histórias, ele se intrometia e rolavam
muitas aventuras, ele já encantado, e isso pouco importava, ele não descansava.
Era
já cidade, bem maior, diferente dos tempos da soberania exclusiva do velho
coronel Medrado.
Já
era época do mando de Edgar, o filho, o cujo a me chamar de comunista num
comício de dr. Roberto Santos, candidato a governador em 1982.
Já
noticiei tudo isso, quando falava da querida Cleidiana.
Não
desconfiava voltasse a Iaçu, e voltasse mais no tempo, tempo de vila.
Vila
Paraguaçu.
Iaçu,
só fui saber agora, é terra de voltar sempre se beber da água do Paraguaçu.
Eu
bebi.
Nesses
velhos tempos, Navarrinho já nascido, a feira livre era o grande acontecimento,
além da santa missa, quando o padre dava as caras todo paramentado e distribuía
os santos sacramentos.
Todo
mundo cheio de reverências e orações pai nosso e salve-rainha quando padre mais
velho.
As
moças, inquietas, alvoroçadas, sussurrando, sorrindo discretamente quando algum
sacerdote mais novo.
A
feira livre tomava o sábado e parte dos domingos.
Era
como uma cobra grande arrastando-se por todo aquele chão, o rabo chegando lá
muito longe na estação, tudo espalhado, exposto no chão sobre esteiras de
licuri - se quiserem, chamem ouricouri, tanto faz.
Havia
as carnes de bode e de caça, o feirante espantando as moscas abanando as mãos,
gritando preço baixo, não perca, oferecidas sobre estruturas rústicas,
cambaleantes, de varas de cerca unidas por amarras de cipó.
Tudo
coisa daquele mundo antigo, tão bonito de se ver, tanta saudade de sofrer.
Ah,
a farinha de mandioca, torradinha torradinha, chegava dar água na boca, em
caçuás de couro, os mais chiques, ou de cipó trançado e forrado com tecido
grosso, sempre acondicionados em cangalhas trazidas no lombo de mulas e
jumentos.
Não
é preciso dizer mas digo: tudo o chegado àquela feira, tudo o encontrado lá, e
era muita coisa, vindo de perto ou de longe, um quilômetro ou muitas léguas,
suportado no lombo das bestas de carga.
Tão
úteis, tão necessárias as bestas.
Casas
de adobe e de taipa enchiam a rua principal e as duas ruas secundárias.
Gente
feliz, contudo e apesar de tudo - pobreza também encontra meios de achar
felicidade.
Teve
momento, tempo passado quando escrevi sobre Cleidiana Ramos, chamei Iaçu de
Macondo.
Mais
Macondo ainda, a Vila Paraguaçu.
Muita
parecença.
Lembro
novamente de "Cem anos de solidão", de Gabriel García Márquez.
Ali,
naquela Vila Paraguaçu, como diria Aureliano Buendía, sabedoria só valia a pena se fosse possível
se servir dela para inventar uma nova maneira de preparar o feijão.
Não
servisse para isso, nem não servia pra nada não...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Navarrinho
nasceu finalmente, mas ainda tá enrolado nos panos feito charuto, né Emiliano?
Emiliano José: Joana D'arck
leitoras são apressadas... Ele, não
Artur Carmel: Ô Mil, tire-me
uma dúvida.. A Vila Paraguaçu à qual v. se refere é a mesma Iaçu, ou seria
aquela no cruzamento da BR116 com a 242 ? Grato.
Emiliano José: Vila
Paraguaçu, antes Sítio Novo, será a futura Iaçu. Cleidiana Ramos, nossa querida
colega, escreveu livro sobre o município, Navarrinho, também, na ficção,
"Goroba'. Nessa série, com Cleidiana e Navarrinho vou tentando revelar
essa nossa Macondo.
Artur Carmel: Conheço Iaçu,
João Amaro, beira do Paraguaçu...Caatinga lindíssima! Quando andei em
Itaberaba- Viva Itaberaba !!, na adolescência, pegava um baba na serraria
"da estrada de Iaçu" !! Vlw , Mil !!
Mônica Bichara: Eitcha que Iaçu
tem lugar de honra nessas memórias, tem é história
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Emiliano José
11
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: a cultura da Vila
do Paraguaçu,
viajando nos troles,
uma boa
conversa, uma boa pinga,
Guinho da pensão
chibungo macho
que só a porra,
Marina Marina você
se pintou, anjos e monstros da
noite nas
histórias das parteiras.
Então:
sabedoria ali não era coisa só de letrados, havia letrados também e alguma
utilidade tinha.
Serventia
diária, da boa, era aquela de saber preparar o feijão, a galinha de molho
pardo, o bode bem temperado, o peixe pescado ali no Paraguaçu, a de lavrar a
terra, tirar o leite da vaca, amansar mula, fazer os móveis da casa...
Cultura,
é, cultura é isso.
Vila
Paraguaçu.
Era
assim, ser tão assim.
Era
a vila dos funcionários da Leste e dos Correios, os guarda-fios Arlindo e
Torquato viajando nos troles trilhos afora inspecionando postes e cabeamento do telégrafo do trem.
Depois
das longas viagens, uma reconfortante parada na porta do APT dos Correios, o
sereno amigo Gil-Braz, para dar dois dedos de prosa, jogar conversa fora, e
beber uma pinga das boas, que ali não escasseava, alimento da alma.
Havia
o Guinho da Pensão, afável afável no trato com todos, um doce de pessoa, fera,
lhe pisassem nos calos, precursor da luta LGBT e que mais.
Gritava
para quem quisesse ouvir:
-
Sou chibungo, sim, mas muito macho sim senhor. Quem quiser testar, venha dentro
que seguro.
Houve
"estrangeiros" a levarem surras memoráveis - achavam poder dormir na
hospedaria e sair sem pagar, pensando fosse fácil proceder assim com o
chibungo, grave engano.
A
vila do Paraguaçu passou a gostar dele, arquivar preconceitos.
Mais:
começou a admirá-lo: vozeirão de tenor, intérprete sofisticado de Caymmi.
Um
violão o acompanhava, sempre - o de Gil-Braz, pai de Navarrinho, amante da boa
música, da boa farra.
Marina
morena Marina você se pintou Marina você faça tudo mas faça um favor não pinte
esse rosto que eu gosto e que é só meu Marina você já é bonita com o que Deus
lhe deu...
Gil-Braz
tomou intimidade com Marina através do tenor, nunca mais esqueceu a
música, tanta a paixão a ponto de uma
das filhas carregar a poesia no nome.
Paixões,
no futebol: Flamengo e Fluminense - os dois times locais.
Essa
Macondo era habitada também por caiporas, mulas-sem-cabeça, pelo saci-pererê,
anjos de chifres e pés redondos, onças, monstros revelados pelos mais velhos,
pelas velhas parteiras, a suscitar medos e fantasias na criançada.
Nela,
nessa vila perdida no tempo, era um hábito: contar histórias ao anoitecer,
lindas, poéticas e às vezes, aterradoras, capazes de provocar sonhos, viagens
nas nuvens, ou pesadelos na noite escura.
Olhando
assim, com olhos de quem ver, com saudade, não é impróprio dizer um privilégio
viver ali nessa Macondo.
Atrevo-me
a contar história vivida por Navarrinho, ali pelos seis anos de idade, no
bucólico ambiente da Vila do Paraguaçu.
Pedir
calma a Joana D'arck, a mais agoniada das comadres, porque vou dar uma parada,
e amanhã, tenha certeza, volto à lida, dura e doce lida da escrita, e volto com
afeto e com ternura....
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: cultura sim, o
fazer criativo do povo. Viva.
Artur Carmel: Será que
Navarrinho conheceu o médico Rodrigo Burgos ?
Carlos Navarro: Não lembro
Carmel. O único médico que conheci em já Iaçu, foi que era prefeito quando
voltei há coisa de 40 anos pegar documentos para o meu casamento. Era gente
boa, tinha um filho já rapaz, mas infelizmente não lembro os nomes.
Artur Carmel: Vlw !
Cleidiana Ramos: Oh Emiliano
José ...lembranças de Seo Guinho da Pensão. Maravilhoso. Um senhor cozinheiro e
valente pra defender o exercício da sua sexualidade. Homofóbico não se criou
nunca debaixo das suas barbas e do porrete sempre preparado pra quem se metesse
a besta. Adorando as histórias do conterraneo de Iaçu-Macondo, Carlos Navarro
...
Carlos Navarro: Cleidiana
Ramos Você é bem mais nova, mas vivemos em um lugar onde sonhos e realidade se
misturavam na imaginação das crianças, provocadas pelos mais velhos contadores
de histórias.
Jose Antonio Reis: Sou seu fã!
Emiliano José: Jose Antonio
Reis honrado
Jose Antonio Reis: Emiliano José
sou um soldado, seu. Sempre alerta!!
Jose Antonio Reis: Emiliano José
a honra é toda minha!
Conrado Matos: Genial
Emiliano Jose. Parabéns.
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Emiliano José
12
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: o jovem farmacêutico
Pacífico mais
tarde Chico Preto dando carona
à meninada em
sua bicicleta, comerciante
Severiano
surpreende valente querendo
valer-se da
esposa dele, um tiro na testa,
Navarrinho
mergulhando no
Paraguaçu,
surras do pai, cego Nambu.
O
menino olhava tudo, mal apercebia, mas apercebia, e o tempo vai juntar as
coisas, as compreensões, e ia abraçando aquela vila, como fosse sua, como quase
um brinquedo.
Havia
os comerciantes, Navarrinho conhecia muitos.
Umas
quantas vezes, entregava correspondência pra eles de ordem do pai, recebia
centavos, comprava pedacinhos de rapadura, adoçava a vida.
A
criançada gostava mesmo é de um personagem a ser mais e mais querido conforme o
tempo passasse.
Então
todo mundo o conhecia como Pacífico da farmácia - jovem, jovem, nem 20 anos
ainda, já cuidando de remédios.
Andava
de bicicleta pela vila, e não regateava carona pra molecada, aboletada no
quadro ou no bagageiro.
Uma
simpatia só - mais tarde será Chico Preto, mais tarde prefeito, mais tarde pai
de Cleidiana Ramos - paro por aqui senão ele ocupa espaço e não quer mais sair.
Saber
mesmo da vila?
De
outros comerciantes?
Só
mais um.
Manoel
Severiano cuidava quase amorosamente da loja de confecções dele.
E
amorosamente da querida esposa.
Não
se conhecem todas as circunstâncias, mas um dia surpreendeu um pé-de-pano
metido a valente dentro de sua casa se engraçando com sua mulher, ninguém sabe
até onde foi nas engracias com a esposa.
Morreu
ali o pé-de-pano, no pé da cama.
Uma
bala só, na testa.
Ninguém
ousou censurá-lo - e quem era besta?
Com
uma semana, arrumou os panos de bunda, juntou toda a família, inclusive sua
santa esposa, e nunca mais se teve notícia dele.
Honra
lavada, sim, mas melhor não dar vazão à língua das pessoas, melhor sumir.
Menino,
diabo!
Era
o que mais se ouvia em relação a Navarrinho.
A
vila volta e meia o surpreendia em traquinagens.
Contrariava
a proibição de mergulhar no rio Paraguaçu.
Os
pais tinham medo fossem as crianças engolidas por vorazes sucuris.
E
quem sabe fossem levadas pelo Nego D'Água.
Ele,
nem aí.
Tomou
mais de uma surra do pai pelos mergulhos.
Vivia
pelos becos, correndo descalço.
Era
ousado, disposto a travessuras perigosas.
Uma
delas quase lhe custa a vida.
Foi
com o cego Nambu.
Essa,
a promessa de ontem, feita a Joana D'arck, como disse a mais agoniada das
comadres, justo ela, escritora de entrelinhas e afetos, sabedora da
impossibilidade de domar palavras.
Ainda
não foi hoje, Joaninha.
Escapou
a chance.
Amanhã,
sem falta, conto a história de Nambu, o cego, e de sua mulher, Zabelê - em nossa
Macondo-Paraguaçu, casos abundam, e travessuras de Navarrinho, ainda mais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Cleidiana Ramos: Que linda essa
terra fica. Olhem Lourdinha Brito e Rosangela Maia ...aproveitem as anteriores
sobre mais de Iaçu agora na trajetória de Carlos Navarro ...😀
Rosangela Maia: Muito bom!
Mônica Bichara: Xiiiiiiii se
der corda Chico Preto se aboleta aqui e não sai mais da história de Navarrinho.
Né Cleidiana Ramos? Kkkkkkk Joana D´Árck depois que virou escritora quer até adiantar
o nascimento de Navarrinho.... vê se pode...
Joana D'arck: Mônica Bichara
kkkkkkkk... imagina, já querendo me meter na história duzotro. E esse
Navarrinho parece que vai render mais história do que todas já contadas aqui.
Tô gostando!
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Emiliano José
13
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho e
preferência de
traquinagens em sábado
de feira, gosto
por atazanar vida de Nambu
e Zabelê, o cego
e sua guia andavam
duas léguas pra
chegar à Vila aos sábados, pediam farinha feijão o que pudessem aos fregueses,
levanta a saia da mãe que tu vê...
Devia
correr o ano de 1950.
Navarrinho,
nem completados os seis anos.
Traquino,
traquino, passava a vida infernizando quem pudesse.
No
fazimento de traquinagens, tinha especial preferência pelos dias de feira.
Gosto,
gosto mesmo era o de atazanar a vida de
Nambu e Zabelê.
Vida
dura, a do cego Nambu e de sua companheira, sua guia Zabelê.
Moravam
num casebre, duas léguas distava da Vila Paraguaçu.
Em
João Amaro.
No
sábado, Nambu bastava ouvir o galo cantar, sempre às quatro da manhã, pra dar
um cutucão na mulher.
Nunca
falhava, o galo.
Nem
ele.
Café
ralo, um aipim no máximo como complemento, e pegavam a estrada.
Garrava
no braço da mulher, e os dois seguiam viagem, apertando o passo.
A
pé, não havia outro modo de se conduzir.
No
sertão, quem é rico anda em burrico quem é pobre anda a pé - cancioneiro do
velho Luiz Gonzaga.
Todo
santo sábado haviam de fazer vida de pedinte, dura profissão, ô, por que não
seria?
Nem
eram de pedir dinheiro.
Povo
não gostava muito.
Melhor
fosse clamar aos passantes, às mulheres donas de casa, aos homens, à freguesia toda, lhes dessem um pouco de
farinha de mandioca, um feijão qualquer, andu servia, alimento de modo a matar
a fome.
Mais
fácil, povo recebia melhor esse pedimento, nem se via cara feia quando pediam
assim.
Dinheiro,
gente leva cobra no bolso e cobra risca picar e se pica dói, se tem veneno
pior...
As
vestimentas, andrajosas.
Queriam
o quê, vocês?
Estivessem
nos trinques pedindo esmolas?
Maltrapilhos,
tecidos mal e mal a lhe cobrirem os corpos esquálidos, magreza de dar dó.
Dava
pro gasto do afazer aqueles tecidos.
Uma
pinga, nem se diga boa pinga, não podia faltar.
A
garrafa já vinha de providência segura desde João Amaro no bocapiu de Nambu.
Quem
guenta uma vida daquelas, escuridão e miséria, sem uma cachaça?
Se
o cristão já bebe por qualquer outro motivo, se não tiver inventa, inda mais se
acossado pela fome, miséria, e no caso de Nambu, a impossibilidade de ver o
mundo.
Sem
ela, a mardita cachaça, como segurar esse rojão?
Pergunta
do poeta, do mundo Brasil.
Navarrinho
passava pelos dois, chegava bem perto, e gritava:
-
NAMBU E ZABELÊ.
Zabelê,
irritada, respondia em alto nível:
-
Levanta a saia da mãe que tu vê.
Repetia
isso, o menino levado da breca, várias vezes durante o sábado de feira, os dois
já tomados por sonhos avançados da pinga, Zabelê sempre evocando as partes da
mãe, inocente em casa cuidando da comida do marido e das crianças, Navarrinho
entre eles, pobre Mariazinha.
Num
desses dias de feira...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: mergulho no rio,
olhando os
peixinhos, maginando próximas travessuras, Nambu e Zabelê, a cuia
jogada ao chão,
faca amolada ao
sol do meio-dia,
Navarrinho
desembestado,
medo de ser sangrado...
Navarrinho
vinha andando pela feira naquele sábado.
Nem
camisa não tinha não.
Um
short mal ajambrado, e só.
Antes
de sair de casa, bem cedo, pensou:
vou
pronto pro mergulho, Paraguaçu me espera.
Viu
aqueles peixinhos na fundura do rio, procurou o Nego D´Água tão afamado não
achou, e saiu, água escorrendo, logo seco, pronto pra caminhar pela feira.
Garrou
maginá próxima travessura.
Aproveitou
pegou uma banana na barraca de dona Maria e saiu correndo ela nem se lixando já
sabia das manias do menino, diabo de menino.
Lá
distante, viu Nambu, sentado, cego ceguinho.
Ao
lado, Zabelê, essa sempre com olhos de águia, com a cuia de farinha utilizada
para arrecadação dos poucos centavos caídos ali força boa vontade de uma ou
outra boa alma, que por ali havia, não tantas.
Ah,
pra quê...
O
diabo na rua no meio do redemoinho.
Aquela
visão o animou.
É
como tentação, todo ente sabe como funciona.
Não
deixaria de mexer com os dois, gritou tanto mais alto pudesse:
-
NAMBU E ZABELÊ.
Zabelê
respondeu:
-
Levanta a saia da mãe que tu vê.
Achou
pouco: passou, deu um safanão na cuia de farinha.
Voou
cuia e as moedinhas se espalharam pela rua, desaparecendo por entre as barracas.
Maldade
pura do moleque - cês sabem, moleque adora maldade, crueldade, é diversão.
Zabelê
já havia suportado muitas provocações do menino.
Só
respondia apelando aos recantos escondidos da mãe dele, de forma pouco educada.
Naquele
dia, suportou mais não, os olhos tornados fogo.
Deixou
o cego Nambu à própria sorte, e apesar de tomada por muitas doses da cachaça,
ou por causa delas, saiu correndo atrás de Navarrinho, cujas pernas curtas
ganharam insuspeitada velocidade.
Não
seria nada ela atrás dele, não fosse a faca aparecida de repente nas mãos da
fera, sacada do califon cor da pele, levada ali para urgências, aquela era uma,
apois não era?
Não,
não riam não.
Zabelê
transformou-se em fera.
A
faca de sete tostões nas mãos dela brilhava ao sol do meio-dia, ameaçadora.
Parecia
um facão amolado, faquinha coisa nenhuma.
E
ela, assemelhava não: era um dragão soltando fogo pelas ventas.
O
coração do menino, aos pulos.
Nunca
sentira o coração assim tão acelerado, e ela logo ali, Zabelê faca amolada,
medo de ser sangrado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: O sadismo de
nossa infância...
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Emiliano José
15
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: corrida de atleta, Zabelê
nos calcanhares,
faca amolada risca sangrar,
o curto longo
caminho até o quintal da casa,
o pulo pela
janela, acolhimento da mãe,
indenização do
pai a Nambu e Zabelê,
a inapelável
surra de relho curtido de
couro cru,
palavra como cura, terapia não.
Enquanto
corria, Navarrinho, nos seus imberbes cinco, seis anos, pensava não devia ter
provocado a fera.
Não
obstante, era só brincadeira, refletia.
Não
era causa de faca amolada.
Nem
não era motivo de não sangrar ninguém.
Não,
inda mais ele menino daquele jeito muita vida por viver e queria viver muito,
pudesse.
Gozado:
corria corria e tudo parecia lonjura.
Zabelê
parecia atleta não saía dos calcanhares
olhava de soslaio via a faca rebrilhando contra o sol.
Não
zombem não: ela parecia parecia mesmo um dragão imenso contra ele tão
pequenininho tão inocente nunca quis fazer mal a ninguém, Nossa Senhora estava
aí para provar e comprovar.
A
casa dele era perto da feira, sabia.
Parecia.
Corria
corria.
Aarrodeou
pra disfarçar.
Inda
derrubou coisas das barracas pelo caminho.
Adiantou
pouco: Zabelê no cangote a faca a meio metro riscava encostar sangrar chamou
até Deus Nosso Senhor à causa.
Pediu
perdão pelos pecados - que o salvasse daquela vez, prometia se comportar
escapasse, rezar centenas de pai-nossos, já sabia dessas penitências.
Entrou
pelo quintal da casa com Zabelê e a faca já a menos de meio metro quase quase
riscando a carne fresca das costas.
Ela
a bruxa nos gritos te pego diabo pra você nunca mais mexer com quem tá queto
vai se divertir agora no quinto dos infernos...
Salvou-se:
pulou a janela, e viu-se dentro da casa a mãe o que foi meu filho venha cá...
Zabelê,
meia volta contrariada, enfiou a faca na capanga, não, no califon cor da pele,
e voltou para Nambu já no desespero, apalpando ao lado, sem encontrar amparo,
consolo, e chamava chamava Zabelê Zabelê sem ouvir resposta.
Gil-Braz,
pai de Navarrinho, soube de tudo:
-
Quanto foi o prejuízo? - perguntou a Zabelê.
Pagou
com juros, como do bom procedimento, inda mais se tratando de um cego e sua
acompanhante.
Comprou
dois quilos de farinha, perguntou quanto de moeda se perdera, e Nambu e Zabelê
acabaram saindo no lucro.
Chegando
em casa, foi uma pinga só.
Dois
dias de pura cachaça.
Em
casa, outra pedagogia.
Gil-Braz
tinha seus métodos.
Nunca
ouvira falar de Paulo Freire nem de qualquer outra modernagem na educação dos
filhos.
Navarrinho
se recorda, como fosse hoje, ainda dói que o corpo guarda, tem memória: uma
surra a caráter, de relho fino, couro cru.
Zabelê
não lhe cortou.
Conseguiu
escapar.
Do
relho de Gil-Braz, não.
Tão
forte a recordação, tão forte.
Capaz
de provocar conto.
Melhor
escrever que dói menos - isso tudo está contado, de outro jeito no
"Goroba", de autoria de Navarrinho.
Escritor,
jornalista, driblam os traumas assim, dão seus pulos.
Evitam
psicanalista, psicólogo, terapeuta, essas coisas.
Quando
conseguem...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Tadinho de
Navarrinho. Lá em casa também o couro cantava no lombo dos danados. Era de
currião. Mas eu só levei uma lapada na perna uma vez que fiz mal criação com
painho.
Graça Azevedo: Eu era a única
menina cercada por 3 meninos. O pau cantava igual pros 4.
Da
cintura pra baixo o cinturão de mainha não fazia distinção!
Emiliano José: Curioso: as
mainhas normalmente batiam mais. Meu caso, ao menos.
Graça Azevedo: Emiliano José
Ficavam em casa, cercadas por "anjinhos"! E com o ônus de: a mãe não
educou!
Mônica Bichara: Fui premiada
então, nada de surra. Valeu mainha (hoje seria aniversário dela, a pessoa mais
doce desse mundo)
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Emiliano José
16
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: saudade sempre
espécie de
velhice, saudades do pai,
estranha
melancolia, saudade do que
não foi,
gostaria de ter compartilhado
a vida com ele,
morte prematura, a mãe Mariazinha assumindo ainda mais
as rédeas da
casa, com renca de filhos.
Você
amanhece tomado pelo seu personagem.
Ainda
mais se amigo.
Ontem,
falava das travessuras.
De
como criança adora arriscar e quando se arrepende não dá mais pra voltar atrás.
De
como Navarrinho escapou de Zabelê e de sua faca afiada.
De
como teve de encarar o relho de couro cru do pai.
Lembro
outra vez de Guimarães Rosa, por quem ando tomado, "Grande sertão:
veredas" nas mãos.
Toda
saudade é uma espécie de velhice.
E
isso não é lamento.
A
saudade é um acúmulo, amor pelas coisas boas, pelo ofertado pela existência.
Navarrinho
tem saudades do pai, a quem amou.
Fala
dele como fosse um Quincas Berro D'Água, o incrível personagem de Jorge Amado.
Do
bom humor, da tolerância, da entrega à mulher Mariazinha, mais chefe da casa do
que ele.
Da
viola, dos bares da vida, da imensa capacidade de construir amizades.
De
seu fascínio por Dorival Caymmi.
Da
capacidade de negociação - só lembrar da mediação em torno da Guerra da Roça
Velha.
Se
você conversar com Navarrinho hoje perceberá um tom de melancolia, será isso?
Talvez
sofra reprimendas dos freudianos pelo uso da expressão.
Uma
espécie de estranha saudade - a de não ter vivido mais tempo com o pai.
Saudade
do não vivido - sobre essa ainda não li em Guimarães Rosa.
Também
uma espécie de velhice?
Como
gostaria.
Sair
por aí com ele pelos bares da vida, ouvir mais das sabedorias dele, beber na
fonte de uma viagem alegre, saber de uma existência de bom navegador, deixa a
vida me levar, ando devagar porque já tive pressa, sua capacidade de sedução, a
viola na mão...
Perdeu
tudo isso.
Talvez
o grande ficcionista sinta essa lacuna - gostaria de traçar as verdades dessa
vida, e não pode, porque de um pai, de um Quincas Berro D'Água, de um pai desse
tamanho, você só pode falar se tiver conhecido pra valer, durante muito tempo,
um tempo capaz de sedimentar histórias.
E
ele o perdeu cedo, cedo, o pai nem aos quarenta anos ainda havia chegado,
vitimado por um aneurisma na aorta abdominal, não obstante muito bem cuidado no
Hospital das Clínicas durante dois anos.
Agora,
comando de Mariazinha do Boqueirão.
A
ela, fazer o luto, e tocar o barco pra frente.
Se
antes ela já era, a expressão é de Navarrinho, o "homem da casa" por
decidir tanta coisa, até por guerrear, carabinar contra os Medrado, com a morte
do marido tornava-se a única responsável, e com aquela renca de filhos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Saudade do não
vivido é o que sentimos agora com esse confinamento prolongado até sabe Deus
quando.
Mônica Bichara: Mulher forte
retada essa Mariazinha do Boqueirão, né brinquedo não. É o que se chama de
mulher de fibra, pau pra toda obra.
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Emiliano José
17
de abril 2021
Carlos Navarro Filho:
Mariazinha do
Boqueirão,
energia até o fim da vida,
trovões, raios,
relâmpagos na despedida,
lição de nunca
se apavorar diante de
obstáculos nunca
esquecida por Navarrinho.
Com
Mariazinha do Boqueirão, a mãe, Navarrinho conviveu longamente.
Ela
só foi deixar a vida perto de encostar em um século.
Queria
não.
No
hospital, últimos dias, reagia, reclamava, a animar os filhos, esperançosos com
aqueles sinais de vitalidade.
Ainda
dava ordens, conselhos, consolava, e a filharada adulta ouvia atenta, e queria
obedecer, possível fosse, por muito tempo ainda.
Dizia
fico aqui no máximo sete dias.
E
tagarelava, e ria, divertia-se com as travessuras dos netos e bisnetos,
contadas pelas filhas, filhos.
No
oitavo dia, partiu.
Queria
não, mas fez a derradeira viagem.
Navarrinho,
no seu primeiro "Goroba", não inventa nada, apenas conta - agora,
romance com mesmo título deve chegar às minhas mãos próximas horas, como
prometido.
Na
manhã da partida, a natureza reagiu.
Desabou
tempestade da grossa.
Um
ribombar de trovões, um riscar sem parar de raios, relâmpagos.
Salvador
inundada.
Quando
de repente veio a estiagem, aquele cheiro de terra molhada, surgiram as
formigas de asas, tanajuras, igualzinho igualzinho àqueles lindos tempos de
festa, e ela no meio, menina menina, lá
no Boqueirão, aquele reino feliz.
Costumava
dizer das manias de Deus: Ele não deixa a gente saber antes a história das coisas, só o começo.
Partia,
e sabia deixar muita coisa a ser contada.
Navarrinho
chorou.
Triste,
mas não com desespero.
As
lágrimas reconheciam não apenas a longa vida.
Eram
revelação da tristeza, mas também de orgulho.
A
mãe lhe deixara lições nunca desaprendidas.
Sobretudo
especialmente nunca abaixar a cabeça diante das dificuldades.
Saber
afrontá-las, enfrentá-las, seguir em frente.
Esse
lema carregou vida inteira.
Não
se assombrar quando obstáculos se apresentassem.
Lembra-se
hoje dessa mãe, pouco mais de 30 anos e sete filhos nas costas, chorando quando
o marido morreu.
Viu-a
erguer-se, enlutada, e encarar a vida.
Olhou
para o passado, com saudades, sim.
Gil-Braz:
bom homem, bom marido, bom pai.
Mas,
não estacionou lá.
Caminhou...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Nossa,
Emiliano! Deu vontade de abraçar Navarrinho
Emiliano José: Joana D'arck
espera um tiquinho...
Carlos Navarro: Joana D'arck
obrigado, beijo Joaninha
Isabel Santos: Dizem que
neste momento, quando chove, é pura benção! Emocionante, Emiliano José. Beijo,
Navarrinho, Carlos Navarro.
Carlos Navarro: Beijo Bel.
Mônica Bichara: Quanta emoção.
Verdade Joana D'arck , abração Navarrinho
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Emiliano José
18
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: sertões, segredo da vida só é descoberto aos poucos, sabedoria
sertaneja, Deus é traiçoeiro vem vindo ninguém não vê, a renca de filhos,
Mariazinha e
a certeza de
novo começo, hora de partir.
Andei.
Andei
muito por Bahia afora.
Tropecei
foi em gente.
Boa
e má.
Gente
boa, muito mais.
Teve
tempo quando ia pra zonas conflagradas de pistoleiros e grileiros gente me
aconselhando andar armado.
Nunca
botei arma na cintura.
Acreditava
acredito: a política, essa força civilizatória, me protegia.
Estou
vivo.
Gostei
mesmo em demasia foi dos sertões onde pisei.
Por
eles, me apaixonei.
Por
isso, Iaçu me emociona.
João
da Roça Velha, me comove.
Mariazinha
do Boqueirão me leva de novo pros sertões, como Chico Preto havia feito, como
Cleidiana o fizera, essa gente do Paraguaçu.
Bonito
ouvir Mariazinha dizer Deus não deixa a gente saber antes a história das
coisas, só o começo.
Sabedoria
sertaneja.
Ela
sabia, quando o marido morreu: estava num novo começo.
A
linguagem sertaneja é nítida, mesmo pareça obscura para quem não goza de um
pouquinho de intimidade com ela.
De
minhas paixões, releio leio nesse momento Guimarães Rosa.
Aproximo
Mariazinha e Riobaldo, o narrador de "Grande Sertão: veredas".
Conversando
com o interlocutor, ele pede paciência.
"O
senhor espere o meu contado. Não convém a gente levantar escândalo de começo,
só aos poucos é que o escuro é claro".
Os
dois, Mariazinha e Riobaldo, cada um a seu modo, diziam a mesma coisa.
Mariazinha
ia caminhar pelo mundo com aquela renca de filhos, da missa ainda não sabia
metade que Deus não lhe contara.
Riobaldo
também segredava a propósito: Deus é traiçoeiro, vem vindo, ninguém não vê, ele
faz é na lei de mansinho, assim é o milagre.
Só
sabia do começo, conforme lições do Altíssimo, e depois viria o milagre, ela
ajudando, faria por merecer.
E
o novo começo era fora dali.
Era
hora do adeus à Vila Paraguaçu, às aguas do rio, à Roça Velha.
Tem
de saber quando partir, mesmo pareça tempo escuro.
Aprendera
isso, lições do pai, velho João.
Aos
poucos, o caminho clareia, conforme Riobaldo.
Quando
Gil-Braz morreu estava grávida de sete meses: logo nasceria Eduardo, o último.
Na
memória, a fileira: Navarrinho, Dalva, Marina, Gilson, Tuca, Goroba e agora
Eduardo.
Jurandir,
nascido logo depois de Tuca, morreu com menos de um ano.
Dois
abortos, e nesse casamento não houve ano sem barriga, produção em série,
ininterrupta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha e lembranças de uma vida agitada, o telegrama, Gil-Braz à
beira da morte, trem com todos os filhos,
não houve tempo,
testamento, amigo
de farra ganha
chapéu, Navarrinho
ganha caneta
Parker 51 e relógio de
ouro pra só
receber quando com 10 anos.
Os
personagens vão chegando, se tornando íntimos, conversando, provocando.
Eles
nos animam, evocam.
Ao
pensar nessa fase de Mariazinha do Boqueirão, de sua encruzilhada, sou remetido
à minha infância, ali pelos 10, 11 anos, quando também mamãe se viu sozinha com
cinco filhos, eu o primogênito, vagando por entre casas de vários tios, Rio de
Janeiro, Cachoeira Paulista e São Paulo, bem acolhidos não obstante amontoados,
para só depois meu pai reaparecer, família se reagrupar, e a gente mergulhar em
dura vida de roça.
Curiosas
essas lembranças, essas semelhanças de histórias.
Conto
mais não.
Vocês
podem ler "O cão morde a noite", lançado recentemente, onde conto
tudo isso, tim-tim-por-tim-tim.
O
personagem aqui é Mariazinha.
Sem
lenço nem documento.
De
sua vida anterior, só carregaria lembranças.
Ah,
ricas lembranças.
Do
Boqueirão, régua e compasso, os primeiros passos.
Da
Roça Velha, onde aprendeu a montar e a atirar, onde fez guerra, atirou em gente
pra defender o pai, da Vila Paraguaçu, onde foi lambe-lambe, fabricou sabão e
vinagre, conheceu e amou e casou com Gil-Braz, onde chegou antes a ter outro
rápido casamento com um Medrado, que cedo morreu.
Tinha
era história pra contar, chegada aos 30.
Volto
um pouco.
Na
Vila Paraguaçu, Mariazinha recebeu um telegrama: Gil-Braz não estava bem.
As
condições de saúde haviam se agravado.
Não
havia trem todo dia pra Salvador.
Dia
seguinte, com seis filhos a tiracolo, seguiu para a capital.
Se
era despedida, todos deviam estar presentes.
Trem
atrasou - acontecia.
A
família só chegou em Salvador um pouco depois da meia-noite.
Chamou
um carro de praça foi para o bairro do Uruguai, onde morava a irmã mais velha
de Gil-Braz.
Madrugada
já, a triste notícia: o marido havia morrido, a família acabara de ser
informada.
O
aneurisma na aorta abdominal estourou, e isso depois de dois anos sob os
cuidados dos melhores especialistas, e ele se foi.
Já
se disse, creio, ter sido um estudante o autor da descoberta do aneurisma, mas
já era tarde.
Foi
um fim doloroso.
Os
médicos fazendo transfusão, ele dizendo vou esperar Mariazinha
Chegou
um momento de pedido dele próprio: parem de fazer transfusão de sangue porque
não adianta, eu não vou me recuperar.
Já
havia feito o testamento.
O
chapéu, de tanto zelo, para um amigo de farra, com quem teria bom uso.
A
caneta Parker 51 e o relógio de ouro, para o filho mais velho
Com
uma recomendação: só entregar as duas
preciosidades a Navarrinho quando ele completasse 10 anos.
Mais
não tinha pra distribuir.
Nunca
acumulou.
Deitou
e morreu logo depois da meia-noite, quando Mariazinha desembarcava do trem com
a filharada...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Ruy Espinheira Filho: Você está
escrevendo as memórias, Emiliano José, ou é ficção? Um abraço, Ruy Espinheira
Filho.
Emiliano José: Ruy, meu
velho, trajetória de Navarrinho, no começo, ainda. Abração.
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Emiliano José
20
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: embolados numa garagem dividindo espaço com um
carro, seis
filhos outro na barriga, dá
à luz, volta à
Vila Paraguaçu, os
Medrado haviam
invadido casa dela...
A
casa de Tia Mariinha, irmã de Gil-Braz, no bairro do Uruguai, era pequena.
Como
caberia duas famílias?
Já
disse: vivi situação semelhante, quase na mesma idade de Navarrinho.
Está
lá, em livro recente, "O cão morde a noite", lançado pela Editora da
Universidade Federal da Bahia.
Sei
bem dessa situação.
Não
era apenas Mariazinha - carregava consigo aquela renca de seis filhos, e um
prestes a nascer na barriga.
Foram
para a casa de outra irmã de Gil-Braz, na Ribeira, praia do Bogari.
Era
uma casa grande.
E
contava com uma garagem também grande.
Adivinhem?
Família
alojada na garagem.
Não
foi arranjo fácil.
Havia
dois carros na casa, um foi deslocado para a rua de modo a caber os visitantes.
Quando
o carro entrava na garagem, o espaço ficava muito reduzido para aquele tanto de
gente.
E
foram meses nessa desconfortável situação.
Mariazinha
teve o último filho, recebeu um dinheiro por conta da morte do marido e começou
a pensar no rumo a dar à vida dela e das crianças, e agora era ela e mais
ninguém a dar rumo.
Gil-Braz,
dois anos de hospital, sempre se preocupava com o dia seguinte.
Sabia
da morte próxima.
Disse
a Mariazinha:
-
Quando eu me for, fique entre Salvador e Alagoinhas.
Argumentava:
são cidades próximas, as crianças vão precisar de escola, e na Vila Paraguaçu
não há ensino ainda.
Porque
as duas cidades?
Tanto
pelo ensino quanto pelo trem, talvez.
Mariazinha
tomou do trem, e partiu de volta para a Vila Paraguaçu.
Ela,
o recém-nascido Eduardo, e Navarrinho.
Os
outros a esperariam na garagem.
Ia
fazer o rito de despedida.
Chegou
e virou no estopô do cabrunco.
Os
Medrado não dormiram no ponto.
Coronel
é coronel: invadiu a casa dela e transformou-a numa pensão.
Casa
grande.
Ali
ela morou anos, resultado do primeiro casamento com um Medrado, dela por
direito.
Tão
grande a casa a ponto de mais tarde tornar-se um dia sede da Prefeitura.
Além
de queda, coice...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de abril 2021
Carlos Navarro
Filho: casa ocupada, dureza
do coronelismo,
os Medrado sentiram-se
donos do poder
absoluto na Vila do
Paraguaçu sem a
presença de Gil-Braz, Mariazinha arrebanhou o que era dela,
juntou os filhos
na pequena casa
ao lado, e logo
depois partiu de volta
para Salvador em
busca do destino.
Fácil,
né não.
Não
é mesmo.
Mariazinha
desembarca do trem na Vila Paraguaçu, Eduardo no colo, dois meses, Navarrinho
ali pelos oito anos ou menos, a dor no peito pela morte do marido, coração
ainda aos pedaços, e quando chega em casa, pensando chegar em casa, sua casa,
está ocupada.
Virou
pensão, assim sem mais nem menos.
Compreendeu,
se ainda precisasse, sem carecer de teoria, a crueldade do coronelismo.
Marido
morreu, casa veio da família mesmo, então nos apossemos do que é nosso - mais
ou menos esse o raciocínio dos Medrado quando ocuparam a casa.
Gil-Braz
era uma espécie de contrapeso ao poder do velho Mourinha.
O
coronel, pela força da tradição, e das armas, carecesse.
Gil-Braz,
pelo cargo nos correios, o Agente Postal Telegráfico.
Pela
singular característica de guardador de segredos.
Escrevinhador
de todo mundo, homens e mulheres sem leitura, leitor de cartas de amor,
escritas de desilusões, e tantas coisas mais levadas agora para o túmulo, tudo
recolhido por ele com muito zelo, respeito por todo aquele povo, nunca ninguém
soube de nada, quase um sacerdote.
Ganhou
autoridade.
Os
Medrado, com a morte dele, não tinham mais ninguém de contraponto na Vila.
Por
isso, viram a casa vazia, passar o tempo, um, dois meses, e então saltaram pra
dentro, e fizeram dali pensão.
Mariazinha
do Boqueirão chegou na velha casa, entrou, viu a sala grande ocupada por vários
comensais, hora de almoço na pensão.
Sentiu:
perdera seu lar.
Não
haveria retorno.
Estava
com o filho Navarrinho, Eduardo de dois meses no colo, uma amiga da vizinhança
junto, e foi aos gritos dizendo tudo a ser levado, pertences dela, quadros,
lembranças, sua cultura, sua vida espalhada por aquela casa, cujos aposentos
não desfrutaria mais, os hóspedes assustados, sem saber direito qual a razão da
confusão, as paredes restaram nuas, nem uma foto, nenhum santo, nenhum Sagrado
Coração de Jesus.
Ficou
alguns dias numa casinha ao lado, de propriedade dela, não mais de dois
quartos.
Passada
uma semana, decidiu: não tinha mais nada a fazer na Vila de Paraguaçu.
Página
virada.
Pegou
o trem, com sua pequena tralha, mais Navarrinho e Eduardo, e partiu para
Salvador.
Parecia
tudo desabar: marido fizera a grande viagem, filho recém-nascido, mais seis,
tudo em suas costas.
Fosse.
Do
velho João da Roça Velha recebera lições de nunca temer desafios.
Mundo
mundo vasto mundo a ser enfrentado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha a velha
estação os que
partem os que ficam,
guerras e
poesias nas lembranças, pela
frente
adversidades e mais outra, o trem
vira, segura
Eduardo pelos pés, Navarrinho
só com alguns
hematomas,
voltam para a
garagem da Ribeira.
Tomou
do trem destino Salvador.
Eduardo
no colo.
Navarrinho,
o homem da família, oito anos, ao lado.
Pela
janela, ouvindo o resfolegar do trem, íntimo dela aquele barulho sincopado da
locomotiva, olhou para a Vila e um mundo de boas lembranças ocupou a mente, a
velha estação, uns partindo, outros chegando.
Levava
tudo isso com ela.
As
guerras e as poesias.
O
mundo tem guerra e tem poesia.
Sertão
tem as duas.
Arranca,
o trem, aquele barulhinho gostoso, lento, e depois ganha marcha, ritmo.
Navarrinho
olhava para a mãe, os olhos dela acompanhando a paisagem passar.
Era
cedo pra ele pensar nas tragédias da vida, mas tragédia não espera idade pra
acontecer, e ele começava a encarar a dureza do mundo.
Mariazinha
seguia com o espírito preparado para enfrentar as tantas adversidades pela
frente.
Não
sabia: ainda no caminho, outra.
O
trem virou.
Isso
mesmo - parecia aquele momento na vida definido como tempestade perfeita.
Havia
um trecho da ferrovia entre a Vila e Cachoeira, muito perigoso.
Local
de encostas, precipícios.
Linha
férrea construída costeando montanha.
Nesse
local, já próximo a Cachoeira, o trem vira.
Por
sorte, o vagão onde vinham Mariazinha, Eduardo e Navarrinho, quando o trem
virou, bandeou pro lado esquerdo, o da montanha, não o do precipício.
Outros
dois vagões de passageiros e de cargas tombaram no precipício.
Navarrinho
não recorda do número de mortos nesse desastre, mas não foi pouca gente.
Eduardo,
com poucos meses, estava numa mesinha existente entre um banco e outro,
deitado, dormindo.
Quando
o trem virou, ele deslizou, e Mariazinha num átimo, instinto de mãe, ainda
conseguiu segurá-lo pelos pés, e salvá-lo.
Uma
queda poderia matá-lo.
Navarrinho
viu o mundo rodar, caiu pra lá e pra cá, parecia redemoinho, alguns hematomas,
nada grave.
Quando
refez-se, olhou pra mãe, e ela restava abraçada com Eduardo, protegendo-o.
A
bagagem, todo o recolhido da Vila, pensada para dar feição à nova residência,
perdeu-se por inteiro.
Restou
uma solitária bacia, usada no banho das crianças.
Inútil,
porque reduzida a uma sanfona, todinha amassada.
Inútil,
vírgula.
Mariazinha
desamassou-a cuidadosamente, e continuou a usá-la, tal a relação afetiva com a
bacia, banhos e mais banhos em Eduardo.
Da
garagem da Ribeira, a família seguiu para Pojuca...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: chegou certa de sair
da garagem,
família de Gil-Braz querendo
emprestado o
pouco dinheiro recebido
pela morte do
marido, compra casa em
Pojuca e
resolve: Navarrinho vai ser padre
Mariazinha
viajou de caso pensado.
No
trem, antes do tombamento, imaginava já a nova casa em Pojuca.
Decidira-se
pela pequena cidade por recomendação de Gil-Braz.
O
marido defendia ser aconselhável morar entre Salvador e Alagoinhas - já falamos
disso, havia escolas para a meninada, ficar em Paraguaçu dava não, estou
repetindo para maior facilidade do leitor, desobrigado de voltar atrás.
Da
garagem da Ribeira, seguiria então para Pojuca, onde compraria uma casa.
Desembarcou
e de pronto começou a desamassar a bacia virada sanfona no desastre do trem, coisas
da cultura, do apego.
A
bacia restou como o símbolo de um tempo, assemelhado a um casco de tartaruga
mal comparando, marcas irremovíveis, espécie de paisagem lunar, a virar mar
para Eduardo quando nos banhos.
Eu
disse: comprou uma casa em Pojuca.
Nada
na vida é simples.
Se
família pode ser mão na roda, muitas vezes é, pode também ser complicação.
Bastou
receber o dinheiro dos Correios pela morte do marido, e os famíliares da parte
de Gil-Braz cercaram-na avidamente, a pedir empréstimos.
Juravam
de pé junto: pagariam centavo a centavo.
Bateu
pé.
Já
tinha ciência do mundo, de seus segredos, e dos riscos para a alma quando o
dinheiro entrava pelo meio.
Empresto
não - repetia enquanto arrumava malas, vestia a filharada, e se bandeava na
direção de Pojuca.
Estabelecendo-se
lá, afastou-se inteiramente da família Gil-Braz.
A
convivência depois da morte do marido a convenceu dessa necessidade.
Quando
Navarrinho concluiu o primário, ali pelos dez anos, Mariazinha resolveu: vamos
fazer do primogênito um bom padre.
As
beatas com quem convivia a estimulavam.
Terços
nas mãos, lembravam a Mariazinha quanta honra era ter um filho padre.
Era
uma bênção para a família - contar com um sacerdote, a liderar o rebanho de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
E
Navarrinho, encaminhado para o Seminário da Piedade, em Salvador.
Estava
destinado a salvar almas, o filho de Mariazinha e Gil-Braz.
Que
Deus o iluminasse...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Não teria sido
o Seminário Central da Bahia, secular, na Federação/ Cardeal da Silva? Fomos
seminaristas juntos, lá. Confirme. Abrs. Curtindo cada episódio.
Emiliano José: Vou tentar
saber
Jose Jesus Barreto: falei com ele
há pouco. Realmente (eu não sabia) passou quase um ano, primeiro, pelo convento
dos Capuchinhos, na Piedade, mas a diligente mamãe não gostou e logo ele foi
parar no Central, secular... onde hoje é a Católica (Cardeal da Silva). Foi
então que nos encontramos, pré-adolescentes. Tá correto, pois. Abrs
Emiliano José: chefes...
Jose Jesus Barreto: quem tem chefe
é índio (em filme de cauboi) e trem (no tempo do Maria Fumaça) rsrsrsrs
Emiliano José: vcs dois
foram, dos bons, se preferir, mestres. Homenageei os dois no meu discurso de
chegada à Academia de Letras da Bahia.
Jose Jesus Barreto: eu acompanhei,
tava ligado ... vc nervoso, a brigar com o copo d'água a todo instante. rsrs.
que seja imortal, pois, enquanto dure. rsrsrs
Jose Jesus Barreto: já vestiu o
fardão? tás bem acompanhado, de Ruy Espinheira e mestre Flori. E Juarez
Paraíso, um monstro das artes.
Emiliano José: abraço
Emiliano José: muito bem
acompanhado
Jose Jesus Barreto: emoções fortes
pro coração surrado. aguente.
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Emiliano José
24
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho destinado a ser padre, famílias pobres berço de sacerdotes,
no passado
monjas clarissas entravam em
conventos a
preço de ouro como no
Desterro durante
Colônia, patriarcado
manteve-se
predominante na Igreja Católica.
Navarrinho
destinado a ser padre.
Nós
o conhecemos.
Daria
certo?
Vocês,
de escassa fé, se acalmem.
Quem
sabe.
Simbora.
Nada
de colocar o carro adiante dos bois.
De
colocar gosto ruim nas coisas.
Necessário
acompanhar nosso protagonista.
Havia
concluído o primário, trancos e barrancos, na Vila do Paraguaçu.
Mãe
pensou: bom ter um filho padre.
Tinham
razão as carolas: seria muito bom.
Honra
danada, orgulho.
Ampliemos
um pouco o olhar: por muito tempo, séculos, a Igreja Católica foi abrigo de
muitos filhos de famílias pobres Brasil afora.
A
instituição ia buscar entre as famílias de trabalhadores os sacerdotes,
buscavam freiras também.
Claro,
se quiserem, mas só vamos dar uma palavrinha: houve tempo em que os senhores
dominantes na Colônia pagavam fortuna para suas filhas ingressarem em conventos.
Como
no caso do Convento Santa Clara do Desterro, em Salvador, fundado em 1677.
Os
endinheirados queriam suas filhas monjas clarissas.
Coisa
de status.
Não
era só isso.
O
convento foi um pródigo banco para eles: as abadessas recebiam o dinheiro
recebido para garantir a honraria às moças de fino trato, e o emprestava aos
poderosos a juros bem abaixo do mercado.
Paremos
por aqui.
Um
trabalho jornalístico sobre o Convento Santa Clara revelaria coisas do arco da
velha - ao menos é o que dizem alguns historiadores.
Voltemos
aos padres - tem tempo os homens constituem o centro do poder na Igreja
Católica.
Nada
abalou essa tradição,
Ela
sempre necessitou de sacerdotes.
E
ia, vai, buscá-los entre os mais pobres.
Os
candidatos entravam nos seminários, avaliava-se a existência ou não da vocação,
e a vida seguia em frente - continuavam no seminário ou voltavam pra casa
depois de algum tempo.
Mariazinha,
com um time de futebol de salão em casa deve ter pensado: uma boca a menos.
E
depois, orgulho da família.
Todo
paramentado, celebrando a missa, oficiando casamentos, batizando, homem de
Deus.
Belo,
belo destino.
Chegava
a ter visões antes de dormir, sonhava com aquela pompa toda, ela mãe toda
orgulhosa é meu filho.
Navarrinho
foi primeiro para o Convento dos Capuchinhos, na Praça da Piedade.
Cursar
o ginásio.
Um
amigo, padre José Carlos, até hoje na Capelinha de São Caetano, mesma paróquia
de Padre Renzo Rossi no passado, me explicou as diversas fases de um
seminarista...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: nas barbas do
profeta,
primeira professora a gente
jamais esquece,
experiência nos
Capuchinhos,
admissão para o ginásio
em Alagoinhas,
perde o ano por
falta, novamente
ideia de
seminário, quem
sabe ali um cidadão...
Padre
José Carlos, com sua barba de profeta, me revelou: o seminarista passaria pela
iniciação, correspondendo ao ginásio, pelo postulantado, noviciado e depois
faria então Filosofia e Teologia e aí estava pronto o sacerdote.
Esse,
o destino de Navarrinho.
Será?
A
ver.
Ontem,
pretensiosamente avancei sinal, pretendendo conhecer bem Mariazinha, a gente
vai escrevendo, pensa tornar-se íntimo da personagem.
Ouvindo
o filho, percebi erros.
E
do jornalista, exige-se rigor.
Ainda
mais se o protagonista foi chefe dele.
Há
um fato: Navarrinho foi parar no seminário.
Mas
voltemos um pouco e façamos as correções.
O
primário, Navarrinho não terminou na Vila Paraguaçu.
De
lá, lembra-se de Alzira: a primeira professora a gente jamais esquece.
Concluiu-o,
no entanto, em 1954. em Pojuca - Mariá, o nome da professora.
A
mãe, diferentemente do que arrisquei dizer ontem, não era tão entusiasta assim
de ver o filho padre.
Até
porque primogênito, arrimo da família, destino de primeiro filho, senti isso na
pele.
Mas,
as beatas da igreja, vendo Navarrinho tão dedicado ajudando missa, insistiam -
por que não manda o menino pro seminário?
Mariazinha
acabou convencida, e ele desembarcou no Convento dos Capuchinhos, na Piedade.
Era
o ano de 1955, dezembro, chegou com enxoval e tudo.
Passou
o ano de 1956 lá.
Mariazinha
já se mudara para Alagoinhas.
Nas
férias, final do ano, Navarrinho chega em casa numa palidez assustadora, e
Mariazinha, mãe decidida, sentenciou: você não volta mais para aquele
seminário, estão lhe matando.
Não
voltou nem pra pegar o enxoval.
No
ano de seminário, Navarrinho ia percebendo não ter vocação, aquilo era um
arranjo pouco promissor.
Na
volta para Alagoinhas, faz admissão, e passa a cursar o ginásio, 1957.
Cursar?
Cabulava
todas as aulas, acabou perdendo o ano por falta, virado no capeta.
Outra
vez: sacerdotes e seminaristas da igreja acabaram convencendo Mariazinha de
mandarem o filho pro Seminário Central, secular, não mais vinculado a uma ordem
monástica.
Muito
mais pra encontrar uma trilha a levá-lo a ser um cidadão do que por qualquer
pieguismo ou convicção religiosa.
Fim
de 1957 quando chega com sua pequena mala no Seminário Central, na Federação...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho volta ao ensino católico, Seminário Central da Bahia,
primeiro ano ginasial, excelente ensino, de Latim ao Francês, excelente
aprendizado,
mas nem pense em
bom aluno.
Mariazinha
não era carola.
Mas
sabia: seminário podia colocar Navarrinho nos eixos.
Era
essa a intenção dela.
O
menino passou o ano na rua em Alagoinhas, só queria saber de aprontação, de
futebol, deu uma banana para os estudos.
Um
ano perdido - nada de seguir adiante com o ginásio.
Seminário,
tentou uma vez.
Não
deu porque ela própria o retirou dos Capuchinhos.
Agora,
pálido ou não, ficaria por lá.
Aprender
com a vida.
Sentir
a disciplina da Igreja Católica, boa nisso.
Mãe,
sempre tem esperança.
Navega
no sonho.
Alimenta
ilusões.
Chegado
ao Seminário Central, na Federação, dá de cara com José Barreto de Jesus, mais
tarde meu chefe na "Tribuna da Bahia", e depois repórter do próprio
Navarrinho, no "Estadão", jornalista de mão cheia.
E
com o irmão dele, Eloi Barreto de Jesus, atualmente professor de Filosofia na
Universidade Estadual de Feira de Santana.
Os
dois, seminaristas como ele, dando os primeiros passos.
Ali,
Navarrinho passa dois anos: 1958 e 1959.
Não
encarava o seminário como um lugar especial.
Via-o
como uma escola qualquer.
Não
o animava qualquer vocação sacerdotal.
Tá
legal, ele ajudava missa, por influência de Mariazinha - não era carola, mas ia
todo domingo à missa, levava os filhos, e isso o tornou um coroinha, mas nada
de vocação.
Ele
foi constatando a qualidade do ensino do Seminário Central, na real na real um
dos centros mais avançados de Educação do Estado na época.
Nada
das disciplinas anteriores fora aproveitada.
Era
primeiro ano ginasial mesmo.
E
já no primeiro semestre tome-lhe Latim, Francês, Grego, brinquedo não.
Variada,
a formação: Canto Orfeônico, História,
Português, Geografia, Matemática.
Bom,
bom demais - Navarrinho considera um privilégio ter aprendido Português
estudando Latim: um luxo.
Pegou
gosto por escrever dali.
Ali
nascia o jornalista, o escritor.
Desconfiava,
não, mas nascia.
Aprender,
aprendia - professores bons, e rigorosos.
Mas,
dizer bom aluno, peraí - a distância é grande.
Foi
não...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: a melhor coisa
do seminário pra gente, na época, era mesmo jogar bola. tinha o ping-pong, jogo
de botão, mas o baba era renhido.
Graça Azevedo: Eu aprendi
latim.
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Emiliano José
27
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: mundo seu destino,
foi mandado
embora, queria ficar mais,
o ensino era
bom, não deixaram,
adolescente,
descobre mulher não
ser o diabo,
frutas verdes, as minas.
Navarrinho
tocava a vida.
Tinha
de ser, fosse.
Teria
boa herança, isso teria.
Mas,
sem grande dedicação.
Muito
menos vocação.
A
meta dele não era Deus.
O
mundo, vasto mundo, seu destino.
Verdade,
verdade, querem saber mesmo?
Navarrinho
foi convidado a sair da instituição.
Não
era boa ovelha.
Quem
sabe, contaminasse o resto do rebanho.
Tem
leitura sobre esse convite.
Chegava
a adolescência, a descoberta da mulher, e mais: ela, a mulher, não era o diabo.
Ao
contrario, era bonita de se ver, e de namorar, e de tudo mais.
Recorda:
de batina, andando nas ruas, e as senhoras ou as meninas mexendo com ele e com
seus colegas, e ouvindo mulher tem intimidade com o diabo, e ele não sabe a
razão mas as loiras sobretudo eram as mais endiabradas, ao menos no olhar dos
sacerdotes, tão austeros.
Adolescência,
desejo cresce, quem tem vocação fica, quem não tem, vai embora.
Ele,
nas cercanias dos 15 anos, fogo, fogo, se mandou, ou foi mandado embora.
Na
verdade, se juntou fome com a vontade de comer.
Melhor
assim: satisfeitos a instituição ao se livrar de um adolescente danado da breca
e sem vocação e ele, Navarrinho, ao se desfazer daquela amarra, e assim cair no
mundo.
Ele,
no fundo, no fundo, interessado na qualidade do ensino, ficaria mais.
Mas,
os sacerdotes não admitiram mais a estadia dele, o menino era o diabo em figura
de gente.
Admite:
a vida na instituição era boa.
Ficava
no meio de uma quase floresta.
Frutas
de montão.
Os
seminaristas tiravam as frutas das arvores, verdes, verdes, e enterravam em
buracos convenientemente cavados, elas logos amadureciam, e faziam a delicia
deles.
Chamavam
aqueles buracos de minas.
Quando
sentiam vontade, iam caladinhos em busca das minas, e se refastelavam.
Você
quer vida melhor?
E
a joia da coroa: o futebol...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Nunca imaginei
Carlos Navarro de batina 🤪
Emiliano José: Joana D'arck
pois já esteve: a marrom, dos Capuchinhos, e a preta, secular. E as minas
gritavam à passagem dele..
Carlos
Navarro: Não me complique companheiro.
Mônica
Bichara: Verdade, Joana, essas memórias revelam é coisa
Emiliano José: Carlos Navarro
vc não tinha culpa...
Emiliano José: A batina é que
assanhava as minas..
Isabel Santos: Joana D'arck
fiquei aqui imaginando que batina não seria mesmo a vibe de Navarrinho rssss.
Serviu para alvoroçar corações, mas a trilha já estava traçada., para o bem do
Jornalismo.
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Emiliano José
28
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: minas e minas, frutos maduros, evitar confusões, a imensa floresta,
verde que te quero verde, um velho calção de banho, um bonde pra passear
Ontem,
falamos de minas.
Eram
os esconderijos feitos na terra para amadurecer os frutos verdes tirados das
árvores da imensa floresta a circundar o Seminário da Federação, onde
Navarrinho estudava naquele final dos anos 1950.
Volta
e meia, ele e os coleguinhas saíam alvoroçados atrás das minas para saciar o
desejo incontido pelos frutos maduros.
Como
palavra é bicho indomável, sujeita sempre a muitos sentidos, bom não deixar
margem a dúvidas.
Não
confundam com as minas alvoroçadas à passagem dos rapazes de batina pelas ruas
de Salvador.
Nada
disso.
Aí,
nas ruas, eram as minas querendo colheita, dando asas à imaginação, que a
batina aguça.
Navarrinho,
no quesito, era sério.
Quisesse
alguma coisa com as minas, melhor sair do seminário.
Tanto
fez, e foi expulso.
Livre
para as minas.
As
outras minas, de frutas maduras, ficassem pros queridos colegas, José Barreto
de Jesus entre eles - mais tarde, ele também vai sartar de banda, buscar outros
ares e minas fora do seminário.
Retidas
na memória todas aquelas lembranças.
Navarrinho
ainda vê o imenso vale, a imensa floresta, verde que te quero verde verdes
ventos verdes ramas García Lorca a animá-lo nas rememorações.
Lá
embaixo, no fundo do vale, passava a linha do bonde - é tem tempo isso, havia
bonde, é outro século.
Uma
vez por mês, a moçada saía do Seminário da Federação e ia pra Ondina.
Ia
para a Bacia das Moças.
Chamava-se
assim o lugar onde ia tomar banho de mar.
Outra
vez, as moças...
E
eles, os seminaristas, todos de camiseta branca e calção azul.
As
minas, estivessem observando, não viam muito - os calções largos iam até os
joelhos.
Prudência
dos sacerdotes.
Não,
ele não lamenta a vida no Seminário.
Era
boa.
Contudo
e apesar de tudo, não havia tédio.
Havia
coisas chatas - onde não há?
Mas,
noves fora as rezas e outras obrigações, alegria, alegria.
Ele
faz uma radiografia dos grupos do seminário...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: recordações do autor,
Navarrinho
novatos maiores e curso final,
missa em latim,
revolução de João XXIII mais tarde.
Seminários.
Andei
muito por corredores e salas de um deles.
Camilianos,
em São Paulo, Jaçanã.
No
fundo, um ótimo campo de futebol.
Atrás
do seminário, a Igreja de Santa Terezinha, frequentada assiduamente por mim.
Defronte
à igreja, a fábrica Darling - as duas, igreja e fábrica, sobrevivem, estão lá
para quem quiser ver.
Aquelas
redondezas foram o palco de minha adolescência e chegada à idade adulta.
Era
um leigo em busca de conhecimentos sobre o cristianismo.
Fiz
amizades.
Até
hoje, converso com Augusto Zago, padre então, vigoroso nos seus 83 anos.
Fui
descobrir melhor a ordem agora, pesquisando, em busca de minha origem de
militante de esquerda.
Em
"O cão morde a noite" conto tudo isso e muito mais.
Aqui,
o protagonista é Navarrinho, no Seminário Central da Federação.
Ele
faz um diagnóstico dos grupos.
Havia
a molecada, os chegados assim assustados, novatos.
Navarrinho
nem chegou assim porque já havia passado pelos Capuchinhos.
Já
era quase veterano de batina.
Chamados
de menores - o pessoal do ginásio.
Depois,
os maiores.
Iriam
cursar o correspondente ao curso superior.
E
então, passada essa fase, os estudantes do chamado Seminário Maior, curso de
Teologia, caminho para o sacerdócio.
Faz
conta: à época, pra tornar-se padre, o jovem havia de ralar por 13 anos.
Carga
pesada.
Dava
pra ele não.
E
tem mais: latim corria solto - missas, orações, diabo a quatro, tudo em latim.
Eita:
esse diabo a quatro escapou, os mais piedosos podem se persignar, e ganharão o
reino dos céus.
Mais
tarde, a Igreja vai perceber a necessidade de se aproximar dos mais pobres, dos
excluídos, e orientar fossem os atos litúrgicos realizados nas línguas locais.
João
XXIII foi o papa a modificar uma porrada de coisas na Igreja Católica,
inclusive a missa em latim.
Mexeu
com tudo.
Tentava
situar a Igreja na contemporaneidade de modo a abrir-se para o mundo, para a
sociedade, para a relação com outras crenças.
Defendeu
a paz, os direitos humanos, distribuição de renda.
Uma
revolução.
Tudo
isso aconteceu entre 1962 e 1965, com o Concílio Vaticano II, convocado por
João XXIII, e concluído por Paulo VI, sucessor dele.
No
tempo de Navarrinho, tinha disso não.
Era
o latim comendo no centro.
Tradição...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: O LIVRO NASCEU
- Gente, hoje é um dia especial para essa série histórica de Emiliano José.
Cumprimos a promessa feita ainda em 2019 e hoje nasceu o primeiro volume de
#MemóriasJornalismoEmiliano, em e-book, já em pré-venda na Amazon. O lançamento
será dia 11 de maio, com uma live comemorando os 2 anos da série, que continua
ativa com crônicas diárias e dezenas de personagens. O 1º Vol. "Balança
mas não cai" conta os primeiros passos de Emiliano no jornalismo, redações
da Tribuna da Bahia, Jornal da Bahia e sucursal do Estadão. Mas ele vai mudando
de protagonista e ainda nos deve a continuidade da sua trajetória. O livro
reproduz o formato que editamos no blog Pilha Pura, criado por Joaninha Joana
D'arck, agora também escritora, autora de "Entrelinhas e afetos".
Inclui fotos (a da capa é de Agliberto Lima - brigadão, Bel) e comentários dos
seguidores desta página do face. Estou muito feliz por fazer parte desse processo
(o prefácio é meu, olha o tamanho da responsa)
Agliberto Lima: Viva! Parabéns
Mônica.
Joana D'arck: uhuuu! Grande
feito. parabéns Emiliano José e Mônica Bichara! Obrigada pela referência à
minha pessoa, mas o mérito é seu!👏👏👏
Mônica Bichara: Ajudem
divulgando, compartilhando, comprando e lendo "Balança mas não cai"
Vander Prata: Parabéns, pelo
trabalho, Mônica Bichara!
Mônica Bichara: Obrigada
Vander, mas só fiz organizar. O mérito é todo do nosso escritor
Vander Prata: Mônica Bichara
nisso concordamos. Valeu você!
Lucia Correia Lima: Parabéns
Parabéns Parabéns. EXCELENTE contribuição à História da Bahia
Artur Carmel: Joao XXIII
"abriu" a igreja para o povo...
Isabel Santos: Maravilha 👏👏👏👏Parabéns
de novo, queridos Emiliano José, fazendo essa linda história, e Mônica Bichara,
a grande editora. Muitos vivas, miga/comadre. Beijos, beijos.
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Emiliano José
30
de abril de 2021
Carlos Navarro
Filho: volta a Alagoinhas,
as minas deviam
aguardar ansiosamente,
frustração, elas
nem tchum...
Latim,
tradição, tudo.
Navarrinho
lembra de muita gente com quem conviveu no seminário.
Não
cita nomes, por cuidado.
Vai
lembrar de uns, esquecer doutros.
E
aí ofende.
Vocações,
mais tarde, vai constatar: eram escassas.
Vai
deparar com juízes, desembargadores, gente egressa do seminário, lastreados no
excelente ensino recebido ali.
Padres,
poucos.
Relação
a se manter, apenas José Barreto de Jesus, e pelo fato de terem se encontrado
nas lides jornalísticas, chamado por ele para compor a equipe do
"Estadão".
Navarrinho
volta pra Alagoinhas.
Imaginou
um retorno em grande estilo.
Agora,
livre para as minas.
Sonhava
em colher frutos maduros, à espera dele, não mais as mangas do seminário, mas
as minas mesmo.
Afinal,
era um ex-seminarista chegando à sua terra, com toda aquela aura.
Desembarcou
com essa expectativa.
Quebrou
a cara.
As
minas, antes tão alvoroçadas atrás dele naquele conturbado ano de ginásio, nem
aí.
Ele
não entendeu: nem olhavam pra ele.
Nesses
primeiros dias, ainda navegava em lembranças do seminário.
Lembrou
de dois irmãos, amigos: moravam em frente.
Vizinhos
do seminário.
Apareciam
por lá.
Importante
mesmo era a irmã deles.
O
interesse dos embatinados era nela.
Bonita
- pense numa mina bonita, de fechar quarteirão.
Pensou?
Era
ela.
Navarrinho
não dá os nomes deles, nem o dela.
Deles,
abre os apelidos: Tagarela e Tagarelinha...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
1º
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Corações em fogo,
uma serenata no
final da tarde para
a irmã de
Tagarela e Tagarelinha,
aventuras de
seminário,
o banho gelado
às cinco da manhã
Navarrinho é
cuidadoso.
Não
vai abrir os nomes de Tagarela, irmão mais velho, e nem o de Tagarelinha, o
mais novo.
Nem
o da bela irmã.
A
mina incendiava corações, atiçava a imaginação dos embatinados, testosterona em
alta.
Raramente
tinham mina nas proximidades.
Fosse
pra olhar, já era consolo.
Como
a família morava bem em frente ao seminário, puderam desfrutar da presença
da mina.
Ela,
na dela.
Certamente,
percebia o olhar daqueles seminaristas ávidos.
Sentia
os olhos de fogo.
Poderosa.
Mas
na dela.
Não
ia se abrir.
Os
irmãos, de olho.
E
não ficava bem, complicação.
Os
meninos não desistiam.
E
cercavam-na em grupo.
Morena,
bonita, exuberante na sua adolescência, motivava a meninada a românticas
serenatas.
Encostavam
no muro, a casa logo em frente, final da tarde, à capela, sem qualquer instrumento,
cantavam as mais românticas músicas da época.
Conseguiam
afinar as vozes, um modesto pero entusiasmado coral.
Ela,
a irmã de Tagarela e Tagarelinha, ouvia enternecida, sem dar na vista, nem para
os irmãos, nem para os pais.
Navarrinho
e seus cúmplices cantavam nem tão alto que pudesse chamar a atenção dos padres
nem tão baixo que ela não pudesse ouvir.
Não
se tem notícia de qualquer namoro de algum seminarista com a mina - Navarrinho
ficou na saudade, seus cúmplices, também.
Não
podiam demorar muito na serenata, tinham de voltar para o jantar, depois para a
banca, um rápido recreio, e então dormir.
Dia
seguinte, cinco da manhã, despertar.
Banho.
Duro
de suportar - frio.
É,
no inverno, naquele tempo, fazia um frio danado.
E
tome-lhe chuveiro gelado.
Ligeiro,
ligeiro o banho, não havia quem não despertasse.
Para
aplacar o frio, só pensando na mina em frente...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: lembro-me bem
da belíssima irmã de Tagarela e Tagarelinha. objeto de desejos dos
"padrecos".
Emiliano José: Você, também,
hein Barretinho?...
Jose Jesus Barreto: ah, acontecia
coisa do arco da velha no seminário. um dia eu conto, sem censuras. rsrs
Emiliano José: É, vc teve
vida mais longa lá...
Carlos Navarro: Barretinho
sempre foi um sujeito com tudo bonito (aliás na época todos éramos) e craque de
futebol. Só a citada garota não deu pelota, pra ninguém. A mãe era severa, sem
contar a confusão que seria com os irmãos, que ainda contavam com um primo alto
e forte para ajudar.
Jose
Jesus Barreto: eu dava meus pulinhos... rsrs
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Emiliano José
2
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: adeus Tagarela e
Tagarelinha,
adeus linda morena,
volta pra
Alagoinhas, meio de ano
e não podia
voltar a estudar, paixão
pela sinuca nos
imberbes 15 anos,
e passa a ter
aulas proibidas - de sinuca.
Até
no chuveiro frio, pensava na mina, linda morena.
Era
bom não abusar no cerco.
Pai,
mãe, Tagarela, Tagarelinha, e por cima um primo forte, bíceps à mostra, cuidavam de evitar
aproximações, ousadias.
Do
primo, quem lembrou foi Barretinho.
Carecia
cuidado, olhar só de longe.
E
cantar, serenata não era ofensa, e era de bando.
Como
foi expulso, Navarrinho volta pra Alagoinhas.
Era
meio de ano.
Teve
aquela decepção - esperando cair nos braços das minas, desejosas de suas
carícias, e nada, elas nem aí pra ele.
E
não podia voltar a estudar - ele até gostando, não nega.
Podia
cair na buraqueira, desfrutar da rua, malandrear.
Quer
coisa melhor?
Era
junho de 1960.
Se
olhasse a vida até ali, não podia se queixar.
Nunca
deixou o tédio sequer se aproximar.
Vade
retro.
Driblava-o
bem.
Está
certo: uma vida escolar cheia de altos e baixos.
Muito
mais baixos.
Ainda
vamos contar: para terminar o ginásio, quase uma década, brinquedo não.
Sabia,
no entanto, desfrutar da vida - deixa a vida me levar.
Muitas
emoções para aqueles 15 anos de existência.
Na
esquina da rua onde morava, um salão de sinuca - o único de Alagoinhas.
Ah,
pra que...
Não
saía de lá.
Fortes
emoções ao ver os craques do taco.
Era
emocionante assisti-los encaçapando as bolinhas em jogadas impossíveis,
mirabolantes.
Sonhava,
Navarrinho sonhava um dia pegar do taco e derrotar todos os grandões de
Alagoinhas.
A
cada jogada de um deles, os olhos brilhavam.
Via-os,
atentos, agachando-se, mirando, e encaçapando, enquanto o outro passava o giz
no taco ou tomava mais um gole de cerveja.
Tal
o brilho nos olhos diante do pano verde e suas bolas, tal, tal, a ponto de
enternecer seu João, o gerente.
Nos
momentos de deserto, casa vazia, João tomava do taco, dava outro pra
Navarrinho, e lhe ensinava o caminho das pedras - das bolinhas e seus
misteriosos segredos e percursos até encontrar aqueles minúsculos buracos.
João
fazia aquilo na surdina.
Menor
de idade não podia jogar sinuca...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Élio Almeida Carvalho: Navarrinho foi
meu vizinho em Alagoinhas (Rua 24 de Maio) e estudamos juntos na CNEG. Tenho
foto dele com um grupo de estudantes e professoras.
Emiliano José: Élio Almeida
Carvalho que maravilha. Esta foto, poderia tê-la? Isso será livro. Seria
importante.
Emiliano José: Estou aqui
pensando: é uma já postada por você? Mandei agora pra ele.
Carlos Navarro: Élio que bom
revê-lo mesmo por foto. A quanto tempo. Fomos vizinhos sim, e vizinhos da
professora Aurora. Você era figura mais brincalhona e gozadora da rua, tirava
sarro da cara de todo mundo. Uma tirada sua que nunca mais esqueci é a
"cara de paralelepípedo", para se referir a alguém muito cara de pau.
Abração, onde você anda?
Élio Almeida Carvalho: Emiliano José
Tenho sim.
Élio Almeida Carvalho: Carlos Navarro
- Moro entre Feira/Salvador. Eliúde minha mulher (não sei se você lembra dela),
faleceu de covid em Março deste ano. Então estou mais presente aqui em Salvador
do que em Feira.
Carlos Navarro: Força aí, esse
vírus é infernal levou alguns queridos amigos. Meu abraço solidário. O jeito é
a gente esperar passar essa pandemia e marcar um papo. No inbox mande-me seu
telefone, mandarei o meu. abração.
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Emiliano José
3
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: grande mestre
João, sinuca,
Navarrinho sendo
iniciado ao lado
de Nuca, Carne Frita
e seus feitos,
de Propriá para o
mundo, malandro
é malandro, mané
é mané, e um
acidente acaba com a farra.
Não,
podia não.
Menino,
menor de idade, assim se dizia naquele tempo, não podia jogar sinuca.
Arriscava
viciar.
Não
era bom caminho.
Lei
prescrevia.
E
era da palavra dos mais velhos.
Navarrinho
nem queria saber.
Danou-se
a aprender com o gerente João, professor paciente, e dos bons.
Ele
e Nuca, irmão de Lió dos Dedos Torados - perdeu os dedos com bombas de São
João.
Nuca,
também vizinho da sinuca, gostou de ser da turma de alunos de João - pequena
turma, dois aprendizes, disciplinados.
Em
pouco tempo, craques.
Nuca
mais tarde toma juízo, vai pra PM, hoje coronel reformado.
Nisso,
de aprender artes da malandragem, Navarrinho era dos bons.
Diziam,
falavam: sinuca é coisa de malandro.
Fosse,
com ele mesmo.
Não
sei, Navarrinho não me contou, nem vou perguntar, se ele conhecia, de ouvir
falar fosse, um sujeito de nome Walfrido Rodrigues dos Santos.
Assim
falado, conhecesse, não ia lembrar.
Disser
Carne Frita, aí, provável, a memória desperte.
Foi
o Pelé da sinuca - do snooker, se dizia, pomposamente.
Entre
1951 e 1974, invicto nos gramados das mesas de sinuca.
Correu
mundo, a fama de Carne Frita.
Tivesse
conhecido a história dele, e Navarrinho quem sabe perseguisse aquele destino:
sergipano nascido em Propriá, desceu pro eixo Rio-São Paulo, corria de mesa em
mesa, para os desconhecidos fingia-se de novato, e tome-lhe apostas
milionárias, e dinheiro no bolso, e não foi pouco, era muito pato à disposição.
Malandro
naquele tempo se fazia em cima dos otários.
Dito
famoso: malandro é malandro, mané é mané.
Havia
muito mané, e em cima deles, Carne Frita se fez.
E
depois da fama, nem precisou mais.
Era
só correr pro abraço.
Navarrinho,
no entanto, teve a carreira brilhante interrompida por um acidente capaz de
acabar com a farra...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joana D'arck: Vixe! Que
houve com Navarrinho, gente! Tava indo tão bem na sinuca... isso me lembrou
minha adolescência. Já morava aqui em Salvador, mas minha mãe gostava da
jogatina dentro de casa. Preferia a ver os filhos na rua. A gente tinha 2 mesas
de sinuca. Aprendi um pouco. Gosto mais do que sei😂
Devanier Lopes: Nome do NUCA?
Emiliano José: Só com
Navarrinho... Quis abrir não...
Sérgio Buarque de Gusmão: É, mas eu
ganhei dele num jogo em Santo Amaro...
Emiliano José: Vc era um Carne
Frita, então...
Jose Jesus Barreto: O maior
jogador de sinuca que vi foi padre Sadoc, negão de Santo Amaro. era tb um ótimo
zagueiro, clássico. sabiam? ele mesmo, o monsenhor, pároco de São Judas Tadeu e
depois da Vitória.
Emiliano José: taí, sabia
não.. tinha dele outras notícias, talvez exageradas...
Jose Jesus Barreto: o conheci mais
de perto, talvez.
Emiliano José: muito mais.
Carlos
Navarro: Grande Sergião mas você sempre foi craque, eu era aprendiz.
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Emiliano José
4
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: aluno aplicado
na sinuca, não
perdia uma aula,
pronto, foi pro
embate, passa a
enfrentar os
adultos e a ganhar
algum dinheiro,
o mundo se abria,
iluminado pela
mesa verde.
Navarrinho
estava feliz.
Levantava
cedo já na tenção das aulas, quando todo mundo ia se embora e só ficavam ele e
seu João: eram as melhores horas.
Por-se
de atenção inteira, não deixar escapar nenhum movimento do mestre.
Nuca,
sempre ali, rente, junto, o irmão de Lió dos Dedos Torados.
Aprendeu
rápido.
Nunca
se viu aluno tão aplicado.
Fosse
assim no trato diário da escola, tivesse tal procedimento no curricular de
obrigação, e estaria bem mais adiantado.
Mas
ele, deixa a vida me levar.
Na
sinuca, ligeiro ligeirinho aprendeu.
Os
mais velhos gostaram do menino.
Apadrinharam.
Abuso
pequeno, polícia descobrisse, e uma cervejinha resolveria tudo, fosse
transgressão de monta, vá lá, mas essa...
Zombaram
da ousadia quando ele quis jogar a vera:
-
Olhem o moleque, pensa que já pode enfrentar craque.
Podia.
Levava
jeito.
De
repente, ousado, quis jogar apostando.
-
Qué isso menino? É cedo.
Navarrinho
insistiu.
João,
o mestre e gerente, abriu exceção.
Tinha
uns trocados no bolso, podia arriscar.
Jogo
é o diabo, e quando a dinheiro então, tentação é grande.
Diabo
cochichou no ouvido de Navarrinho, e ele gostou: vou nessa.
Tentação
pequena, pecado venial.
Encaçapava
dali, daqui, parecia mágico aquele taco.
Gozado,
não sabia, mas o salão era cheio de patos.
Chamava
assim os coitados, derrotados por ele.
Ia
se divertindo e ganhando uns caraminguás, que a mãe não soubesse.
E
o melhor: era feliz.
Aquele
taco iluminava o mundo.
Sentia-se
um Carne Frita quando dava voltas em torno da mesa olhando a posição da bolas
enquanto passava o giz na ponta do taco, e observava o pato, ansioso, pronto
pro matadouro às vezes sem saber, crente em vitória, sabe nada, inocente.
Sentia-se
rei - o rei do taco.
Um
dia, fora de Alagoinhas, o mundo o reconheceria.
-
Me aguardem - murmurava.
Até
que um dia, o acidente...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Em outubro 1948, Navarrinho à frente de gravata, as irmãs Dalva e Marina no colo do pai e Gilson no colo da mãe)
Emiliano José
5
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha
e vida errante
criando sete filhos,
Pojuca,
Alagoinhas, Salvador,
Navarrinho se
dando de boa,
ganhando o
dinheiro de um pato...
Mariazinha
andava meio esquecida.
Navarrinho
nasceu, chegou chegando, todo faceiro, aprontador, e a gente deixou de falar
dela.
Hora
dela voltar.
As
leitoras, os leitores vão entender da razão.
Carece
alguma paciência.
Já
falamos, não custa insistir: depois da morte do marido, início dos anos 1950,
desvencilhou-se inteiramente das famílias Navarro e Gil-Braz e foi cuidar da
vida, sete filhos na cacunda.
Melhor
só que mal acompanhada.
Parente,
às vezes ajuda.
Noutras,
mais atrapalha do que auxilia.
Ganhou
mundo.
Primeiro
Pojuca, onde havia um amigo, Raimundo Santana, a orientá-la nos primeiros
passos.
Ali
comprou casa, passou um tempo.
Pensando
em ginásio para as crianças, muda-se para Alagoinhas, cidade maior, com mais
recursos.
Só
mais tarde, Salvador.
Naquele
ano de 1960, se virava nos trinta para criar os sete, mas tinha preocupação
especial com o primogênito.
Navarrinho,
ela assuntando, muito inteligente, esperto pra danar, demais até, mas estudo
que é bom, rateava.
Já
havia tentado de tudo: ginásio no seminário dos Capuchinhos, ginásio em
Alagoinhas, ginásio no seminário da Federação, e ele empacado, andava aos
tropeços, e acabara expulso.
Veio
no meio do ano pra Alagoinhas, e o semestre, perdido.
Preocupava-se
com ele solto pelas ruas.
Não
ia dar boa coisa.
Tardes,
início de noites, ele desaparecia.
Numa
tarde, Navarrinho ia se dando de boa.
Encarava
um pobre ferroviário.
O
trabalhador olhou pro menino, topou jogar a dinheiro, pensou: está no papo.
E
Navarrinho só encaçapando, pronto pra ganhar já quase a metade do salário do
rapaz.
Mais
uma, mais uma, mais uma - o ferroviário não se conformava em perder pro
moleque, e ia esvaziando o bolso, perdendo todas.
Naquela
tarde, quase início de noite, Mariazinha teve uma espécie de premonição, mãe
tem dessas coisas, e invariavelmente acerta:
-
Vou girar por aí, esse moleque está aprontando alguma coisa, vou descobrir.
E
saiu, olhos de lince, a procurar, saber do destino dele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Mariazinha virada
na porra atrás
do filho, consegue saber,
chega na sinuca,
manda Navarrinho
devolver o
dinheiro ao ferroviário,
e o leva pela
orelha até em casa.
Mariazinha
danou-se a andar por Alagoinhas.
Sei,
sei, murmurava, esse menino está aprontando alguma.
Não
sabia direito onde Navarrinho podia estar.
Jeito
era bater perna, olhar aqui, acolá.
Andar.
Estava
virada num mói de coentro.
Encontrou
um amigo da família, perguntou.
Sujeito
abriu: está na sinuca.
Ah,
pra quê.
Mariazinha
apertou o passo.
Queria
ter à mão um relho de couro cru bem fino.
Quando
entrou na sinuca, foi aquele alvoroço silencioso.
O
bom mestre João ainda quis conversar, mas ela, nada.
Navarrinho
largou o taco, empalideceu, coragem foi embora, e o ferroviário, quase sem as
calças, metade do salário já indo embora, respirou aliviado.
Navarrinho,
naqueles segundos, pensou, lembrou: as calamidades são de duas espécies: a
desgraça que nos acontece e a sorte que acontece aos outros.
Ferroviário,
feliz - abençoada mãe, aquela.
Fossem
todas as mães assim, e o mundo seria melhor.
Chegasse
em casa sem dinheiro nenhum, e possa ser levasse um esbrega da mulher, se não
apanhasse mesmo, ela não era brinquedo não, salvo pelo gongo.
Ele,
Navarrinho, beco sem saída, até pensou, quase sorriu: sinuca de bico.
Não
havia o que fazer.
Correr
de mãe, nem pensar.
Ela
parecia um gigante à porta.
Sem
saída.
Mariazinha
nem olhou pros lados.
Só
tinha olhos, e de fogo, para o filho malandro.
-
Onde já se viu? Um moleque desses jogando sinuca?
Deu
ordem ao filho:
-
Devolva todo o dinheiro ao rapaz.
Navarrinho
meteu a mão nos bolsos, retirou tudo o que tinha, nem separou o que era dele, e
entregou ao feliz ferroviário, um sortudo no final das contas.
Mariazinha
o pegou pela orelha e assim o levou até em casa, humilhação em público: pra
aprender, repetia.
Terminava
ali a carreira de um novo Carne Frita.
De
modo assim pouco glorioso.
Foi
entrar novamente numa casa de sinuca uns 30 anos depois.
E
nunca mais quis apostar.
Mãe
é mãe...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: mãe de certezas,
nenhuma dúvida,
fim de carreira
Carne Frita, fim
dos caraminguás
ganhados dos
patos, e a volta
em 1961 ao
ginásio na Campanha
Nacional de
Educandários Gratuitos (CNEG).
Mãe
é assim: falou, tá falado.
Não
havia nada a discutir depois da palavra dela.
Mariazinha,
mesmo antes de Gil-Braz morrer, era o homem da casa.
Sei,
homem da casa, carrega um sentido machista.
Mas
era assim o dito da época, e é essa a caracterização de Navarrinho sobre
Mariazinha.
Ué,
mulher capaz de sustentar tiroteio com pistoleiros para defender o pai é
brincadeira?
Mulher
assim é pra ser contrariada?
Vai
permitir filho discutindo ordens dela?
Coisa
nenhuma.
Navarrinho
desenvolve comparações com os dias atuais.
Os
pais hoje, quem sabe corretamente, têm muitas dúvidas quanto à educação dos
filhos, dialogam mais, recorrem a ajudas externas, como psicólogos ou
psicanalistas, e nem sempre dão ordens peremptórias, daquelas de nunca voltar
atrás, falou tá falado.
Com
Mariazinha tinha dessas pedagogias não.
A
pedagogia dela era de outra matriz, a da sagrada palavra dos pais, como se a
fala dela fosse parte das sagradas escrituras.
Ela
tinha a sua própria tábua de leis, os seus Dez Mandamentos, e ai de quem
ousasse contrariá-la.
Esse
espírito determinou o fim da gloriosa carreira de Navarrinho na sinuca.
Não
teve nhenhenhem, não teve mimimi.
Duro,
porém verdadeiro: ela só tinha certezas.
Filhos,
tratassem de obedecer.
Navarrinho,
entristecido, deixou de lado o sonho de ser um Carne Frita, o grande sonho, e
também o sonho menor, o de tirar alguns trocados dos patos à disposição.
Em
1961, voltaria a estudar.
E
o duro é que teria de começar do zero.
Cursar
o ginásio a partir do primeiro ano, já com 16 anos.
Os
anos cursados anteriormente de nada valeram na Campanha Nacional de
Educandários Gratuitos (CNEG), ginásio novo em Alagoinhas, onde se matriculou.
Era
instituição de longa tradição.
Remontava
a 1943...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Campanha do
Ginasiano Pobre
no Recife em 1943,
Felipe Tiago
Gomes protagonista,
expansão para
todo o Brasil, CNEC
e discurso
assentado numa via entre
o público e o
privado, é ali o ingresso
de Navarrinho no
ginásio, em 1961.
A
Campanha Nacional de Educandários Gratuitos (CNEG) teve início no Recife, em
1943.
Nesse
primeiro passo, levava o nome de Campanha do Ginasiano Pobre.
Um
paraibano, filho de família pobre, nascido em Picuí em 1921, foi o grande
inspirador.
Felipe
Tiago Gomes, o principal protagonista, foi aos tropeços estudando, e chegou à Universidade.
Teve
acesso ao livro de John Gunther, "O drama da América Latina".
Na
leitura, toma conhecimento da experiência de Haya de La Torre, fundador da
Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), destacado político e teórico,
empenhado em alfabetizar indígenas.
O
livro provoca um estalo: por que não pensar alguma coisa para ajudar os jovens
pobres do Brasil?
Começou
pelo Recife.
Lado
a lado com colegas universitários, danou-se a preparar alunos carentes de
recursos para dar continuidade aos estudos pós-primário.
Fundado
o primeiro ginásio no Recife, resolve levar a ideia para todo o Brasil,
começando a expansão pelo Rio Grande do Norte, em 1948.
E
chega um dia a Alagoinhas, como vimos, onde Navarrinho ingressa.
A
CNEC assumiu o discurso de uma via entre o público e o privado, entre o Estado
e o Mercado, num período em que ainda estávamos longe da universalização do
ensino público.
Fundava-se
no tema comunidade - modelo onde as próprias pessoas beneficiadas se
encarregavam de administrar a educação.
Queiram
mais conhecimento sobre a instituição, podem ir atrás do estudo "A criação
das Escolas Cenecistas no Brasil: uma abordagem histórica", de várias
autoras.
Navarrinho
chega na instituição em 1961, dessa vez disposto a seguir em frente.
Não
estivesse tão disposto, tinha a mãe nos calcanhares.
Mariazinha
preocupada: não era possível um rapaz de 16 anos continuar a adiar os estudos,
viver na malandragem, na sinuca e no futebol...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: professores de
cidadania na
CNEG, os ginásios da
cidade,
Navarrinho chegou chegando,
logo abduzido
pelo grêmio, seu
rito de
iniciação na militância política.
Navarrinho
não se recorda de nomes de professores, professoras da CNEG.
O
peso dos mais de 60 anos passados embaça a memória.
Uma
lembrança restou forte: o fato de que os mestres incentivavam a existência do
grêmio.
Segundo
ano da existência da CNEG em Alagoinhas, e professores davam corda à entidade
estudantil, já atuante.
Estimulavam
a organização dos estudantes, realização de festas, a convivência fraterna
entre eles.
Impulsionavam
a formação cidadã.
Isso
certamente era motivado pelas características da cidade, animada por uma ativa
militância comunista, e disso falaremos um pouco adiante, tenham paciência, vou
devagar porque já tive pressa.
Estávamos
distantes da universalização do ensino, ao menos ginasial - e as séries do
ensino eram distintas das de hoje: havia o primário, o ginásio, o curso
científico ou clássico, e a Universidade.
Em
1961, havia no município o chamado
Ginásio de Alagoinhas, para Navarrinho provavelmente de responsabilidade do
Estado, naturalmente gratuito.
Havia,
ainda, o Ginásio Senhora Santana, da professora Dagmar Portela, particular,
pago.
E
a CNEG.
Novidade,
e boa, para o município.
Navarrinho
chegou chegando todo comunicativo, todo liderança desde logo.
Ele
e os irmãos são assim: dados, conforme se diz por aí.
De
fazer amizades com facilidade.
Navarrinho
vinha de uma rica experiência de vida.
Passagens
por bancos escolares variados, os dois seminários principalmente.
E
muita estrepolia.
Os
dirigentes do grêmio estudantil rapidamente botaram os olhos nele, e o
abduziram, como ele próprio afirma.
Perceberam
o colega bem falante, comunicativo, alegre, com boa formação, e progressista.
Então,
se achegue, é bem-vindo, a casa é sua.
E
ele de pronto se achegou.
Sem
nenhuma timidez.
Nem
licença precisava.
Tendo,
melhor ainda.
De
alguma forma, foi seu rito de iniciação na militância política.
Tenham
calma: chegaremos lá, esse rapaz tem é história pra contar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: futebol como
porta de
entrada, jogador habilidoso,
catimbeiro, bom
trato de bola, goleador,
não gostava de
perder, Brasil perdeu um
craque, ganhou
um grande jornalista.
Outro
aspecto a facilitar a vida de Navarrinho na CNEG: futebol.
Bom
no trato com a redonda.
Desde
muito menino caiu em campo, e cedo cedo demonstrou habilidade.
Centroavante,
era abusado.
Na
caracterização do futebol dele, valho-me de um dos melhores conhecedores do
assunto, também jogador habilidoso em tempos passados, José Barreto de Jesus -
os dois jogaram juntos no Seminário Central da Federação.
Abusado.
Daqueles
capazes de afrontar cara feia, de ir pra cima, medo nenhum de zagueiro,
importava pouco fosse grande e violento.
E
não era apenas um centroavante trombador.
Não.
Esbanjava
técnica, domínio da bola.
Era
de se movimentar, e perigoso.
Na
área, então, mortífero.
Compará-lo
com quem à época?
Um
Vavá? Um Coutinho?
Sei
não.
Catimba,
com ele mesmo - atacante bom sempre é cangancheiro, salvo as honrosas exceções.
Lembro
de Barretinho, nos babas da Boca do Rio, catimbeiro que só a porra, e bom de
bola também.
A
bola com Navarrinho rolava, sempre bem tratada.
Rápido,
objetivo, inimigo da firula, o drible sempre curto.
O
gol, seu objetivo, sempre - era um goleador.
Sabia
proteger a menina.
Aguentava
os trancos, apesar da pouca altura.
Não
gostava de perder - isso não gostava.
Entrou
no time do ginásio com pompa e circunstância
Talvez,
quem há de saber?, sonhasse com esse futebol ganhar o estrelato, jogar num
Bahia, num Vitória, ir para o Sul Maravilha.
Deu
não.
Brasil
perdeu um craque.
Ganhou
um grande jornalista.
O
prédio da CNEG era antigo, e ficava ao lado da Oficina da Leste Brasileiro,
onde as máquinas, os vagões, tinham manutenção assegurada.
E
atrás do ginásio, havia um campo de futebol, dos ferroviários.
Tornou-se
o campo também da CNEG, onde o futebol de Navarrinho pôde brilhar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: a bola é
encantamento
Artur Carmel: Navarrinho, eu
não vi jogar, mas um craque a gente conhece pelo arriar das malas. Agora,
Barretinho ainda vi batendo uns babas "de fim de carreira", mas que
davam pra ver o estilo do cara. Deviam fazer uma boa dupla !
Carlos Navarro: Artur Carmel
haha Sotero Monteiro.
Edson Barbosa Da Silva Filho: Babas inesquecíveis
nas madrugadas dos campos recém inaugurados com iluminação na Boca do Rio, quem
viu, viu, quem jogou não esquecerá, jamais.
Jose Jesus Barreto: bons babas
Manoel Barretto: Fui colega de
Navarrinho na CNEG e joguei muito baba com ele. Este campinho perto do colégio,
era onde a nossa seleção do colégio treinava
Carlos Navarro: Grande
Netinho, jogamos sim. Você talvez não lembre quem jogava também, era reserva do
time principal, era um garoto franzino chamado Zé Eduardo, que depois foi
jogador do Bahia. Era mais novo que a gente, acho que tinha chegado de Cipó, ou
daquela região ali.
Jose Jesus Barreto: Ze Eduardo
depois estudou no Salesiano e foi pro Bahia por volta de 68. Craque!
Edson Barbosa Da Silva Filho: Barretto
grande amigo, quanta saudade de você, ainda tive o privilégio de vê-lo brilhar
nos babas da aldeia jaguaribe
Manoel Barretto: Claro que
lembro, tinha também Vandinho, que também jogou no Bahia, por pouco tempo pois
estudava economia. Grandes babas.
Manoel Barretto: Grande abraço,
Edinho. Estes também foram grandes e disputadíssimos babas. Saudades
Carlos Navarro: Minha memória
anda fraca, não lembro de Vandinho, embora soe familiar.
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Emiliano José
11
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: bola é encantamento,
a sedução da
bola verde, ferroviários
compartilham o
campo com a CNEG,
Navarrinho na
seleção, campeonato interno
e jogos
intercolegiais, jogos narrados
pelo
alto-falante da cidade, emoção.
Barretinho
ontem, num comentário aqui: a bola é encantamento.
E
não é?
Nunca
tive os talentos dele ou de um Navarrinho no trato com a bola.
Mas
fui envolvido por esse encanto.
Era
jogador esforçado.
Tão
a ponto de ser capitão do grande time de futebol de salão do Colégio Estadual
Professor Eurico Figueiredo, onde fiz o ginásio, no Jaçanã, em São Paulo - meus
companheiros eram excelentes jogadores.
Minha
melhor fase, preso - na Penitenciária Lemos Brito, onde cumpri pena, condenado
pela ditadura.
Ali
me soltei mais, nunca nem perto dos talentos de um Renato Afonso, Renato da
Silveira, Itajacy, Milton Mendes Filho, Ricardo - é, na cadeia tivemos um belo
time, o Colorado.
Do
Jaçanã, adolescente, ainda capturo na memória uma bola verde, inseparável
companheira.
De
borracha, ela fazia minha alegria nas tardes de sábado, alegria solitária, à
falta de um time então: saltava a janela de meu quarto, caía num quintal
vizinho, e imaginava estádios cheios e eu no gramado, ovacionado, jogadas
eletrizantes, gols memoráveis, e a parede era meu parceiro, com quem brincava,
fazia tabelinhas magistrais.
Bola
é encantamento - ZédeJesus Barreto tem razão.
Navarrinho
sentia isso o tempo inteiro.
Mais,
muito mais quando o jogo era transmitido.
Os
ferroviários, bastante politizados, sob influência de militantes do PCB, haviam
decidido compartilhar o campo com a meninada da CNEG.
Acertou-se:
nas horas vagas, quando eles não estivessem usando o campo, os estudantes da
CNEG o ocupariam.
Era
um bom campo, gramado.
Nada
de arquibancada.
Como
qualquer campo de várzea.
A
cada jogo a moçada se acotovelava em torno, muita gente, torcida, gritos,
aplausos e vaias.
Navarrinho
participava do campeonato interno do colégio, e também de jogos contra o
Ginásio de Alagoinhas, aí já na seleção,
o grande adversário do time da CNEG.
A
seleção saía também para jogar em Catu, Pojuca, Mata de São João e recebia os
times vizinhos em Alagoinhas - sempre jogos intercolegiais, não oficiais.
Havia
dito: alegria mesmo, de arrebentar corações, era quando o jogo era transmitido.
Senão
todas, algumas partidas eram transmitidas pelo alto-falante da cidade.
Ao
vivo, narradores entusiasmados.
Os
meninos, a cada jogada, pareciam ouvir Oduvaldo Cozzi, Waldir Amaral, Fiori
Gigliotti, Pedro Luiz, os maiores narradores do Brasil de então.
Era
emocionante.
Alguns,
tentados até a parar jogada quando o locutor,
voz empostada, dizia lá vai fulano, dá um drible seco, prepara o
lançamento...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Devanier Lopes: Também os
narradores Cléo Meireles e Nilton Nogueira, até França Teixeira ..
Emiliano José: Boas
lembranças
Jose Jesus Barreto: a bola
emociona. Massa !
Mônica Bichara: Todo mundo aí
se preparando para às 20h comemorar os 2 anos dessa série
#MemóriasJornalismoEmiliano com a live das lives de lançamento do e-book
"Balança mas não cai", na página de Franciel no Youtube, com a
participação de vários jornalistas e amigos.
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Emiliano José
12
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: o passado na memória,
a velocidade das
mudanças, necessidade
de acariciar a
era do rádio, a emoção de
uma partida
transmitida por locutores,
a imaginação a
solta, tempos inesquecíveis.
Olhar
o passado é sempre intrigante.
É
provável algum desdém ao lembrarmos a emoção daqueles meninos quando suas
jogadas eram narradas pelo radialista do alto-falante - deixa a gente chamá-lo
radialista.
Os
tempos são outros, o tempo não para, o mundo gira, nada será como antes.
Não
neguemos isso, nem adianta.
Mas...
Eu,
Navarrinho, Barretinho temos o privilégio de termos vivido a era do rádio e sua
relação com o futebol.
Naquele
final dos anos 1950, início dos anos 1960, o rádio ocupava papel central.
Para
o futebol, então, nem se fale.
Era
o rei do pedaço.
Não
é possível revelar todo o impacto a quem não teve a chance de viver a emoção de
ouvir uma partida de futebol pelas emissoras de rádio.
É
possível um outro esgar de desdém se dissermos, e digo: as emoções suplantavam
em muito o suscitado por partidas transmitidas pela televisão.
O
locutor nos fazia viajar: uma jogada simples transformava-se num drible
sensacional, um cruzamento quase-gol era uma sensação fenomenal, a narração do
gol se espraiava por minutos em nossa mente, um sonho a partida de futebol.
Sei,
podem dizer, e eu posso aceitar: é coisa dos mais velhos.
Talvez
seja.
Pero,
eu compreendo perfeitamente a emoção da meninada da CNEG quando o locutor do
alto-falante narrava as partidas.
Quando
um deles quase parava a jogada SENSACIONAL ouvida na emissora de rádio - quase
uma emissora, substituta dela.
E
a indescritível sensação quando da narração de um GOOOOOOOOOL!, todos correndo
atrás de Navarrinho, emérito goleador, artilheiro do time, querendo abraçá-lo,
e ouvindo o narrador, estendendo o grito de gol - era tudo verdade, eles
estavam vivendo tudo aquilo, e depois puderam contar a seus filhos e netos.
Muitos
guardam isso para toda a vida.
Manoel
Barreto, querido companheiro, lembrou esses dias, eu não sabia, ter sido
companheiro de Navarrinho na CNEG, e adentrado o gramado do campo dos
ferroviários ao lado dele.
Revelou
isso num comentário, dois dias atrás, aqui nessa série.
Ainda
bem: tempos inesquecíveis.
O
humano tem o privilégio da memória e do sonho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: o radio nos
instigava a imaginação
Emiliano José: Barretinho não
me deixa mentir...
Isabel Santos: Cresci vendo
as pessoas (praticamente os homens) com rádios de todos os tamanhos colados a
uma das orelhas para ouvir futebol, nas tardes de domingo. Era esse um dos
principais momentos de lazer na minha terra natal, Itabuna (creio que em outras
cidades do interior), além dos babas nos campos improvisados de chão batido.
Próximo à minha rua, havia um denominado Barro Vermelho. Todos os caminhos
levavam os amigos e familiares amantes das peladas a ele. Boas lembranças.
Alyne Costa: Quando eu era
criança via meu tio dormir ao som da Rádio Globo... Tinha pesadelos horríveis
RS. Mas se desligasse o rádio não dormia.
Joaquim Lisboa Neto: Além do
futebol, Jerônimo o herói do sertão
Mônica Bichara: Navarrinho
participando da live de lançamento do primeiro volume desta série
#MemóriasJornalismoEmiliano,, o e-book "Balança mas não cai".
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Emiliano José
13
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: descoberta
da militância,
presidente do grêmio,
envolvido nas
lutas do período,
necessidade de
trabalhar, possibilidade
de emprego num
curtume em Salvador, larga
tudo e segue
para a capital, terceiro ginasial
no Instituto
Normal, mora numa pensão.
Não,
a vida não era só futebol.
Na
CNEG, Navarrinho descobre-se militante.
Faz-se
militante.
No
primeiro ano já participa do grêmio.
No
segundo, presidente.
Corria
o ano de 1962.
Era
um ano turbulento.
Goulart
assumira em meio a uma tempestade no ano anterior, e só assumira pela mobilização
desenvolvida por Brizola no Sul e, também, porque soube negociar, aceitando o
parlamentarismo, com Tancredo Neves primeiro-ministro na fase inicial.
Cresciam
as mobilizações populares, a classe operária fervia, os camponeses e
trabalhadores do campo se movimentavam, a classe média progressista também.
É
claro: os ferroviários não ficavam atrás.
Em
Alagoinhas, tinham papel essencial, especialmente pela presença dos comunistas
entre eles.
Os
estudantes, em todo o País, eram parte da grande luta pela democracia, pela
distribuição de renda, pelos direitos do povo, pela soberania nacional.
Universitários
e secundaristas.
Era
muito forte a luta antiimperialista, os EUA como alvo central.
Agora,
estudante de família pobre, militante seja, deve combinar a atividade política
com o trabalho.
Só
os mais afortunados podiam se dar ao luxo de desenvolver a militância sem ter
qualquer emprego, sem ter alguma renda.
Mariazinha
se virava nos trinta, mas o dinheiro era curto.
Navarrinho,
à frente do grêmio, vivia conversando com os políticos progressistas da cidade,
abrigados no PSD e no PTB.
Conversar
sobre as reivindicações estudantis, pedir ajuda para excursões, para levar o
time de futebol pra lá e pra cá, festas.
Ele
nem sabe como, talvez tenha sido decorrente de tais contatos, viu-se diante da
possibilidade de trabalhar no Curtume Coelho Robato.
Com
um problema: a vaga era em Salvador.
Navarrinho
resolve aceitar.
Calça
de veludo ou bunda de fora.
Ganharia
o chamado salário mínimo de menor.
Adeus
grêmio, adeus futebol.
Transferiu-se
então para o Instituto Normal, na capital.
Trabalho
durante o dia, estudo à noite - assim fez o terceiro ano ginasial em 1963.
Começou
morando numa pensão na rua Direita de Santo Antônio...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: estudando no Iceia,
saindo da pensão
do Santo Antônio, indo
para a Calçada,
no final do mês não tinha
mais dinheiro,
aparece anjo bom, um
pastel e um
refresco como almoço, e 1964
tem de voltar
para Alagoinhas, aos 18 anos.
O
Instituto Normal, como o chama Navarrinho, é o famoso Instituto Central de
Educação Isaías Alves (Iceia), onde ele concluiu o ginasial.
O
Iceia é antigo.
Nasce
em 1836 como Escola Normal da Bahia, mas só passa a funcionar em 1842.
Daí
em diante, evoluiu, acompanhou as mudanças políticas e culturais, seguindo
sempre como uma instituição essencial da Educação no Estado, funcionando há
muito tempo no bairro do Barbalho.
Navarrinho,
chegado a Salvador, depois da pensão do Santo Antônio, situada nas proximidades
da Igreja do Boqueirão, foi para outra pensão, no bairro da Calçada, na Cidade
Baixa, indicada por um colega do Instituto Normal, vindo também de Alagoinhas.
O
colega morava na hospedaria da Calçada, viu Navarrinho em dificuldades pela
morte da dona da pensão do Santo Antônio, e chamou-o pra lá.
A
vida corria de quarto em quarto, nada fácil.
Quem
tenha vivido em pensão, sabe.
Na
Calçada, não havia refeição.
Era
a seco: só dormida.
Navarrinho,
logo pela manhã, tinha de fazer a dura opção: desembolsar um trocado para o
café ou para pegar o ônibus a levá-lo ao trabalho.
Ficava
sem o café.
Dinheiro
contado, muitas vezes só para chegar ao trabalho.
Dura,
a vida do estudante e trabalhador pobre.
Sorte:
sempre surge um anjo bom.
No
caso de Navarrinho, seu Lourenço, espécie de faz-tudo no Curtume, mais que um
office boy.
Sempre
lhe emprestava uns tostões pra descer e fazer um lanche, mitigar a fome em
lanchonetes de espanhóis, ao lado da Associação Comercial na Cidade Baixa -
normalmente, uma banana real e um refresco de cajá.
Tomava
o cuidado de reservar um dinheirinho para chegar à noite ao Instituto Normal.
Depois
das aulas, descia a Ladeira da Água Brusca, e tomava o ônibus para chegar à Calçada.
Isso
ocorria na reta final do mês, salário consumido, tudo escasseava, e ele era
obrigado a garantir-se com os empréstimos de Lourenço para assegurar aquele
lanche da manhã e um almoço, pretensão chamá-lo assim: um pastel grande e o
costumeiro refresco de cajá - a refeição final do dia.
Vivi
exatamente isso como office boy em São Paulo: era um pastel de queijo, outro de
carne, e uma garapa, ali, ao lado da Praça da Sé, o meu almoço.
Navarrinho
apertava-se assim para não pedir dinheiro à mãe.
Ano
seguinte, 1964, teve de voltar para Alagoinhas: já com 18 anos, tinha de servir
ao Exército...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Devanier Lopes: Muito bom
Paulo Mascarenhas: Também morei
em pensionato, dinheiro curto. Lanche ou transporte? Eventuais
"traseiradas" no ônibus, ou "bate-pernas" mesmo... sei o
que é isto...
Joana D'arck: Minhas irmãs
mais velhas viveram em pensão e nessa dureza toda. Uma delas foi da escola
normal.
Lucia Correia Lima: Quando chegar
no Estadão lembro que a correspondente ZILAH MOREIRA tia de Marquinhos grande
secretário de redação da Tribuna, de quando correspondente do Centenário jornal de
SP, convidou Bel para fazer as matérias com ela. Fizeram muitas antes de SP
saber da importância da Bahia e abrir o escritório se não me engano no Bráulio
Xavier.
Zilah indicou Bel p continuar no jornal pois ele com minha rolleyflex já estava
enviando fotos p SP. Bel trabalhava no arquivo do JBa Indicado pela irmã Maria
Palácios, que era repórter e sua reportagem sobre Inhambupe, terra de pai, na
verdade dos Dantas, chamou atenção de um olheiro da Universidade de Liverpool
que levou Marcos Palácios.
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Emiliano José
15
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: eu, providencial tuberculose, dispensado do serviço militar em São
Paulo, 1964 também, Navarrinho em Alagoinhas dividia o tempo entre o Tiro de
Guerra e o Curtume, clima de terror com o golpe de abril, perseguição aos
comunistas, ele chefiando grupo de combate...
Servir
ao Exército.
Nossas
histórias se cruzam.
Eu,
em São Paulo, também em 1964, tive de me apresentar.
Trabalhava
em banco, fiquei puto, mas não havia jeito a dar.
Sorte:
na radiografia obrigatória do pulmão apareceu mancha comprometedora,
tuberculose, e a milicada não quis nem saber - vade retro.
Dispensado
- respirei aliviado.
Antes
de sair, um castigo: fazer faxina em todo o pequeno quartel.
Fiz,
sem relutar: havia sido premiado.
Fiz
outra radiografia, e não era nada.
Poderia
ser um momento muito interessante na vida de um jovem.
Fossem
as nossas Forças Armadas voltadas à defesa de nossa soberania, de nossas
fronteiras, tivessem um pensamento nacionalista mínimo.
Mas,
não.
Os
dias de hoje evidenciam o ápice de uma trajetória ancorada num pensamento
subalterno, ideologia de absoluta submissão aos EUA, aprendida sobretudo a
partir do imediato pós-guerra, de 1945 até hoje, e por isso mesmo favorável ao
autoritarismo de modo geral, apreço singular por ditaduras.
Nos
últimos dias, algum alento: recusaram-se a dobrar-se diante das tentativas do
presidente de submetê-las aos tresloucados interesses dele, ao menos quanto ao
comando das tropas e seu pensamento negacionista.
Nada,
no entanto, de qualquer manifestação ou posição face à política
antinacionalista e de retirada de direitos da população brasileira, praticada
pelo presidente.
Será
ilusão desejar outro tipo de Forças Armadas?
Talvez.
Navarrinho,
em Alagoinhas, servir ao Tiro de Guerra.
Outra
rotina.
Acordar
antes das cinco da manhã, e apresentar-se.
Cumprir
ordens do sargento, exercícios, desenvolver as tarefas, aprender manobras
militares, continências, obedecer ordens.
Isso
durava até oito, nove horas da manhã, e então seguia para o Curtume - a empresa
admitiu a vinda dele para Alagoinhas por conta da obrigatoriedade do serviço
militar.
De
manhãzinha, no Exército.
Durante
o dia, no Curtume, visto como comunista.
Veio
o golpe militar, abril de 1964.
Navarrinho
guarda na memória o clima de terror na cidade.
É
o momento dos dedo-duros a sair apontando quem era comunista, e o conceito
nesses momentos ganha amplitude, e muitos nada a ver eram presos.
No
Quartel do Tiro de Guerra instituiu-se o plantão.
Vocês
sabem: para a milicada, os comunistas eram um perigo muito maior do que
verdadeiramente eram.
Podiam
a qualquer hora, quem sabe liderados pelos ferroviários, invadir o quartel.
Recomendava-se
muito cuidado.
Esse
plantão contava com nove homens - chamado grupo de combate.
Navarrinho
chefiava um deles, todo cheio de pose.
O
sargento Couto, comandante do quartel, um dia, chama-o, e explica
procedimentos:
-
Ô quatorze, tá aqui essa munição...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: sargento Couto dá a Navarrinho comando de Grupo de Combate, ele sai
pelas ruas quase general dando esporro
em putas e
bêbados, deviam ir pra casa por conta do golpe, revolução dirá o sargento,
contra os comunistas, de comunistas
conhecia ele,
como o velho Aurélio da Mata.
Veio
o sargento Couto, autoridade máxima do Tiro de Guerra - o TG-110 -, chamou
Navarrinho pelo número dele no quartel:
-
Ô 14, você é o comandante desse Grupo de Combate, e será o responsável pela
primeira guarda, e deverá ser o exemplo.
Navarrinho,
todo prosa, sentindo-se quase general.
Afinal,
para quem tinha 18 anos não era qualquer coisa, responsabilidade danada, e
orgulho.
Todos
os nove homens tinham seu fuzil.
Sargento
Couto entregou a Navarrinho uma caixa de munição dos fuzis Mauser - não eram
armas modernas, remontavam às primeira e segunda guerra, mas disparavam.
Deu
ordem:
-
Carregue apenas o seu fuzil.
Navarrinho
fez um ar de interrogação.
O
sargento explicou:
-
Só distribua a munição aos demais em caso de ataque ao quartel.
Tudo
tranquilo na primeira guarda.
Na
segunda, coisa de menos de uma semana depois, Navarrinho, entediado com a
mesmice do quartel resolveu sair com a tropa.
Comandante
toma decisões, e ele achou interessante patrulhar as ruas próximas ao quartel.
Parecia
um general à frente da soldadesca.
Queria
mesmo, ao desfilar, era exibir a 45 na cintura, devidamente municiada.
Coisa
de macho - 45 na cintura não é qualquer coisa.
Exibir
não se sabe para quem.
Após
as 22 horas, havia uma ou outra alma perdida naquelas vizinhanças, quem sabe um
bêbado ou outro, pouco interessado em exibições militares.
Ainda
assim, aparecesse um ébrio ou uma puta, Navarrinho, autoridade da porra, dava
uma bronca homérica, mandava ir para casa aos gritos, país sob um golpe, era
perigoso transitar, mesmo se putas, mesmo se bêbados.
Sargento
soube, não gostou, chamou Navarrinho, esbravejou: golpe porra nenhuma, uma
revolução contra os comunistas, doidos para tomar o País.
Perfilado,
Navarrinho nem sonhou em discutir com sargento Couto.
De
comunistas, sabia ele.
Conhecia
alguns deles.
Famoso,
por exemplo, era Aurélio da Mata, ligado à direção estadual do PCB, pai de
Lídice da Mata, ex-prefeita de Salvador, ex-senadora, atualmente deputada
federal.
Havia
ainda Mário Alves de Souza Dantas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho lembra ter
conhecido Mário
Alves, pai de Agliberto Lima,
casado com Íris,
irmã de Ana Montenegro,
borracheiro em
Alagoinhas, cidade vermelha,
fuga para São
Paulo com o golpe de 1964.
Mário
Alves de Souza Dantas.
Navarrinho
o conheceu.
Abro
parênteses.
Primeiro,
para insistir ser Alagoinhas um município com forte base do PCB entre outras
coisas por se constituir num polo ferroviário,
Os
trabalhadores das ferrovias sempre eram fundamentais ao crescimento do partido,
quando não o eram os alfaiates, os sapateiros, barbeiros, borracheiros e tantas
outros trabalhadores.
Segundo,
dar duas ou três palavra sobre Mário Alves.
Depois
voltamos ao nosso protagonista.
E
o faço porque descobri laços históricos profundos entre Navarrinho e Agliberto
Lima, filho de Mário Alves.
O
notável fotógrafo trabalhará durante muitos anos na sucursal do Estadão, sob a
direção de Navarrinho.
Encontram-se
mais tarde, depois de muitas turbulências na vida de um e de outro.
Tive
a satisfação de conhecer Íris, mãe de Bel, como chamamos Agliberto Lima, com
quem convivi no Estadão, amigo querido.
Desfrutei
da amizade dela, irmã de Ana Montenegro, outra comunista célebre, a quem
admirei e de quem fui amigo.
Como
desfruto da amizade de Lúcia, também excelente fotógrafa.
Escrevi
sobre Mário Alves de Souza Dantas - e é bom dizer nome inteiro, tenho de estar
alerta, para não confundir com o outro Mário Alves, também dirigente comunista,
também baiano, de Sento Sé, morto pela ditadura no comecinho de 1970.
Quem
quiser conhecer um breve perfil dele, só buscar, não mais em livrarias, o livro
"Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento", segunda parte, com
carinhoso prefácio do notável Alípio Freire, levado pela pandemia recentemente.
O
capítulo "O borracheiro" o retrata.
No
mesmo livro, o leitor encontrará o capítulo "Ana e os lobos", sobre
Ana Montenegro.
O
leitor perceberá Mário Alves como exemplar militante comunista, o PCB sabia
formá-los.
Construtor
paciente do partido, borracheiro, homem de mil instrumentos, daqueles de sempre
se virar nos trinta, respeitado, foi ele com seu prestígio a apresentar Antônio
Torres a João Falcão.
Ninguém
era capaz de suspeitar vir a ser aquele foca um dos mais extraordinários
romancistas do País.
O
impulsionador dessa carreira de escritor foi o borracheiro.
Uma
vida a merecer romance: com o golpe de 1964, foge às pressas de Alagoinhas numa
boleia de caminhão, viagem rocambolesca para São Paulo, deixa tudo para trás:
uma casinha, casa de autopeças, borracharia, Sucataria Lunik 9, dois sítios, o
pouco acumulado numa dura vida de trabalho.
Só
mais tarde, traz a família novamente para Salvador.
Os
seis filhos têm pai e mãe de quem se orgulhar.
Quem
sai aos seus não degenera.
Viva
Íris.
Viva
Mário Alves.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Poxa! Pai se
vestia como operário bolchevique, com boné italiano, mas o carro chefe de seus
comércios era uma grande auto-peça (uma das melhores lojas de peça de
automóveis da cidade), tinha também uma sucataria chamada Lunik 9. E a
borracharia onde inovou criando baldes de água com a barracha dos pneus de
tratores
Pai
sempre foi Mário Dantas. Mas ao ser perseguido pela ditadura, jogou fora todos
os documentos. Quando chegou em SP na casa do tio Luiz, irmão de Mãe um médio
industriário, que nos recebeu nos abrigou, era tao bem de vida que alugou um
sobrado perto do seu, na mesma rua no Ipiranga.
A
prima Teresa do Inhambupe, hoje vivendo na Itália, foi ao cartório pois a
família Dantas tinha prestígio, e, embora o moça do cartório morrendo de medo,
retirou o Dantas e deixou somente Alves de Souza dos avós.
Enviou
nova certidão de nascimento e pai assim tirou novos documentos.
Com
tudo perdido em Alagoinhas, o mais possível foi continuar somente com a
borracharia.
O
partido de qdo seu Aurélio pai de Lídice era contemporâneo em Alagoinhas. Fale
com Lídice sobre o pai dela militante também em Alagoinhas e quem ordenou q pai
não poderia ser preso, tinha q sair da cidade.
Lucia Correia Lima: Antônio Torres
me mandou do Rio, impresso, o discurso de posse dele na Academia Brasileira de
Letras em que conta como pai o levou a João Falcão. Organizando o arquivo acabo
de encontrar e vou fazer cópias pois Gustavo Falcon me pediu. Faço uma p vc. É
um lindo depoimento
Emiliano José: Obrigado,
Lúcia.
Emiliano José: Quero muito o
discurso de Torres
Lucia Correia Lima: sim vou
xerocar pois o original e todo trabalhando kk mas tento fazer amanhã.
Combinamos
Emiliano José: ok. Beijo
Adilson Borges: Viva, viva!
Lucia Correia Lima: Grata por esta
emoção tão forte profunda orgulhosa orgulho do bem
Emiliano José: Puro
merecimento
Mônica Bichara: Que lembranças
ricas, de emocionar mesmo
Carlos Navarro: É isso
Zapatilla, em Alagoinhas, e já escrevi isso em algum lugar, tinha também Lilio,
alfaiate, dona Maura, seu Aurélio da Farmácia, o ferroviário Messias Cachorro,
ou Mistérjames, todos velhos comunistas; eu os considerava o nosso o
"grupo dos 11". De todos, além de Messias que era dirigente
estudantil que nem eu, o "estudante profissional" que os militares
queriam exterminar, minha maior intimidade era com mestre Lilio. Passava horas
conversando e aprendendo com ele na alfaiataria.
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Emiliano José
18
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: risco de perder-se nas
veredas, velhos
e venerados comunistas,
cuidados para
não perderem-se em teorias
abstratas,
tratando da luta cotidiana, direitos
do trabalho,
justiça social, coisas elementares,
Navarrinho
embevecido com antigas lições.
O
risco, nessa coisa de escrever, é perder o rumo.
Ingressar
em veredas fora da estrada principal.
Tive
tentações, mas vou resistir.
Lúcia,
filha de Mário Alves, o borracheiro, pai dela, de Bel, marido de Íris, me mandou
um belo texto de Antonio Torres, hoje meu companheiro da Academia de Letras da
Bahia, a respeito do encontro.
Do
encontro a levá-lo em seguida a João Falcão, e a dar rumo definitivo à vida
dele.
Artigo
denominado "Tributo a um comunista", lindo de morrer, de chorar.
Vou
fazer só a indicação, fazendo um esforço sobre-humano para conter minha vontade
de recontar a história: Jornal do Brasil, dezembro de 2005.
Voltemos
a Navarrinho.
Já
dissemos: era líder estudantil, e bastava isso para no dia a dia ser
considerado comunista.
Não,
não era, ao menos de carteirinha - não tinha filiação ao PCB.
Sua
única ligação com o partido, houvesse, era ser militante ativo no movimento
estudantil.
Alguns
velhos comunistas, não pode negar, conhecia.
Conhecia,
já se disse, o velho Aurélio da Farmácia, o pai de Lídice da Mata.
Mário
Alves, pai de Bel.
Seu
Lilio Alfaiate.
Deste,
lembra bem: comunista e presidente do Gato Preto, time onde jogou durante algum
tempo - comunista se infiltra em tudo.
Navarrinho
hoje confessa: adorava conversar com Lilio, aprendia muito nas muitas horas de
conversa na alfaiataria, nunca perdia a chance de ouvi-lo.
Vocês
sabem, comunista tem uma palavra boa danada, cheia de ensinamentos.
Periga
pegar, como praga.
No
caso de Navarrinho, muita coisa ficou.
Pegou.
Havia
ainda o ferroviário Mister Cachorro, também conhecido como Mistérjames.
Ah,
e havia a professora Maura.
Os
comunistas lembrados por ele, venerados pela cidade, pela juventude, pelos
sindicalistas.
Venerados
por uma parte dela, vamos combinar, né?.
Certamente,
havia aqueles da persignação: só passar um daqueles, e benziam-se, sempre há, e
nos dias atuais, são fartos.
Algumas
senhoras corriam pra casa, tomavam do rosário, e passavam bom tempo
dedilhando-o, murmurando, não se sabe quantas ave-marias, quantos pai-nossos,
quantas salve-rainhas, quando avistavam um deles.
Cuidavam
até de esconder seus filhos, seus netos, porque acreditavam, juravam de pé
junto: comunista comia criancinha.
Navarrinho
não se lembra de ouvi-los falar em Marx, em Lênin, em luta de classes, ditadura
do proletariado, nem de socialismo e comunismo, as teorias marxistas.
Falavam
da necessidade da luta, de modo sensato: organizar o povo, justiça social,
direitos do trabalhador, essas coisas quase triviais, necessárias a um povo - e
eram ouvidos respeitosamente.
Navarrinho,
então, com tripla jornada.
De
manhãzinha: Tiro de Guerra.
Resto
do dia: Curtume.
De
noite: estudo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Como deve ter
sido Navarrinho vivenciar o Tiro de Guerra?
Emiliano José: Contudo,
divertiu-se
Rui Patterson: Eu nunca me
diverti tanto. TG 240, Ilhéus, sgto Cássio no comando.
Jose Antonio Reis: Aplausos
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Emiliano José
19
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Tiro de Guerra, Curtume,
estudo à noite,
Instituto Fleming, destino
dos
jovens pobres, chefe de gabinete
do prefeito
Murilo Cavalcanti, novos caminhos.
Navarrinho
cumpria o destino da maioria dos jovens pobres do Brasil.
Destino
decorrente de uma história marcada pela desigualdade social, marca de um País
da periferia, sujeito, desde o nascedouro, à violência da escravidão, e às
características intrínsecas do capitalismo, a condenar os pobres a uma luta
insana para sobreviver.
Assim,
destino é forma de dizer.
São
as correntes da desigualdade.
Tiro
de Guerra cedinho.
Trabalho
durante o dia.
Estudo
à noite.
Vivi
isso, tal e qual, menos o Tiro de Guerra.
De
manhã, cuidava de um bar.
À
tarde, bancário desde os 14 anos.
À
noite, estudo.
Lá,
na periferia de São Paulo, Jaçanã.
Navarrinho
estudava no Instituto Fleming.
Era
uma instituição privada, de Salvador.
Abriu
uma filial em Alagoinhas.
Tábua
de salvação.
Turbulenta,
a história de Navarrinho nos estudos.
Fleming,
do professor Carlos Rosa, sujeito baixinho, bem falante, expansivo, dono e
diretor do colégio.
Ali
fez o Científico, logo após sair do Tiro de Guerra.
Era
o mais relapso de uma sala de 19 alunos.
Mais
tarde, em compensação, será o único a passar no vestibular da UFBA - mais tarde
falaremos disso.
Nós
sabemos: ele havia se destacado como liderança na CNEG, tornou-se conhecido do
mundo político.
Murilo
Cavalcanti, deputado estadual pelo PSD, elege-se prefeito de Alagoinhas em
1962.
Renuncia
ao mandato e assume em março de 1963.
Era
da banda progressista da política na cidade.
UDN,
era a direita.
PSD,
a esquerda.
Cavalcanti,
no fim de 1964, golpe em andamento, surpreende a todos, e chama Navarrinho para
chefiar o gabinete dele.
Na
prática, secretário da Prefeitura - não havia propriamente chefe de gabinete.
Assumiu
sobretudo a parte política da função, isso antes de completar 20 anos - precoce
o rapaz.
Abria-se
um período na vida dele marcado pela paixão política.
Não
mais o simples militante estudantil.
Daria
outros passos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: escrever é perigoso,
veredas,
encontros, Murilo Cavalcanti
oficial de
gabinete de Balbino, Lili Cavalcanti,
o pai, líder
formal do governador, Waldir
Pires o líder
real, amizade profunda entre os dois.
Lendo
agora Grande Sertão, Veredas.
Viagem.
De
sonho.
Por
entre as veredas do sertão, sabedoria de jagunço.
Tempo
todo viver é perigoso.
Escrever,
também.
É
vertigem.
A
gente vai contando a história, pensa ter pegado um rumo, e surge uma vereda,
olha o diabo no meio do redemunho...
Navarrinho
vai provocando encontros, e retardando a narrativa a dizer respeito a ele
próprio.
Jornalista
é bicho nervoso.
Dei
ontem de ligar para Marcus Cavalcanti, atual secretário de Infraestrutura do
governo da Bahia.
E
da conversa com ele, nasce um encontro entre Waldir Pires e Murilo Cavalcanti.
Jornalista
viaja, futuca, ainda mais se teve bons mestres, Navarrinho, um deles.
Vocês
sabem disso.
Marcus
é filho de Murilo Cavalcanti, o prefeito de Alagoinhas em 1964, sobre quem
íamos começar a falar a propósito de ter chamado Navarrinho para o gabinete
dele.
Aí,
provocado por mim, danou-se a contar histórias - estimulei-o a escrever sobre
Murilo Cavalcanti e o tempo dele.
Disse
iria começar - a ver.
Nada
muito extenso, e tudo a ser checado, mas pra Navarrinho voltar ao seu papel de
protagonista, tenho de me deter um pouco, num sobrevoo, na trajetória do pai de
Marcus.
Cedo,
foi do gabinete de Antonio Balbino, governador da Bahia entre 1955-1959.
Aqui,
encontro com Waldir Pires.
Eleito
deputado estadual em 1954, Waldir era homem da mais absoluta confiança de
Balbino, aliado dele desde o final do anos 1940, ainda estudante.
Encontro
duplo com Waldir.
Explico-me:
o primeiro e mais fecundo encontro foi entre Lili Cavalcanti e Waldir.
Lili
Cavalcanti, assim conhecido, mas na pia batismal Ladislau Cavalcanti, pai de
Murilo, avô de Marcus, médico vindo das terras de Esplanada, político
experimentado, eleito na mesma legislatura de Waldir, os dois ligados a
Balbino.
O
governador, por suas conveniências políticas, escolhe Lili Cavalcanti como seu
líder na Assembleia Legislativa.
Lili
e Waldir, muito amigos.
Tão
amigos a ponto de Lili praticamente passar a Waldir as tarefas da liderança.
Lili,
já com mais de 50 anos.
Waldir,
nem chegado aos 30, cheio de gás, disposição.
Confiança
grande entre os dois: Waldir era o líder real, Lili, o formal.
História
conhecida, conto em detalhes na biografia sobre Waldir.
Murilo,
pelos caminhos do pai, sabe de Waldir, e logo depois se elegerá deputado
estadual pelo PSD, em 1958...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: PSD fiel da balança
da vida
democrática entre 1945 e 1964, Tancredo Neves, Murilo Cavalcanti na
linha mais
progressista, preso na Mouraria, juventude querendo resistir, certa da chegada
das tropas do general Ladário Teles e dos militantes das Ligas Camponesas de
Julião.
Murilo
Cavalcanti navegava no leito do PSD, um partido essencial entre 1945-1964, de
centro, espécie de fiel da balança daquele período.
De
centro, e contando com figuras essenciais da vida política brasileira, alguns
com fortes compromissos democráticos, e podemos lembrar um nome memorável:
Tancredo Neves.
Um
político a se manter coerente o tempo inteiro, inabalável na sua fé e defesa da
democracia.
Testado
tantas vezes, nunca vacilou.
Contava
também com políticos mais à esquerda, Waldir Pires, um deles.
O
PTB fazia algum contraponto ao PSD, os dois compondo um arco de apoio ao modelo
desenvolvimentista de Getúlio, depois de Juscelino e, no fim, o de Goulart,
mais consequente, e por isso mesmo, derrubado pelo golpe de 1964.
Murilo
compunha a linha mais progressista.
Advogado,
militava junto aos sindicatos dos ferroviários, e por esse caminho chegou a
Alagoinhas.
Elegeu-se
deputado nessa esteira e após, prefeito de Alagoinhas.
Era
a renovação na cidade.
Sobreveio
o golpe.
No
relato de Marcus Cavalcanti, filho dele, foi preso, levado pra Salvador.
Ficou
algum tempo detido no Quartel General, na Mouraria, certamente sob os olhares
atentos do general Manoel Mendes Pereira, alcunhado Manelão, comandante da VI
Região Militar.
Houve
intervenção na Prefeitura, mas, por fim, voltou ao poder, e foi quando então,
no final de 1964, ao reassumir, chamou Navarrinho para o gabinete.
O
pai, Lili Cavalcanti, atento, e certamente agindo em favor do filho.
Observava
as movimentações da juventude, Navarrinho no meio, alguns ferroviários, os
comunistas menos notórios.
Os
mais conhecidos haviam sumido, tomado seus cuidados.
Ouvia
os comentários: vai haver luta, o general Ladário Teles vai subir do Rio Grande
do Sul com sua tropa, desbaratar o golpe, ajudado pelas Ligas Camponesas.
Sabia
onde as cobras dormiam: não haveria Ladário Teles, nem Ligas Camponesas.
Estava
tudo dominado pelos golpistas.
O
general, no Rio Grande do Sul, logo após o desembarque de Goulart em terras
gaúchas nos primeiros dias de abril de 1964, explicou-lhe: estava sozinho,
praticamente sem tropas para comandar.
E
aconselhou o presidente a ir para o exterior.
O
presidente seguiu para o Uruguai.
Explico
isso em detalhes na biografia de Waldir.
Francisco
Julião estava escondido, caçado impiedosamente, sem possibilidade de lançar
palavras de ordem, e as Ligas, sem ele,
incapazes de reação.
Será
preso em junho, dia 3 em Brasília, recambiado para Recife.
Lili
Cavalcanti chamou alguns dos líderes da tentativa de resistência em Alagoinhas,
Navarrinho, entre eles, para conversar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Rui Patterson: Tenho a
relação dos presos iniciais de 1954 e Murilo está lá, ficou no QG da Mouraria
até ser liberado.
Emiliano
José: Genial, Rui. O dedo errou só no ano: 1964. Ó o sol!
Rui Patterson: 1964
Manoel Barretto: Murilo e Chico
Pinto eram as grandes lideranças progressistas do interior da Bahia. Murilo
ficou preso no Quartel da 6a região na Mouraria e quando foi solto foi uma
verdadeira festa em Alagoinhas.
Manoel Barretto: lembro muito
bem, que uma verdadeira multidão esperava Murilo na Prefeitura. Fomos de
bicicleta (eu na minha juventude, inclusive) encontrar com o Prefeito em um
riacho que tinha na entrada da cidade (acho que deve ser próximo onde hoje é a
Universidade). Deve ter sido o primeiro "bicicletaço" baiano e tinha
bastante bicicletas.Esperamos o prefeito chegar de carro e o acompanhamos ate a
porta da prefeitura.Grande festa
Emiliano José: Vou aproveitar
suas dicas. Ótimas, Mané.
Mônica Bichara: preciosas,
históricas
José Américo Castro: Murilo foi
deputado estadual?
Emiliano José: acho que
quatro vezes
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Emiliano José
22
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: dias de tormento,
Manelão botando
pra quebrar, Murilo
na Mouraria,
Lili aconselha a juventude
e ferroviários a
se recolherem diante da
barra pesada, um
dia Murilo é libertado,
amado, a
população quer abraçar o líder.
Lili
Cavalcanti vivia dias tormentosos.
Chegara
o golpe.
Manelão,
o general Manoel Mendes Pereira, comandante da VI Região Militar, prendera seu
filho, Murilo Cavalcanti.
Deixara-o
recolhido no Quartel General, na Mouraria, e isso ontem nosso querido Rui
Patterson confirmou.
Eu
e Rui dividimos prisão em 1971, na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, em
Salvador.
Pai
é pai.
Lili
se desdobrava de modo a aliviar a situação do filho, e se pudesse, o quanto
antes libertá-lo na esperança de vê-lo ainda à frente da prefeitura de
Alagoinhas.
É
provável tenha conversado com militares amigos.
O
PSD, partido dele, era partido da conversa, da boa política, de não destruir
pontes.
E
quem sabe conseguiu chegar a alguém capaz de resolver a situação do filho.
Um
dia, em Alagoinhas, ainda naqueles primeiros dias do golpe, filho preso, vê a
movimentação da juventude e de ferroviários, crentes na possibilidade de
confrontar os militares vitoriosos.
Chama
alguns, e do alto de sua experiência, chegado aos 60 anos, já avô, explica:
meus filhos a barra pesou, e esses militares vieram pra ficar.
-
Melhor se recolherem, cuidarem de suas vidas. O momento é deles, e não há nesse
momento qualquer chance de reação.
Navarrinho,
presente à conversa, compreendeu.
Além
de Murilo Cavalcanti, prenderam, ainda, Pedral Sampaio, prefeito de Vitória da
Conquista, e Chico Pinto, de Feira de Santana, dos mais notórios, e os dois
serão, mais tarde, destacados opositores à ditadura.
Pedral,
histórica liderança do MDB/PMDB, prefeito de Conquista mais de uma vez,
liderança estadual, coordenador da campanha de Waldir Pires em 1986.
Chico
Pinto, nome de expressão nacional, líder do Grupo Autêntico do MDB/PMDB.
Preso
outra vez, no final de 1974, por ter feito duro discurso contra Pinochet.
Não
eram tempos fáceis.
Ainda
em 1964, certamente como decorrência das movimentações de Lili Cavalcanti,
Murilo é libertado.
Alagoinhas
soube, e o esperou.
Líder
incontestável da cidade, amado pelo povo.
Dele
se dizia ser, no mínimo, um simpatizante do PCB, e é provável isso tenha
contribuído para a prisão.
Estava
de volta aos braços do povo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
José Américo Castro: Murilo foi
deputado?
Carlos Navarro: É isso
Zapatilla, uma informação só para registro: Dr. Lili era amigo de um general
reformado que tinha muito prestígio na tropa, chamava-se Lucio Félix, se não me
falha a memória. Respondendo a Zé Américo aí em cima, foi deputado estadual
ainda muito novo.
Emiliano José: Carlos Navarro
Primeira eleição dele, em 1958.
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Emiliano José
23
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: a volta, Murilo
está chegando,
juventude e
bicicletaço,
multidão a pé, todos a
recebê-lo no
riacho, desce do carro,
abraços,
entusiasmo, chegada
à Prefeitura, de
cabeça erguida,
uma nova posse,
alegria, alegria.
Cidade
parou.
Alagoinhas,
em festa.
Murilo
está chegando.
De
boca em boca, notícia corria.
Alguém
disse, e agora parecia fósforo riscado em tanque de gasolina.
Ouviam-se
fogos.
Mané
Barreto, moço, moço, colega de Navarrinho na CNEG, ajuntou-se a um bocado de
outros jovens, e fizeram um bicicletaço.
Era
bicicleta a perder de vista.
Mané
ainda brinca, falando sério: deve ter sido o primeiro bicicletaço da Bahia.
Saíram
do centro, e felizes, pedalaram até o riacho.
Ali
onde está a UNEB atualmente.
Murilo
chegou de carro, viu aquela multidão: a juventude do bicicletaço, outros vindos
a pé, ferroviários, a cidade se deslocou até ali, modo a receber seu líder, ele
emocionado.
Desceu
do carro, apertou mãos, abraçou.
Gostou
do alvoroço, do calor, entusiasmo, gritaria, ovação.
Qualquer
político sente o coração pulsar, a alma se incendiar quando está junto do povo,
acarinhado.
Depois
daquele aperto todo, aquele abraço todo, entrou no carro.
Deu
ordens ao motorista: seguir bem devagar até a Prefeitura, onde reassumiria.
A
moçada de bicicleta o seguiu.
Os
de a pé, corriam um pouco, acompanhavam também.
Ninguém
queria perder a festa.
A
entrada dele na Prefeitura foi de cabeça erguida.
Os
funcionários o saudavam, felizes.
Os
políticos o reverenciavam, uma parte por respeito, admiração.
Outra,
por cuidados diante da força política dele, mesmo adversários.
Incontestável
liderança.
Voltando
ao poder nos braços de seu povo.
Não
regressava de cabeça baixa.
Nem
com o chapéu embaixo do braço.
Goulart
quando lhe falavam no exílio sobre a volta ao Brasil, dizia:
-
Voltar, desejo muito. Nunca, no entanto, com o chapéu embaixo do braço.
Só
voltou morto.
Ele,
Murilo, depois de amargar um tempo de prisão no Quartel General em Salvador,
voltava debaixo do entusiasmo de sua gente, de uma impressionante celebração.
Tempo
depois, chama Navarrinho para o seu gabinete...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Carlos Navarro: SE não me
falha a memória o riacho é o Riacho do Mel, na entrada de Alagoinhas pela
rodovia que vem de Salvador.
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Emiliano José
24
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Murilo Cavalcanti
chama Navarrinho
pra ser oficial de
gabinete,
transforma-se na prática em secretário, combinava Tiro de Guerra,
dar aulas,
trabalho no Curtume e na
Prefeitura,
ginásio com professora
Dagmar,
Científico no Instituto Fleming
Navarrinho
foi convidado para ser oficial de gabinete de Murilo Cavalcanti no retorno dele
à prefeitura de Alagoinhas.
O
filho dele, Marcus Cavalcanti, atual secretário de Infraestrutura do governo da
Bahia, acredita ele tenha voltado em julho.
Pelas
informações do pai, teria passado em torno de 90 dias preso no Quartel da
Mouraria, em Salvador.
Na
prática, Navarrinho tornou-se o real Secretário da Prefeitura.
O
titular, professor Rubens Fontes, acabara de abrir uma loja de materiais
elétricos.
Dedicava-se
ao seu negócio, e não lhe sobrava tempo para o exercício da função.
Navarrinho,
do alto de seus 19 anos, assumiu toda a parte política da função e quando
necessário mandava os processos para Fontes assinar.
Tudo,
no frigir dos ovos, antes de chegar ao prefeito, passava pelas mãos dele.
Os
demais secretários, querendo uma audiência, procuravam Navarrinho.
Virou
figura chave do prefeito.
Foi
pra ele uma grande escola política.
Antes
de seguir adiante, um esclarecimento - vida escolar de Navarrinho foi
tumultuada, vocês já sabem, e por isso essa pausa.
Quando
voltou de Salvador, em 1964, para fazer o Tiro de Guerra, precisava cursar o
último ano do ginásio - foi um ginásio estendido, de quase 10 anos, vocês têm
acompanhado essa odisseia.
Então,
foi conclui-lo numa escola privada, paga.
O
Curtume abriu exceção pra Navarrinho: trabalhar apenas um turno pra poder
estudar.
No
turno voltado aos estudos, ele não acompanhava as aulas.
Dava
aula.
Isso:
aula de OSPB.
Foi
a forma encontrada por ele para pagar o Ginásio Senhora Santana, da professora
Dagmar Portela.
Saía
do Tiro de Guerra correndo, e entre 8 e 10 horas da manhã, ensinava a meninada
- a ditadura ainda era pouco vigilante, e ele danava-se a ensinar lições de
liberdade e democracia à moçada dos primeiros anos do ginásio.
A
disciplina Organização Social e Política brasileira foi pensada pela ditadura
em 1968 como mecanismo de luta ideológica e cultural com a juventude, ao lado
de Educação Moral e Cívica.
Nem
sempre dá certo - nesse caso não deu.
Como
ele combinou Tiro de Guerra, Curtume, dar aulas, ser Secretário da Prefeitura,
só ele pode explicar - na juventude, somos capazes de nos multiplicarmos, estar
em vários lugares ao mesmo tempo, e mais tarde nem conseguimos, nós próprios,
saber como.
O
Científico, já dissemos de passagem, Navarrinho fez no Instituto Fleming...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Fleming, professores,
estudantes
universitários, Navarrinho aluno
pouco aplicado
não era cotado para ingresso
na Universidade,
foi único a passar,
jornalismo
político e satírico e também
aprendizado na
militância estudantil ajudaram.
Científico,
Navarrinho fez no Fleming, já dissemos antes, mas o leitor não vai voltar pra
saber.
Os
professores eram quase todos estudantes universitários.
Exploração
da força de trabalho intelectual, antiga.
Moçada
vinha pra Salvador estudar, grana era curta, e aí se dividia entre a
Universidade e a atividade docente em sua terra.
Tinham
de sobreviver.
Melhor
fosse ganhando uns trocados perto de casa.
Eram
especialmente alunos de Engenharia, de Física, área de Exatas.
Alguns
deles, depois, se organizaram, e criaram os primeiros cursinhos de
pré-vestibulares em Salvador.
Navarrinho
lembra do PHD, por exemplo.
Havia,
assim, no Fleming, com esse corpo docente, a particularidade de no terceiro ano
os alunos serem preparados para o vestibular, atenção especial para isso.
Sala
de Navarrinho contava com 13 alunos.
Foi
a primeira turma do terceiro ano.
Ele
pegou o Fleming no início.
Curioso:
Navarrinho não fazia parte de nenhuma previsão de sucesso no vestibular.
Não
era aluno aplicado, estudioso.
Ao
contrário.
Então,
fora da lista dos possíveis futuros universitários entre os 13.
E,
anotem: dos 13, foi o único a passar no vestibular da UFBA.
Jornalismo.
Zebra?
Ou
capacidade, inteligência?
Dez
anos no ginásio talvez tenham lhe dado uma base sólida o suficiente para a façanha.
Depois,
foi só fazer o Científico aos trancos e barrancos, combinando com as trocentas
outras atividades.
Seus
colegas não queriam acreditar.
Era
quase um abuso.
Como
pode?
O
sujeito não frequentava as aulas, vinha de quando em vez, e passa no
Vestibular?
Claro,
além da base escolar propriamente, havia o fato de que ele praticava
jornalismo, de uma forma ou de outra, e nós vamos contar isso de modo mais
detalhado, o leitor nos aguarde.
De
passagem, informo: ele assinava artigos no jornal de Alagoinhas, pertencente a
um dentista, Valtinho, vereador mais à direita, aliado de Murilo, textos
voltados à análise política.
Na
revista Cometa, organizada por alguns bancários, tentava seguir os passos de
Stanislaw Ponte Preta, Sérgio Porto - satírico, debochado, gozador.
Sátira
social - lembra de uma: sujeito muito pobre foi registrar criança recém-nascida
e cismou de colocar o nome de general no filho, orgulho, General dos Santos, um
puxa-estica danado, o oficial do cartório resistindo, ditadura, não podia,
quero porque quero, não deu, e o pobre disse então bota Zé dos Santos mesmo
nessa porra.
O
jornalista principiava, e isso ajudou muito a passar no vestibular, não fosse,
ainda, a militância estudantil, sempre uma escola.
Era
1968.
Isso
reclama um retorno.
Avançamos
demais...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: a multiplicação do
tempo, quarto
ano de ginásio em Dagmar,
o padrinho Zé
Português, os sonhos
de presidir a
ABES ou a UBES, vereador.
Voltando
no tempo, encontro explicação para o exercício da multiplicação dos pães
desenvolvido por Navarrinho.
Multiplicação
do tempo, quero dizer.
Volto
ao quarto ano de ginásio dele, no Colégio de Dagmar Portela, Colégio Senhora de
Santana.
Em
Salvador, tinha secreta esperança de ser dispensado, como acontecera comigo por
um acidente de percurso, já contado.
Nada.
Rapaz
forte, cheio de saúde, o Exército o queria.
Com
aquela crença, não tomou qualquer providência.
Podia
ter reservado vaga na CNEG ou no Ginásio de Alagoinhas, instituições
públicas.
No
mato sem cachorro.
Não
havia mais vaga, obrigado a ir para uma escola paga.
Dar
aula de OSPB no próprio colégio de Dagmar, a saída para poder estudar, bancar o
estudo.
Madrugava
no Tiro de Guerra, trocava de roupa na saída, ia para o Curtume, e de lá, ali
pelas 11 da manhã, saía correndo para dar aula em Dagmar, iniciada às 11,15hs,
terminada às 12hs - eram frequentes as
reclamações dos alunos pelo horário, especialmente quando a fome apertava.
À
tarde, de volta ao Curtume.
À
noite, estudar.
Tudo
isso era possível porque o Curtume era como mamão com mel.
Facilitava
a vida dele de todo jeito.
Amigo,
sempre há um amigo decisivo na vida - ou mais de um.
Havia
Zé Português, filho de Ernesto Coelho, o dono.
Zé
era amigo de farra de Navarrinho, parceiro de todas as estrepolias de juventude
em Alagoinhas, cheio de cumplicidades.
Foi
Zé Português o responsável por conseguir a vaga no Curtume em Salvador, era ele
também a flexibilizar os horários do trabalho em Alagoinhas.
Mão
na roda junto ao pai.
Vida
de aluno pobre era assim.
Ou
se virava nos trinta, ou estacionava.
Fez
Científico de 1965 a 1968, disso já falamos.
Navarrinho,
em 1967, é eleito vereador pelo MDB.
Provavelmente
poucos saibam disso.
Vamos
contar.
Não
alimentava quaisquer aspirações a um mandato eletivo, não o animava um carreira
parlamentar.
Seu
objetivo maior, enquanto fazia movimento estudantil, era vir a ser presidente
da ABES, a entidade secundarista estadual, ou da UBES, entidade nacional.
Legítimas
aspirações de um líder estudantil como ele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: o sonho da presidência
da UBES,
lembranças de uma entidade,
Aventuras e
Desventuras de um Estudante,
Carlos Sarno,
Chico Ribeiro Neto,
navegar é
preciso, viver não é preciso
É,
Navarrinho se imaginou presidente da UBES, ao sentir o ardor do movimento
estudantil secundarista.
Lembrou
de Jarbas Santana, um dos presidentes da entidade antes de 1964.
Velho
e querido amigo Jarbas Santana, chegado aos 80 anos atualmente, morando no Rio
de Janeiro, de memorável família de comunistas, entre os quais Fernando
Santana.
A
UBES é entidade a ser sempre lembrada, ainda mais por mim.
Fui
seu vice-presidente entre 1968-1969, gestão de Marco Melo, e por isso fui
condenado num de meus processos quando preso.
Não
custa lembrar de Tibério Canuto de Queiroz Portela, presidente da gestão
1967-1968, jornalista na Bahia logo ao sair da prisão, e depois dirigente do
jornal Em Tempo, em São Paulo, colega de cela na Lemos Brito.
Lembro-me,
ainda, em minha gestão, de Cleber Consolatrix Maia, de Fernando Parreira, Luís
Bernardes, Bernardo Joffily.
Jovens,
na luta contra a ditadura e a favor de um ensino público laico, universal,
gratuito.
Era
o sonho de Navarrinho - estar à frente dos secundaristas na luta contra a
ditadura.
Era
um tempo de ebulição, especialmente dos secundaristas, ao menos em Salvador.
Já
contei, e agora relembro.
Em
1966, os secundaristas de Salvador desenvolveram uma luta de dimensão
histórica, provocada pela peça de Carlos Sarno, Aventuras e Desventuras de um
Estudante.
O
diretor do Colégio Central proibiu a peça, e aí foi uma balbúrdia só - os
secundaristas se levantaram em toda a cidade, e obrigou autoridades a se
virarem nos trinta, e a botarem a polícia na rua, metendo o cacete.
O
diretor Walter Reuter suspendera sete alunos do Grupo de Teatro do Colégio
Central, denunciando-os como subversivos e marxistas.
Entre
os sete, além de Sarno, mais tarde meu colega de prisão na Galeria F da Lemos
Brito, Nemésio Garcia, outro dos contemporâneos de cadeia, e Francisco Ribeiro
Neto, amigo meu e de Navarrinho, parceiro nas lides jornalísticas.
Foi
luta de muitas dias, meados de 1966, Salvador virou enxame de secundaristas,
entra em beco, sai em beco, e era secundarista saindo de tudo quanto era lugar,
polícia descendo o cacete.
Memorável
luta, contada nos detalhes em Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento, número
um, de minha autoria.
Sarno,
perseguido como cão danado, aceitou bolsa de estudos na Alemanha Ocidental para
mais tarde voltar e passar à luta armada contra a ditadura, depois presos, torturado,
condenado.
Sonho
de Navarrinho era este: ouvia os ecos das batalhas, chegava a sentir o cheiro
de gás lacrimogênio, a ouvir as patas dos cavalos, as palavras de ordem dos
seus colegas estudantes em Salvador.
Era
essa a sua barca.
Navegar
é preciso, viver não é preciso.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: Jarbas Santana, presidente da UBES por duas vezes,
luta dos
estudantes em 1967 em
Salvador,
Navarrinho marca passeata,
polícia
prepara-se para reprimir, Luiz
Viana acaba
recuando, evitada a carnificina.
Ainda
ontem, conversei com Jarbas Santana, morando atualmente no Rio de Janeiro.
Cheio
de vigor, esclareceu: foi presidente da UBES em 1960, reeleito em 1961.
Dois
mandatos.
Em
1962, candidato a deputado estadual, não conseguiu se eleger.
Um
homem digno e de luta.
Navarrinho
sentiu a força do movimento estudantil a se desenrolar em Salvador em 1966 por
conta da peça Aventuras e Desventuras de um Estudante, de Carlos Sarno.
Aquele
movimento foi como um rastilho de pólvora.
Ano
seguinte, o governador Luiz Viana Filho resolveu mandar à Assembleia
Legislativa a Lei Orgânica do Ensino.
Nela,
havia um jabuti.
Viana
dava um jeito de embutir o ensino pago no interior da lei.
Pensava
talvez fossem inocentes, os estudantes.
Besteira.
Voltaram
às ruas com todo ímpeto.
Novamente,
Salvador se viu às voltas com intensas mobilizações.
Cidade
ocupada pela juventude.
Muita
porrada, muita polícia, cassetetes, repressão sem piedade.
Navarrinho,
principal liderança estudantil de Alagoinhas, resolve levantar os estudantes da
cidade na esteira de Salvador.
Moçada
entrou em greve.
Numa
sexta-feira, marcada uma passeata.
Os
adversários, os Azi, aliados do governador Luiz Viana, acionaram a PM para
reprimir a manifestação.
Colocaram
tudo quanto é policial de prontidão.
O
pau ia comer.
Navarrinho
tinha todas as informações.
Secretário
do prefeito de Murilo Cavalcanti, tinha relações com muitos militares,
inclusive em Salvador.
A
tropa viria em uniforme de campanha, pronta pra arrebentar, armada até os
dentes, nenhuma contemplação - assim o informaram, não sei se o aconselhando a
moderar, recuar.
Navarrinho,
turrão, fincou pé: nenhum recuo, vamos pra rua.
Por
sorte dele e de toda a juventude de Alagoinhas, a questão foi solucionada em
Salvador.
Se
ele estiver falando da luta da Lei Orgânica, o governador Luiz Viana, diante
das gigantescas mobilizações dos estudantes, resolveu recuar, e o artigo referente
ao ensino pago, foi retirado.
Suspendeu-se
a passeata em Alagoinhas.
Não
houve o inevitável confronto.
Fosse
mantida a mobilização, Navarrinho tem certeza: seria um carnificina.
Até
porque, na esteira dos secundaristas, apareceriam inclusive estudantes dos
últimos anos do primário, criançada.
Não
podia, no entanto, recuar.
Luta
tem disso, às vezes, é preciso ousar, confrontar, especialmente quando sob uma
ditadura.
Senão,
ela pensa poder tudo.
E
nunca pode.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Os Azi
resolveram criar um fato político relevante, acabando pela violência a
passeata. No interior isso pesa, só não contavam com a disposição e a coragem
da garotada.
Carlos Navarro: A solução
encontrada em Salvador por LVF foi essa mesmo Zapatilla. Recuou e os
professores e estudantes suspenderam o movimento.
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Emiliano José
29
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: o aprendizado
na militância
estudantil, prefeito o
quer vereador,
começa a gostar
da
ideia e a se articular, um
concorrente
jovem, Judélio Carmo.
Navarrinho
seguia na militância estudantil.
Tal
militância implicava muita agitação, além de ir moldando também o lado do
organizador.
Parece
tudo simples, mas não é.
Organização
de muitas festas.
De
viagens.
Campeonatos
esportivos.
Era
um tal de sair para jogar em Catu, Inhambupe, Mata de São João, Pojuca, Irará,
redondezas, e tudo isso implicava articulações, busca de financiamento, e a
rede de contatos ia se ampliando, a liderança se consolidando.
Festas,
constantes, também reclamavam muita articulação, e algum dinheiro para
acontecerem, é preciso buscar quem banque.
Essa
movimentação chamou a atenção do prefeito Murilo Cavalcanti, e Navarrinho
terminou secretário.
Não
lembra o ano, se 1965, se 1966: recorda é da fundação do MDB no município.
Navarrinho,
um dos fundadores do novo partido.
Chamaram-no
para ser representante da juventude,
Murilo,
como bom político, atento, começou o cerco a Navarrinho.
Falava
na possibilidade de uma candidatura a vereador.
Alisava
o ego dele, dizia de sua liderança com a juventude, a capacidade de
articulação, e apontava chances de eleição.
Murilo
semeava em terreno fértil.
O
líder estudantil ia abraçando a ideia.
Pensava:
quem sabe, talvez dê jogo.
E
começou a se movimentar, já com olhos na Câmara Municipal.
Havia
os céticos.
Dificilmente
se elegeria: a liderança dele se baseava nos estudantes secundaristas.
Os
mais velhos, 16 anos.
Àquele
tempo, não tinham direito a voto.
Esqueciam-se,
os céticos, da existência de muitos estudantes secundaristas já com 18 anos,
estudando à noite, e mesmo durante o dia.
As
dificuldades da vida levavam-nos a atropelos na trajetória escolar - pobreza,
necessidade de trabalhar.
O
próprio Navarrinho era um exemplo de caminhada tortuosa.
E
esqueciam-se de outra coisa: uma liderança secundarista, se forte, chega a
outros setores sociais.
Ele
enfrentaria, no partido, outra candidatura jovem, a de Judélio Carmo, nascido
no mesmo ano, 1945.
Estudava
Direito em Salvador, e era mais enfronhado nas articulações partidárias.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: um encontro, Judélio
Carmo e
impeachment em 1975, cobertura
feita por mim,
Navarrinho mete as caras
na campanha para
vereador, ninguém acreditava.
Navarrinho
segue promovendo encontros.
Lembrou
de Judélio Carmo.
Do
início da caminhada política dele.
Foi
prefeito mais de uma vez de Alagoinhas.
Primeira,
creio, em 1974.
Logo
depois, em 1975, sofreu impeachment.
A
direita, inconformada com a vitória daquele menino abusado, recém-chegado aos
30 anos, articulou-se, movimentou a reação na Câmara Municipal, e o tirou do
cargo.
Ele
voltaria mais tarde.
Digo
encontro porque o impeachment dele foi coberto por mim, pelo "Jornal da
Bahia", enviado pelo meu chefe de Reportagem, Césio Oliveira.
Estava
na primeira fase de minha trajetória jornalística.
Isso
está contado com precisão no "Balança mas não cai", livro lançado por
mim recentemente, com prefácio de Mônica Bichara, à disposição para venda na
Amazon, um E-book.
O
"Jornal da Bahia" fora a primeira casa de Navarrinho como
profissional em Salvador, se não me engano.
Ele
nem começou a contar a história jornalística dele, e eu vou me adiantando.
Se
errar, ele me corrigirá.
Judélio
vou encontrar mais tarde nas andanças do PMDB.
Encontros:
eu, Judélio Carmo, Navarrinho.
Navarrinho
meteu as caras na campanha de vereador.
Organizou
um bom time de capitães de campanha, todos jovens naturalmente, e viu o nome
crescer.
A
moçada corria trecho, ia de casa em casa, falava nas salas de aula.
Importava
pouco não pudessem votar.
Interessava
era conseguir votos.
Havia
os filhos e parentes de ferroviários a fazer barulho também, a apresentar
aquela novidade: um estudante nem ainda chegado à Universidade candidato a
vereador, cheio de ideias, de projetos novos para a cidade, e contra o
autoritarismo, contra a ditadura.
Novidade
quando bem apresentada ganha corpo.
E
Navarrinho, liderança, desde cedo relacionou-se com pessoas mais velhas, com
políticos, porque sempre devia fazer articulações para o futebol, para as
festas, e houve apoios de pessoas mais maduras, poucas, mas houve.
Seu
time de capitães fazia o cerco, o corpo a corpo em toda a cidade, tudo muito típico de eleição para vereador, a mais
dura delas, ao menos de minha própria experiência.
Judélio,
malandro, ia conversando com a juventude dizendo Navarrinho já está eleito me
ajudem.
Papo
perigoso, capaz às vezes de tirar eleição ganha.
No
mundo político tradicional, ninguém dava um vintém pela eleição dele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Alvaro
Figueiredo: copiado, bom parceiro obrigado!🤩
Thiago Conceição: Hoje o filho
de Judelio Carmo, segue o mesmo caminho na política local de sua cidade de
origem.....Ex Vereador, foi Presidente da Câmara de vereadores, lançou- se
candidato a Deputado, é o atual Secretário de Educação no
Município......Gustavo Carmo.
Emiliano José: obrigado
Mônica Bichara: Pois é, leiam
"Balança mas não cai" pra conhecer o Emiliano José foca. Sim, nosso
imortal da ABL já foi foca. E nosso querido Navarrinho estava por perto
-----------------------------------------------
(Eleito vereador, Navarrinho foi homenageado com o Título de Cidadão de Alagoinhas)
Emiliano José
31
de maio de 2021
Carlos Navarro
Filho: a surpresa da
eleição de
Navarrinho, revelação
de uma cidade
progressista, fazendo
campanha na
moita, ajuda de Gabino
Kruscheswky,
salário comido pela campanha.
Ao
contrário do pensamento dos caciques da política de Alagoinhas, Navarrinho se
elegeu, e bem.
Ele
e Judélio Carmo.
O
MDB fez cinco vereadores, eles os dois mais votados do partido.
O
município fazia jus à sua tradição progressista, elegendo dois jovens do MDB.
Oito
anos depois, Judélio Carmo será eleito prefeito, mas em 1975 sofre impeachment,
jeito encontrado pela direita municipal de tirá-lo do poder.
Haverá
mais tarde, a chegada do PT à Prefeitura: Joseildo Ramos se elege em 2000, se
reelege em 2004, com fim de mandato em 2008.
Cidade
de boa tradição política.
Navarrinho
credita a eleição dele à militância reunida em torno de sua campanha, à sua
juventude, à sua beleza, "com 20 anos todo mundo é bonitinho", e à
sua condição de atleta conhecido na cidade.
À época,
jogava como aspirante no Grêmio, mais tarde Atlético de Alagoinhas, recém
proclamado com justiça campeão baiano - Bahia e Vitória, os grandes, de fora.
O
fato: ele constituiu-se na grande surpresa daquela eleição.
O
mundo político tradicional não acreditava fosse a popularidade do
"menino" suficiente para elegê-lo: não tinha dinheiro, não era de
família política conhecida, então carta fora do baralho.
Engano.
Elegeu-se,
e bem à frente de alguns dos políticos tradicionais.
Amigos
dele, alguns mais velhos e da velha escola da política, chegaram a torcer o
nariz quando o viram eleito, putos.
Durante
a campanha, Navarrinho corria atrás do voto, mantinha a humildade, não fazia
alarde para não ser alvo, na moita.
Também
para não dar asas aos apostadores - não iria dar a chance de ganharem dinheiro
com sua vitória.
No
interior, há uma febre por apostas nas eleições - ou ao menos, havia.
Só
quando as urnas foram abertas e a contagem começou, alguns perceberam a
possibilidade da vitória dele, e jogaram fichas no potro novo.
Ganharam
algum dinheiro ainda.
O
único apoio de Navarrinho, de fora, foi de Gabino Kruscheswsky, candidato a
deputado estadual pelo MDB, eleito naquela disputa.
Ganhou
uma fortuna dele: cinco bolas e três jogos completos de futebol - camisa,
calção e meião.
Não
deu pra quem quis, uma disputa da porra, não sabe se foi bom ou ruim, muita
gente ficou puta da vida por não ter
recebido.
O
salário dele, na Prefeitura, era de bom tamanho.
Ao
menos, para um rapaz solteiro, sem grandes despesas.
Para
a campanha, no entanto, um sopro: recebia e rapidamente o dinheiro desaparecia
com as despesas da campanha.
Há
coisas não ditas, ou mal ditas, segredos de campanha.
Navarrinho
costumava ir ao Alecrim - a zona da cidade.
Não
propriamente atrás de sexo, soube.
Apenas
tomar uma ou duas cangibrinas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Hahahaha
"beleza" dos outros, eu era só um garoto latinoamericanoalagoinhense.
Emiliano José: aos 20 todos
são bonitinhos, aspeei, tem razão, até eu era...
Carlos Navarro: E centrefó do
time da escola.
Manoel Barretto: Realmente
poucos acreditavam que Navarrinho se elegesse.
Emiliano José: Dançaram. É
que o rapaz era bonito...
Carlos Navarro: Emiliano José:
Lá ele.
Carlos Navarro: Grande
Netinho, proponho uma conversa alagoinhense no fim dessa pandemia. Topas?
Manoel Barretto: Claro, vamos
dar um tempo pra esta loucura melhorar e vamos marcar.
Manoel Barretto: como faço pra
comprar o livro Gororoba? Temos muita conversa pra jogar.
Mônica Bichara: Líder estudantil
e vereador, nunca imaginei esse passado de Navarrinho. Emiliano José vai cavoucando
e descobre é coisa
Carlos Navarro: Pois é Mônica,
nem eu lembrava dessas passagens.
Mônica Bichara: que bom que o
repórter Emiliano não deixou isso só no baú da memória, é história
Manoel
Barretto: Claro. Quando está loucura permitir vamos sim
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Emiliano José
1
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Alecrim dourado
que nasceu no
campo sem ser semeado,
a zona em
Alagoinhas, Navarrinho só ia
ali pra comer
água, ajudava as meninas,
teve ali alguns votinhos, fez amizades.
Navarrinho
viaja no tempo quando pensa no Alecrim.
Volta
aos tempos de infância, menino menino lá pelos lados de Iaçu.
Nem
Iaçu ainda.
Paraguaçu.
Ou
Sítio Novo.
Era
cantiga de ouvir Mariazinha do Boqueirão cantar:
Alecrim,
alecrim dourado
Que
nasceu no campo sem ser semeado.
Entre
uma travessura e outra, Navarrinho escutava:
Foi
meu amor que me disse assim
Que
a flor do campo é o alecrim.
Os
amigos de Alagoinhas cedo cedo lhe falaram do Alecrim.
Não
era bem o alecrim dourado.
Rua
da Zona.
Lá
no Paraguaçu também tinha - era a rua do Crefe.
Só
lembranças - menino, nem de nada sabia.
A
rua da Zona em qualquer cidade do interior era o objeto do desejo de muita
gente - dos homens, claro.
As
mulheres, as esposas, amaldiçoavam, sempre.
Rua
da perdição.
Para
os homens, paraíso.
Território
da iniciação sexual.
De
muitos fregueses habituais, aqueles acostumados a marcar ponto.
Alguns
até com amores na zona.
Os
tomados de paixão chegavam a tirar a mulher da zona.
Quem
não conhece a música de Odair José:
Eu
vou tirar você desse lugar
Eu
vou levar você pra ficar comigo
E
não me interessa o que os outros vão pensar.
Tudo
isso povoava a mente de Navarrinho.
O
Alecrim em Alagoinhas era, além de tudo, uma retaguarda.
Os
bares todos fechavam, e restava o Alecrim.
Muita
gente ia pra lá, tarde da noite, mais pela chance de tomar uma, comer água.
Nessa
barca ia Navarrinho.
Homem
sério.
Mas,
ia sempre.
E
na campanha, ele amiudou ainda mais as idas.
Conversava
com uma menina, com outra, zagueiro bom não perde viagem, era candidato.
Chegou
a ajudar uma ou outra, gastar uns trocadinhos: arrumar um telhado, consertar
uma porta, dinheirinho pra compra de carvão pra cozinhar...
Menos
pelos votos, mais pelo coração generoso - característica de Navarrinho.
As
meninas se engraçavam com o menino bonitinho, mas ele, consciente da condição
de candidato, ria muito, brincava, bebia sua cangibrina, mas mantinha postura
de homem sério - acreditem, é testemunho atual dele, não riam não.
Dali,
não nega, surgiram alguns votinhos, a contribuir com sua inesperada
eleição.
Fez
amizades.
Não
pode negar.
Política
tem dessas coisas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
2
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: vereador num ano
de Constituição
tutelada pelos militares,
volta da
organização popular, UNE, UBES,
a força da
cultura sob regimes autoritários,
a música de
protesto, Carcará pega mata e come...
Navarrinho
eleito.
Caminhava
no leito da retomada das lutas estudantis de 1966, a partir de Salvador.
Entrara
de cabeça na luta da Lei Orgânica, em 1967, contra o ensino pago.
Era
enfronhado nas lutas pela democratização
do esporte, especialmente do futebol.
Articulado
com o prefeito Murilo Cavalcanti, de quem tinha as bênçãos.
Quando
assume, no início de 1967, divisava uma
larga estrada pela frente.
O
ano prometia.
O
País começava a respirar, ainda aos poucos, depois do golpe de 1964.
Claro,
ninguém me alerte: continuava ditadura.
A
nova Constituição, do início daquele ano, desenvolvida sob o olhar atento dos
militares, buscava adequar o País à ditadura, consagrando o controle castrense
sobre o Legislativo e o Judiciário.
Ali
se constitucionalizava a presença militar e se dava sinais nítidos de uma
estadia de longo prazo no poder.
A
oposição, no entanto, apesar de tudo, de toda a repressão desencadeada pelo
golpe, começa a se rearticular.
A
área cultural dava sinais de intensa vitalidade.
Só
para lembrar do mundo musical, é ano de "Ponteio", de "Alegria,
Alegria", de "Roda Viva", de "Domingo no Parque", tudo
do Festival da Música Popular Brasileira.
Era
Edu Lobo.
Caetano.
Era
Chico Buarque.
Gilberto
Gil.
Ano
anterior, 1966, Vandré e Chico dividiram o primeiro lugar do festival:
Disparada e A Banda.
Cultura
e sua criatividade, sempre pedra no sapato de qualquer tipo de autoritarismo.
Aproveito
para voltar um pouco no tempo, e falar de ousadia da cultura: o show
"Opinião", estreia em dezembro de 1964, com Nara Leão, João do Vale e
Zé Keti, texto de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, uma
porrada, acontecimento, referência histórica na música de protesto.
Carcará
pega mata e come - lembram?
Não
por acaso, a cultura é sempre perseguida pelos regimes autoritários de qualquer
natureza, como acontece nos dias atuais.
A
UNE realizava seu XXIX Congresso, em Valinhos, São Paulo, clandestinamente.
A
UBES também ressurgia.
O
movimento estudantil será, em 1968, o grande opositor da ditadura, promovendo
gigantescas mobilizações em todo o País.
E
a organização dos estudantes ganha corpo em 1967...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: Vandré?
Emiliano José: Rapidamente,
incluí. Em 1968, Vandré explode novamente. Obrigado
Alyne
Costa: Vixe, eu vou é ouvir Vandré pra sair dessa tristeza enorme que me bateu
hj.
Maria José Malheiros: Nao pode
esquecer de falar um dia da Ubes de Goiania, Euler Ivo, Chico Montenegro e
dezenas de quadros valorosos que lutaram bravamente contra a ditadura
Emiliano José: Maria José
Malheiros Milhares. Um dia. Talvez outros o farão. Esses dias falei com Euler.
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Emiliano José
3
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: chegando querendo mudar o mundo, aprendendo, de
centroavante pra
meio de campo,
primeiras
indicações, primeiros projetos, primeiro tombo, malandro é malandro,
mané é mané,
aprendendo tricô
Navarrinho,
novinho novinho, assume o mandato no início de 1967.
Assume,
no ardor de seus 22 anos, querendo mudar o mundo.
Botar
pra quebrar.
Arregaçar.
Cheio
de gás.
De
planos.
Rapidamente,
descobre: o céu é mais em cima.
O
buraco é mais embaixo.
Uma
casa legislativa é cheia de segredos.
Carece
descobri-los.
Há
entraves, obstáculos, e não são pequenos.
O
pensamento desejoso apenas não basta.
Muita
agua corre por debaixo daquela ponte.
Há
interesses a condicionar a atividade parlamentar.
No
primeiro momento, melhor o papel do meio de campo manhoso, capaz de cobrir a
retaguarda e distribuir bola.
Centro-avante,
só na sequência, e Navarrinho chegou com o ímpeto de atacante, a praia dele.
Há
rotinas, há regimento, tempo de fala, prioridades para os líderes.
Navarrinho
percebeu: mandato é coisa sofisticada, é política, é malevolência.
Não
era apenas para a figura do trombador, embora também pudesse ser.
Chegou
pensando em grandes projetos - e ainda bem, papel de um jovem vereador.
Naquele
tempo, começava a se falar na BR-101.
Pensou
nisso, e aprovou uma indicação: a BR-101 devia passar por Alagoinhas.
O
traçado dela devia garantir a passagem o mais próximo possivel da cidade, e
contou, para a indicação, com a ajuda de engenheiros amigos.
A
televisão ganhava força.
Vamos
lembrar: a televisão, até o iniciozinho dos anos 60, não era a mídia dominante.
Mas,
a partir de meados da década, ganha muita importância, e torna-se dominante, de
âmbito nacional, a partir do final de 1969, depois de a ditadura ter garantido
a infraestrutura indispensável, criado as condições para a Rede Globo tornar-se
hegemônica.
Na
Bahia, 1967, a TV Itapoan era a tal.
Navarrinho
tascou-lhe uma indicação: instalação de uma antena repetidora, de modo a
garantir o sinal para a cidade.
Um
projeto de lei, quase inevitável diante de sua condição de liderança
estudantil, de grande repercussão: meia passagem para os estudantes.
De
grande repercussão, ainda, foi o projeto de criação do Centro Industrial de
Alagoinhas, com destinação de terreno e tudo.
Neste,
tomou um tombo: teve de dividir autoria com outro vereador, Edson Oliveira, da
Arena, gerente do cinema da cidade.
Língua
solta, inexperiente, Navarrinho, comentou com Oliveira sobre o projeto, ainda
em elaboração.
O
vereador, de quem Navarrinho se considerava amigo, correu, apresentou logo o
projeto - malandro é malandro, mané é mané.
Foi
a ele, reclamou: o que é isso, companheiro? O colega muito gentilmente permitiu
fosse coautor.
Começava
a entender: o mais bobo ali fazia tricô com luvas de boxe.
Navarrinho
ainda não aprendera tricô.
Foi
ali sua escola.
Era
preciso estar sempre de olhos abertos, não dar sopa para o azar.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: !!! isso
Adelia Andrade: Muito bom
mestre. Bjs
Artur Carmel: Vivendo e
aprendendo a jogar...
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Emiliano José
4
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: muito trabalho,
ajuda para o
"Carneirão", muitos
contatos,
prefeito de Feira e as dicas,
estádio pronto,
e ele alegre e triste,
não experimentou
o gramado como jogador.
Navarrinho
seguia com o mandato, aprendendo a fazer tricô.
Muitas
indicações, vários projetos.
Não
recorda de tudo.
Os
anais da Câmara certamente guardam todo o acervo.
Acalenta
essa esperança.
Ajudou
muito, disso se recorda, na construção do Estádio Antônio Carneiro - como não fazê-lo?
Apaixonado
por futebol, estrela na cidade, como não ajudaria?
Como
vereador e secretário.
Ele,
lado a lado com o prefeito Murilo
Cavalcanti, com dezenas de pessoas da cidade, meteu mãos à obra.
O
estádio aconteceu.
Estiveram
umas tantas vezes com o prefeito de Feira de Santana, Joselito Amorim.
O
"Joia da Princesa" surgira na gestão de Amorim, em 1966.
Amorim
fora a solução encontrada pela direita logo depois do golpe para ocupar a
Prefeitura em 1964, depois do vendaval repressivo levar Chico Pinto para a
cadeia.
Navarrinho,
Murilo, tantos outros, podiam aprender com ele os segredos, as manhas da
construção de um estádio.
Surgia
o Estádio Antônio Carneiro - o Carneirão.
Inteiramente
construído com recursos municipais.
Ficava
para trás o campo da LDA - Liga Desportiva de Alagoinhas.
Nesse
campo, Navarrinho viveu momentos de glória de centroavante rompedor, dono da
pequena área, goleador, ídolo da rapaziada, especialmente das minas da cidade.
Estádio
construído, alegria, alegria, e tristeza - a vida não tem linha reta.
Restou
uma frustração.
Navarrinho
olhava para o gramado, verdinho, verdinho, para as arquibancadas, tudo novo,
novinho.
Chegou
a sonhar, ver-se em movimento, rompendo zagas adversárias, o estádio de pé,
gritando, comemorando seu gol.
Nada,
nem uma partidazinha sequer.
Nunca
jogou no Carneirão.
Alegre,
feliz, por ver o Atlético de Alagoinhas, campeão baiano hoje - ele brilhou no
Grêmio, antigo nome do time.
Nunca
esqueceu, no entanto: volta e meia, uma ponta de tristeza o invade por não ter
podido desfilar seu talento no novo campo.
Quando
avalia o mandato, arrisca dizer: não foi um grande mandato.
Essa
avaliação, talvez, decorra da conhecida modéstia dele.
Ou,
também, da brevidade da presença dele na Câmara Municipal.
Dezembro
de 1968.
Sobre
o Brasil, desaba o AI-5...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Carneirinho é
quem inaugura o
Carneirão, AI-5, às
favas os
escrúpulos de consciência,
o risco do
guarda da esquina, uma
longa fase de
terror e morte.
Antes
de seguir adiante, precisar uma coisa.
Contador
de história, é assim: deve de não deixar dúvidas no leitor.
Carece
isso.
Jornalista,
também.
E
contador de história e jornalista não são a mesma coisa?
Às
vezes.
O
Carneirão, estádio tão falado já, não foi inaugurado na gestão de Murilo
Cavalcanti.
Coube
ao prefeito Antônio de Figueiredo Carneiro, o sucessor, a inauguração.
Os
primeiros movimentos foram de Murilo Cavalcanti, mas a finalização foi de
Carneirinho, como era chamado, e ninguém saber por que o estádio, a levar o
nome dele, passou a se chamar Carneirão - são as manias de grandeza, não se
sabe de quem.
Dito
isso, o contador está à vontade para voltar ao final de 1968, quando o AI-5
desaba sobre a Nação.
Foi
num dia 13.
13
de dezembro.
A
ditadura, com isso, deixava de lado quaisquer resquícios de legalidade.
O
coronel Jarbas Passarinho, então ministro da Educação, teve a sinceridade de
"mandar às favas todos os escrúpulos de consciência" quando da
assinatura do ato, numa frase a ficar na história.
Foi
uma reunião de frases famosas.
O
ditador Costa e Silva, diante das preocupações manifestadas pelo vice Pedro
Aleixo com a edição do ato, perguntou-lhe sobre as razões de tais preocupações.
Aleixo
não se fez de rogado:
-
Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem com os que com o
senhor governam o País. O problema é o guarda da esquina.
Tinham
razão os dois, Passarinho e Aleixo.
Um,
pela sinceridade - deixou os escrúpulos de lado.
Outro,
pelo diagnóstico - o País abria as portas do inferno, dava autoridade ao guarda
da esquina para todas as atrocidades.
O
AI-5 iniciou uma temporada de terror e morte.
De
prisões, torturas, desaparecimento de pessoas.
Sob
Médici, sucessor de Costa e Silva depois do interregno de uma Junta Militar, a
ditadura restou nua, sem disfarces - e nua era muito mais feia.
Não
obstante a distensão lenta e gradual iniciada em 1974 com Geisel, seguirá
matando, como proclamado pelo próprio general-presidente.
Com
Figueiredo, e muita luta do povo, já ocorrem mudanças.
O
País só vai respirar em 1985, quando o regime militar é derrotado.
Quando
chegou o AI-5, Navarrinho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: "Essa
abertura é um furo !" , pichação em Amaralina, no final dos 70
Emiliano
José: e era
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Emiliano José
6
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: discurso contra o AI-5,
acompanhado por
dois colegas, denunciados
ao SNI pelos
Azi, denúncia não segue adiante,
Navarrinho se
manda de Alagoinhas, e
em 1970 pede
licença do mandato de
vereador, seu
último ano como parlamentar.
Veio
o AI-5.
Navarrinho,
na linha do coronel Passarinho, mandou às favas qualquer prudência.
O
sangue ferveu.
As
razões da consciência falaram mais alto, nesse caso o avesso de Passarinho.
Juventude
não costuma pesar riscos.
Vai
pra cima, e depois vê no que dá.
Navarrinho
deitou e rolou pra cima de Costa e Silva.
Criticou
o arbítrio representado pelo AI-5,
início da era de trevas.
Pronunciamento
duro, e de intensa repercussão.
A
família Azi, oposição a Murilo Cavalcanti e a qualquer tipo de esquerda, grava
o discurso, e manda para o SNI, para as mãos de Bião, oficial do Exército,
chefe do serviço.
Mandou
os discursos de Navarrinho, de Crisanto Borges e de Hostílio Ribeiro Dias.
Crisanto,
anarquista, contestador, poeta e jornalista.
Hostílio,
velho comunista, de carteirinha.
Ambos
do MDB, como Navarrinho.
Haviam
metido a porra no AI-5, também.
Por
sorte, olha ela aí de novo, Crisanto Borges era cunhado de Bião, e de alguma
forma isso fez com que a tentativa dos Azi de mandar os três para a cadeia se
frustrasse.
Os
discursos restaram engavetados.
Ninguém
foi indiciado, incurso na temível Lei de Segurança Nacional, até hoje vigente,
espera-se em fase terminal.
Navarrinho,
no entanto, sabia: barra pesou.
Resolve
se afastar de Alagoinhas.
Por
duas razões: havia passado no vestibular para Jornalismo e a ditadura o
colocara na mira.
Não
abandona o mandato.
Concilia
as aulas do curso de Jornalismo com as duas sessões por semana na Câmara de
Vereadores de Alagoinhas.
Chegava
de ônibus pouco antes do início da sessão, voltava para Salvador no outro dia,
cedinho.
Na
moita.
Era
o infernal ano de 1969 - infernal porque
era repressão para todo lado, a ditadura disposta a prender e matar, prendendo
e matando.
No
ano de 1970, último ano do mandato, tendo de dar conta dos estudos e já
trabalhando no "Jornal da Bahia", resolve pedir licença da atividade
na Câmara Municipal.
Na
real, na real, dava adeus à vida parlamentar.
Não
era a dele - foi concluindo.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: saltando uma
grande fogueira,
Bião Luna homem
chave da
ditadura, organizador do
DOI-CODI na
Bahia, manda um
carateca
massacrar Theodomiro
em 1970, e Paulo
Pontes é também ameaçado.
Navarrinho,
mais tarde grande jornalista, certamente sabia, e vai saber ainda mais quando
escarafunchou a vida do cidadão, o tamanho da fogueira que pulou quando as
investigações sobre o discurso foram engavetadas.
O
dito cidadão é Antônio Bião Martins Luna.
Natural,
do meu saber, de Alagoinhas.
Parece
tinha algum apreço por seus conterrâneos.
Pudesse,
livrava a cara deles.
Agora,
nós, presos políticos então, fim da década de 60, início dos anos 1970, o
conhecíamos como temível, terrível homem da ditadura.
Um
dos organizadores do DOI-CODI na Bahia.
Formava
dupla de linha de frente com Luiz Arthur de Carvalho, durante anos
superintendente da Polícia Federal, o homem a me mandar para a tortura em
novembro de 1970.
Os
dois serão secretários de Segurança: Bião Luna, de João Durval; Luiz Arthur, de
Roberto Santos.
De
Bião Luna, contam-se muitas histórias, e não são lendas urbanas.
Uma,
testemunhei.
Provavelmente
outubro de 1970, eu já preso, no Quartel do Barbalho.
Chega
o cabo Dalmar Caribé, no ano seguinte um
dos assassinos do capitão Carlos Lamarca, no sertão da Bahia.
Vinha
acompanhado de alguns bate-paus, também do Exército.
Ditadura
carrega a marca da covardia.
Os
torturadores andam sempre de bando.
Mandou
abrir a cela de Theodomiro Romeiro dos Santos, mais tarde, em março de 1971, o
primeiro condenado à morte sob a ditadura.
Deixou
os bate-paus guarnecendo a porta da cela, entrou, e como bom carateca,
massacrou Theodomiro, porrada até cansar.
Deixou
Theo no chão, todo arrebentado.
Saiu,
esfregando as mãos, e gritou para todos ouvirem:
-
Fiz isso a mando do coronel Bião Luna.
A
porradaria, testemunhei, cá da cela onde estava.
Ao
menos, ouvia os gritos de Dalmar Caribé, de puro sadismo - não dava pra ver
dentro, estava numa das celas ao lado.
A
frase, testemunho de Paulo Pontes, ouvida nitidamente.
O
covarde, não contente, passou em frente à cela onde Paulo estava, e disse:
-
Eu volto, o próximo será você.
Certamente
também um dos jurados por Bião Luna.
Não
voltou, ocupado com outras tarefas repressivas.
Para
alívio de Paulo.
Confessa: no momento, sentiu um medo danado.
Incutir
medo era uma característica dos torturadores.
Não
cumprissem as ameaças, deixavam o medo no ar.
Divertiam-se
com isso.
Puro
sadismo.
Paulo,
vocês sabem, foi preso junto com Theodomiro, no Dique, naquele ano de 1970.
Mas,
há outras histórias em torno de Bião Luna...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Sônia Maria Haas: Muito bom.
Adoro ler, mesmo que muitas figuras eu não conheça a história.
Carlos A Scorpião: Estava lá, e
teve jatos fortes de água, após. Cela sem colchão, e ele nu.
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(Fernando Escariz. Alagados para matérias sobre a visita do Papa. Foto: Agliberto Lima)
Emiliano José
8
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: troca de guarda,
sai ACM, entra
João Durval, sai Durval
Mattos, entra
Bião Luna na secretaria
de Segurança,
Escariz meteu o pau
no novo
secretário, Matos se
assusta, depois
compreende.
Corria
o ano de 1983.
Tempo
de troca de guarda.
Saía
ACM, entrava João Durval Carneiro.
Primeiro
governador eleito pelo voto direto, guindado à condição pela força de ACM.
Clériston
Andrade havia morrido pouco antes da eleição num acidente, e ACM se viu
obrigado a tirar rapidamente um nome da algibeira para substituí-lo.
A
imprensa chegou a questioná-lo.
Um
repórter mais atrevido chegou a perguntar:
-
O senhor acha possível eleger um nome tão inexpressivo?
ACM
nem titubeou, expôs toda sua costumeira arrogância:
-
Meu filho, se eu quiser elejo até um poste.
Elegeu
João Durval.
O
novo governador pensou, pensou, e escolheu Antônio Bião Martins Luna como
secretário de Segurança.
Navarrinho
está de camarote, por enquanto, esperando para voltar à cena, enquanto vamos
contando histórias de Bião.
Ainda
mais se história envolvendo jornalista, imperdível.
O
chefe de Comunicação da Secretaria de Segurança era o jornalista Antônio Matos
- desempenhara a função durante a gestão do coronel Durval Mattos.
Já
começara a limpar as gavetas, quando foi chamado por Bião Luna:
-
Você continua no cargo.
Nada
mal.
Vida
que segue.
Dia
seguinte à posse do novo secretário, abre a "Tribuna da Bahia" e
depara com matéria assustadora para quem está no início de nova gestão.
Desancava
o secretário Bião Luna.
Desnudava
suas ligações com a ditadura, toda sua folha corrida de homem do arbítrio, de
torturador para cima.
Poderia
ainda considerar razoável, coisa de jornalista, não fosse assinada pelo seu
melhor amigo, seu compadre Fernando Escariz.
Ligou
pra Escariz:
-
Meu irmão, você quer me fuder?
Escariz,
de pronto, inocente, perguntou:
-
O que houve?
-
Ora, Escariz, você não deixa eu nem esquentar lugar, e logo no primeiro dia
escreve matéria esculhambando o secretário. Não podia ao menos esperar um
pouquinho?
Uns
segundos de silêncio, e Escariz responde:
-
Matos, toda a Bahia sabe de nossa amizade. Coisa de irmãos, pra durar a vida
inteira, não é verdade?
Matos,
assuntando, querendo entender a argumentação:
-
Sim, sei, e por isso mesmo estou perplexo com a matéria.
Escariz
explicou:
-
Quis passar um recado, Matos. Nem amizade como essa preservará o secretário.
Ele não foi blindado com a indicação de meu melhor amigo para chefiar a
Comunicação dele. A partir de hoje, já sabe.
Matos,
silencioso.
Nada
a dizer.
Matou
a bola no peito, seguiu adiante.
A
admiração por Escariz, apesar da matéria, ou por causa dela, aumentou.
O
amigo era um jornalista.
De
caráter irretocável.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Maria De Lourdes Ribeiro de Morais: Helisa Escariz
Helisa Escariz: Esse era
Fernando Escariz!!
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Emiliano José
9
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: crime muda de
feição em
Salvador, antes arrombador,
em 1970
quadrilhas chegando,
cerco a uma
delas em Itapuã,
Bião leva um
tiro inesquecível...
Possível,
descarto não: fãs de Navarrinho devem estar impacientes para vê-lo de volta à
cena.
Tomei
atalho, desapeei do cavalo, e gostei da parada.
Peço
um pouquinho de paciência.
Tem
a ver com a fogueira saltada por Navarrinho: a fogueira de Bião Luna - entendam
isso.
Homem
de muitas histórias, sobretudo aquelas vinculadas à repressão da ditadura.
Mas,
há outras, ligadas à repressão, mais apimentadas, e nem sempre reveladoras de
bravura - digo sempre, e repito: a covardia é traço das ditaduras, e de seus
torcionários.
Salvador
um pouco antes do início dos anos 1970, não contava com quadrilhas organizadas
- isso me foi revelado por uma fonte policial esses dias.
O
ladrão, o acostumado a roubar residências, era comum - o arrombador, bem
conhecido.
Mais
mané do que malandro.
Caía
fácil nas malhas da polícia.
A
partir do final da década de 1960, início dos 1970, começou a surgir por essas
bandas as quadrilhas, normalmente vindas do Sul Maravilha.
O
crime começava a se sofisticar.
Vicente
Vaz Maia chegou por aqui no início dos 1970, com sua quadrilha.
Já
havia assaltado alguns bancos em São Paulo.
Resolveu
recuar para a Bahia.
Pelo
Sul, barra pesou.
As
forças policiais mapearam o deslocamento.
Bião
Luna, sabendo tratar-se de assaltantes de banco, gritou:
-
Deixa comigo, é assunto de segurança nacional.
E
lá se foi ele, peito estufado, valentia toda do mundo.
Com alguns homens do Exército, não sei se também
reforço de policiais civis.
Cercaram
a casa da quadrilha em Itapuã.
Meteram
bala.
Rendição.
Aí,
várias versões.
A
mais plausível: Vicente, rendido, todo cordato, pede pra pegar muda de roupa no
quarto.
Sai
de lá cuspindo fogo, dois revólveres nas mãos.
Os
policiais saem correndo, um rebucetê.
Mas,
se recompõem, voltam.
Atiram
de novo, outra fuzilaria.
Dominam
a situação, prendem a quadrilha.
Saldo: Antônio Bião Martins Luna, ferido.
Com
um tiro na bunda.
Isso
no nosso tempo de prisão na "Lemos Brito", corria de boca em boca, e
Vicente não deixava de espalhar.
Foi
nosso contemporâneo lá.
Na
Secretaria de Segurança Pública, secretário ou não fosse, a notícia nunca
deixou de correr, aos sussurros, murmúrios, comentários no breu das tocas: um
tiro na bunda não é para qualquer um.
É
marca para sempre.
Não
dá pra disfarçar e dizer: foi em combate.
É
marca de fuga, de quem não quis o confronto.
De
quem fugiu, apavorado.
Vicente
sorria quando perguntado, e contava.
Um
dia fugiu, com seus companheiros - ele não era brinquedo, não, inteligência
rara.
Conto
sobre a fuga em "O cão morde a noite", lançado por mim recentemente.
Ironia:
depois da fuga, em São Paulo, teve o carro assaltado, levou um tiro, ficou
tetraplégico.
Consolo:
seus companheiros mataram o assaltante logo depois.
Vicente
morreu num hospital penitenciário...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: 1974 ano de virada,
no País e na
vida de Navarrinho, susto nas
eleições, MDB
elege ampla maioria de
senadores,
ditadura se assusta edita
Pacote de Abril,
senadores biônicos.
1974
foi um ano decisivo.
Para
o País e para Navarrinho.
Lead:
naquele ano o País perderia um político promissor, ganharia um extraordinário
jornalista.
Foi
para Navarrinho o ano decisivo, quando
ele atravessou o Rubicão.
Vamos
entender.
Contextualizar
é bom e eu gosto.
Peço
licença aos mais velhos e aos mais novos, aos leitores e leitoras.
Começaria
naquele ano o governo Geisel.
Distensão
lenta e gradual, promessa de alguma abertura, tímida pra burro a bem da
verdade.
Mais:
não seria afrouxada a política de prender, torturar e matar adversários - isso,
não me canso de lembrar, foi dito pelo próprio
Geisel.
Confessou
a necessidade, para a ditadura, de ainda continuar a matar.
Continuou.
Ainda
assim, um novo mando ditatorial, com algumas diferenças para o governo Médici.
Não
creio exagerar se disser ter começado naquele ano o declínio da ditadura.
A
população, passados quase dez anos de regime de arrocho e de terror, começava a
se cansar.
E
nas urnas, em novembro, deu uma resposta dura ao regime, dando expressiva
vitória ao MDB em todo o País.
Aquelas
eleições deram ao MDB um protagonismo jamais experimentado pelo partido.
Só
para dar um exemplo: dos 22 estados que elegiam senadores, o MDB elegeu 16.
Era
uma primeira virada de mesa, feita pelo povo, um recado cristalino, de óbvio
repúdio.
A
ponto de Geisel, tentando evitar perder inteiramente o domínio da situação, ter
fechado momentaneamente o Congresso, e editado o chamado Pacote de Abril.
Era
abril - parece mês da predileção de golpistas: golpe de 1964, Pacote de Abril,
golpe de 2016.
Do
número 13, não creio gostem - mas tal pacote, editado no dia 13 de abril de
1977.
Geisel
mostrava: o caminho até o fim da ditadura ainda seria longo.
Só
ocorreria em 1985, como sabemos.
No
pacote, determinava-se: um terço dos senadores não seria mais eleito pelo voto
direto
Seriam
senadores biônicos, amigos do rei, indicados pelo presidente.
Ditadura
não queria correr riscos na eleição do ano seguinte...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
11
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: troca de guarda,
sai ACM, entra
Roberto Santos, a Bahia
respira,
Alagoinhas em disputa,
acompanha
Judélio à cidade, decisão MDB.
No
Brasil, sinais de mudança.
Bahia,
também.
Mudança
de guarda, consequências.
Geisel
não ia muito com os cornos de ACM.
Governador,
vocês sabem, não rimava com voto direto.
Ditador,
escolhia.
ACM
esperava, babando.
Com
alguma consciência, sentia a aragem: novos ventos soprando.
Geisel
manda ver: governador seria Roberto Santos.
Para
não deixar ACM no sereno, manda-o para a Eletrobras, essa agora a ser
privatizada pelo atual governo.
Não
foi um bom momento para o velho mandachuva aquele 1974, nem o ano seguinte,
1975.
Ele,
no entanto, sabia se mexer.
Tinha
fôlego, sabia cultivar, babar os militares, mimoseá-los, e voltaria na troca de guarda seguinte, 1979.
Adiantando-me:
a chegada de Roberto Santos, com ditadura e tudo, foi recebida com suspiros de
alívio.
Não
era homem de perseguições.
O
"Jornal da Bahia", vítima de cruzada implacável do velho soba, pôde
respirar.
A
ciência se viu mais prestigiada, como a Educação.
Um
estilo novo, bem mais ameno.
Ninguém
se iludia: sabia da existência da sobredeterminação da ditadura, suas garras
impiedosas.
Uma
coisa, no entanto, era ACM.
Outra,
Roberto.
O
diabo mora é nos detalhes.
E
Alagoinhas?
Na
leitura de Navarrinho, as coisas por lá andavam complicadas.
O
MDB perdeu a família Maia, tradicional na política local.
Estava
isolado.
Ele,
já inteiramente devotado ao jornalismo.
Naquele
1974, Judélio Carmo, sempre a pensar naquilo, o procura em Salvador.
Diz:
precisamos de você em Alagoinhas.
Afirma:
você é o melhor nome para prefeito.
Convida-o
a acompanhá-lo.
Haveria
votação decisiva sobre quem seria o candidato.
Navarrinho,
só assuntando.
Aceitou
o convite - apenas para a votação decisiva.
O
resto, resto.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho
acompanhava
Judélio Carmo em
viagem a
Alagoinhas, já havia se
decidido pelo
jornalismo,
seu companheiro
de viagem
doido pra ser o
candidato.
Navarrinho
ouvia Judélio Carmo pelo caminho.
Com
a corda toda, o companheiro de viagem só pensava naquilo: queria ser o
candidato a prefeito.
Sempre
pensou nisso.
Habilidoso,
dizia, no entanto: melhor candidato é você.
Quiser,
e será.
Navarrinho,
assentindo.
Até
certo ponto.
Dizia:
não quero.
Judélio,
claro, desconfiava.
Coisas
da política.
Resquícios
da escola do velho PSD: se alguém disser não, crave sim.
Nesse
caso, era verdade: não era não.
Judélio,
obstinado:
-
Bem, se você não quiser, eu serei candidato, e quero seu apoio.
Navarrinho
havia dado um giro na vida.
Claro,
aqui, acolá, no pensamento, uma ponta de dúvida.
Por
que não ser prefeito de uma cidade da importância de Alagoinhas?
Honra
danada.
E
os seus companheiros, aqueles acostumados a segui-lo, a juventude entusiasmada,
os ferroviários, os intelectuais da cidade, queriam-no candidato.
Havia
evidenciado carisma, e num MDB relativamente isolado, isso era essencial para a
vitória.
Pensava
em tudo isso, sensibiliza-se com tantas demonstrações de apreço.
Mas
na real, na real, não queria.
Em
1974, já estava no Estadão - essa é
história ainda a ser contada, mas já adiantamos.
Gostando
e muito da profissão.
Encontrou
seu caminho.
Não
tivesse encontrado vocação nas duas tentativas de seminário, encontrava-a
agora.
Apaixonou-se
pelo jornalismo.
E
além de tudo, casou-se, e aí a vida muda pra valer.
E
Popoya não queria nem ouvir falar nisso, nessa história de candidatura a
prefeito - era ele dar qualquer palavra em torno do assunto, e ela mandava
parar, e Navarrinho, besta nem nada, parava: tem homem acostumado a não
desafiar a mulher, os mais sábios.
Então,
acompanhava seu companheiro a Alagoinhas disposto a ajudar a reestruturar o MDB e a contribuir para a
candidatura dele a prefeito.
Nada
mais.
Disputar
a indicação, não...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho ao lado de
Judélio Carmo,
deixa cartas de apoio,
decide-se
definitivamente pelo jornalismo,
política
lhe dá régua e compasso para
novo passo, lado
a lado com os pais.
Navarrinho
desembarcou em Alagoinhas decidido.
Não
seria candidato.
Jornalismo
era seu caminho a partir de agora.
Sem
retorno.
Então,
ajudou na rearticulação do MDB, apoiou Judélio Carmo para prefeito, deixou
carta de apoio, outra para um candidato a vereador, Xavier, não lembra
sobrenome, ele se elegeu - era secretário dele na entidade estudantil.
Judélio,
vocês sabem, se elegeu, e logo logo sofrerá um processo de impeachment
articulado pela direita, de repercussão nacional.
Será
afastado da Prefeitura, tudo isso com o carimbo da família Azi.
Eu
próprio, em 1975, novo, novo no jornalismo, no "Jornal da Bahia",
farei a cobertura do impeachment.
Durou
pouco essa primeira gestão de Judélio Carmo - a direita, podendo, sempre dá o
golpe.
Ele
voltará, no entanto, mas aí é outra história.
Estava
encerrado um capítulo na vida de Navarrinho.
Aos
29 anos, definia seu norte.
A
política lhe dera régua e compasso.
Contribuíra
decisivamente para sua formação cidadã.
Por
ela, situado no campo da esquerda.
No
território das ideias progressistas.
Base
para sua nova caminhada.
Soubesse
ou não, o jornalismo era também uma tribuna.
Delicada,
perigosa tribuna.
A
exigir fortes compromissos éticos.
Sobretudo
com a verdade, viesse ela de onde viesse.
Difícil
de ser encontrada, mas uma utopia a ser buscada a cada dia.
Essa
formação ética, tivera: se é certo ter a política contribuído, não foi apenas
ela a lhe dar essa base: o pai e a mãe, de modo especial, lhe transmitiram
valores essenciais, jamais abandonados.
O
contador de histórias vai e volta, porque a vida não tem linha reta.
Se
é preciso falar do Navarrinho jornalista, e estamos chegando agora a isto
depois de alguns meses mergulhados na trajetória dele, temos de recuar um pouco
no tempo.
Surpreendê-lo
bem jovem, volver a los diecisiete, quando a política o joga nos braços do
jornalismo, ainda titubeante...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: campanha de
Tarcilo Vieira
de Melo, gigante das
lutas
democráticas desde 1946,
deputado várias
vezes, secretário
de Educação,
opositor à ditadura,
Navarrinho
envolvido.
Corria
1962.
Campanha
de Tarcilo Vieira de Melo.
Candidato
a deputado federal pelo PSD.
Juventude
de Alagoinhas, envolvida.
Navarrinho
a todo vapor.
Tem
jeito, não.
Uma
voz me sussurra, sempre ela: apresente o homem.
Contextualize.
Bom
saber quem Navarrinho estava apoiando.
Vieira
de Melo merece.
Nascido
em Barreiras, mesmo berço de Antônio Balbino.
Um
dos fundadores do PSD, em 1945.
Deputado
constituinte pela Bahia em 1946.
Deputado
federal, ainda, entre 1955-1959, e entre 1963-1967.
Secretário
de Educação de Otávio Mangabeira e de Régis Pacheco.
Líder
de Juscelino, opôs-se à ditadura, foi um dos articuladores da Frente Ampla, já
então no MDB.
Era
extraordinário orador - testemunho de Waldir Pires.
Afonso
Arinos o qualificava como "o maior parlamentar brasileiro desde
1930".
Obviamente,
lato senso, de esquerda.
Um
ardoroso, convicto defensor das liberdades democráticas.
Morre
em 1970, atropelado, no Rio de Janeiro.
Por
falar nele, e abusando da paciência do leitor, falo de passagem sobre essa
eleição de 1962, quando um obstinado Waldir Pires torna-se candidato a
governador.
Os
caciques do PSD não topavam a parada, entre eles o próprio Vieira de Melo.
Ele
dizia:
-
Deixa o menino enfrentar. Ao menos teremos uma campanha movimentada.
Tiveram.
Waldir
perdeu por apenas cinco pontos percentuais, sobretudo devido à movimentação conservadora
da Igreja Católica, de braços dados com Lomanto Júnior, o vencedor.
Era
esse gigante o candidato da moçada de esquerda de Alagoinhas.
Nessa
esteira, começava a nascer o jornalista.
A
coligação liderada pelo PSD apresentou a Navarrinho a proposta de fazer um
programa de rádio: A voz do estudante.
Movimentava
a campanha, e dava alguma visibilidade às lideranças estudantis.
Inteligente
iniciativa do PSD.
Navarrinho
topou...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Minha memória
olfativa veio junto com a visão dos cartazes de Lomanto, nos meus então
imberbes cinco anos de idade. Lembro até hoje do cheiro da tinta dos
cartazes...E de um jingle chiclete... 'Lomanto alegria do povo..."...Acho
quiera assim.
Paulo Renan Santos: Caiu da cama,
quebrou o ovo". Esse era o complemento. É era esperança do povo
Jorginho Ramos: Vieira de Melo
foi um dos maiores tribunos do seu tempo. Os embates entre ele, líder do
governo JK, e Carlos Lacerda, outro excelente orador e o maior nome da oposição
, na tribuna da Câmara foram antológicos, verdadeiros duelos verbais e atraía
todas as atenções, do plenário, da área reservada para a imprensa e das
galerias. Ambos tinham grande cultura política e sabiam manejar as palavras.
Ele morreu em 1970, atropelado por um fusca, à noite, em frente ao prédio onde
morava, no Rio de Janeiro. Tinha vindo de uma reunião política e a rua estava
semideserta...O motorista fugiu sem dar socorro... circunstâncias
misteriosas...em tempos de ditadura e intensa repressão a morte foi considerada
suspeita mas as investigações não avançaram. Era muito ligado a JK e embora não
estivesse cassado estava sem mandato e era muito articulador ! Vieira de Melo
foi um dinâmico Secretário de Obras do governador Juracy Magalhães e foi quem
executou a construção da Avenida Contorno e da antiga Rodoviária, próximo ao
Largo das Sete Portas. Era tio de Sérgio Vieira de Melo, o grande embaixador
brasileiro na ONU, que morreu num atentado em 2003 no Iraque. Sergio Vieira de
Melo dirigiu com muita competência a área da ONU voltada para combater abusos
aos direitos humanos e stava muito cotado para ser o próximo Secretário Geral
da ONU quando ocorreu a explosão.
Emiliano
José: Jorginho Ramos muito obrigado, meu velho
Jorginho Ramos: Outro traço
característico dele era a sua visão de Democracia. Com a Ditadura, ele passou a
ser uma referência no Congresso de luta pela restauração da legalidade. Achava
que para isso era necessário a União de TODOS os democratas. Foi um dos
articuladores com Carlos Lacerda, seu maior oponente na Câmara, da Frente
Ampla. Articulou para que JK recebesse no exílio a visita de Lacerda,
arquirivais célebres, em nome da restauração da Democracia. Do outro lado,
Doutel de Andrade, trabalhista histórico, fez o mesmos relação a JANGO, que com
seu coração generoso abriu a porta de sua casa no Uruguai e recebeu para um
almoço o homem que tinha conspirado contra ele e o líder CIVIL do golpe que o
depôs. Todos colocaram suas diferenças de lado em favor da Democracia. Lacerda
pagou caro por seu passado de conspirador (contra os governos de Getúlio, JK e
Jango) mas mesmo tardiamente aderiu à Democracia. Vieira (PSD) Doutel(PTB) e
Lacerda (UDN) foram os principais nomes da Frente Ampla, uma tentativa de fazer
o Brasil voltar a trilhar a Democracia. Lacerda e Doutel foram cassados e
Vieira de Melo escapou por pouco (o nome dele estava na lista entregue a
Castelo Brabco...) A História ensina que só a união de todos os democratas -
mesmo que existam diferenças entre eles - pode salvar Democracia !
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(Equipe da Rádio Emissora de Alagoinhas ZYN26, programa A Voz do Estudante, apresentado por Navarrinho (terceiro da direita) na década de 70: os dois da ponta direita são os radialistas Marco Aurélio e Antônio Vieira; o aniversariante Georginho; Manoel Serapião, que se consagrou como árbitro de futebol e juiz do trabalho; o penúltimo é o diretor da rádio Célio Machad)
Emiliano José
15
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Navarrinho começa
com A voz do
estudante. Depois, com o N26.
Noticiário local
e estadual e nacional. Baseado nos jornais, sucesso na cidade.
Navarrinho
topou.
Fazer
A voz do estudante.
Programa
radiofônico
De
variedades, nada muito arrumadinho, não.
Juntou
dois ou três amigos, e tocou o pau.
Dava
visibilidade aos estudantes, e contribuía com a campanha.
Passada
a eleição, Navarrinho tomou gosto.
E
foi atrás de seu desejo.
O
diretor da rádio, Célio Ribeiro.
Rádio
Emissora de Alagoinhas, prefixo ZYN26.
Ousado,
sem qualquer formação específica, Navarrinho propõe ao diretor fazer um
programa noticioso.
Seria
algo novo para Alagoinhas, inédito.
Chegavam
os jornais - os leitores, estes, então se informavam.
Os
ouvintes da emissora ficavam no prejuízo, ao menos aquela maioria não
acostumada à leitura dos jornais.
Alguns
poucos, além dos jornais, ouviam a Rádio Globo, do Rio de Janeiro, e se informavam
mais.
Raríssimos,
tinham televisão, e desfrutavam do noticiário.
O povão, chupando o dedo.
Assim,
pensou Navarrinho, havia um espaço a ser
ocupado.
Pensou
e disse a Ribeiro.
Diretor
abraça a ideia.
E
surge o Noticiário N26.
Além
das notícias locais, onde os bairros tinham prioridade, Navarrinho seguia um
modelo ainda muito praticado atualmente por emissoras de rádio país afora: lia
o noticiário dos jornais.
Notadamente,
do "Jornal da Bahia".
Por
uma razão: "A Tarde" chegava e rapidamente sumia das bancas.
De
longe, o preferido à época.
Foi
por décadas e décadas o jornal majoritário da Bahia.
Assim,
era mais fácil correr à banca e pegar o
"Jornal da Bahia", cuja demora nas bancas era maior.
Era
a banca de seu Solon Barros, famosa.
Solon
Barros, conhecendo Navarrinho, emprestava-lhe ainda jornais comunistas, como
"Novos Rumos", e publicações dos sindicatos, lidos às escondidas.
Não
custa lembrar, nesses tempos tão velozes: os jornais chegavam atrasados a
Alagoinhas, dois ou três dias depois de
impressos.
Então,
era noticiário atrasado.
Mal
ou bem, no entanto, a população era informada.
Um
sucesso, o programa.
Tomou
importância, ganhou dimensão inesperada...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Radialista
(sério) ...Mais um motivo preu gostar de Navarrinho !
Carlos Navarro: Obrigado.
Sempre gostei de rádio Carmel, quando estava no Grupo OESP criei um produto
para transmissão de noticia por telefone ponto-a-ponto, naquele tempo não tinha
internet. E em campanhas usei muito as rádios comunitárias, inclusive as de
poste, o bom e velho alto-falante.
Artur Carmel: Que massa,
utilizar as radios de poste nas campanhas ! Cresci - toda minha geração -
ouvindo rádio e tive a sorte de trabalhar na área. E ainda trabalho - quando me
chamam - nas campanhas de marketing político.. Abraço ! 🙏
Isabel Santos: Esse
Navarrinho não é brincadeira não. Parece um polvo rssss. Também gosto muito do
rádio, Artur Carmel, inclusive, meu primeiro estágio foi na Rádio Sociedade da
Bahia, onde, certa vez, me deparei com querida Rita Lee, entrando na emissora,
sozinha, provavelmente correndo atrás de divulgação, pois ainda não era famosa,
a nossa ídola.
Mônica Bichara: A cada dia uma
surpresa, esse é Navarrinho. E Emiliano José desfiando o novelo e fazendo a
memória vir à tona
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Emiliano José
16
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: programa cresce,
por ligação com
os bairros, por noticiário
advindo
dos jornais, guerra do Vietnã,
Navarrinho
começa também a escrever crônicas.
O
programa, crescendo na opinião pública.
Navarrinho
se entusiasmando.
Havia
razões.
A
ligação com os bairros.
Sensível,
ele, como dizem hoje, humanizava o programa.
Compreendia
o jornalismo como singularidade.
Cada
pessoa devia ser revelada.
Cada
dona de casa.
João,
Maria, José.
Vendedor
de banana, carroceiro, amolador de faca, vendedor de picolé, entregador de
leite.
Com
suas alegrias e suas dores.
O
médico de bairro, valorizado.
Isso
foi enraizando o Noticiário N26.
E
olhe: o noticiário local ocupava no máximo um terço do programa.
O
restante, noticiário nacional e internacional, a partir da leitura dos jornais
– como se sabe, chegavam atrasados a Alagoinhas, mas suporte essencial.
E
para Navarrinho, havia uma prioridade: guerra do Vietnã.
E
ele ia deixar escapar a chance de espinafrar os americanos?
No
N26, Navarrinho pôde sentir o quanto tivera de régua e compasso com a
militância política.
A
fala saía fácil, articulava com tranquilidade.
Lembra
lendo apenas o lead, e dando sequência, sem nada escrito.
A
tribuna da atividade política o preparara para a vida, ao menos para aquele
início de jornalismo.
Deitava
e rolava com a guerra do Vietnã.
Ênfase,
claro, nas ações vitoriosas do Vietcong.
Recorda
da empostação de voz quando falava SAIGON, onde estavam acantonadas as tropas
americanas.
Experiência
rica, vasto aprendizado.
Compreendeu
ali o quanto o rádio permitia de simulação.
Navarrinho
falava, na abertura, ou logo após os intervalos, da qualidade e do intenso
trabalho da equipe de sonoplastas, repórteres, redatores.
E
a equipe era quase ele só.
Quase
por conta do sonoplasta.
Não,
não ia revelar o segredo - melhor dar impressão de grandeza.
Podia
se alegrar: por dois ou três anos, o N26 era o noticiário premiado, com entrega
de diploma e tudo, vencedor.
Pudera:
era o único da cidade.
Simultaneamente,
Navarrinho, começava a escrever.
Para
a revista “Cometa” e para o “Alagoinhas Jornal”, iniciativa de um vereador de
direita, Valter Campos, sujeito arejado, sem ranços.
Não
fazia matérias, propriamente.
Cronista,
perseguia o estilo de um Stanislaw Ponte Preta, à semelhança de um João Ubaldo
Ribeiro, então no “Jornal da Bahia”.
Nascia
o jornalista, não obstante não tivesse talvez consciência disso porque vai
mergulhar na vida parlamentar, de curta duração.
Depois
disso, da experiência como vereador, virá o jornalismo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Navarrinho com trabalhador na lavoura do sisal - Foto Agliberto Lima)
Emiliano José
17
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: fim do programa
em 1967, passa
no vestibular, procura
emprego, começa
no “Jornal da Bahia”,
sem lenço, nem
documento,
dinheiro só o da
caixinha.
O
programa de rádio, Noticiário N26, durou até 1967, quando Navarrinho assume o
mandato de vereador pelo MDB.
Por
falta de experiência, de traquejo, considerou não ser de bom tom exercer o
mandato de vereador e simultaneamente apresentar um programa de rádio.
Podia
perfeitamente ter mantido a atividade na emissora, tentando ser rigoroso,
observando os princípios éticos do jornalismo e as boas práticas da política.
Preferiu
não.
Não
houve qualquer interferência externa,
proibição, nada.
Decisão
moral, ética.
Mandato,
AI-5, ingresso na UFBA, fim de 1968.
Procura
Gabino Kruschewsky, eleito deputado estadual em 1966 pelo MDB.
Havia
feito a campanha dele.
Disse-lhe
da situação pessoal: passei no vestibular, AI-5 está aí, você sabe.
-
Pronto. Então você já vai começar a trabalhar. Assembleia Legislativa, pertinho
da Praça da Sé – precisamente no prédio onde funciona atualmente a Associação Bahiana
de Imprensa (ABI).
Kruschewsky
o apresentou ao jornalista Orlando Garcia, do “Jornal da Bahia” e de
Alagoinhas:
-
Esse menino aqui é um vereador de Alagoinhas, meu amigo. Passou no vestibular
de Jornalismo, e quer começar a vida na profissão.
Orlando
Garcia, nem pestanejou:
-
Deixa comigo.
Marcou
encontro com Navarrinho, no mesmo dia, no “Jornal da Bahia”.
Era
fim de tarde, e Navarrinho a postos na portaria do jornal, esperando a chegada
dele.
Subiram
juntos para o primeiro andar, atravessaram toda a barulhenta redação,
dirigindo-se aos aquários de João Carlos Teixeira Gomes (Joca), redator-chefe,
e de Rafael Pastore, secretário.
Orlando
Garcia dirigiu-se a Joca, explicou, passou no vestibular de Jornalismo, é amigo
meu, a história ouvida de Kruschewsky.
Foi
incisivo, tinha intimidade com Joca para tanto:
-
Vamos botar ele pra trabalhar aqui.
Joca
olhou pra Navarrinho:
-
Como é seu nome?
Respondeu,
um pouco tenso.
Depois
de uns arrodeios, Joca ditou sentença:
-
Vamos começar, então.
Assim,
antes mesmo de as aulas começarem na Escola de Biblioteconomia e Comunicação
(EBC), Navarrinho deu a arrancada na carreira de jornalista.
Sem
contrato, sem carteira assinada, sem lenço, nem documento.
Até
meados de 1969, deu duro sem receber tostão.
Salvação
era a caixinha.
O
escasso dinheirinho recebido para fazer matérias, ir atrás das fontes.
Saída
era suar na paleta, nada de condução.
Andar
muito a pé para não gastar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Luiz Brasileiro: Cabra bom este
Navarrinho... Só vejo coisa boa dele aqui.
Emiliano José: Luiz
Brasileiro, puro merecimento
Jorginho Ramos: Observação :
No prédio referido, onde a Assembleia estava instalada, NÃO "funciona
atualmente a ABI". O termo é impróprio. O prédio é da ABI, foi inaugurado
em 1962 para sede da instituição, e alguns andares (o 4° principalmente, onde
funcionava o plenário...) foram alugados à Assembleia Legislativa. Com o golpe
militar de 1964 e a repressão que se seguiu o Edifício Ranulpho Oliveira foi
cercado e invadido em 1966 por tropas do Exército para prender o então deputado
estadual (PSB) Sebastião Nery. O que não ocorreu porque ele havia fugido.
Outros deputados estaduais, colegas dele de magistratura, foram igualmente
cassados : Luiz Leal, Ênio Mendes, Osório Villas Boas, Marcelo Duarte, Padre
Palmeira. Todos exerciam o mandato naquele prédio.
Emiliano José: Muito bom,
Jorginho.
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Emiliano José
18
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: caixinha e sorte
de ter Mariazinha do Boqueirão
como mãe,
família em Salvador,
obrigado a se
virar nos trinta,
atender reclamos
do jornal e da EBC.
Sorte
de Navarrinho, ter aquela mãe: Mariazinha do Boqueirão.
De
guerras, não é?
Precisasse
de trabucos, nunca vacilou.
Quem
não sabe, volte um pouco atrás nessa história, e conhecerá.
Pense
numa mulher determinada.
Ele,
Navarrinho, a partir de 1970, não dependeu exclusivamente da caixinha para
viver por conta exatamente de Mariazinha.
Lembro-me,
logo ao sair da prisão, final de 1974, no pouco espaço de tempo sem contrato,
dependi da caixinha para sobreviver, eu e Mércia, grávida de Teo.
Muita
gente no "Jornal da Bahia", naquele 1969, vivia, por bom tempo, do
dinheiro daquela caixinha, milagrosos trocados, parecia coisa do Evangelho,
multiplicação dos pães.
Navarrinho
curtiu bom aperto em 1969, morando num pensionato.
Em
1970, Mariazinha, sempre de olho nas
crias, resolveu sair de Alagoinhas, estabelecer-se em Salvador.
Foi
a salvação da lavoura - colo da mãe, sempre
bom.
Colo
e comida.
Marina,
irmã, havia também passado no vestibular no fim de 1968 - Letras.
Dois
filhos na universidade, melhor acompanhá-los, dar cobertura.
Pensou
um tempo, alugou a casa dela em Alagoinhas e mudou-se para um apartamento na
Joana Angélica, defronte do Convento da Lapa, próximo ao Colégio Central.
Navarrinho
tinha de se virar nos trinta.
Cumprir
as pautas do dia e as disciplinas da Escola de Biblioteconomia e Comunicação.
Cabem
duas ou três palavras sobre a EBC.
Eu,
besta nem nada, fui atrás do professor Othon Jambeiro, mestre de tantas
gerações, até hoje mestre.
Todos
sabem: a partir de 1968, implantada a reforma universitária, contra a qual
lutamos, nós, do movimento estudantil à época.
Salvador
e Juiz de Fora, as primeiras cidades a colocá-la em prática.
Duas
possibilidades de reorganização da estrutura das universidades federais:
transformar-se em centros ou manter a estrutura de escolas e faculdades.
A
UFBA decidiu-se por manter a estrutura.
Até
porque era enorme a resistência das faculdades de Direito, Medicina e
Politécnica em serem extintas.
Não
obstante, foram sepultadas as cátedras e implantados departamentos, nos quais
estariam os professores de cada disciplina, independentemente das faculdades
onde davam aula.
Exemplo:
os professores de Matemática, cujas aulas eram dadas na Politécnica, em
Arquitetura, na Faculdade de Ciências Econômicas, passaram a ser, todos,
lotados no novo Instituto de Matemática.
Era
essa a nova regra.
No
caso do curso de Jornalismo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Artur Carmel: Quantos
lutaram por esse diploma de Jornalista, eu incluso. Para depois vir um
sacripanta, de uma canetada, suprimir a obrigação do que tanto custou a muitos.
E o pior: sob o olhar cúmplice - por não terem se manifestado - dos democratas
( ) que comandavam o país, à época.
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Emiliano José
19
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: reforma
universitária
leva à criação da EBC,
Navarrinho
se virando,
estudo, trabalho
no “Jornal da
Bahia”, sessões
da vereança,
coluna de
Alagoinhas, diabo a quatro.
Com
a reforma universitária de 1968, Jornalismo sofria consequências.
O
curso fazia parte da Faculdade de Filosofia.
Com
a reforma, Jornalismo era obrigado a fazer parte de outra faculdade porque o
Conselho Universitário havia decidido restringir a Faculdade de Filosofia
apenas às chamadas Humanidades: Filosofia, Antropologia, História, Ciência
Política, Psicologia e Sociologia.
Puxa,
estica, e o Conselho Universitário decidiu: Jornalismo e Biblioteconomia
trabalhavam com informação.
Então,
havia uma lógica a fundamentar a junção dos dois cursos em uma só Escola.
Já
existia a Escola de Biblioteconomia e Documentação.
Só
substituir Documentação por Comunicação – simples assim: como brinca Othon
Jambeiro, até rimava.
Ambas
as partes, estrilaram.
Biblioteconomia,
duramente.
Famosa
a grita da famosa professora Felisbela de Carvalho, dona Belita, conhecida por
ser amiga de Edgar Santos.
Jornalismo,
principalmente pelas vozes de Florisvaldo Mattos, Milton Caires de Brito e Ari
Guimarães.
Argumento:
assim como havia feito a Universidade de Brasília, a UFBA deveria criar uma
Faculdade de Comunicação, seguindo tendência universal.
Dona
Belita venceu.
Em
1969, os dois cursos começaram o ano letivo juntos, funcionando a Escola de
Biblioteconomia e Comunicação (EBC) provisoriamente no Canela, onde atualmente
funciona a Secretaria Geral de Cursos.
Diretora
pró-tempore, professora Maria Stela Santos Pita Leite, do Departamento de
Biblioteconomia, com a missão de organizar a nova unidade universitária.
Criado
o Departamento de Jornalismo, onde restaram abrigados os professores
remanescentes do antigo curso.
Somente
em 1977, o curso de Jornalismo foi retirado da EBC para constituir a Faculdade
de Comunicação, hoje com três cursos de graduação: Jornalismo, Produção
Cultural e Cinema.
E
um Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporânea, com
Mestrado e Doutorado.
De
passagem, lembro: fui professor na Faculdade de Comunicação de 1983 a 2008,
quando me aposentei, juntando tempos, como se diz.
Lá,
fiz Mestrado e Doutorado.
Também
de passagem, lembro: Florisvaldo Mattos participou da banca examinadora, em
1982, a me aprovar para a docência na Facom.
E
Othon Jambeiro foi um de meus mestres.
Navarrinho
iniciou na velha EBC, em 1969.
Almoçava
um acarajé com coca-cola na Barroquinha mesmo, e seguia para a escola.
Naquele
primeiro ano, 1969, ainda exercia o mandato de vereador, ia e voltava, duas sessões por semana.
E
fazia uma coluna no “Jornal da Bahia” denominada “Em Alagoinhas Acontece”,
justificando o salário recebido por ser assessor de comunicação da prefeitura.
Quando
ia às sessões, bancava o repórter, e abastecia a coluna.
Tenho
de retificar: Navarrinho, nesse primeiro ano de 1969, não passava tanto aperto,
não.
Se
virava com os trocados recebidos como assessor de imprensa da Prefeitura de
Alagoinhas.
Mandato
de vereador então não era remunerado, ao menos para municípios do porte de
Alagoinhas.
No
final de 1969, procurou o prefeito Antônio Carneiro e pediu demissão do cargo
de assessor.
Já
havia sido contratado pelo “Jornal da Bahia” e a atividade como assessor de
comunciação podia abrir flancos, dar munição à oposição para ataques.
Em
1970, a vida complicou...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Mestre Mil,
fui seu aluno, ainda na EBC...De 1981 a 84....Acho que EBC virou FACOM em
1987...A confiirmar.
Emiliano José: Grande Carmel,
tbm fiquei em dúvida. Acompanhei informação de Othon. Vamos checar. Abração.
Graça Azevedo: Permita-me,
mestre. Em 1968 não havia Antropologia e Ciência Politica. Ambas faziam parte
do curso de Ciências Sociais.
Havia
também o curso de Geografia.
Emiliano José: Querida Graça.
A gente vai corrigindo. Foi o mestre Othon Jambeiro a me enviar gentilmente um
despretensioso texto. Pode ter se equivocado. Muito obrigado. Registrado.
Graça
Azevedo: Eu era aluna na época! Na minha linda faculdade que hoje é a sede do
MP.
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Emiliano José
20
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: acúmulo de atividades,
licença do
mandato de vereador, sucesso
no
vestibular, jornalista e aluno,
os ótimos
professores da EBC.
Em
1970, Navarrinho continuou mais alguns meses exercendo o mandato de vereador,
mas sentindo dificuldade para compatibilizar
tanta coisa.
Dar
conta do "Jornal da Bahia", agora contratado, responsabilidade maior,
obrigado a cumprir duas, três pautas diárias.
Do
curso de Jornalismo, na EBC.
E
ainda por cima, ir duas vezes por semana a Alagoinhas para cumprir as tarefas
da vereança - a mãe em Salvador, tudo complicado quando chegava lá, a casa
entregue a Goroba, irmão mais novo, protagonista do último romance de
Navarrinho.
Vocês
sabem, mãe ausente, caos.
Pediu
licença do mandato, então.
A
experiência na EBC foi rica.
Ótimos
professores.
Com
receio de citar nomes, cita um: Raul Sá, mestre de português.
Já
tinha boa base por conta do latim nos seminários.
Porém,
escrever mesmo aprendeu com o velho Raul Sá, com quem também tive ainda a graça
de ter aulas ali no prédio da antiga Faculdade de Filosofia, onde hoje funciona
parte do Ministério Público.
Professor
de Estilística da Língua Portuguesa.
Daqueles
velhos mestres, um sábio.
Com ele, aprendeu a identificar terríveis vícios
de linguagem.
Nunca
mais aceitou um "a nível de"...
Pra
não ser injusto, acrescenta Florisvaldo Mattos, Antônio Loureiro, João Carlos
Teixeira Gomes, Carlos Libório, Consuelo Pondé, Ari Guimarães, Fernando Rocha
Peres, Fernando Rocha ou Fernando Bananeira, como conhecido.
Bananeira
me presenteou com uma coleção da revista "Problemas", do PCB - assim,
de repente, perguntou se eu queria, aceitei, claro.
Não
estranhem a presença de professores não vinculados especificamente ao
Jornalismo - os alunos de Jornalismo, então, tinham aulas em outras unidades, e
de matérias diversificadas.
Ainda
alcancei essa fase como aluno.
Tive
aulas de Filosofia em São Lázaro, com o inesquecível Fernando Rego.
Ainda
se recorda do vestibular.
Surpreendeu
todo mundo, e algumas coisas facilitaram.
Fazer
francês, por exemplo.
Dominava
mais, herança do seminário, e implicava com inglês, "língua do
imperialismo".
História
sempre o encantou, e aí também foi muito bem.
Português,
era bom, embora não tivesse lido livro nenhum dos indicados.
Por
pura sorte, e graças ao olhar apurado, em frente a ele, no Balbininho, onde
aconteceu a prova, sentou menina conhecida, o cão de calçolão, havia lido todos
os livros.
Na
redação, foi bem.
Para
as cruzinhas relativas aos livros, só olhar, colar o feito pela menina, e aí
foi só correr pro abraço.
Notas
altas em Francês, História, Português compensaram desempenho mais fraco em
outras, daí o sucesso no vestibular.
Era
pós-AI-5, e logo no primeiro semestre, 1969...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: tiras espalhados
pela
Universidade, rotina do pós-AI-5,
vários na EBC,
alguns flagrados, Navarrinho,
repórter,
cobrindo Polícia Federal, localiza alguns deles.
Navarrinho
levou um susto logo ao chegar à Universidade.
Susto,
talvez não.
Sabia:
estava sob uma ditadura.
Restava
nua, com o AI-5.
Muito
feia.
E
ia piorar, dia a dia.
Susto,
chamei assim, porque logo percebeu a existência de tiras dentro da própria EBC.
Vamos
nos entender.
A
ditadura criou um aparatoso sistema de segurança por todo o País, destinado a
vigiar a cidadania, querendo, quem sabe, organizar uma espécie de Big Brother
para acompanhar os passos de quem se dispusesse a enfrentá-la.
Um
sistema de grande capilaridade.
O
SNI tinha suas agências regionais.
As
Divisões de Segurança e Informações (DSI), em cada ministério civil.
E
as Assessorias de Segurança e Informação (ASI), existentes em cada órgão
público e autarquia federal.
Os
infiltrados nas escolas integravam as ASI.
A
primeira coisa a ser percebida por Navarrinho, na EBC, assim de cara, foi a
existência de infiltrados, integrantes da ASI.
Destacavam-se,
por estranhos.
Lembra
de um deles - troncudo, forte, ele quase escorrega e diz gordinho, recuou e
renomeou troncudo.
Era
tão estranho, tão a ponto de logo ser descoberto.
A
moçada o provocava, fazia-o ir atrás de pistas falsas, e logo logo foi
desmoralizado.
Sumiu,
ninguém sabe ninguém viu.
Navarrinho,
repórter, algumas vezes cobria Polícia Federal.
Nessas
idas, repórter é bicho endiabrado, se atento, viu vários dos agentes espalhados
pela Universidade, na ASI, ou no acompanhamento do movimento estudantil, em
frente ao restaurante universitário, dando bandeira, fingindo inocência,
fumando um cigarro, assim como quem nada queria, e queria muito.
Um
dos pontos preferidos dos tiras, o Colégio de Aplicação.
Reduto
de comunistas, território da balbúrdia - virava e mexia, e reconhecia um deles,
bisbilhotando, fingindo inocência como quem nada queria, e querendo muito.
O
mar não estava pra peixe.
Navarrinho
chegou a provocar um deles, rondando o Aplicação. Tinha certeza de tê-lo visto
na sede da Polícia Federal mais de uma vez:
-
Olá, como vai?
Sujeito
respondeu todo sem jeito:
-
Tudo bem...
Navarrinho
enfiou a faca:
-
Trabalhando?
O
policial engasgou.
Dia
seguinte, evaporou.
Não
foi visto mais por ali...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Benilson Ataide: Tempos
sombrios. Fora ditadores!
Artur Carmel: Ingressei na
Economia em 77, quando a ditadura já estava um pouco mais branda, mas não menos
peçonhenta. Ainda havia presos políticos e muitos agentes e X-9 infiltrados nas
universidades. Na escola da Piedade suspeitava-se do ascensorista, do faxineiro
e até de alguns colegas.
Emiliano José
22
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: safra de tiras
sempre renovada,
começo no
"Jornal da
Bahia", Gilson Nascimento,
primeiro chefe a
gente nunca esquece.
Na
EBC, a safra variava.
Safra
de tiras.
Vinha
um.
Ficava
manjado.
Desmoralizado.
Identificado
pela moçada.
Era
retirado.
Órgãos
de segurança mandavam outro.
Não
era tão difícil identificar os infiltrados.
Sujeito
não tinha muita conversa, se enrolava quando tentava se enturmar, não dominava
a linguagem daquela juventude, e nem se dispunha a puxar um fumo embaixo da
goiabeira...
Às
vezes, arriscava falar de política, havia sido treinado pra isso, mas se
retraía todo quando a conversa derivava pro sexo, pra todo tipo de sacanagem.
Às
aulas, tira não faltava de jeito nenhum.
Atento,
sempre.
À
palavra do professor.
Às
intervenções dos alunos.
Desarmados,
estudantes podiam dar indícios de suas inclinações ideológicas.
Vida
que segue.
Chegou
ao "Jornal da Bahia", no final de 1968, dezembro.
Chegou
careca - vítima do trote na EBC.
Admitido,
nas condições de então, sem lenço nem documento, espécie de estágio,
treinamento, sem nada a receber, salvo a caixinha.
Claro,
estava acertado, começaria, bem apresentado, mas, e se fosse um desastre?
No
primeiro dia, chega ao jornal de manhã.
Depara
com Gilson Nascimento.
O
primeiro chefe de reportagem.
Aquele:
a gente nunca esquece.
Eram,
então, ele de manhã, Frederico Simões, Fred, à tarde.
Dos
dois, gratas lembranças.
Quando
cheguei ao jornal, em 1975, um era rigoroso copidesque, o outro, grande
pauteiro, a quem mais tarde substituí quando ele saiu de férias.
Gilson,
não apenas o primeiro chefe de reportagem de Navarrinho, mas também o primeiro
grande mestre de jornalismo dele.
Acontece
isso.
Meu
primeiro chefe de reportagem, José Barreto de Jesus.
E
meu primeiro grande mestre, lá pelos idos de 1974.
Gilson,
dono de um texto impecável, é testemunho de Navarrinho, subscrito por mim.
Pela
manhã, depara ainda com José Lopes da Cunha, Rafael Pastore, e o velho José
Maria Rodrigues.
Cunha
e Zé Maria, velhos companheiros de João Falcão nos tempos do PCB.
Cunha
chegou a ser Chefe de Redação - editor-chefe.
As
redações só ferviam à tarde.
De
manhã, pouca gente.
Gilson,
distribuindo as pautas.
Havia,
ainda, mais dois estudantes de jornalismo na mesma empreitada de
Navarrinho: um rapaz de Alagoas e uma
moça, não lembra os nomes...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Trabalhei com
Gilson, no Correio. Além de ótimo profissional, educadíssimo !
Emiliano José: Artur Carmel
era o avesso dos copidesques rabugentos.
Artur Carmel: Emiliano José
Conheci alguns verdadeiras almas-de-jegue...
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Emiliano José
23
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: os primeiros passos,
conhecendo os
colegas, Nó de Cana,
Rei Momo de
Biafra, Dente de Leite,
LA, tantos
outros, novo universo.
Nesse
primeiro dia, primeira manhã, vai ainda assistir à chegada de José Carlos
Mesquita, cujo apelido Navarrinho jamais esqueceu: Nó de Cana.
Parece-me
de Esportes.
Carlos
Libório também chegou pela manhã - vai comandar o jornalismo da TV Bahia por 21
anos, aposentando-se em 2008.
Luís
Carlos Alcoforado, outro a chegar, também de Esportes.
José
Amílcar, magro, alto, de inesquecível apelido: Rei Momo de Biafra.
Trabalhava
na TV Aratu, e quando a Globo entregou a concessão para ACM, em conhecido episódio
de uso abusivo do poder, no momento da chegada de Waldir Pires ao governo,
Amílcar seguiu para Brasília e fez carreira na Vênus Platinada.
Navarrinho
foi se enturmando.
Conhecerá
também o teletipista Simão Alves.
Simão,
depois ele o seguirá para o "Estadão".
Com
ele, convivi na sucursal do jornal paulista quando repórter lá - de excelente
humor.
Antônio
Luiz Guimarães Diniz - Dente de Leite - garoto novo, chegando para Esportes.
Dele,
Navarrinho se lembra bem: passou muito tempo vivendo muito tempo só da
caixinha, até se firmar.
Da
revisão, recorda-se de LA - todos nós o conhecíamos assim.
Pense
num sujeito de bem com a vida, Luis Augusto dos Santos - tive o privilégio de
conviver com ele quando cheguei ao jornal, em 1975.
Fernando
Vita, hoje Tribunal de Contas dos Municípios, cultor da língua, copidesque
rigoroso, autor de romances.
Havia
quem tremesse com ele.
Eu,
nada a reclamar.
Teve
o privilégio, também tive, de conviver com Frederico Simões de Santana - Fred.
Excepcional
chefe de reportagem, pauteiro de grande qualidade, íntegro, um raro jornalista
- um dos mestres de Navarrinho.
Dele,
recolheu inesquecíveis lições.
Um
dia, trabalhando no período da tarde, Fred lhe entrega três pautas.
Navarrinho,
jovem, impetuoso, e já se achando, levanta o nariz:
-
Fred, não vou fazer três pautas, não. Vou escolher, uma, e ponto.
Sentado,
Fred, olhou pra ele, e com sua voz serena o trouxe para o chão:
-
Navarrinho, o leitor não quer saber se você saiu com uma, duas ou quatro
pautas. O que o leitor quer saber é da qualidade da matéria. Assinadas ou não,
serão de sua responsabilidade. Faça o seu trabalho bem feito, ou você não irá
longe na profissão.
Pegou
as três pautas, cumpriu-as.
Lição
jamais esquecida.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: O exercício
diário do jornalismo é uma senhora escola de vida.
Mônica Bichara: Que saudade de
Mesquita, poxa, agora fiquei abalada. Nosso querido amigo que se foi tão cedo.
Viram isso, Jaciara Santos e Isabel Santos ?
Isabel Santos: Sim, Mônica, o
querido Mesquita. . Saudade. Aliás, este texto me trouxe muitas boas lembranças
e emoções. O meigo Fred Simões, que figura. Ele foi tudo o que está sendo dito
dele e muito mais. Também senti muito a sua partida. A trajetória de Navarrinho
é um tesouro. Tem sido muito bom acompanhar a, como sempre, criativa e poética
narrativa de Emiliano.
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(Foto: Agliberto Lima - Navarrinho em início de carreira)
Emiliano José
24
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: em busca do tempo
perdido, tantas
pessoas conhecidas
voltam à memória,
velho "Jornal da Bahia".
Pois
é: repórter novo, foca, ralar.
Receita
pra aprender.
Como
dizia Fred Simões a Navarrinho: ninguém quer saber se o patrão lhe paga mal, se
as condições de trabalho são precárias, se a vida é dura, se a caixinha é
pequena.
Nada.
Quer
a notícia.
E
o repórter trate de se esmerar na apuração, na investigação, na conversa com as
fontes, no tempero das diversas visões, na ética do tratamento das informações
à mão.
Navarrinho,
naquele início, aprendeu a lição do mestre, do velho Fred, morto precocemente
devido a um câncer de intestino.
Recolheu
a arrogância, e pela vida afora procurou orientar assim os repórteres sob seu
comando.
Isso
encerra outra lição: jornalista vende a sua força de trabalho.
Trabalho
intelectual, mas trabalho.
Produz
um valor específico, a notícia, mas produz valor.
É
explorado, como qualquer outro trabalhador.
Essa
consciência deve levá-lo a diminuir a natural propensão ao estrelato, propensão
tendente a fazê-lo esquecer-se da exploração diária.
E
ao estrelato mesmo, chegam alguns poucos.
Como
jogador de futebol, como em tantas outras profissões.
Conheceu
Gustavo Tapioca - foi do movimento estudantil, quase vai para a direção da
UBES, mas acabou casando com a filha de João Falcão, e os planos mudaram.
Sóstrates
Gentil, a quem vou encontrar mais tarde na "Tribuna da Bahia",
notável jornalista, também homem de teatro, morto precocemente num acidente,
pai de Ludmila Duarte, jornalista, hoje no Canadá, foi minha aluna um dia.
Orlando
Garcia, Samuel Celestino, Anísio Félix - lembrar: estamos o ano de 1969.
Com
Anísio, conviverei no "Jornal da Bahia" por muito tempo.
Na
sede da Barroquinha.
E
quando funcionou na Djalma Dutra.
E
também nas lides sindicais, ele durante bom tempo presidente do Sindicato dos
Jornalistas.
Navarrinho
ainda se recorda de brincadeira dele chegando na redação sentando na borda da
mesa e perguntando se tinha um emprego pra ele naquele jornal Navarrinho
levando a sério nem percebendo a gozação com o foca tão comum em redações
respondendo a sério emprego é ali com Gilson Nascimento Frederico Simões ou
Rafael Pastore né comigo não...
Velho
Anísio sai com um risinho de canto de boca.
Velho
Anísio, vida inteira no Continental sem filtro...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: puxando pela memória,
dia da primeira
matéria, primeiro escorregão,
compreendendo o
longo caminho pela frente.
Navarrinho
puxa pela memória.
Eram
do seu tempo, e do meu, Newton Sobral e Hellington Rangel, dois dos grandes do
jornalismo baiano, grandes já à época.
Também
estava lá, novinha, Mariluce Moura - virá a ser uma das mais talentosas
jornalistas brasileiras.
Viverá
a tragédia de perder seu companheiro, Gildo Macedo Lacerda, morto pela ditadura
em 1973, a quem ela nunca pôde enterrar, por desaparecido.
Ela
também presa, grávida de Tessa.
Viera
também da EBC, um pouco depois de Navarrinho.
Junto
com ela, da fornada da EBC, desembarcam no "Jornal da Bahia", no mesmo
período, Aninha Sampaio, Lúcia Ferreira, gente nova chegando, impulsionada pela
força da regulamentação da profissão, a exigir diploma de Jornalismo para
ingressar nas redações.
Os
mais velhos, anteriores à regulamentação, eram de Direito, Filosofia, Letras,
não de Jornalismo.
Naquele
momento, começou a mudar.
Navarrinho,
dos primeiros - ainda cursando Jornalismo.
Primeira
matéria: quem esquece?
Navarrinho,
não: cobrir uma reunião na Secretaria de Segurança.
Gilson
Nascimento entregou a pauta, ele meteu as caras pra Praça da Piedade, onde
funcionava a Secretaria.
Cobriu,
voltou, escreveu a matéria.
Vamos
nos entender: Navarrinho jamais ouvira falar em lead.
Escreveu
como lhe dera na cabeça.
Dizia
"aconteceu hoje na Secretaria...", seguia com hoje sempre.
Dia
seguinte, olha a matéria publicada: outro texto.
O
lead na cabeça, o tempo modificado para ontem, naturalmente.
Chateado,
triste, quase inconsolável, foi chorar pitangas, aconselhar-se com Gilson
Nascimento.
-
Venha cá, meu filho - disse o chefe, tomando-o pelas mãos e levando-o à sala de
Rafael Pastore, secretário de Redação.
-
Rafael, veja só, o menino fez a matéria e está todo desenganado, desconsolado
porque a matéria saiu com texto diferente.
Gilson,
continuou:
-
Nunca havia entrado numa redação, nunca escrevera matéria para jornal, e já
pretende ver seu texto publicado tal e qual ele escrevera. Não é demais?
Pastore
e Gilson riram muito, sem desestimular o menino.
Ali
soube: ainda tinha muito a aprender, longo caminho pela frente.
Ao
menos naquele dia fora apresentado ao lead - dele, jamais esqueceria.
Nem
se esqueceria do tempo: o acontecido hoje é ontem.
Ao
menos era assim, no jornal impresso.
Jornalismo,
cheio de segredos e manias - levaria vida inteira aprendendo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: uma aula de Frederico
Simões pra
jamais esquecer, diagnóstico
das redações de
então, mudanças
experimentadas
pelo "Jornal da Bahia",
noticiaristas x
repórteres, pegando no tombo.
O
episódio da primeira matéria foi uma lição, dessas pra jamais se esquecer.
De
cara, um suspiro de alívio depois da conversa com Gilson Nascimento e Rafael
Pastore: não seria demitido.
Depois,
logo no dia seguinte, chega à redação e depara com Frederico Simões na Chefia
de Reportagem.
O
usual, Gilson Nascimento pela manhã.
Naquele
dia, sabe-se lá por que, Fred no lugar dele.
Destino,
talvez, e destino a favor dele, Navarrinho.
Fred
pacientemente, parecia um sacerdote franciscano, explicou-lhe os segredos do
lead, a construção da matéria, quase uma lição do que era o jornalismo moderno,
nascido já havia quase século.
Nada
mais do nariz de cera, aquele rococó todo.
Ir
direto ao assunto.
Responder
logo de cara às perguntas clássicas: o que, quem, quando, onde, como, por que.
Valeu
por um semestre de escola, ele ainda no início do curso.
Compreendeu
o que era matéria especial - um feature.
Entendeu
por onde caminhava um side - "eu lá sabia o que era tudo isso?"
E
era tudo copiado do jornalismo americano.
Os
termos, em inglês.
Lead,
superlead, e por aí seguia.
O
jornal, havia uns dois anos, passava por mudanças, por adaptações, chegando à
contemporaneidade do jornalismo mundial, na avaliação de Navarrinho.
Dois
ou três anos antes, ainda havia os setoristas: de aeroporto, de Polícia, da
Assembleia Legislativa.
Eram
os noticiaristas - ligavam pra redação com a notícia, alguém anotava, e os
redatores, copidesques davam forma.
Os
copidesques tinham, então, importância ainda maior.
A
redação conhecida por ele já será outra, quando a Reportagem Geral ganha
dimensão, a grande escola dos jornais, quando o repórter cresce em todas as
áreas, e é levado a aprender a escrever, não confiar às cegas nos copidesques,
até porque podia levar um sabão de um deles, e isso não era tão incomum.
E
não se está dizendo não houvesse grandes repórteres anteriormente - havia.
Apenas
situando as mudanças na organização das redações.
Navarrinho
vai lembrar ainda de Hamilton Celestino - Tito.
Editor
de Internacional - eu o encontrarei nessa mesma função, na "Tribuna da
Bahia", final de 1974, ao lado de Carlos Borges, hoje nos EUA.
De
Osvaldo Conhago Filho, diagramador - vou encontrá-lo mais tarde, no próprio
"Jornal da Bahia".
Depois,
trabalhará comigo na edição de pequenos jornais, no início dos anos 90, quanto
também diagramará "Narciso no fundo das galés: combate político através da
imprensa", de minha autoria, de 1992.
Depois
da primeira matéria, das lições de Fred, Navarrinho engrenou.
Tudo
bem: pegou no tombo, mas pegou.
Seis
meses passado, e já...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: engrenou, ganhou
ritmo, inclusive
nas farras pelas ruas da
cidade, primeira
grande cobertura,
desabamento da
Contorno, as chuvas de abril.
Engrenou.
Bastou
a lição daquela primeira matéria para Navarrinho engrenar.
Tomou
tenência.
A
disciplina do seminário, do Exército, as lições de Mariazinha, ajudaram-no.
É
a caminhada da vida a nos ensinar, sempre.
Mais
do que qualquer escola, não obstante a EBC tenha lhe ajudado muito.
Atenção
nas coberturas, anotava tudo, não perdia nada, e foi se firmando como repórter.
Escrever,
sabia.
O
lead, aprendera.
Gostava
daquela lida.
Coisa
de seis meses após a primeira matéria, já o tinham requisitado para a equipe de
copidesques.
Melhor
- combinava a atividade de repórter com a de copy.
Espécie
de hora extra.
Ganhava
pouco, salário mínimo, e a hora extra vinha bem a calhar.
A
calhar menos para a ajuda em casa, e mais para as farras, bastante amiudadas,
já.
Recorda-se,
e não sei se fala tudo, das farras na Montanha - ali onde ficava o 63, não sei
se frequentou.
Da
Boate Guaciara, ali perto da ABI, tudo centro da cidade.
Guaciara,
descendo a rua, você sairia na 28 de Setembro.
Subindo,
você toparia com o Liceu de Artes e Ofícios.
Das
localizações, Navarrinho lembra bem.
Na
Guaciara, encontrava-se a Universidade inteira, intelectuais de muitos matizes,
poetas, seresteiros - e jornalistas.
Esmeralda,
a dona, madrugada avançando, sem aguentar mais o repuxo, contava as cervejas
consumidas, deixava lá, depois cobraria, e ia dormir - e todos seguiam na
farra, que a noite era menina.
A
conta, todos pagavam: deixavam o dinheiro numa caixa, ninguém dava calote.
Tempo
de jornalista boêmio.
Antes
de chegar ao time de copidesques, no entanto, viu-se numa grande cobertura.
De
madrugada, a avenida do Contorno havia desabado, um desastre de grandes
proporções.
A
avenida estava sendo construída.
Uma
obra de contenção, desabou, à altura do Solar do Unhão.
O
desabamento, na conta de Navarrinho, matou entre 16 e 18 operários.
Passou
a manhã e parte da tarde acompanhando o resgate dos corpos, observando o
impacto da tragédia.
Fez
a matéria.
Foi
ela a puxar todo o material publicado.
Por
ter cor local, sentimento, revelar todo
o drama, conter entrevistas com parentes das vítimas, com as primeiras
autoridades a chegar na área do desabamento.
Foi
o seu batismo de fogo, sua primeira grande cobertura, e por isso jamais
esquecida.
Cobrirá
outras, da mesma natureza.
A
Salvador de então acostumou-se tragicamente com o desabamento de encostas
durante as chuvas de abril, quando morria muita gente...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: conhecendo
João Ubaldo
Ribeiro, rapaz de texto
bonzinho,
vergonha, vida ensinando.
Nos
primeiros dias de jornal, Navarrinho experimentou um prazer indescritível: conhecer
João Ubaldo Ribeiro.
Será
um gigante da literatura brasileira.
Já
estava a caminho.
Ele
o via chegar, aos sábados, laudas enroladas debaixo do braço, sempre aquele
sorriso largo, alegrando o ambiente.
Dava
um bom dia sonoro, com sua voz de barítono, atravessava a redação, e entregava
a crônica dele a Rafael Pastore.
A
coluna dele, "Satyricon", publicada aos domingos.
Coluna
obrigatória para Navarrinho.
Aprendera,
logo nos primeiros dias, lições de Gilson Nascimento e
Fred
Simões: para aprender a escrever, o mínimo é você ler o jornal, inteirinho.
E
ele seguiu isso de modo religioso.
Havia
territórios do jornal, meio insossos - ainda assim, percorria-os.
Lia
também os concorrentes: "Diário de Notícias" e "A Tarde".
"Tribuna
da Bahia" surgirá no segundo semestre de 1969.
A
crônica de João Ubaldo, lia com imenso prazer.
Um
dia, antes de vê-lo ingressar na redação naquele dia, ao vivo e a cores, entrou
na sala de Rafael Pastore, e foi logo dizendo:
-
Ô Pastore, tenho lido "Satyricon". E o sujeito até escreve
direitinho, é bonzinho...
Pastore
reagiu de pronto:
-
Bonzinho? Navarro, esse cara é João Ubaldo.
Puxou
a ficha dele, falou e disse, trazendo-o para o chão.
Baita
susto, e uma quase descompostura - descompostura, não, Rafael não era disso:
baita lição.
Ele
assinava J. U. Ribeiro.
Foca
entrão dá nisso: passa vexame a torto e a direito.
Deu
de um dia estar na sala de Pastore, e João Ubaldo chegar para entregar o texto
para a coluna.
Pastore
não perdeu a chance:
-
João Ubaldo, Navarro é nosso repórter. Ele achou o seu texto bonzinho.
Navarrinho
quase morre de vergonha.
Pediu
pra terra se abrir, sumir.
Tinha
noção já de quem era João Ubaldo, quinhentos degraus à frente dele, um mestre
da literatura, e ele troçando.
João
Ubaldo, com quem tive a chance de trabalhar mais tarde na "Tribuna da
Bahia", ele redator-chefe, nem aí.
Riu,
de boa, cheio de simpatia:
-
Que bom. Ao menos, tenho a certeza de ter um leitor.
A
partir daí, Navarrinho se sentiu à vontade para dar um jeito de chegar a tempo,
ás sextas-feiras, para encontrá-lo à chegada dele para entregar a crônica.
Todo
santo dia, nesse dia, dava um jeito de entabular conversa, e nisso João Ubaldo
era bom, dava trela ao jovem repórter.
Nem
era tão grande a diferença de idade - João Ubaldo nascera em 1941, quatro anos
mais velho.
Diferença
mesmo, a experiência e o talento literário.
Navarrinho,
hoje, está perseguindo, quem sabe, na ficção, os passos do mestre da
juventude...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Graça Azevedo: Fui aluna de
João Ubaldo no segundo ano da Faculdade. Pleno 1968. Inesquecível. Carlos
Navarro, sei que vc é o personagem da história e Emiliano me mantém presa à
narrativa, mas o Mestre era um espetáculo!
Emiliano José: Graça Azevedo
Duvidar quem há de?...
Graça Azevedo: Nao é?🥰
Emiliano José: Entonces... E
Viva o Povo Brasileiro
Carlos Navarro: E põe
espetáculo nisso Graça, para mim o grande escritor contemporâneo brasileiro sem
desdouro a Jorge Amado, outro baiano mítico. Depois ficamos amigos e
trabalhamos juntos na Revista Viver Bahia (que editei em meados dos anos 1970 e
as crônicas dele eram ilustradas pelo grande Lage) e em outras publicações.
Graça
Azevedo: Agora eu digo: ô inveja!
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Emiliano José
29
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: um ano de terror,
1969. João
Falcão, crente na amizade
de ACM, pede
ajuda para Marcelo
Duarte face às
perseguições da ditadura,
não esperava a
reação intempestiva.
O
ano de 1969 não foi brinquedo, não.
Navarrinho
vai compreender isso naquele início como jornalista.
A
ditadura estica a corda.
O
AI-5 de 13 de dezembro de 1968 foi a antessala do teatro de horrores a seguir.
Sob
o comando de Médici, apertou os torniquetes.
País
afora.
ACM,
prefeito de Salvador.
Biônico,
assim será quase sempre: governador duas vezes também escolhido pelos
militares.
Em
uma solitária ocasião, eleito: 1990.
Não
demoraria pra colocar as mangas de fora.
João
Falcão, dono do "Jornal da Bahia" acreditava-o amigo.
Em
jantares regados a bons vinhos, quase sempre junto com Odorico Tavares, jogavam
conversa fora, invadindo a noite.
Quando
de seu interesse, ACM conseguia ser simpático.
João
Falcão, homem de imprensa, bom cultivar amizade.
Amizade,
em termos - Falcão perceberá.
Sabe
nada, inocente.
Na
varredura da ditadura na Bahia, cassaram e prenderam Marcelo Duarte, até então
deputado estadual.
Filho
de Nestor Duarte, ambos fundadores do "Jornal da Bahia".
O
velho Nestor Duarte, jurista, dos mais notáveis professores da Faculdade de
Direito da Universidade Federal da Bahia.
Lembro-me
do entusiasmo de Waldir Pires, quando a ele se referia: tivera o privilégio de
ser aluno dele.
Autor
de vários livros sobre Direito, incursionou na área do romance também.
Apaixonado
defensor da reforma agrária, de firmes convicções socialistas e democráticas.
Uma
das mais respeitáveis figuras da história da Bahia.
Estava
muito aflito pelas perseguições sofridas pelo filho.
Temia,
além de tudo, a perda do direito à aposentadoria, opção implícita em toda
aquela perseguição.
Pediu
ajuda a João Falcão.
Encontrou-se
com ACM no Palácio de Ondina, numa comemoração.
Falcão
acreditava pudesse obter dele alguma ajuda, confiante na relação estabelecida
até ali.
Não
conhecia ACM.
Ele
vai revelar-se no poder.
Falcão
expõe a situação de Marcelo Duarte, as perseguições.
ACM,
ouvindo, atento, mas sem conseguir disfarçar totalmente a irritação.
João
Falcão leva um susto com a reação.
Quase
aos gritos, ACM, de modo enfático, desmente tudo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Graça Azevedo: Vc vai me
matar de curiosidade!
Artur Carmel: "Não
Deixe Essa Chama se Apagar !"
Emiliano José: Título de
livro escrito por João Falcão...
Artur Carmel: E slogan da
'campanha de resistência' do JBa...
Emiliano José: Isso
Átila Santana: ACM sendo ACM.
Lucilia Duarte: Um FDP! É o
mínimo dos elogios...
Átila Santana: Veja vc q não
posso discordar.
Lucilia Duarte: Obrigada pelos
elogios ao meu avô Nestor e a Meu PAI Marcelo, eles eram isso tudo que vc disse
e muito mais!
Eu
sei o fim dessa história! Vivemos na pele a tirania de pulha do filhote de
crápula que se sentia dono da Bahia! Eu cuspo na memória de acm!
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Emiliano José
30
de junho de 2021
Carlos Navarro
Filho: ACM golpista de
primeira hora, a
defesa da ditadura
diante de João
Falcão, a reação,
rompimento entre
os dois, início de
longa
perseguição ao "Jornal da Bahia".
ACM,
não custa insistir, é golpista de primeira hora.
Apoiou
o golpe de 1964 com entusiasmo.
Defendeu
ardorosamente aquele regime de terror e morte.
Navarrinho
conhece bem essa trajetória e vai viver de perto ou de longe a odisseia do
"Jornal da Bahia".
Quando
João Falcão, inocentemente, relata a ACM as perseguições sofridas por Marcelo
Duarte, causadoras de tanto sofrimento ao velho Nestor Duarte, ele perdeu a
compostura.
Desmentiu
João Falcão, assim sem mais nem menos.
Defendeu
com unhas e dentes a ditadura.
Mais:
resolveu provocar Falcão:
-
Os jornais da Bahia são muito pouco corajosos. Eu gostaria que o seu jornal
criticasse o governo.
Respirou
fundo, surpreso, João Falcão.
Reagiu:
-
Por todos os jornais não posso responder. Mas, pelo "Jornal da Bahia"
você não perde por esperar.
De
alguma forma, declarava guerra a ACM.
Ele
contra-atacou:
-
Não tenho medo. Minha administração é inatacável.
João
Falcão retrucou:
-
Não existem administrações inatacáveis.
E
nesse momento, sentiu o sangue lhe subir à cabeça.
Perdeu
a paciência, e avançou sobre ACM de dedo em riste:
-
A partir de hoje você perdeu o direito à minha intimidade porque não tem educação
e nem compostura para merecê-la.
Luiz
Viana Neto, próximo à discussão, afasta Falcão, evitando, quem sabe, um pega
pra capar ainda maior.
Aquela
noite marca o início de uma guerra a se arrastar por quase seis anos.
Mais
apropriado dizer: é o ponto de partida de uma cruel perseguição contra um
jornal, contra a liberdade de imprensa.
Golias
e David.
O
jornalismo, naqueles seis anos, sairá engrandecido, não obstante tudo.
Artes
do destino, talvez: dois dias depois do jantar em Ondina, um temporal inunda
boa parte de Salvador.
O
"Jornal da Bahia" mergulhou no assunto: botou os repórteres nos
alagamentos, a acompanhar os estragos.
E
tome-lhe manchete no dia seguinte:
"A
chuva de um dia destrói a obra do 'Prefeito do Século'."
'Prefeito
do século' era como ele era chamado pelo cordão de puxa-sacos.
Cedo,
muito cedo, ainda em casa, João Falcão, atende o telefone.
Era
ACM...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Antonio Lins: MEMÓRIA DAS
TREVAS, COMO JÁ ESCREVEU NOSSO SAUDOSO PENA DE AÇO!!
Lucilia Duarte: Grande JOÃO
FALCÃO! Família de amigos muito queridos!
Artur Carmel: O negoço tá
esquentano...
Átila Santana: Vou esperar os
próximos capítulos, como quem espera Jesus!
Anete Ivo: Viva o
jornalismo livre do despotismo do mando local
Jose Tavares: Governo de Lídice
da Mata : a cidade de Salvador tornou-se um buraco de buraco em buraco
escavados por ACM com dinheiro da ditadura. Derrotou a prefeita e seus aliados
com essa política mesquinha, tipo seu estilo
Jose Tavares: Buracos
políticos!!!
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Emiliano José
1
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: telefonema,
rompimento,
sequência de
perseguições de
ACM, processo
contra Joca, a
tentativa de destruição
de um jornal,
não deixe esta chama
se apagar,
respirando em 1975.
ACM
tinha a mania de ligar cedo para a casa dos outros.
E,
também, de ter os telefones mais íntimos de autoridades superiores a ele.
Waldir
Pires me contou: era o principal aliado de Juscelino na Bahia, mas em dois
tempos ACM conseguiu o telefone de cabeceira do presidente.
E
ligava pra ele nas horas mais impróprias, como o presidente relatou a Waldir,
às gargalhadas.
E
se brigasse com alguém, e precisasse da pessoa, passava por cima, e ligava como
se nada tivesse acontecido, a amizade continua.
Foi
assim com João Falcão.
Ligou
cedo pra casa dele.
Falcão
atendeu, e foi surpreendido, por ser ACM, e pela intimidade:
-
O que é isso, Falcão? O jornal me declarou guerra?
João
Falcão não lhe deu chance:
-
Já lhe disse: você perdeu o direito à minha intimidade. Dirija-se à redação.
E
desligou.
A
partir daí, todas as pontes ruíram.
E
o "Jornal da Bahia" tornou-se muito mais crítico, sem, no entanto,
deixar de lado o compromisso com os fatos, tentando sempre ser fiel à verdade.
Navarrinho
sentindo o clima esquentar.
Era
já o final do ano de 1969.
O
jantar em Ondina fora em setembro, aniversário de ACM.
Para
jornalistas, sopa no mel.
O
arco de liberdades, no dia a dia ao
menos, se amplia.
Na
cobertura de cidade, livres para exercitar o melhor do jornalismo.
ACM
faria uma escalada, no entanto: negou licença para reparos na sede de modo a
garantir a instalação de novas máquinas destinadas à modernização do jornal e
chegou ao ápice com a demissão do jornalista João Carlos Teixeira Gomes (Joca)
da Secretaria de Turismo de Salvador.
Ápice,
não.
Ele
processará Joca, redator-chefe do jornal, com base na Lei de Segurança
Nacional.
ACM
era mais real do que o rei: nem os juízes militares apoiaram a iniciativa.
Joca,
absolvido.
Grave:
ACM foi escolhido governador.
E
durante o resto do mandato de prefeito e durante todo o exercício como
governador, dedicou-se cotidianamente a perseguir o "Jornal da
Bahia", inclusive pressionando anunciantes a se afastarem do jornal, sendo
bem-sucedido em inúmeros casos.
Quase
o jornal fecha.
Não
aconteceu pela resposta dos leitores, sensíveis à campanha "Não deixe esta
chama se apagar", desencadeada pelo jornal, título do livro de João
Falcão, Editora Revan, 2006, apresentado por mim.
O
jornal só respirou em 1975, quando Roberto Santos assumiu como governador.
Sei
da angústia do leitor por conhecer melhor essa intrépida luta de resistência de
um jornal.
Tenho,
no entanto, que voltar ao nosso protagonista.
Os
interessados devem correr, buscar o livro de João Falcão, e compreender então o
caráter de um soba.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Antonio Lins: Tenho o livro
de João Falcão. Excelente, com dedicatória e tudo
Átila Santana: Caramba!
Artur Carmel: Além de amigo
de João Falcão - e nutridor de antipatia pelo Cabeça -, meu pai era assinante e
leitor assíduo do JBa. Por tabela, eu lia tb o jornal.
Carlos Augusto da Silva: Cuca Falcão
Lula Falcão Julinha Falcão
Maria Luiza Falcão Silva: Orgulhosa e
saudosa de meu pai João Falcão!
Ignez Velloso: Tenho o livro
do João Falcão e retrata a verdade da perseguição que o jornal sofreu. Apesar
de ser criança na época fui crescendo e compreendendo que o ACM era um covarde
,OPORTUNISTA que usou a Bahia para seu próprio interesse e nunca amou os
baianos.
Mônica Bichara: Também tenho o
livro e muito orgulho por ter meu nome incluído, mesmo não tendo alcançado essa
fase da campanha. Ele listou todos q trabalharam no JBa enquanto pertenceu a
ele
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(Foto de Lúcia Correia Lima - Fotógrafo Agliberto lima)
Emiliano José
2
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: a lacuna sobre
fotografia,
nunca esquecer o dito de
que uma foto
vale por mil palavras,
os fotógrafos do
"Jornal da Bahia".
Nessa
série sobre jornalismo na Bahia, uma lacuna me atormenta, e é muito possível
não consiga preenchê-la.
Levanto-a,
e ao fazê-lo, quem sabe, provoque outros jornalistas a ir atrás, talvez também
estudantes.
Fotógrafos,
fotógrafas.
Aqui,
acolá visitei Anizio Carvalho, patrono de gerações, pela qualidade e pela
idade, um criativo testemunho da Bahia.
Visitei
escrevendo.
E
não raramente estive com ele no Alto do Saldanha, onde fomos vizinhos por
vários anos.
Ou
então falamos por telefone.
Fomos
colegas no "Jornal da Bahia".
E
amigos até hoje, amizade cultivada.
Volta
e meia, falo com o pintor Agliberto Lima - chamo-o pintor pelo primor de suas
fotos.
Fui
colega dele no "Estadão".
E
somos amigos - no caso dele, de toda a família: pai, mãe, irmãs, todo mundo.
Conheci
tantos outros: Vigota, Carlos Catela, Rino Marconi, Ikissima, Jurandir, Bonfim,
Miltinho - uma renca, e muitos nomes somem na névoa do tempo.
Registro:
Arthur Ikissima foi meu vizinho de porta no Alto do Saldanha.
Moravam
ele e Roberto Gonçalves no mesmo apartamento, ao lado do meu.
Roberto
era repórter, não sei se no "Jornal do Brasil" naquele momento, ou
n'O Globo'.
Lúcia,
irmã de Agliberto Lima, outra lembrança.
Disse
isso a Navarrinho, provoquei-o.
O
"Jornal da Bahia" valorizava a fotografia, a "Tribuna" vai
dar ainda mais espaço às fotos.
Ao
entrar na redação do "Jornal da Bahia", no amplo salão, as fotos nas
paredes eram as primeiras a nos saudar, a chamar nossa atenção - homenagem à
Bahia e aos repórteres fotográficos.
Difícil,
impossível, separar o escriba e o fotógrafo.
Repetiu-se
sempre: uma foto vale por mil palavras.
Vale.
Melhor,
portanto, não separar a palavra escrita pelo repórter daqueloutras, das mil
ofertada pela foto, ou mais de mil se mais de
uma.
Dos
fotógrafos, entre 1969 e até 1974, período dele no "Jornal da Bahia",
Navarrinho se recorda de Teófilo Negreiros, Vigota, Anizio Carvalho, Juvenal
Silva Santos - este, laboratorista: quando faltava alguém, ele saía pra rua
como fotógrafo.
Lembrou-se,
ainda, de Manoel França.
Contratado
como motorista, surgiu a vaga, e França tornou-se fotógrafo.
Acontecia.
Paulo
Mocofaya, encontrei motorista no "Estadão".
Mais
tarde, notório fotógrafo - Jaciara Santos o conhece bem da convivência no
"Jornal da Bahia", e pode dele contar ótimas histórias.
A
da baba no leite de cabra, uma delas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Átila Santana: Professor essa
série vai originar mais um livro?
Emiliano José: Espero. O
primeiro volume, Balança mas não cai, já está nas ruas, E-book, na Amazon.
Estamos trabalhando já no segundo, Os comunistas estão chegando. E virão
outros.
Átila Santana: Sucesso,
professor.
Emiliano José: Hora que
puder, leia Balança mas não cai
Átila Santana: Emiliano José
assim q possível. Li umas obras suas - me foram emprestadas pelo ex-vereador
PIPIA, de São Francisco do Conde, seu administrador de primeira linha. Estou
curioso para ler “O cão morde a noite”.
Emiliano José: Átila Santana
não há dificuldade: mande seu endereço, e lhe envio autografado.
Artur Carmel: Como bem sabem
os colegas jornalistas, na lida diária das pautas, o repórter raramente saía às
ruas sozinho...Ao seu lado, estava sempre o repórter fotográfico. E quando a
dupla repórter/fotógrafo se afinava, era dificílimo da pauta não render. Posso
dizer, de peito aberto, que trabalhei com algumas feras do fotojornalismo
baiano e com as quais formei excelentes duplas e ganhei excelentes amizades !
Zeca Peixoto: Essa série
está construindo uma inusitada trilha da história da imprensa na Bahia. Salve!!
Mônica Bichara: hahahahaha
Jaciara (Paulino Jose Dos Santos avise a ela, não consigo marcar) seu Biliu
dando um jeito de voltar às memórias. Maravilha essa lembrança dos fotógrafos,
muitas pautas divididas com Anízio, Vigota, Mocofaia, Jorge de Jesus
(Nigrinha), Fred Passos, Manu Dias, Neuzinha, Queirós....
Isabel Santos: Guardo a honra
e gratidão de ter trabalhado, alguns diretamente no dia a dia das reportagens,
com todos esses grandes fotógrafos e tantos outros, como os citados por Mônica.
Grata lembrança ao voltar ao passado com essa sua série, Emiliano. Ikissima,
eterna saudade.
------------------------------------------------
(Homenagem a Anízio Carvalho na Câmara Municipal de Salvador, acompanhado por Emiliano José - Foto: Reginaldo Ipê)
Emiliano José
3
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: ainda fotógrafos,
Milton Mendes
Filho, Anizio Carvalho,
destino dos
arquivos fotográficos
perdidos por aí.
De
fotógrafos, falávamos.
Repórteres
fotográficos, sempre bom acentuar.
Olhei
agora, porque volto a ele sempre, o livro de João Falcão sobre o "Jornal
da Bahia".
No
final, ele relaciona jornalistas.
E
os fotógrafos.
Surpreendi-me:
tão cuidadoso, esqueceu-se da presença de Milton Mendes Filho.
Foi
companheiro nosso na "Lemos Brito".
Destaque
dele na cadeia foi o futebol.
Peito
de pomba, grande atacante, rápido como raio.
Casou-se
com Rosália - Rosa Mendes.
Ela
o visitava na prisão.
Foi
bibliotecária na "Tribuna".
Trabalhava
no arquivo ali pelo final de 1974, início de 1975, não sei quando saiu.
Foi
pra Itália tem muito tempo, já a encontrei por lá, me hospedei com ela.
Em
liberdade, Miltinho desenvolveu sua veia artística e de repórter: tornou-se
excelente fotógrafo.
Trabalhamos
juntos nos meados dos anos 1970, no "Jornal da Bahia".
Recordo-me
de suas comoventes fotos sobre a "Invasão do IAPI", cobertura feita
por nós dois.
Depois
das lides nos jornais da chamada grande imprensa, embrenhou-se, máquina em
punho, no movimento popular e sindical.
Tem
um dos melhores arquivos das lutas dos trabalhadores - pena não esteja
organizado, nem sei se recuperável.
São
preciosidades perdidas, os arquivos dos fotógrafos.
O
material de Anizio Carvalho, um deles.
Um
pouquinho antes da pandemia estivemos com a secretária da Cultura, Arany
Santana, discutindo o destino do arquivo dele, mas a peste adiou tudo.
Presentes,
nessa audiência, algumas comadres: lembro-me de Jaciara Santos, Isabel Santos,
Mônica Bichara - elas o tratam com imenso carinho.
Acompanharam
a audiência, ainda, Ernesto Marques e Maria Marighella, como recorda Mônica
Bichara.
Antes,
estivéramos na casa dele, com o mesmo objetivo, Zulu Araújo, da Fundação Pedro
Calmon, então secretário Jorge Portugal, e eu com o mesmo objetivo.
Quem
sabe, quando a maioria da população estiver vacinada, o projeto ande.
Navarrinho,
recapitulemos, chega ao "Jornal da Bahia" em dezembro de 1968, sai em
1974 para "O Estado de S. Paulo".
Em
verdade, no decurso, torna-se repórter de ambos.
A
responsável pelo centenário jornal paulista na Bahia era Zilah Moreira, e como
não havia sucursal ainda, ao menos não havia dependências físicas, tudo era
feito da redação do próprio "Jornal da Bahia".
Zilah
utilizava os serviços do teletipista Simão Alves Dias para transmitir as
matérias.
Mais
tarde, Simão irá pro "Estadão", já sucursal, e sob chefia do próprio
Navarrinho, cujo talento foi logo descoberto por Zilah...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Nelson Varón Cadena: Boa parte do
acervo fotográfico produzido pela sucursal do OESP está no arquivo publico
municipal.
Rui Patterson: O Tatu na
Galeria F, não foi meu contemporâneo, saí em outubro 1971, mas o encontrei em
diversas oportunidades cobrindo eventos trabalhistas e sobre prisões políticas,
uma delas a prisão dos sindicalistas Jaques Wagner e Nilson Bahia, na Polícia
Federal, 1o. Armazém das Docas, ao lado do Mercado Modelo. Eu estava lá como
advogado do Sindiquímica defendendo Wagner e Bahia e Tatu fez a cobertura das
prisões, foram publicadas várias fotos deles no pátio da PF, no jornal A Tarde
- não era qualquer jornal que publicava essas notícias- Wagner e Nilson
sentados sobre um tonel. Quando viu que Tatu estava fotografando, o
superintendente da PF expulsou Tatu e ordenou a minha prisão, corri e entrei no
escritório de Pedro Milton de Brito, que impediu a minha prisão. Com o
falecimento de Tatu nunca recuperei essas fotos, registros de uma época
historicamente importante e cessa
Joao Coutinho: Rui Patterson
Tatu faleceu? Não soube!
Emiliano José: Alguém disse
isso?
Joao Coutinho: Sim, Rui
Peterson. Esclareça pra ele.
Emiliano José: Do que sei,
doente. Falecido, não. Vou checar.
Joao Coutinho: Me dê notícias
dele. Obrigado.
Emiliano José: João,
conversei com Joana, filha dele. Difícil situação de saúde, sendo muito bem
cuidado, já tem tempo assim. Vivo.
Emiliano José: Rui, ele está
vivo. Falei com Joana, filha, hoje. Não obstante, situação de saúde precária.
Abração.
Rui Patterson: Emiliano,
gostaria muito de reencontrar o velho companheiro e amigo, retratando-me por
considerá-lo morto.
Perdi
o texto quando escrevia, só agora vejo que enviei, faltam algumas informações.
Emiliano José: Rui Patterson
Rui, ele não está nada bem. Esta, a verdade. Muito bem cuidado.
Lucia Correia Lima: Esqueceu que
eu levei Albino na casa de Anízio. Desde então tudo ficou na promessa... Lamentável
Maurício Vasconcelos: Conheci
Miltinho na campanha de Dr. Roberto Santos ao governo da Bahia em 1982. Ele,
Dalton Godinho que era da turma de Dr. Waldir.
Mônica Bichara: Quanta gente
querida nesse capítulo, só aumentou a saudade. Alcancei Miltinho no JBa, tão
querido. Anízio C. Carvalho nem se fala, era disputado pelas comadres, paixão à
primeira vista. Nessa reunião na Secretaria da Cultura estavam tbm Ernesto
Marques e Maria Marighella. Que esse projeto de homenagear nosso veinho saia do
papel
Lucia Correia Lima: Nunca esquecer
que Bel Agliberto. Já trabalhava com Zilah antes da abertura da sucursal. Ela o
levou p o Estadão.
Albenísio Fonseca: Eu e Miltinho,
como tratávamos o querido fotógrafo Milton Mendes, atuamos juntos em muitas
reportagens no Jornal da Bahia. Antonio Gaúcho era o editor e Messias Porquinho
o chefe de reportagem.
Uma
enigmática mortandade de peixes no Rio Subaé, em Santo Amaro da Purificação,
nos levaria até aquele município do Recôncavo.
Sondava
moradores, comerciantes, barqueiros, sobre o que poderia ter causado aquela
tragédia ambiental, mas sem muito sucesso. Miltinho fotografava minuciosamente
os milhares de peixes mortos a boiar no Subaé.
Eis
que de repente nos surge um senhor que passaria a informação crucial da origem do
problema. Disse que houve o rompimento de uma das bacias de destinação do
vinhoto em uma fazenda produtora de etanol, nos revelando a localização.
Vinhoto,
vinhaça, tiborna ou restilo é o resíduo malcheiroso que resta após a destilação
fracionada do caldo de cana-de-açúcar fermentado, para a obtenção do etanol.
Para cada litro de álcool produzido, 13 litros de vinhoto são deixados como
resíduo, que pode se apresentar na forma líquida ou pastosa e é extremamente
tóxico, um danoso veneno, sem meias palavras.
Poucos
minutos depois, lá estávamos, como em ação de guerrilha, a invadir propriedade
alheia e a nos deparar com o "piscinão" de vinhoto já reparado, mas
com todos os vestígios de terra úmida e remexida a indicar o vazamento.
Miltinho
fez inúmeras fotos. Tudo parecia transcorrer bem, já saíamos do local quando
observei duas caminhonetes cheias de homens, ostensivamente armados, vindo em
nossa direção.
-
Zorra, Milton, o bicho vai pegar. Lembro ter dito. Ele olha, avalia o tamanho
da encrenca e me diz: "Albenísio, fique em minha frente".
Em
segundos, rebobina o filme e insere outro, virgem, na câmera.
A
tropa de choque do fazendeiro chega e um deles dispara: "O que vocês estão
fazendo aqui? Quem são vocês? Quem autorizou a entrada? Isso aqui é uma
propriedade privada".
Um
outro deduz rápido: "Já vi que são repórteres. Olha esse aí com uma
câmera!"
Antes
que disséssemos qualquer coisa, um terceiro arrancou a câmera pendurada ao
pescoço de Miltinho.
Pergunto
o que sabem sobre o vazamento de vinhoto e a mortandade dos peixes. Não me
deram resposta ou importância.
Sem
se fazer de rogado, Mendes diz:
"O
equipamento pertence ao jornal, se quiserem entrego o filme". Eles aceitam
a proposta, sem se dar conta de que nenhuma imagem havia naquela película. Nos
puseram para fora do lugar com estocadas de espingardas e sob ameaças:
"Se
voltarem aqui é melhor, antes, garantirem covas no cemitério mais
próximo".
O
motorista do jornal nos esperava do outro lado da pista. Rimos muito, também de
nervoso, durante o retorno.
Dia
seguinte, com Brizola em Salvador e na manchete principal, a chamada da nossa
matéria, com foto em seis colunas, ocupa quase toda a parte de baixo da Capa. A
reportagem ocuparia o alto e metade da quinta página. E era um "furo"
nos concorrentes.
Emiliano José: Albenísio
Fonseca belíssimo resgate
Mônica Bichara: Que maravilha
Albenísio, imaginando aqui a tensão e a arte de Miltinho.
Isabel Santos: Grandes
fotógrafos Anízio Anízio C. Carvalho e Miltinho, com os quais tive honra de
trabalhar, numa convivência de muito aprendizado e gratidão. Eterno carinho.
Rendo homenagens também à Zilah, que teve sua presença singular na nossa área.
Manoel Barretto: Grande
Miltinho
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Emiliano José
4
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: perde a piada mas
não perde o
amigo, fotógrafo perde foto
do busto quebrado, um corpo estendido
no chão, param o
carro, Vigota fotografa.
Navarrinho
é daqueles que perdem a piada.
E
preserva o amigo.
Se
provocar alguém, prefere omitir o nome.
Escriba,
fique na saudade.
Não
cede nem com a porra.
Viveu
muitas histórias jocosas na lida jornalística.
Quem
não?
Conta
milagre.
Santo,
nem pensar.
Quer
saber uma?
O
busto de Cosme de Farias devia ser inaugurado, no bairro do mesmo nome, parte
de Brotas - cidade dentro da cidade, espalhando-se por todo lugar, eita bairro
grande, Brotas, não?
Navarrinho
se abalou para o bairro, na véspera - fazer matéria de apresentação.
Relembrar:
fotógrafo, muitas vezes, saía separadamente.
Ia
fotografar independentemente, até porque eram inúmeras as pautas recebidas, às
vezes em número bem maior do que o dos repórteres.
Navarrinho
chegou ao local, noite.
Deparou
com o busto todo quebrado, vandalizado.
Tacou
o pau, fez a matéria, quente.
O
fotógrafo chegou logo depois, viu o busto quebrado, pensou: não tem busto, não
tem foto.
E
se picou.
Matéria
prejudicada.
Não
são só os momentos hilariantes.
Plantões
- jornais tinham.
Ainda
têm, certamente.
Navarrinho
estava num desses plantões, e saiu com Vigota para fazer matéria IP - só se
falava assim, matéria IP: interesse do patrão.
A
matéria IP era, nas lembranças de Navarrinho, no Iate Clube.
Final
de tarde.
Dia
27 de outubro de 1970.
Passavam
pelo Dique do Tororó, altura do atual Posto São Jorge.
Um
corpo no chão - é, estendido no chão.
Uma
ou duas pessoas olhando, gente curiosa.
Navarrinho
deu ordem: para, para.
Vigota
desceu, fotografou.
Nem
imaginavam: estavam diante do mais rumoroso caso daquele ano de 1970, a
redundar na primeira condenação à morte da ditadura.
O corpo
era do sargento Walder Xavier de Lima, da Aeronáutica.
Ele,
mais um cabo do Exército e dois agentes da Polícia Federal...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: defronte da história,
argumento pra
dar a foto, Pastore topa,
PF puta, jornal
tinha argumento, repressão engole.
Navarrinho
se viu defronte da história.
E
isso só ocorreu porque ele havia entrado, por escolha, naquela escala de
plantão daquele 27 de outubro de 1970.
Tivesse
recebido pauta pela manhã ou mesmo pela tarde, não mergulharia num dos mais
rumorosos casos da ditadura.
Passou,
viu aquele corpo estendido no chão, parou, Vigota fotografou.
Dique
do Tororó.
Era
o corpo do sargento Walder Xavier de Lima.
No
momento, não atinou pudesse ser alguma coisa relativa a uma operação da
ditadura - e era.
Navarrinho
olhou prum lado, olhou pra outro, conversou com os curiosos, sabiam ter havido
tiros, mais nada.
Decidiu
seguir em frente, cumprir a pauta de interesse do patrão.
De
volta à redação, já coisa de 21 horas, começa a perceber a dimensão do
episódio.
Já
se sabia da prisão de dois terroristas - assim, a denominação dos opositores do
regime.
Tinham
matado um militar - corria essa notícia.
Luiz
Arthur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal já dera ordem à redação:
nada devia ser publicado.
Navarrinho
propôs a Rafael Pastore um modo de driblar a ordem:
-
Nós não sabemos de nada. Temos a foto, apenas isso. Vamos publicar, com uma
legenda, e ponto.
Pastore
gostou.
E
o "Jornal da Bahia" foi o único no País a publicar a foto.
Deu
o furo.
Na
legenda, cuidava-se de não cutucar a onça com vara curta.
Uma
pessoa tinha sido morta no Dique do Tororó, nas imediações da Vasco da Gama, em
tal hora, pouca coisa, corria a informação nas delegacias teria sido um militar
morto numa troca de tiros, nada mais na legenda.
Lá
estava o corpo estendido no chão.
No
dia seguinte, o bafafá: repressão baixou no jornal com tudo.
Mas,
havia argumento: não se sabia de nada, parecia um crime comum...
E
mais: no aviso recebido para não publicar nada, não havia a notícia de nenhuma
morte...
Dando
de João sem braço.
Repressão
engoliu, mas não gostou nem um pouquinho.
E
Salvador virou praça de guerra...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Navarrinho na redação da sucursal com Raul Bastos ao lado e Barretinho)
Emiliano José
6
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Theo e Paulo presos,
reação, clima de
guerra, torturas, plantão
rende matéria
histórica, fontes sobre episódio.
É.
Salvador
virou praça de guerra.
A
história é conhecida: Theodomiro Romeiro dos Santos e Paulo Pontes da Silva são
abordados por quatro sujeitos em trajes civis no Dique do Tororó, algemados,
colocados na traseira do veículo.
Ninguém
revistou Theo.
Ele
sacou da arma, meteu bala, só acertou o sargento Walder Xavier de Lima, da
Aeronáutica.
Os
quatro eram militares, e levaram Theo e Paulo para a Polícia Federal, na Cidade
Baixa, e aí foi tortura, e tortura, e tortura, ali mesmo e depois no Barbalho.
Eu
ainda estava solto, mas logo sou preso, menos de um mês depois.
E
então estabelecerei com os dois uma amizade profunda, especialmente com Theo.
Na
Salvador praça de guerra, entraram Luiz Arthur de Carvalho, major Nilton
Cerqueira, coronel Lima Araújo, todos os órgãos de segurança.
Claro,
as leitoras, comadres, tantas, os leitores, todas, todos, devem me cobrar:
conte essa história.
Limito-me
a um convite: podem ler "Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento",
segunda parte.
A
história de Theo abre o livro, com ênfase na fuga dele, agosto de 1979.
Há,
ainda "O cão morde a noite": fecho o livro, novamente, com Theo,
novidades na história.
Se
quiserem, há, também, "A fuga histórica", na número um da revista
"Caros Amigos", escrita por mim, capa.
E
há filmes: os de Henrique Dantas e o de Emília Silveira, pra lembrar dois.
Em
março de 1971, Theo será condenado à morte.
Sentença
depois reduzida a perpétua...
Não,
não vou contar.
Resisto.
Tenho
de voltar ao meu protagonista.
Navarrinho
soube da comoção da área militar - como não ia saber?
No
enterro, houve choro e ranger de dentes, discursos cheios de ódio e ameaça por
parte de altas patentes das Forças Armadas, clima de raios e tempestades, os
terroristas haveriam de pagar, aquele sangue não fora em vão...
Um
plantão histórico, a render matéria histórica, propiciar o encontro com a
história.
Mais
tarde, eu e Navarrinho, aí os dois no Estadão, nos envolveremos com outra
histórica matéria sobre Theo.
Ele
contará à frente.
Ando
devagar porque já tive pressa.
Tenham
paciência...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Vanda Amorim: Memórias
marcantes.
Helvecio Aguiar: Muito
interessante.
Zeca Peixoto: Paulo Pontes
me deve essa entrevista... mas entendo seu recôndito. Mais uma excelente
crônica, mestre!
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Emiliano José
7
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: chegada de Harry Belafonte, ninguém sabia inglês,
Vera Martins é
salvação da
lavoura,
militante político.
Vou
e volto.
No
início de 1970, chego a Salvador.
Barra
tinha pesado em São Paulo.
Ação
Popular, organização revolucionária a que pertencia, me deslocou para a Bahia.
Nem
sonhava sobre como eram de fato as condições de trabalho dos jornalistas.
Claro,
de longe, imaginava.
Mas,
só de longe.
Navarrinho,
novinho, nos seus 24, 25 anos, sentia todo o clima do pós AI-5, a ferocidade de
Médici.
E
na Bahia, a truculência de ACM, guindado à condição de governador por indicação
do general-presidente.
Vida
que segue.
Há
peripécias, e ainda bem.
Senão
só tristeza, e não era só.
Matéria
sobre Harry Belafonte.
Esperando-o
no aeroporto.
Havia
uma preocupação entre os repórteres: se o cara chega, quem vai falar com ele?
Ninguém
dominava o inglês.
Quando
chega Vera Martins - Navarrinho acredita fosse ela também repórter do
"Jornal da Bahia".
Era.
Eu,
clandestino, estive com ela em 1970.
Salvação
da lavoura: conhecia inglês.
Belafonte
chegou muito tarde.
Vera
Martins, nas minhas lembranças bem nova, provavelmente menos de 20 anos, não só
entrevistou Belafonte, fez as perguntas, como também ajudou a tropa toda na
tradução.
Belafonte
tornou o calipso uma febre nos EUA.
Rei
do Calipso - assim ficou conhecido.
Nascido
no Harlem, em Nova Iorque, infância na Jamaica, ganhou dois Grammy nos anos 60.
É
destacado defensor dos direitos civis, das causas humanitárias, confidente de
Martin Luther King, manifestou-se contra a guerra do Iraque, e esteve ao lado
de Hugo Chaves quando das ofensivas dos EUA contra a Venezuela.
Artista
e militante político de esquerda.
Ocupou
as listas do macartismo.
Nunca
se rendeu.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Copa do Mundo,
Clodoaldo no
Aeroporto, homenagem
do "Jornal
da Bahia", drible de Fernando
Presídio,
malandro, malandro, mané, mané.
Brasil
campeão do mundo.
Tricampeão
do mundo em 1970.
Eu
morava no Alto do Saldanha, em Brotas.
Clandestino.
Ali,
assisti essa conquista, sem muita disciplina por conta da militância.
Um
bela seleção.
Médici
fez a festa.
O
povo, também.
Clodoaldo,
Navarrinho recorda-se dele agora.
Volante,
jogador do Santos, fez uma bela Copa.
No
Santos, sucedia o grande Zito.
Nas
lembranças, Clodoaldo iria pra Sergipe, terra natal.
Comemorar,
ser abraçado por sua gente.
Avião,
escala em Salvador.
Jornalistas,
à espera.
Navarrinho,
com a incumbência de levar o volante à redação do "Jornal da Bahia".
Sabia-se:
a escala seria longa e haveria tempo para isso.
Houve
a coletiva, e terminada, Navarrinho, tentando cumprir a tarefa, chama Clodoaldo
do lado, vende o peixe, exagerando:
-
Sou repórter do melhor jornal do Estado, e houve a decisão de homenageá-lo. Aí,
seria necessária a sua presença na nossa sede. Eu lhe levo, trago de volta.
Clodoaldo
não regateou.
No
meio do caminho tinha uma pedra.
Malandragem
de colega de profissão.
Fernando
Presídio, repórter do "Diário de Notícias", ouve a conversa:
-
Ótimo. Sigo com vocês, a gente passa pelo "Diário", e depois vocês
seguem para o "Jornal da Bahia", tudo muito perto, não há problema.
Navarrinho,
inexperiente, maldade nenhuma, topa.
Pensou
fosse simples carona.
Chegaram
em frente ao "Diário de Notícias", e tudo foi diferente: Clodoaldo
desceu puxado por Presídio, demorou bastante pra voltar, Navarrinho já muito
puto, percebendo a roubada.
Foram
para o "Jornal da Bahia", houve a homenagem, com direito a placa e
tudo, fotos pra burro.
Quando
Clodoaldo foi embora, Rafael Pastore e João Carlos Teixeira Gomes foram pra
cima de Navarrinho.
Mostraram
a ele o quanto de inocência houve naquele gesto de aceitar a proposta de Presídio.
A
matéria era dele, e agora perdia a exclusividade.
Levou
um drible de Presídio.
Malandro
é malandro.
Mané
é mané.
Posou
de mané.
Para
nunca mais.
Consolo:
só se aprende assim, apanhando...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Zeca Peixoto: Que passagem!
Esses detalhes que enriquecem essa bela série. Carlos Navarro tomou um drible,
é certo - tomei tantos na selva jornalística de Brasília rsrs -, ainda assim
conseguiu entrevistar um dos melhores volantes do mundo à época. Clodoaldo era
diferenciado.
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Emiliano José
9 de
julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: navegando em mares
bravios,
aprendendo, repórter bocão,
água milagrosa
de Serrinha, furo,
vingança é prato
que se come frio.
O
ano de 1969 foi um terror.
Era
o imediato pós-AI-5.
O
ano de 1970 foi de consolidação - a ditadura navegava nos resultados do
"milagre econômico", no crescimento de 10% ao ano, muito emprego
calcado nos salários baixos, e ainda por cima houve Copa do Mundo e toda a
festa, como já dissemos.
Nesse
quadro, ditadura seguia matando, sem dó nem piedade.
Navarrinho
navegando por esses mares.
Aprendera
com o episódio Presídio: em tempo onde havia furo jornalístico, não era
possível brincar, não se admitia inocência.
É,
porque então o furo era essencial - a notícia exclusiva dada por um veículo,
deixando os outros a ver navios.
Hoje,
nesses tempos de internet, o furo praticamente desapareceu.
Aprendeu.
Ô
marinheiro marinheiro marinheiro só quem
te ensinou a navegar marinheiro só ou foi o tombo do navio marinheiro só ou foi
o balanço do mar marinheiro só...
Tempo
depois, um ano após, conversa com veterano repórter de um jornal local, e ele
confidencia: iria fazer puta matéria sobre uma água milagrosa em Serrinha,
milagrosa a ponto de dar tesão nos velhos, maravilha.
Chega
no "Jornal da Bahia", informa os editores.
Era
uma quinta-feira.
Sexta-feira,
viajam pra Serrinha, pauta definida - água milagrosa.
Ele
e Rino Marconi, grande fotógrafo.
Uma
das matérias de maior repercussão do jornal, então: famosa água de Serrinha.
Petrobras
havia furado um poço em Biritinga, pequeno município próximo a Serrinha.
Não
encontrou petróleo, mas água: sulfurosa, cheia de sais, e daí pra se tornar
milagrosa, espécie de viagra do sertão, foi um pulo, além de tudo muito
gostosa, água mineral natural.
Navarrinho
deitou e rolou.
Rino,
também.
A
água chegou à cidade, encanada.
Na
foto, primeira página, um bocado de homens mais velhos, comemorando, de mão pra
cima, felizes com a água, virilidade recuperada, as mulheres ficando prenhas,
filhos nascendo, milagre da natureza - pra eles, verdade.
O
velho repórter do outro jornal, de língua solta, de viagem marcada para o
sábado, viu já na sexta a matéria de Navarrinho, em destaque - Serrinha, adeus.
Adeus
para o bocão, não para Navarrinho.
Matéria
possibilitou uma suíte atrás da outra - suítes são desdobramentos de uma
reportagem, de alguma notícia de impacto.
Além
de ser desdobrada no noticiário de outros jornais, de emissoras de rádio, de
tevês.
Malandro
é malandro, mané é mané.
Dessa
vez, não foi Navarrinho a pagar de mané.
Não
importa não tenha sido com Presídio.
Mas,
vingança: prato que se come frio...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Zeca Peixoto: Carlos
Navarro, deu pra apurar se a "água milagrosa" já era da Pfizer?
Emiliano José: Zeca Peixoto
só com Navarrinho
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Emiliano José
10
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: água milagrosa
rendeu, Onassis
encostando o iate em
Serrinha pra
buscar a água, "Jornal da
Bahia" sob
ataque, pequena equipe resiste.
Matéria
da água milagrosa rendeu.
Rendeu
que só a porra.
Povo
começou a noticiar: Onassis, dono de incontáveis milhões de dólares, homem mais
rico do mundo dizia-se, estava pronto a ancorar seu luxuoso navio-iate em
Serrinha, para embarcar milhões de garrafões da água porque estava precisando.
Aristóteles
Onassis, todos vocês sabem, era então um dos empresários mais ricos do mundo.
Havia
se casado com Jacqueline Kennedy em 1968.
Nem
tão velho: seus 65 anos.
Mas,
o povo assegurava: já carecia daquela água.
E
logo seu navio ancoraria em Serrinha - daria um jeito de o mar chegar até lá,
como não?, dinheiro não faltava.
O
sertão ia virar mar...
Se
veio ou não, sei não, ninguém testemunhou.
Nem
desmentiu.
Povo
do sertão é bom pra contar esses causos.
No
meio tem verdade, mas não só.
Navarrinho
só garante uma coisa: foi a matéria de maior repercussão naquele ano de 1971 -
é o ano na memória dele.
Modesto,
afirma: não pelo repórter signatário da reportagem, desconhecido, mas pelo
conteúdo.
Fato:
a partir dali, ficou bem mais conhecido.
Não
foi um período fácil - falo dos anos 1969-1974, período da presença de
Navarrinho no "Jornal da Bahia", a começar a rigor em dezembro de
1968.
E
não foi fácil simplesmente pela perseguição de ACM.
O
soba - ah, como Joca gostava de chamá-lo assim - não deu descanso ao jornal.
Um
pouco antes de a perseguição começar, nas lembranças de Navarrinho, o
"Jornal da Bahia" contava com 35 repórteres.
Era
de um dinamismo fascinante, fervia.
O
jornal mais pujante da época, na avaliação dele.
Quando
a perseguição terminou, restavam cinco repórteres.
Nesses
anos ninguém teve aumento, todos trabalharam dobrado, havia entusiasmo da
equipe em resistir à opressão do soba.
Navarrinho
conta: faziam uma comissão na redação, iam pedir aumento a João Falcão, e saíam
da sala da diretoria dispostos a dividir os minguados trocados do fim do mês.
A
verdade nua e crua: quem teimou em ficar, quem não foi atrás de outra
atividade, eram aqueles dispostos a encampar a briga, a exercer o bom
jornalismo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Isabel Santos: Êtcha
Navarrinho nordestino/cabra danado de bom. Honrou
o
jornalismo desde sempre. Quem ficou, só fez ganhar em aprendizado.
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Emiliano José
11
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: David contra Golias,
ACM usando todos
os métodos, terrorismo
inclusive,
"Jornal da Bahia" resiste até o fim.
Foi
muita história.
Navarrinho
viveu intensamente esse período.
A
briga com ACM rendeu pra burro.
E
rendeu por conta da resistência.
O
"Jornal da Bahia" foi um exemplo nesse período da ditadura.
Não
se dobrou à tirania do soba.
ACM
tentou de tudo: asfixia econômica ao suspender toda a publicidade oficial e
pressionar abertamente o empresariado baiano e do Sul de modo a que ninguém
anunciasse no jornal, calúnias contra João Falcão dando-o como sonegador de
impostos, pedido de enquadramento de Joca na Lei de Segurança Nacional, não foi
pouca coisa não.
Não
contente com isso, passou ao terrorismo: uma bomba foi jogada contra o próprio
João Falcão, no centro da cidade, explodindo a poucos metros de distância dele.
Noutro
episódio, o carro de Joca, teve os pneus cortados e esvaziados, o para-brisa e
a chaparia pichados, a pintura riscada, danificada.
Brinquedo,
não.
Ou
o jornal recuava, deixava se abater, ou reagia.
E
para tanto, carecia coragem, disposição de luta.
A
campanha "Não deixe esta chama se apagar" evidenciou: não haveria
recuo diante do soba.
Com
todas as dificuldades, a circulação aumentou com a campanha - a última
esperança, como definiu João Falcão.
Não,
o jornal não saiu da crise financeira, mas ganhava o alento da continuidade.
Fácil,
não foi.
E
houve ambiguidades.
Teve
de fazer concessões à ditadura.
No
raciocínio de João Falcão, impossível confrontar dois inimigos tão poderosos de
uma só vez.
Enfrenta
essa questão no seu livro "Não deixe esta chama se apagar - História do
Jornal da Bahia".
Inegável,
no entanto, a histórica luta contra o soba - lição de resistência, de
dignidade, a enobrecer a trajetória dos "últimos da Barroquinha",
sede a que vou chegar no início de 1975, saído da "Tribuna da Bahia",
com o jornal já próximo a voltar a respirar, com a posse do novo governador,
Roberto Santos, em março.
As
marcas dessa perseguição persistirão.
Feriram
de morte o jornal.
Idas
e vindas, mudanças de controle acionário, e no início de 1994, o jornal deixará
de circular: 36 anos de uma gloriosa história.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de julho de 2021
Carlos Navarro Filho: jornalismo na
oposição, ACM sempre ameaçador, o gorgulho na estrada do feijão, as sugestas.
Vida
que segue.
Navarrinho
ia tocando o barco sob aquela conjuntura de perseguições ao "Jornal da
Bahia".
Foi
uma fase rica, quanto ao jornalismo.
Afinal,
trabalhar na oposição, quando o repórter deve procurar os malfeitos, é sempre
muito melhor.
Salário,
claro, lá embaixo.
Muitas
matérias interessantes.
"Deu
gorgulho na Estrada do Feijão", uma das mais criativas, pelo trabalho e
pelo título - feita por Oldack Miranda, como já contei.
ACM,
depois disso, mandou fazer a recuperação.
Navarrinho,
chamado por Fred:
-
Essa restauração foi em tempo recorde. Viaje e descubra os defeitos.
-
E se estiver tudo bem feito? - perguntou Navarrinho.
-
É com você - desafiou Fred.
O
mesmo Vigota seguiu com ele - viajara com Oldack na matéria anterior.
Foi,
viu e venceu: descobriu falhas pra burro.
Matéria
publicada, no mesmo dia é mandado para coletiva com ACM, no Palácio da
Aclamação.
Terminada
a coletiva, depois de descer o cacete no "Jornal da Bahia", ACM o
chama de lado, ciente fora ele o autor da matéria, até porque assinada, todo
sorridente:
-
Olhe, conversei muito hoje com seu chefe em São Paulo. Sou muito amigo de
Fernando Pedreira, não sei se você sabe. E ele me disse das alterações que o
jornal vai fazer até o final do ano...
Navarrinho,
ouvindo.
Pedreira
era o redator-chefe do "Estadão".
Uma
sugesta - era mestre em sugestas.
Testava
o jornalista - quem sabe, numa dessas, se assustava, e começava a se render.
Não
era o caso de Navarro.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: primórdios do "Estadão"
na Bahia, pouca
importância dada à Bahia,
mudanças na
economia, começa a se pensar
em sucursal,
Navarrinho e Bel juntos.
E
teve a ida de Navarrinho para o "Estadão".
Sempre
bom contextualizar.
O
centenário jornal paulista não dava muita importância à Bahia.
Olhar
pretensioso.
São
Paulo, centro do mundo, locomotiva do Brasil.
Não
só a Bahia.
Nordeste,
Norte, desconsiderados.
No
máximo, mantinha correspondentes espalhados pelo País.
Durante
algum tempo, manteve um correspondente, Rosquilde Moreira, advogado, sem
experiência jornalística.
No
olhar do jornal, dava pro gasto.
Morreu,
ali no início dos anos 60.
Tinha
três filhos.
A
irmã, Zilah Moreira, também advogada, o sucedeu, e com isso ajudou a criar os
filhos do irmão.
A
Bahia começou a mudar.
Deixava
de ser apenas a terra do cacau.
Chegou
o Centro Industrial de Aratu.
Começa
a surgir o Polo Petroquímico.
Modernizava-se
para chegar à atual sociedade de serviços.
Ganhava
alguma dimensão econômica, e o "Estadão" entendeu a necessidade então
de ter ao menos mais um profissional - jornalista, voltado às lides da
reportagem.
A
própria Zilah Moreira percebeu o dinamismo de Navarrinho, e o colocou ao lado.
Era
ele o repórter.
Quem
ia à rua, fazia os textos, enviava via Simão Alves Dias, ele.
Então,
natural fosse ele o contratado, quando começou a se pensar em sucursal.
Navarrinho
fazia dupla com Agliberto Lima - hoje reconhecido como um dos mais talentosos
fotógrafos do País.
Bel,
como o conhecemos, começou no Arquivo do "Jornal da Bahia", sob a
chefia de Castro - José Henrique de Castro.
Dupla
jornada.
No
arquivo, à noite.
De
dia, acompanhava Navarrinho nas reportagens.
As
do "Jornal da Bahia" e as do "Estadão".
Já
se disse, mas não custa insistir: a redação do "Estadão" funcionava
no "Jornal da Bahia".
Natural,
quando se pensou em sucursal, e Navarrinho acabou escolhido para chefiá-la, Bel
seguisse junto.
O
próprio Navarrinho fez questão dessa companhia, e teve o apoio de Zilah...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: a descoberta da Bahia
pelos grandes
jornais, JB pioneiro, e depois
"O
Globo", "Correio da Manhã", logo
"Estadão",
matéria sobre cidade fantasma.
A
descoberta da Bahia pelos grandes jornais começou no final dos anos 1960.
O
Estado iniciara sua transição, escapando da hegemonia da cultura e produção
cacaueira, e reclamava mais atenção.
A
cobertura jornalística não podia mais restringir-se ao Centro-Sul.
O
Brasil era muito mais amplo - demorou para os grandes jornais descobrirem.
Hoje,
numa rápida e rica conversa, Florisvaldo Mattos revelou-me ser o "Jornal
do Brasil" o precursor das sucursais, dos jornais ao menos.
Ele
chefiando, iniciou as atividades em 11 de agosto de 1968.
Funcionava
no último andar do Edifício Bráulio Xavier,
o décimo sexto, na rua Chile, e também, simultaneamente ao JB, a revista "Manchete", esta
no décimo segundo andar.
Em
dezembro de 1977, o JB inaugura moderna sede própria, no bairro de Pernambués,
onde funciona atualmente a Rádio Metrópole.
Nas
lembranças de Florisvaldo, cuja memória aos 89 anos mantém um viço admirável, a
sucursal seguinte foi a de "O Globo", chefiada por Osvaldo Gomes - na
Cidade Baixa.
Nesse
período, final dos 1960, início dos 1970, funcionou também a sucursal do
"Correio da Manhã", dirigida por Milton Caires de Brito - isso pra
mim, novidade completa: ignorância.
Sônia
Serra, debruçada sobre a rica trajetória de Milton Caires, deve ter detalhes
disso.
Não
sei quando a revista "Veja" instala sucursal, mas também fincará os
pés na Bahia - recordo-me da época de João Santana dirigindo-a, bem mais tarde.
A
sucursal do "Estadão" foi aberta em 1973, também no Edifício Bráulio
Xavier, primeiramente, depois Martins Catharino.
No
entanto, mesmo com sucursal em atividade, Navarrinho continuou mais um ano no
"Jornal da Bahia".
Em
1974, até prêmio.
Ainda
se recorda de matéria sobre o São Francisco inundando Glória Velha para
garantir o funcionamento da Barragem de Moxotó - milhões de metros cúbicos de
água sepultaram tudo, uma cultura constituída desde o século XIX, 1886, quando
fundada.
Surgiu
uma nova Glória, sem vestígios da história da velha cidade.
Matéria,
feita por ele e por Agliberto Lima.
Chegaram
à velha Glória antes de ser inundada.
Já
um deserto, cidade-fantasma, algumas poucas pessoas vagando, tristeza, saudade,
melancolia no ar, indignação, e sem
reação possível.
Rendeu
prêmio, a reportagem do "Jornal da Bahia".
Vamos
passo a passo para entender essa transição de Navarrinho para o
"Estadão", a merecer melhor tratamento...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Chico Bruno: Em 1975 já
existia a sucursal da Veja, na rua da Ajuda, no prédio da agência do Banorte.
Dirigida por Juraci Costa, com Libório como chefe de redação.
Emiliano José: Valeu, meu
velho
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Emiliano José
15
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: um almoço, uma
esperança, um
telefonema, e a vida
começa no
"Estadão" em meados de 1971
Sábado,
manhã.
Ali
pelas 8,30, Navarrinho já está a postos na redação do "Jornal da
Bahia".
A
sexta-feira não fora de muita farra.
Tivesse
sido, e não chegaria tão cedo.
A
ressaca não deixaria.
O
"Estadão" havia decidido incorporar um jornalista aos seus quadros na
Bahia.
Carecia
de reforço.
Zilah
Moreira, a correspondente na Bahia, havia botado os olhos em duas novas
promessas: Mariluce Moura e Navarrinho.
Um
ou outro seria o contratado.
Disse:
-
Quem chegar mais cedo no sábado, será o premiado.
Navarrinho
levou a sério, embora admitisse pudesse ser troça de Zilah.
Ela
foi direto ao ponto, quando ao chegar o encontrou na redação:
-
Você quer vir para o "Estadão"?
Navarrinho,
a bem da verdade, arriscava.
Estava
ali, mas ainda não acreditava fosse verdade.
-
Eu topo - disse, num tom de brincadeira.
Zilah
reagiu:
-
Não estou brincando: hoje chega um diretor do jornal, e eu vou levar a pessoa escolhida para conversar com
ele.
O
jornalista com quem ele e Zilah se encontrariam num almoço, Carlos Garcia,
chefe da sucursal do "Estadão" no Recife, e responsável pelo Nordeste
perante o jornal.
Jornalista
respeitado, passou muitos anos à frente da sucursal de Recife, tendo formado
gerações de jornalistas.
Homem
de convicções democráticas.
Chegou
a ser preso e torturado pela ditadura militar.
Secretário
de Comunicação do governo Cid Sampaio nos anos 1950, foi também secretário de
Cultura no governo de Jarbas Vasconcelos entre 1999 e 2002.
A
covid o levou no dia 27 de abril deste ano.
Durante
o almoço com Zilah e Garcia, Navarrinho sentiu: era uma entrevista.
Informal,
mas entrevista, da qual não saiu com qualquer certeza.
Passada
uma semana, recebe ligação de Garcia:
-
Você será nosso correspondente aí na Bahia, junto com Zilah.
E
desde meados de 1971, a vida dele, por quase três décadas, esteve vinculada ao
"Estadão".
Durante
pouco mais de três anos, como uma
espécie de freelancer fixo - nessa condição já alcançava uma remuneração
superior à do "Jornal da Bahia".
A
vida lhe sorria.
Costuma
brincar:
-
Isso ocorreu porque a minha cachaça na sexta foi menor do que a de Mariluce...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Antonio Lins: Delícia de
texto.
Albenísio Fonseca: O que
aconteceu com Navarro quando assumiu e logo abdicou da presidência do Sinjorba
no início dos anos 80, Emiliano?
Emiliano José: Companheiro,
questão pra ele - certamente responderá.
Jorginho Ramos: Albenísio
Fonseca ...já foi dito nesta série de posts. O ESTADÃO passava por uma reforma
gerencial e ele teve que optar entre uma dedicação integral, absoluta mesmo, e
continuar no cargo ou perder o emprego e ficar no SINJORBA...algo assim !
Albenísio Fonseca: Jorginho
Ramos, coube, então, a você, assumir a direção da entidade, se não me falha a
memória, não foi isso?
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Emiliano
José
16
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: batismo de fogo,
acidente com
mais de 40 mortos,
cobertura
abrangente, aprendizado.
Navarrinho
chegara ao "Jornal da Bahia" no final de 1968.
Meados
de 1971, contratado pelo "Estadão", é possível já se considerasse
pronto, jornalista, pouca coisa a aprender.
Fosse
isso, estava enganado.
Jornalista
nunca está pronto: todo dia, um aprendizado.
Verdade,
verdade o "Estadão" lhe propiciou uma espécie de rito de iniciação.
Inesperado.
Pouco
tempo depois de ser contratado, acredita início de 1972.
Acidente
de um ônibus com um caminhão-baú à altura de Jequié, quatro, cinco horas da
manhã.
Mais
de 40 mortos.
A
rigor, a primeira grande reportagem dele.
Foi
com ela a descoberta dos desdobramentos de um fato, a amplitude de uma
cobertura, a capacidade do jornalismo de cercar um acontecimento por vários
ângulos - se houver noção jornalística, capacidade, visão abrangente.
Foi
a pauta vinda de São Paulo, ampla e circunstanciada, a lhe dar rumos: investigou
os horários de maior incidência de acidentes, e descobriu serem os do lusco-fusco - final da tarde e dia
amanhecendo, quando o motorista cochila, cansado.
Mergulhou
em busca das precárias condições de trabalho dos motoristas de ônibus e de
caminhão, submetidos a jornadas extenuantes, obrigados a tomar bolinhas,
rebites, qualquer coisa para tentar permanecer acordados, nem sempre
conseguindo.
Levantou
acidentes semelhantes.
Procurou
saber situação das estradas da Bahia, obviamente precária.
Ainda
procurou conhecer dos mortos e familiares espalhados por vários estados.
Soube:
as vítimas estavam vindo de São Paulo, voltando para o Nordeste.
Ligou
para as mais variadas autoridades, procurando saber de providências e
discutindo responsabilidades.
Compreendeu
a força de um grande jornal, a possibilidade de uma cobertura ampla, com o
envolvimento de muitas sucursais, especialmente do Nordeste.
Matéria
de página.
Seu
batismo de fogo.
Entre
1971 e 1973, o trabalho jornalístico do "Estadão" era feito a partir
do "Jornal da Bahia".
Em
1973, instalou-se a sucursal no edifício Bráulio Xavier.
Era
o edifício mais querido das sucursais - "Estadão", "Jornal do
Brasil", "Manchete", o escolheram.
Razões,
não sei...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: chefia de redação,
diretor Cleonte
de Oliveira, minha
chegada ao
"Estadão", rápida estadia.
Navarrinho
foi surpreendido: de cara, no início do funcionamento da sucursal, nomeado
chefe da redação.
Nem
cinco anos de profissão.
E
no "Estadão", jornal de maior prestígio do País.
Zilah
Moreira havia vários anos exercia a função de correspondente.
Durante
muito tempo, sozinha.
Depois,
veio Navarro.
Esperava
fosse alçada à condição de diretora da sucursal.
Não
aconteceu.
O
jornal resolveu mandar um jornalista de São Paulo para assumir a função:
Cleonte Pereira de Oliveira.
Para
ela, uma decepção profunda.
A
sucursal do "Estadão" foi escola de muita gente.
Grande
escola.
Nos
primeiros tempos, e Navarrinho ainda há de contar melhor, ele devia estar
acompanhado de Simão Alves, teletipista, com Agliberto Lima, fotógrafo, não sei
se Carlos Gonzalez Passos já o seguiu.
Eu
só fui chegar ao "Estadão", e Navarrinho está devendo dizer como me
descobriu, em meados de 1976 - a admissão, em carteira, está registrada 1 de
julho daquele ano.
Pra
mim, uma grande conquista.
Não
completara nem dois anos de profissão.
Ao
revisitar a velha carteira profissional, deparo-me com sucessivas mudanças.
Vida
de trabalhador.
Entre
outubro de 1974 e fevereiro de 1975, "Tribuna da Bahia".
De
fevereiro de 1975 a setembro do mesmo ano, "Jornal da Bahia".
De
3 de setembro de 1975 a 12 de maio do ano seguinte, na "Tribuna"
novamente.
E
aí, "Estadão".
O
resto de maio e o mês de junho, trabalhei sem carteira assinada.
A
chegada ao jornal paulista representava melhoria salarial: passava dos 2 mil
cruzeiros mensais da "Tribuna" para 3 mil e 330 cruzeiros mensais.
Reforço
considerável para quem tinha filho de um ano e pouco.
E
agora viria o aprendizado da escola "Estadão".
Sob
a batuta do mestre Navarrinho...
Essa
primeira experiência no jornal paulista durou pouco: em 17 de junho de 1977 já
estava de saída.
Já
se viu: reportariado dura pouco nos empregos.
Curta
duração, riquíssimas lições.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Escariz, Gonzalez, Bel
e Simão, além de
Navarrinho e Zilah, os primeiros mosqueteiros da equipe do "Estadão",
chegados no início de 1973.
Navarrinho
estruturou a redação, inicialmente com dois repórteres de esporte, Fernando
Escariz e Carlos Gonzalez Passos, além do fotógrafo Agliberto Lima, do
teletipista, Simão Alves Dias, e dele próprio e Zilah Moreira.
Janeiro
de 1973.
Escariz,
história mais conhecida.
Gonzalez,
domino pouco: fazia do silêncio seu discurso.
Eu
o encontrei no "Estadão" quando cheguei em 1976.
Foi
dos mais longevos.
Ouvir
uma palavra dele, raridade.
Mas,
não o imaginem um taciturno.
Ao
contrário, sempre de bom humor.
Escariz,
convivi naquela redação, e depois.
Tornei-me
muito próximo dele, ficamos amigos.
Dele
e de sua mulher, Kátia.
Cedo,
apaixonado pelo jornalismo, estagiou no "Esporte Jornal", semanário
dirigido por Luís Eugênio Tarquínio.
O
jornal merece estudo, foi a única mídia
a noticiar o futebol baiano por bom tempo.
Ney
Ferreira, presidente do Vitória, cuja história de truculências é conhecida,
mandou dar uma surra no jornalista Cleo Meireles porque ele havia descoberto e
noticiado a existência de um jogador atuando irregularmente no time, sem
obedecer aos requisitos legais.
Toda
a imprensa se solidarizou com Meireles, e o futebol baiano saiu inteiramente
das páginas dos jornais.
O
"Esporte Jornal" surgiu nesse vácuo, e existiu por umas duas décadas,
a partir de 1964.
Depois
do "Esporte Jornal", Escariz passou pela escola "Tribuna da
Bahia", sob a direção de Antônio Matos, cuja equipe de esportes se
notabilizou como uma das melhores da Bahia.
Matos,
amigo-irmão de Escariz, foi a fonte dessas informações.
Navarrinho
levou Escariz para o "Estadão", e ele se dedicava especialmente a
matérias para o "Jornal da Tarde", jornal do grupo, com muito mais
liberdade no estilo, de texto mais leve e solto.
Gonzalez,
voltado mais ao "Estadão".
De
Agliberto Lima, nosso Bel, já falamos um bocado.
Chamo-o
pintor, tal a qualidade de suas fotos.
O
telex, manuseado por Simão, sujeito de ótimo humor.
E
com esse reduzido número de profissionais, dava-se a partida para a constituição
de uma das mais brilhantes equipes das sucursais dos jornais do Sul na Bahia,
sob a direção de Navarrinho.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Zilah Moreira - Foto: Agliberto Lima)
Emiliano José
19
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Gonzalez, Fernandinho,
Sarno, Escariz e
amizade sincera, livro sobre
fuga de
Theodomiro Romeiro dos Santos.
O
protagonista é Navarrinho, não é preciso
ser alertado.
Mas,
ao navegar, a memória provoca.
Gonzalez,
de cujo bom humor já falei, é, também, irmão de
Fernando
Passos, destacado publicitário, cujo talento fez da Engenho Novo uma das mais
criativas e premiadas agências da Bahia, ao lado de Carlos Sarno - os dois,
ligados a mim por laços de militância, Sarno na prisão, Fernandinho companheiro
de processo na Auditoria Militar, e amigos queridos.
De
Escariz, um lote de lembranças.
Recorro
a uma.
Em
novembro de 1979, lançou "Porque Theodomiro fugiu", livro precursor
dos muitos escritos sobre a fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos, em agosto
daquele ano.
É
histórico.
Rodado
pela Emita, gráfica sempre utilizada por nós, da esquerda, numa edição
artesanal.
Merece
nova publicação, tal a sua importância.
Reúne
não só as circunstâncias da fuga, como depoimentos de Paulo Pontes, meu,
prefácio de Joviniano Neto, a carta de Haroldo Lima anunciando a fuga, e uma
longa entrevista de Theo dada antes da saída da cadeia, recusada pela grande
imprensa.
Resisto,
mas cedo, em divulgar a dedicatória, reveladora da profunda amizade dele por
mim, recíproca - e os amigos sempre exageram, digo isso a sério, para alertar
os leitores:
"Amigo
Emiliano, das pessoas que conheci ao longo da vida, você foi uma das que mais
me marcou. Talvez, a que mais me marcou. Certamente pelo volume de informações
que me transmitiu, permitindo que eu pudesse estabelecer parâmetros com o que
tinha armazenado, e reformular muita coisa que já não tinha sentido. Tudo isso,
porém, só foi possível depois que percebi o homem que você é, uma figura humana
maravilhosamente forte e verdadeira. Este filho, também é seu. Até porque
começou a ser gerado há alguns anos, quando lhe conheci em uma visita à redação
do JBa. Amadurecido com o passar do tempo, ele explodiu no contato com Theo, a
quem já admirava antes de apertar-lhe a mão. Sinceramente, obrigado. Um forte
abraço. Fernando Escariz, 19-11-1979."
Vale,
insisto, como documento de uma amizade a perdurar sempre, até o desaparecimento
dele, precocemente.
O
olhar dele sobre mim é fruto dessa amizade, e as amizades suscitam exageros
obviamente, como nesse caso - reitero.
A
convivência com ele foi muito enriquecedora, jamais esquecida.
Tocando
em frente.
Desde
o final de 1972, Zilah Moreira se batia à procura de um local para a sucursal
do "Estadão".
Acabou
fixando-se numa sala do edifício Bráulio Xavier.
Pouco
tempo depois, essa sala terminou virando dor de cabeça...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: na transição, muitas
mudanças e
decepções, equipe sendo
montada, a
descoberta das promessas.
Comprou-se
a sala no edifício Bráulio Xavier.
Dono
morava nos EUA.
Não
houve o devido cuidado com os documentos.
Sujeito
morreu.
Deu
um rolo danado, não houve chance de passar a escritura.
Quando
cheguei, em 1976, sucursal ainda era no Bráulio Xavier.
Algum
tempo depois, edifício Martins Catharino, também na rua Chile.
Nessa
transição, 1973, Zilah Moreira, certa de vir a ser a diretora, tomou um tombo.
Cleonte
Oliveira era antigo na casa.
Gozava
de prestígio, velho editorialista.
E
enfrentava problemas naquela quadra da vida.
Com
o álcool.
Melhor
mandá-lo para o Nordeste.
Surgida
a vaga em Salvador, pronto.
E
Zilah Moreira, na saudade: recebeu a desagradável notícia de Laurita Mesquita,
mulher de Rui Mesquita, um dos donos do jornal.
Não
gostou, óbvio.
Inimiga
do novo diretor durante toda a estadia dele na Bahia.
Além
de profundamente decepcionada com a família Mesquita - como a trataram assim,
depois de tanta dedicação, tantos enfrentamentos com ACM, tanto empenho pelo
jornal?
Coisas
da vida, lógica de patrões.
A
suceder Oliveira, mais tarde, o grande Raul Bastos, de quem me tornei amigo,
creio já na minha segunda fase no "Estadão".
Depois
daqueles primeiros mosqueteiros - Gonzalez, Escariz e Bel, além de Simão -
Navarrinho leva Pedro Formigli.
Notável
jornalista, dono de texto seguro, limpo, excelente companheiro, amigo a toda
prova.
A
Bahia, com seu desenvolvimento, mais e mais exigia cobertura ampla.
Formigli,
então na chefia de reportagem do "Jornal da Bahia", reforçou a
equipe.
E
foi providencial a chegada dele.
Ajudou
Navarrinho a ir compondo o time necessário àquela nova fase do
"Estadão".
Havia
passado pela "Tribuna da Bahia" e agora pelo "Jornal da
Bahia".
Conhecia
muita gente, dominava as qualidades de cada repórter.
Foi
ele a indicar Teixeirinha - José Carlos Teixeira.
A
apontar Césio Oliveira.
Creio,
no entanto, isso deva ter ocorrido ali pelos anos 1977/78, pois eu já estava no
"Estadão" quando os dois chegaram ou então chegamos quase juntos.
Eu
e Teixeirinha dividimos chefia de reportagem no "Jornal da Bahia",
antes.
Césio,
em 1975, era chefe de reportagem no "Jornal da Bahia".
O
fato é: Navarrinho, com a ajuda de Formigli, foi atraindo os melhores para o
"Estadão".
Ao
receber de São Paulo sinal verde para o aumento da equipe, procurava saber quem
estava despontando.
Foi
assim comigo - me revela agora.
Minhas
passagens pela "Tribuna" e pelo "Jornal da Bahia" haviam me
dado alguma notoriedade, e lá fui eu, chamado por Navarrinho.
Por
aquela redação, passaram ainda José Barreto de Jesus, Jadson Oliveira,
Demóstenes Teixeira, e mais tarde, Biaggio Talento, Paulo Leandro...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: sobressalto das
crises
econômicas, demissões,
minha passagem
pelo "Estadão".
O
"Estadão" vivia os sobressaltos das crises econômicas sob a ditadura.
Senti
isso na pele.
A
primeira dessas crises me atingiu em meados de 1977.
Havia
sido contratado em julho de 1976.
Final
de maio de 1977, começou discussão sobre quem cortar.
Ordem
de São Paulo.
Disse
logo: claro, sou o mais novo, corte deverá recair sobre mim.
Critério
óbvio - defendi.
Não
sei se isso contou, mas fui demitido, e sei do quanto isso desgostou Navarrinho
- tinha de cumprir a ordem.
Baixa
na carteira: 17 de junho de 1977.
Da
vida - fazer o quê?
Poucos
dias passados, e assumia como chefe de reportagem do "Jornal da
Bahia" - carteira assinada dia 26 de junho daquele ano.
Do
ponto de vista salarial, até melhorei de vida: Cr$ 3.000 de salário-base, Cr$
5.000,00 de gratificação de função e Cr$ 2.000,00 de adicional de classe.
Segui
no "Jornal da Bahia" até dia 5 de janeiro de 1979.
Navarrinho
não havia desistido de mim: foi o "Estadão" abrir para uma
contratação, e me chamou novamente.
Dia
12 de janeiro de 1979 inicia minha segunda fase no "Estadão".
Remuneração
de Cr$ 10.983,00, repórter II.
Três
anos de uma experiência única, repleta de lições e de aprendizado.
Um
mestre a repassar ensinamentos: Navarrinho.
A
crise viria novamente, e no início de 1982, aos 36 anos, cinco dias depois do
meu aniversário, 10 de fevereiro, deixava o "Estadão".
Triste.
Quem
me lembrou dessas crises, a alcançar vários da notável equipe montada por ele, em
momentos diferentes, foi o próprio Navarrinho.
O
bom é ter a velha carteira profissional, com registros precisos.
Como
é precioso esse documento.
Ali,
redescubro o real endereço do edifício Martins Catharino: Travessa da Ajuda, 1,
salas 903/904/907.
Dizíamos
rua Chile porque de fato era uma pequena travessa, de poucos metros, encostada
àquela rua.
Revejo
a data de minha primeira admissão como office-boy no Banco Comercial do Brasil
em São Paulo, aos 14 anos de idade: 1 de outubro de 1960.
Tempo,
tempo, tempo.
Com
as crises econômicas, demissões decorrentes do agravamento da crise nos anos
80, quando a sucursal mudou-se para o Max Center, na Pituba, Navarrinho contava
com apenas dois ou três repórteres, obrigado a se virar nos trinta.
Relembra,
e o faz com modéstia, a qualidade da equipe de jornalistas montada por ele
naqueles anos - se tenho algum mérito profissional, começa...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: melhor equipe das
sucursais,
grandes talentos, a gente
sabe a quem
chama de mestre.
Navarrinho
tem convicção: os profissionais reunidos por ele, entre meados dos anos 1970 e
1980, constituíram a melhor equipe de uma sucursal na Bahia.
Talentos,
ele os reuniu, deu polimento, e quando o "Estadão" foi
dispensando-os, encontraram abrigo com facilidade.
Não
é pouca coisa ter a sobriedade e elegância do texto de Pedro Formigli.
A
leveza das matérias de Escariz, estimulado pelo "Jornal da Tarde".
A
maestria de Césio Oliveira, criativo e hábil com as palavras.
O
manejo ousado de Barretinho com cada palavra, quase poeta.
A
sobriedade de um Carlos Gonzalez.
A
fotografia de Agliberto Lima, notabilizado desde lá como um dos maiores
fotógrafos do Brasil.
A
elegância de Teixeirinha, secundada por sua vasta cultura literária.
A
intrepidez de Jadson Oliveira.
Alguns,
estou me lembrando.
Não
estive lado a lado com Biaggio, nem com Paulo Leandro, mas sei do quanto
contribuíram com essa equipe.
Navarro
fala ainda de Coelho, a quem vi, de passagem, na "Tribuna da Bahia",
ali pelo final de 1974, quando iniciava minha trajetória jornalística.
E
é provável algum nome me escapar.
De
fato uma equipe notável.
Caetano,
ao falar da visita feita a ele e a Gil no exílio londrino por Roberto Carlos,
das tantas coisas ditas, revelação do quanto chorou naquele dia, ensinou: é
muito importante saber a quem a gente chama de rei, tão emocionado pela
solidariedade, e reconhecendo a majestade.
Considero
importante também saber a quem a gente chama de mestre.
São
poucos na vida.
Revelam
caráter, sabedoria, talento.
São
tolerantes, capazes de orientar pessoas.
Têm
carisma.
E
dos mestres, jamais se esquece.
Aquela
equipe foi resultado de um mestre, com todas essas qualidades.
Nós,
daquela equipe, sabemos a quem chamamos de mestre.
Nunca
o esqueceremos.
Parabéns,
mestre Navarrinho.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Max Center e o
fim da sucursal
em 1997, raízes da
crise desde os
anos 1970, a explosão
da dívida, e a
mudança da gestão
empresarial a
partir da transição geracional.
Quando
houve a transferência da sucursal para o Max Center, Navarrinho deslocou Carlos
Gonzales para a administração de modo a não perdê-lo.
Repórteres,
apenas Paulo Leandro e Biaggio Talento.
Vacas
magras.
Em
1997, praticamente se encerrava a vida da sucursal.
"Estadão"
entregou à sucursal de Minas Gerais a responsabilidade pela Bahia.
Talvez
não tenha sido dito: houve tempo de a sucursal de Salvador ser responsável pela
cobertura de todo o Nordeste.
Como
não havia sucursais nos estados, e como a de Recife também foi desmontada,
Navarrinho tomou a providência de designar um correspondente para cada capital
nordestina.
Quando
tudo acabou, restou um correspondente cobrindo todos esses estados.
Também
não foi dito: no tempo da sucursal dirigida por Navarrinho, montou-se também
uma rede de correspondentes espalhada pelo interior da Bahia - Barreiras, Feira
de Santana, Juazeiro, Vitória da Conquista e Itabuna.
Não
se pretende aqui discutir a crise dos 1970/1980 do Estadão.
Duas
ou três palavras apenas.
Parece,
acompanhando relato de Navarrinho, ter sido provocada por ilusões próprias de
período de ditadura.
Tomou-se
um vultoso empréstimos em dólares para construir a majestosa sede do jornal,
situada à avenida Marginal, na capital paulista.
Nessa
época, alguns meios de comunicação entraram nessa esteira de grandes,
imponentes sedes - a Editora Abril, revista "Veja" incluída, também
entrou nessa barca.
Delfim
Netto garantia a eles que não haveria explosão inflacionária.
O
"Estadão" deu com os burros n'água: inflação disparou, e o débito em
dólares foi pras nuvens.
Impagável.
Quem
paga o pato?
Os
trabalhadores, jornalistas e funcionários administrativos, os assalariados, os
de baixo.
Por
isso, aquelas demissões a atingir a brilhante equipe montada por Navarrinho.
Havia
ainda o fato de estar acontecendo uma transição geracional.
Saíam
os velhos Mesquita, Júlio Mesquita Neto e Rui Mesquita sobretudo, e entravam
Julinho, Rodrigo, Ruizito.
A
empresa transformou-se em um aglomerado de unidade de negócios.
Com
isso, a "Agência Estado" (AE), responsável por 80%, 90% do
noticiário, também foi transformada numa unidade de negócios...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: na crise, reestruturação
leva à dedicação
exclusiva dos jornalistas,
equipes ganham
novo ânimo, e Agência
Estado começa
processo de inovação.
Na
reestruturação do "Estadão", a Agência Estado (AE), motor do
jornalismo do jornal, virou também "unidade de negócios", dirigida
por Rodrigo Mesquita, nova geração.
Navarrinho
faz justiça: ele pensava notícia, jornalismo,
comunicação,
acompanhava a modernização na mídia.
Fez
coisas pioneiras, das quais Navarrinho se orgulha de ter participado.
Isso
acontecia ali pelo final dos anos 1980.
Os
remanescentes, os não demitidos na tempestade da crise gerada pela enorme
dívida em dólares, foram chamados a São Paulo para uma reunião decisiva.
Ouviram:
-
Olhem aqui, tudo mudou. Não queremos mais repórteres de meio turno, ninguém
mais fazendo bico para sobreviver.
A
Agência Estado iria entrar noutro ritmo.
Navarrinho
se recorda do início dos anos 1980, quando combinou a atividade da chefia do
"Estadão" com a dura tarefa de redator-chefe do "Jornal da
Bahia" - passado um ano, e concluiu ser impossível conciliar as duas
responsabilidades, jornada de 20, 21 horas diárias era inviável.
Bico
pesado, não obstante bem remunerado.
Nessa
reestruturação, com a exigência de tempo integral, dedicação exclusiva ao
jornal, a AE, de modo a garantir a determinação, triplicou o salário dos
remanescentes.
Vida
melhorou.
Equipe
do "Estadão", naquele final dos 1980, enxuta.
Obrigada
a se desdobrar.
Ganha
novo ânimo.
Volta
a viajar.
Navarrinho
faz um parênteses: a turma de direção da AE naquele momento era da fina flor do
jornalismo brasileiro.
Sandro
Vaia, Eloi Gertel, Júlio Moreno, alguns nomes lembrados por ele, pensavam a
mil, criativos, destemidos.
Registra:
eram, porém, péssimos administradores.
Comento:
administrar não era tarefa deles.
A
AE, nessa nova fase, deu ânimo às reduzidas redações espalhadas pelo Brasil, e
começou a exercitar a criatividade, a desenvolver novos produtos para o
mercado.
Como
o News Paper, transmitido por fax, acompanhando inovação desenvolvida pelo New
York Times...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Estadão,
New
York Times, modernização,
News Paper, Fax
Paper, Fax Eventos.
O
Estadão, naquele início dos anos 1990, parecia estar disposto a acompanhar os
tempos modernos.
Para
dar, quem sabe, sobrevida ao jornal impresso, começou um processo de
modernização.
A
Internet ainda não dera as caras no Brasil.
Só
o fará no mercado ali pelos meados dos anos 1990.
A
AE, nessa fase, parecia correr contra o tempo.
Olhava
a evolução da imprensa mundial, e tentava seguir os mesmos passos.
Lançou
o News Paper.
Tal
e qual modelo adotado pelo New York Times.
Jornal
de três, quatro páginas, tamanho ofício.
Primeira
página, com manchetes principais dos jornais do dia.
Um
apanhado sintético do noticiário do dia, síntese das principais matérias
publicadas, ainda na primeira página.
Nas
outras páginas, sequência desse material.
Os
repórteres e editores trabalhavam a partir de meia-noite, fechavam o jornal ali
pelas quatro da manhã, e às cinco era despachado por fax para a clientela,
basicamente constituída de empresários, políticos, governos, círculos do poder.
Uma
inovação, uma revolução.
A
pessoa chegava ao seu escritório, ali pelas 8 horas da manhã, e já tinha à sua
frente um bom resumo de todo o noticiário a ser divulgado pela imprensa no dia.
O
cliente carente de notícias internacionais, era também atendido - editava-se o
material do New York Times e mandava-se.
Navarrinho
foi o precursor da ideia do Fax Eventos.
Ideia
surgiu a partir da realização em Salvador da III Conferência Íbero-americana,
em 1993, quando a cidade era governada por Lídice da Mata.
Acontecimento
de repercussão mundial, presença de muitos chefes de Estado.
Mais
rumorosa, a de Fidel Castro.
Qual
era a ideia?
Estadão
cobria o evento, e adotava a mesma sistemática do News Paper: nas primeiras
horas do dia, a clientela receberia tudo sobre ele.
Prefeitura
topou, foi sucesso, e a AE encampou a ideia, reproduzida assim em todo o País.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: Fax Eventos, iniciativa
precursora e de
sucesso, vários
acontecimentos,
boa rentabilidade.
Nisso
do Fax Eventos, Navarrinho gostou da sugestão de Domingos Leonelli, então
secretário de Comunicação da prefeitura de Salvador:
-
Por que você não faz um pré?
Era
a pergunta de Leonelli.
-
Explique melhor - pediu Navarrinho.
-
Uns 15 dias antes, você inicia a cobertura, faz o esquentamento. Isso atrairá
gente, chamará atenção. E depois, você cobre o evento todo.
Navarrinho
gostou da ideia.
Claro,
Leonelli, além de político, festejado publicitário, estava pensando na
prefeitura de Salvador, na capitalização midiática do encontro para a
administração local.
Mas
boa ideia não se perde, e a partir daí, Faz Eventos passou a se dar dessa
maneira.
Havia,
ainda, o pós, pensado por Navarrinho: interpretar o acontecimento e seus
desdobramentos.
A
Cumbre realizada em Salvador foi o acontecimento precursor do Fax Eventos.
Fez
sucesso, e voou.
Rodolfo
Spíndola, chefe da sucursal do Ceará, mais afeito aos negócios, saiu na frente
e passou a vender o Fax Eventos - Navarrinho, ótimo na criação, bom no
jornalismo, na inovação, não era bom vendedor.
As
sucursais, nesse processo de inovação, foram levadas a criar um departamento
comercial para promover a venda dos novos produtos.
Em
Salvador, o responsável era Carlos Gonzalez.
Navarrinho
lembra-se de operação semelhante à da Cumbre, Fax Eventos.
Em
Manaus, um evento mundial de meio ambiente.
No
Pará, reunião da OEA.
No
Ceará, encontro internacional de turismo.
Na
III da Cumbre, edições bilíngue: português e espanhol.
Na
reunião da OEA, do meio ambiente e do turismo: português, inglês e espanhol.
No
turismo, também trilíngue.
O
fato é que tais eventos, naquele momento, reunidos, renderam coisa de 500 mil
dólares ao Estadão - inovação rentável.
Navarrinho
chefiava todas as redações desses Fax Eventos, sempre prestigiando os
profissionais locais.
Na
época, a transmissão por fax era o maior avanço tecnológico na transmissão de
notícias.
Ainda
não havia a internet - ao menos para a transmissão noticiosa.
Era
o meio mais moderno.
Uma
equipe em São Paulo, na madrugada, comandava toda a operação de envio.
Na
madrugada porque o trânsito na telefonia era tranquilo e também porque afinal
os clientes deveriam receber os produtos nas primeiras horas do dia.
Foi
um momento de muita ebulição, muito trabalho, muita inovação...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: notícias quase em
tempo
real, mudanças aceleradas, novos
produtos,
diretores de sucursal e também executivos
A
mudança do Estadão, a implantação das chamadas unidades de negócio, tudo
aconteceu no final dos anos 1980.
Atitude
mais ousada, positivamente agressiva em
relação ao mercado.
Já
falamos dos News Paper, do Fax Eventos, diabo a quatro.
Evoluiu
ainda para o Brodcast, com o jornal passando a divulgar notícias em tempo real.
No
meio dessa agitação, surge o celular, a nova e surpreendente novidade - ainda
eram uns tijolões.
Os
diretores de sucursais, os repórteres indicados para as principais coberturas
receberam um daqueles estranhos aparelhos.
Com
essa máquina à mão, o repórter já mandava de onde estivesse o flash do acontecimento, outro avanço no
processo de modernização, agilidade no noticiário.
Nessa
primeira informação, já se desenhava a matéria e seus desdobramentos, tudo
curto e grosso.
O
lead de alguma forma já vinha nas palavras do repórter.
Na
Rio 92, encontro mundial de meio ambiente, isso foi amplamente utilizado pelo
Estadão.
Não
se pode dizer notícia em tempo real, mas próximo disso.
Havia
um cálculo nessa operação: a notícia deve aparecer três ou quatro minutos após
o fato, quase em tempo real, avanço da porra.
A
Brodcast selou isso, inaugurada em 1991, com uma grande festa em São Paulo.
A
AE, com essas iniciativas, passou então a desenvolver uma política ousada de
vender isso.
E
os melhores vendedores dos novos produtos deviam ser os próprios jornalistas,
dado o seu conhecimento.
E
assim Navarrinho e todos os demais diretores de sucursal foram alçados à
condição de executivos.
Tinham
de ser virar nos 30 - tocar a redação e as vendas.
No
jornalismo, passaram também a redigir para a emissora de rádio do grupo, a
Eldorado, e a passar notícias em tempo real, entrando no ar.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: admirável mundo
novo, Broadcast
cresce, o pulo do
gato do
jornalismo, Estadão na ponta.
Tudo
era mudança, ebulição naquele final dos anos 1980, início dos 1990.
Nós
já falamos de raspão, não custa falar um pouquinho mais da Broadcast, adquirida
pelo Estadão em 1991.
Empresa
dedicada ao fornecimento de cotações de ações e comodities no mercado
financeiro, nas mãos do Estadão em menos de dois anos se tornou a empresa líder
no mercado.
Cobria
o pregão da Bolsa, em tempo real.
Mantinha
mesa de operações no interior do próprio edifício da Bolsa, em São Paulo.
Houvesse
atraso de segundos e ela informava - afinal, qualquer atraso pode significar um
prejuízo monumental para quem investe.
Não
podia dar informações defasadas.
Contando
com uma equipe de profissionais espalhada por todo o País, expande suas
atividades.
Não
ficou apenas no fornecimento em tempo real das cotações da Bolsa.
Ainda
em 1991, lança três boletins no mercado, com dados conjunturais, análises de
tendências, notícias de bastidores e antecipação de informações políticas e
econômicas.
O
jornalismo se fazia presente, e dinamizava a empresa.
Foi
o pulo do gato.
Agregou
valor.
O
cliente da Broadcast comprava não só o acompanhamento do pregão como também uma
leitura qualificada do mercado financeiro, da conjuntura econômica e política
do País, os grandes negócios feitos fora da Bolsa, incorporações, diabo a
quatro, senão em tempo real, quase
O
Jornal do Brasil ainda tentou competir na área, como lembra Navarrinho, mas não
tinha a mesma rede do Estadão, e não deu nem pra começo.
As
informações da Broadcast chegavam ao cliente pelas chamadas bandas ociosas de
rádio e televisão - Navarrinho lembra da utilização de bandas ociosas da Rede
Bandeirantes, da SBT, entre outras.
E
utilizava muito também as bandas ociosas das emissoras de rádio.
Na
Bahia, por exemplo, usou-se muito a Rádio Educadora, única com FM 30 quilos -
com essa potência, as transmissões chegavam bem inclusive ao interior do
Estado.
Tudo
parecia a promessa de um futuro radiante.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: jornalista e executivo,
múltiplas
tarefas, vendedor de produtos
da Agência
Estado para governadores
e empresários,
rotina de aeroportos e hotéis.
Mudou
muito a vida de Navarrinho nessa nova fase do Estadão.
Trabalho
aumentou muito.
Diversificação
de funções.
Se
acontecia alguma coisa, estivesse fazendo uma cobertura, pegava o celular,
ligava para a Rádio Eldorado, do grupo Estado, e entrava no ar, cobertura em
tempo real.
Não
tinha aquele tempo todo anterior pra pensar o lead, refazê-lo fosse o caso.
Nada
disso, tudo a quente, um novo aprendizado.
Muitos
dos jornalistas do Estadão, naquela fase, foram obrigados a aprender também a
redigir matérias para rádio.
Havia
a cobertura em tempo real, aquela pelo celular.
E
havia também a necessidade de mandar matérias escritas, a serem transmitidas
pela emissora.
Navarrinho
não tinha nada a aprender nesse quesito - desde menino lidou com o rádio, sabia
tudo.
Repórteres
aprendiam: para uma leitura pausada do locutor, com as entonações de praxe,
matéria para um minuto, muito tempo em rádio, não devia ultrapassar 20 linhas,
um pouco mais.
Se
for notícia de 30 segundos, reduzir pela metade.
E
com a história de o diretor de sucursal ser também executivo, o trabalho
dobrava, às vezes triplicava.
E
ele não era apenas diretor da sucursal de Salvador.
Era
responsável agora por Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande
do Norte - diretor regional.
Uma
vez por mês, visitava os govenadores de todos esses Estados, prefeitos das
capitais, principais empresários, dirigentes de federações de indústria,
percorria os corredores do poder político e econômico.
Missão:
vender os produtos da Agência Estado.
Os
governadores costumavam comprar alguns dos produtos da Agência, destinados
exclusivamente aos gabinetes deles - precisavam estar informados desde as
primeiras horas do dia, e acompanhar os acontecimentos na sequência.
Navarrinho
passou uns cinco ou seis anos na rotina massacrante de aeroportos e hotéis,
sobe-desce nordestino
E
depois da cruzada nordestina, passava uma semana em São Paulo, acertando os
ponteiros, prestando contas, discutindo rumos.
O
Hotel Eldorado de Higienópolis em São Paulo era quase morada dele.
Além
de dirigir a redação do jornal em Salvador, era incumbido de todas essas outras
tarefas executivas.
Numa
dessas viagens, viveu uma cobertura emocionante...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: cobertura inesperada, um ex-governador recebe três tiros de um
governador, Navarrinho encerra sua longa jornada no Estadão.
Navarrinho
estava ali pelo segundo uísque.
Ninguém
é de ferro.
Almoçava
num restaurante afastado, com alguns amigos.
Já
havia cumprido suas tarefas de executivo em João Pessoa, conversado com quem
tinha de conversar, vendido alguns dos produtos da cesta de ofertas da Agência
Estado.
Além
de tudo, sexta-feira.
Às
vezes, em poucos momentos, aquela vida de executivo o agradava.
Afinal,
não requeria ficasse atento 24 horas por dias, pauta sobre pauta, mesmo chefe
sempre repórter, que a vida não para.
Jornalismo,
aventura incessante.
Naquele
dia, 5 de novembro de 1993, estava assim, naquele almoço.
Relaxado.
De
repente, no entanto, viu-se arrastado para o jornalismo, para uma cobertura
imprevista, e cheia de lances cinematográficos - é, cinematográficos, não
encontro outro termo.
Aconteceu
no restaurante Gulliver distante do local onde ele estava.
O
ex-governador Tarcísio Burity almoçava tranquilamente, cercado de amigos.
De
repente, chega ao restaurante o governador Ronaldo Cunha Lima.
Dirige-se
à mesa de Burity, saca revólver, e dispara três tiros.
Reagia
às críticas feitas pelo ex-governador ao filho dele, Cássio Cunha Lima, então
superintendente da Sudene, minutos
antes, durante entrevista a uma emissora de TV de João Pessoa.
Burity
sobreviveu aos tiros, depois de alguns dias em coma.
Cunha
Lima morreu sem ser julgado.
Navarrinho,
avisado, teve de abandonar o terceiro uísque, comida pelo meio, e cair de boca
na inesperada cobertura.
Jornalista,
sempre jornalista.
Dali
a coisa de três anos, Navarrinho encerraria sua trajetória no Estadão.
Uma
vida: três décadas.
Dezembro
de 1996, e vê sacramentado o fim.
Registra:
o jornal pagou tudo de seu direito.
Superou
as expectativas.
Entrasse
com uma ação, e não receberia tudo o que lhe caiu nas mãos.
Por
isso, aceitou a sugestão dos seus superiores de continuar a ajudar na
transição, recebendo apenas as diárias de viagens, os pagamentos decorrentes de
sua movimentação pelo Nordeste...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Sérgio Buarque de Gusmão: Eu já tinha
acertado com o Fernando Morais escrever minha biografia, mas, depois desse show,
acho que vou procurar o Emiliano..
Emiliano José: Não obstante
óbvias insuficiências, seria honroso.
Joaquim Lisboa Neto: Ronaldo Cunha
Lima. Seresteiro. Grande amigo de Clodomir Morais
Emiliano José: Verdade
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Emiliano José
31
de julho de 2021
Carlos Navarro
Filho: fim das sucursais
médias,
sucursal de São Paulo assume
vendas da
Agência Estado, Navarrinho
negocia saída do
jornal, e tem início nova vida.
Navarrinho
acompanhava as mudanças do Estadão logo após a primeira metade da década de
1990.
O
jornal, diante das dificuldades, entrou numa de corte de despesas.
Não
era a primeiro corte.
Agora,
no entanto, mais radical.
Resolveu
fechar todas as sucursais médias: Salvador, Fortaleza, Curitiba e Porto Alegre.
São
Paulo passa a concentrar as vendas dos produtos da Agência Estado.
O
grupo Estado não teria mais as despesas com diretores de sucursais cruzando os
céus do Brasil, não pagaria mais hotéis, alimentação, carro alugado, diabo a
quatro.
A
sucursal de Minas Gerais assumiria a da Bahia.
Com
isso, com a demissão de tanta gente, houve acentuada economia.
Não
há novidade.
Nas
crises, as empresas capitalistas cortam na carne.
Na
carne dos trabalhadores.
Às
vezes, há ilusões sobre o jornalismo.
Como
se fosse um mundo à parte, como não tivesse de seguir a lógica implacável do
mundo do capital.
Não
é um mundo à parte.
Navarrinho
considera ter vindo em boa hora a demissão do Estadão.
Foi
sem briga, muito amigável.
Mas
era uma ruptura, mudança profunda na vida.
Positiva.
Confessa:
já estava cansado da vida em redação.
Não
obstante a vida de jornalista nunca seja rotineira, cada dia é uma novidade, já
decorrera quase três décadas nessa lida, e uma virada na existência vinha a
calhar.
É
vida dura, a de jornalista.
Não
tem domingo, não tem feriado, no caso dele muito tempo afastado da família
pelas constantes viagens, não é vida de gente normal.
A
saída foi negociada.
Procurou
a direção do Estadão, propôs fosse demitido com todos os direitos, deu
garantias de seguir ajudando o jornal pelo tempo necessário, e assim foi feito,
e em meados de 1997, desligava-se definitivamente.
Outra
vida...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
1º
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: giro na vida, projetos,
emplaca revista
para agricultura, e começa
vida das
campanhas políticas, Roseana Sarney.
Mudar,
esses giros de 180 graus na vida, não é tão simples.
Navarrinho
não pretendia parar, se aposentar.
Quis,
isso quis, dar um basta naquela rotina de quase 30 anos.
Não
mais aquela obrigatoriedade de acordar pensando nas pautas, escrever o mundo,
nunca dormir sossegado.
Jornalista,
quando olha pra trás, deve se perguntar sobre quanto da vida dedicou aos seus
familiares, indagar se conseguiu acompanhar o crescimento dos filhos, do tempo
dedicado aos seus.
Nunca
é, ou raramente é, um balanço muito alentador.
A
partir dali, Navarrinho queria voltar-se um pouco mais para os seus.
Curtir
os dias, os finais de semana.
No
entanto, não queria se aposentar.
Naqueles
seis meses, segundo semestre de 1997, danou-se a fazer projetos.
Valia-se
de sua experiência como jornalista e como executivo.
Elaborou
um para a Odebrecht, voltado à imagem da empresa, referente aos investimentos
em Costa do Sauípe.
Ia
elaborando, entregando projetos aqui, acolá.
Um
emplacou.
A
Bahia vivia o boom do Oeste na área agrícola e Navarrinho imaginou uma
publicação impressa voltada à atração de investimentos para o setor primário.
Depois
do sinal verde do governo do Estado, envolveram-se Banco do Nordeste,
Associação dos Irrigantes, cooperativas de crédito agrícola, umas cinco ou seis
entidades, e através de um convênio tornaram o projeto uma realidade.
Para
isso, contou muito a competência e a boa vontade do economista Ronald Lobato,
dirigente do IMIC - Fundação Instituto Miguel Calmon de Estudos Sociais e
Econômicos.
O
IMIC administrava o convênio.
A
revista Bahia Negócios Agrícolas ganhou as ruas.
Afirmou-se
por uns três, quatro anos como o principal veículo de divulgação e promoção da
área agrícola no Estado, alcançando inclusive investidores do exterior com interesses na Bahia.
Simultaneamente,
em 1998, envolve-se na campanha de Roseana Sarney, candidata a governadora no
Maranhão.
Chamado
por Antonio Lavareda, deveria escrever o plano de governo dela.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Nilson De Vasconcelos Meira: Lembro-me
muito bem da revista Bahia Negócios Agrícolas. Riquíssima em informações na
época. Depois da Internet essas publicações desapareceram. Li recentemente
Goroba e seus Amores Errantes, de Carlos Navarro, Navarrinho para os íntimos.
Este livro tem alguns toques surrealistas e lembra um pouco dos escritos de
Gabriel Garcia Marques.
Emiliano José: É fato.
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Emiliano José
2
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: novo desafio,
campanha de
Roseana Sarney, plano
de governo,
bem-sucedido, outras possibilidades profissionais
Navarrinho
gostou do desafio profissional.
Nunca
havia trabalhado na área do marketing político.
Antonio
Lavareda, pernambucano, estudioso na área de pesquisa eleitoral, apresentador
de televisão, procura Fernando Escariz e pede indicação de uma pessoa capaz de
elaborar o plano de governo da candidata Roseana Sarney.
Escariz
não titubeia: indica Navarrinho.
Corria
o ano de 1998.
Bobo
nem nada, inexperiente nesse tipo de trabalho, procura o amigo Raul Bastos, e
descobre nele o mapa da mina, sujeito escolado em campanhas políticas, velho
companheiro de Estadão.
Roseana
encabeçava uma ampla frente no Maranhão, incluindo o PCdoB.
Navarrinho
desembarca no Maranhão, pesquisa muito,
conhece o Estado, suas dificuldades e potencialidades.
Rica
experiência.
Conhece
todos os setores da administração do Estado, sindicatos, movimentos sociais.
E
a partir desse conhecimento, coloca no papel o plano de governo e suas
propostas.
A
candidata gostou muito, e o plano correu mundo, tão bom ficou.
Lavareda
chegou a usá-lo, em alguns aspectos, como modelo para a campanha de Fernando
Henrique à reeleição.
Havia
ousadias, copiadas de projetos desenvolvidos em Cuba, Colômbia, Índia, voltadas
a iniciativas comunitárias, microcrédito, distantes da lógica exclusivamente
capitalista - se foram aproveitadas ou não, outra coisa.
Depois
disso, pensou: eu posso.
E
danou-se a fazer campanhas políticas.
Na
Bahia, em 2000, fez campanhas de Uauá, Tanque Novo, Paulo Afonso.
Remunerada,
só a de Paulo Afonso.
O
resto, atendendo pedidos de amigos.
Quase
trabalhamos juntos na campanha de Roseana Sarney.
Fui
convidado por Lavareda para coordená-la.
Honrado
pelo convite, segui outro caminho.
Fui
fazer a campanha de Lula em São Paulo, coordenando o jornalismo.
Todos
sabem: FHC venceu.
Na
campanha seguinte, Lula ganharia a eleição...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
3
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: comunicação política
em vários cantos
do País, campanhas em
Salvador, TRE e
Tribunal de Justiça,
uma fuga, início
de uma aventura.
Navarrinho
fez campanha de Pelegrino em Salvador, a de 2004: esta me lembro - era o coordenador geral.
Antes,
2002, havia feito Roseana Sarney novamente.
Fez
várias outras, país afora.
Andou
por São Paulo, Ceará, Alagoas - virou marqueteiro.
Há
muitos jornalistas no ramo - João Santana, nosso Patinhas, o mais célebre.
Teve
a chance de acompanhar como jornalista a luta do desembargador Carlos Alberto
Dultra Cintra.
A
partir de 2002, Cintra assumiu a
presidência do Tribunal de Justiça da Bahia.
A
hegemonia dele perdurou quase dez anos, depois de derrotar o grupo de ACM, cujo
domínio fora absoluto por longo período.
Em
2005, vence um concorrência como pessoa jurídica para o TRE, onde Cintra se
encontrava naquele momento.
A
pedido de Cintra, logo depois, trabalha no Tribunal de Justiça.
Fica
até 2010, e sai de lá para a segunda campanha de Wagner ao governo do Estado.
Faz
outra campanha a prefeito de Salvador, em 2012 - a quarta de Pelegrino: 1996,
2000, 2004, e a de 2012.
Após
essa peregrinação, Secretaria da Fazenda do Estado até hoje, assessor especial
do secretário.
Volto
no tempo, e conto uma aventura vivida juntos.
Ao
já longínquo ano de 1979.
Outubro.
Um
movimento meio brusco, porém creio imprescindível.
Sou
surpreendido à tarde na redação do Estadão por uma visita de Natur de Assis
Filho.
Havia
sido meu contemporâneo de prisão na Penitenciária Lemos Brito, no início
daquela década.
Redação
pequena e cheia.
Fomos
para a escada daquele nono andar do edifício Martins Catharino - conversa devia
ser reservada, Naturzinho havia me alertado, baixinho.
Naturzinho
era do PCBR - Partido Comunista Brasileiro Revolucionário.
Preso
nessa condição.
Continuava
militante.
Me
informa, garante:
-
Theodomiro está no Brasil!
Eu,
assuntando.
Theo
havia fugido da Lemos Brito no dia 17 de agosto daquele ano, e era dado em
várias partes do mundo, menos no Brasil.
Trazia
um recado de Theo, de quem sou amigo-irmão:
-
Ele quer dar uma entrevista, e escolheu você para a tarefa.
Um
calafrio e uma certeza: a matéria de minha vida...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Estadão - matéria de Navarrinho sobre Theodomiro 10-9-69)
Emiliano José
4
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: Natur de Assis
Filho, emissário
do BR, proposta de
entrevista com
Theodomiro, o homem
mais procurado
do Brasil, Navarrinho
topa, teria de
ir a São Paulo.
Enquanto
o ouvia, pensava: na cadeia, brincávamos muito.
Fingíamos,
e nem tanto, eu e Natur, boxear.
Suávamos
pra burro nas nossas lutas.
Sujeito
alegre - dele, próprio se dizer: de bem com a vida.
A
luta revolucionária nunca o tornou taciturno.
De
sorriso fácil, e farto.
Permanente.
Enquanto
escrevo, relembro sua morte prematura: aos 51 anos, tiro à queima-roupa, em
Ubaíra, no Vale do Jequiriçá, 9 de março de 2001.
Ivan
Eça, o assassino.
Acompanhei
de perto a saga, o sofrimento da mãe, Kátia, tudo.
Pudesse
escolher, teria preferido morrer à beira de um riacho de águas cristalinas, ali
mesmo, no Vale do Jequiriçá, honrando o Partido Verde, presidido por ele no
município quando assassinado.
Não
deu.
Explicou
presença de Theo no Brasil e queria fosse eu o repórter a entrevistá-lo.
Outubro
de 1979.
E
isso tinha urgência - insistiu.
-
Que seja, Naturzinho - disse.
Havia
preliminares, no entanto.
-
Não preciso lhe dizer, mas digo: não posso decidir isso sozinho.
Discorri:
-
Pra seguir adiante, impõem-se uma consulta ao meu chefe, Carlos Navarro. Sem o
sinal verde dele, não posso tocar nada.
Naturzinho
parece não ter gostado muito, mas não tinha jeito a dar.
Ficamos
de nos falar logo tivesse a decisão de Navarrinho.
Eu,
ansioso pelo sinal verde.
Procurei
Navarrinho, falei da pauta explosiva.
Não
era uma matéria qualquer.
Tratava-se
do sujeito mais procurado do Brasil.
Órgãos
de segurança da ditadura doidos para matá-lo.
Fui
claro: o PCBR me procurou, falou do paradeiro de Theo, e quer entrevista dele
publicada no Estadão.
Emissário
do BR era Natur.
Navarrinho,
sagaz, sacou a importância da matéria.
No
entanto, dada a dimensão, não podia ser feita sem a autorização do andar de
cima do jornal.
Estávamos,
como sabido, sob uma ditadura.
Os
telefones da sucursal, grampeados, e disso Navarrinho teve inúmeras provas.
Então,
não havia outro jeito senão despencar-se pessoalmente para São Paulo - ele
próprio, chefe da sucursal em carne e osso.
Ligou
para a secretária de Júlio Mesquita Neto, Maria de Lourdes, encareceu da
necessidade de um encontro com ele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Lembro bem de
Natur, fizemos algumas farras juntos, você não participava. Do mesmo jeito de
Jadson Oliveira, só depois que a coisa desanuviou mais no país, Jadson passou a
sair com alguns amigos.
Paulo Leandro: Prof. E Ivan
Eça pagou por seu crime?
Emiliano José: Foi condenado
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Emiliano José
5
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: encontro com
Júlio de
Mesquita Neto, alerta do
velho liberal
conservador para não
dar pista para
polícia, viagem para
o Rio de
Janeiro, cobrindo ponto, Nosferatu
Disse
pra Maria de Lourdes - era urgente uma conversa com Júlio Mesquita Neto, o
todo-poderoso do Estadão.
Nem
anunciar o assunto podia:
-
Logo depois, ela retornou, e disse da reação de Júlio Mesquita: se ele acha tão
importante assim, venha, eu o recebo.
Foi.
Júlio
Mesquita gostou da pauta, achou muito interessante - fosse jornalista, e ele
era, não tinha como não gostar.
Navarrinho
informou tudo: iríamos ele e eu fazer a matéria e não deixou de relatar o
contato feito pelo próprio PCBR.
Afinal,
em qualquer situação, qualquer problema, a retaguarda seria o Estadão.
No
fim da conversa, o velho liberal, conservador, mas digno, alertou:
-
Vocês tomem muito cuidado, todas as precauções de modo a não fornecer pistas à
polícia, evitar a todo custo dar a localização do rapaz - ele sabia dos riscos,
conhecia o caso Theodomiro, sabia-o procurado pelos órgãos de segurança,
inimigo número um da ditadura naquele momento.
Navarrinho
jamais esqueceu desse alerta.
Voltou
pra Salvador, e logo seguimos os dois para o Rio de Janeiro.
Não
pensem vocês fosse matéria ordinária, rito normal.
Fomos
para um hotelzinho ali nas proximidades do Leme.
De
lá, segui para o ponto marcado com Natur.
Certeza,
não tenho, mas minha memória reteve letreiro de cinema anunciando Nosferatu - o
vampiro da noite, de Werner Herzog.
Sim,
ponto - como se eu voltasse aos tempos de clandestinidade.
E
Theodomiro e a maioria de seus companheiros de BR viviam de fato na mais
absoluta clandestinidade.
Encontrei-me
com Naturzinho no ponto combinado - terá sido em frente a algum cinema, onde
teria visto Nosferatu?
Talvez.
Disse:
a matéria será feita por mim e Navarro.
Natur
respondeu:
-
Vamos mudar o jogo, então. Não haverá mais encontro com Theo.
Coisas
da clandestinidade.
Havia
ficado quatro anos preso com Theo, e ele tinham absoluta confiança em mim.
A
matéria seria presencial, como se diz atualmente.
Como
entrou um terceiro na jogada, tudo mudava, não obstante o terceiro fosse de
absoluta confiança.
Marquei
outro ponto para não muito tempo depois, voltei ao hotel.
Informei
Navarrinho: devíamos gravar as perguntas numa fita cassete, entregar a Natur.
Ele
entregaria a Theo, e seria devolvida com as respostas, num outro ponto, dia
seguinte.
Coisas
da clandestinidade.
Theo
caísse, seria morte certa...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Carlos Navarro: Lembro das
escovas de dentes e cuecas dentro da mochila a tiracolo, como na
clandestinidade. E das senhas para os pontos. Lembro também que não fiquei
muito feliz com a mudança de planos na entrevista.
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Emiliano José
6
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: Flamengo,
Zico, bêbado e
equilibrista com
tanta gente que partiu num rabo
de foguete, fura
o primeiro ponto,
remarcação, e o
encontro.
Além
de Nosferatu, creio ter ouvido ecos de um Flamengo campeão, de um Zico
brilhando, estourando redes por mais de 30 vezes, talento inexcedível então.
Passava
ao largo de tudo isso.
Passávamos,
eu e Navarrinho.
Talvez,
um rádio ou outro ligado, e ouvíssemos Baby Consuelo e seu Menino do Rio, uma
Beth Carvalho Coisinha do pai, sentíssemos um Sol de primavera de Beto Guedes,
desfrutássemos de uma Lua de São Jorge com Caetano ou até ouvíssemos um bêbado
equilibrista com tanta gente que partiu num rabo de foguete na voz de Elis
Regina.
Talvez,
talvez.
E
talvez porque disciplinadamente concentrados, tais e quais jogadores de futebol
diante de partida decisiva.
Olhos
voltados para a matéria com Theo.
Navarrinho
não gostou quando lhe dei a notícia de que deveríamos gravar as perguntas e
depois receber as respostas, também gravadas.
Como
gostar?
Jornalista
quer estar no front, no cara a cara.
Mas,
não havia jeito a dar.
É
o lugar de cada um.
Nós,
jornalistas.
Uma
coisa era mandar uma fita cassete, e receber as respostas.
Outra,
pudéssemos entrevistá-lo, provocá-lo, instigá-lo.
Eu,
além de tê-lo como fonte, o veria novamente, amigo querido, quatro anos de
cadeia comum.
Navarrinho,
apreço, e a fonte.
Theodomiro
e seus companheiros, clandestinos, a morte a espreitá-los, e isso não era
metáfora, recurso de linguagem.
Viram
muita gente partir num rabo de foguete para nunca mais voltar, amigos perdidos
assim.
Não
podiam permitir um instante de vacilo.
Por
isso, a reviravolta.
O
hotel onde nos hospedamos tinha até nome pomposo: Leme Copacabana Palace -
Navarrinho retém na memória: logo depois do túnel, já perto da praia.
Nome
pomposo, instalações precárias, e a gente nem aí.
Conversamos
eu e Navarrinho, gravamos na fita
cassete as perguntas.
Navarrinho
relata, e isso não está na minha memória: saímos os dois com a fita nas mãos em
direção ao ponto marcado com Naturzinho.
Na
lembrança de Navarrinho, o ponto furou: não apareceu senhor ninguém.
De
que modo não sei, mas deram jeito de me recontatar, talvez telefone do hotel, e
teriam me dito: próximo ponto, só você, mais ninguém.
Regras
de segurança.
Volto
a encontrar Natur para entregar a fita cassete com as perguntas - disso me
recordo.
Olhando
à distância, parece filme policial...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Quando entrar
setembro e a boa-nova se espalhar nos campos...
Carlos Navarro: Curioso essa
coisa de memória, mesmo juntos, não lembro de Nosferatu, nem do Flamengo
campeão e olha que sou Flamengo desde criancinha em Iaçu, porque o meu pai era
o meia direita do Flamengo local. Mas lembro lembro de um acidente à noite na
porta do hotel, quando uma mulher com um carrão bateu no fusca de um
"playboi". O rapaz ficou desesperado porque gastou todo o dinheiro
que tinha na reforma do fusquinha, pulava, gritava, chorava...
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Emiliano José
7
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: felicidade de Natur
naquela tarefa,
pontos cobertos, matéria
escrita,
imaginação à solta, despistamento.
Naturzinho
era um sujeito alegre.
Como
se estivesse sempre de bem com a vida.
Nos
encontros no Rio de Janeiro, naqueles dias, parecia pinto no lixo.
Feliz,
não obstante contido porque a responsabilidade era muito grande.
Tinha
noção dos riscos, e qualquer tropeço dele, qualquer quebra das regras de
segurança, podia implicar na queda do quadro político mais procurado do País.
Fazia
tudo com muita responsabilidade, mas obviamente feliz.
Talvez
por estar no olho do furacão, a história nas mãos.
Era
outubro, já decorridos mais de dois meses da fuga histórica de Theo.
Todo
o noticiário o dava em algum País no exterior, nunca no Brasil.
Todo
cuidado era pouco.
Entreguei
a fita a Naturzinho, conversamos um pouco, mandei lembranças a Theo, remarcamos
ponto.
Dia
seguinte, outro ponto, e recebo a fita cassete com as respostas.
Era
a voz de Theo, inconfundível - quatro anos de convivência permitiam a
identificação.
Ainda
assim, ele, cuidadoso, mandou um texto, de próprio punho, firmando veracidade
da entrevista.
Nos
despedimos calorosamente, e fui para o hotel.
Ouvimos
a fita e demos tratos à bola.
Escrevemos
a matéria.
A
quatro mãos - nossa caminhada comum no jornalismo facilitou.
Só
não sei se escrevemos no Leme ou em São Paulo, no Estadão.
São
mais de 40 anos passados, e a memória traiçoeira oscila, não responde com
objetividade.
Os
moços de hoje, esses moços, pobres moços, ah, se soubessem o que eu sei, o que
eu e Navarrinho sabemos, esses moços, ao lerem a matéria de página do Estadão
de 30 de outubro de 1979, vão provavelmente nos admoestar.
Podem
criticar nosso exercício criativo, imaginação à solta, estranhar.
Um
box, ao lado do texto principal, conta verdades em meio a muita fantasia, quem
sabe, com o olhar de hoje, muito próximo de um trailer policial.
Ora,
ora, vivíamos sob uma ditadura.
Fundamental
fazer uma operação de despistamento.
Falássemos
a verdade nua e crua, e colocaríamos Theo em risco...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Você voltou
com a fita e nós corremos para o Santos Dumont pegar a Ponte Aérea. Escrevemos
o texto em São Paulo, em um clima meio adverso porque o dr. Julinho não estava
na casa, já era noite quando chegamos. Sem ele presente o comando da redação
impôs alguns limites, mas isso você conta, você é o historiador.
Joaquim Lisboa Neto: Que pluma... Com
pitadas de Lupicínio Rodrigues
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Emiliano José
8
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: um cuidadoso exercício
de imaginação
para garantir o despistamento,
incluindo
Jorge Amado e mudança de
localização de
nossa fonte, para preservá-la.
Operação
despistamento.
No
box, sob o título "O encontro por fita", contávamos: o contato com
Theo fora difícil, tortuoso, rocambolesco, a ponto de nem nós mesmos,
repórteres, sabermos o paradeiro dele, e nem o vimos - tudo verdade.
E,
também, não conhecíamos o intermediário: ao receber a fita cassete, ao
devolvê-la, jamais se identificou, e ainda utilizava artifícios para não ser
reconhecido fisicamente - nossa imaginação, parte da operação despistamento.
Naturzinho
não podia ser revelado - seguíamos despistando.
Como
a informação da presença de Theodomiro no Brasil chegara ao Estadão?
Através
de um telefonema anônimo.
O
interlocutor propunha um ponto, estaria de camisa verde e levaria nas mãos
"Farda, Fardão, Camisola de Dormir", último livro de Jorge
Amado.
Indicava
a senha:
-
Vens do Norte?
-
Não, sou estrangeiro.
Tudo
combinado no longo telefonema anônimo.
Coberto
o ponto, tudo combinado, devíamos viajar e Theodomiro, a partir dali, em
qualquer contato, seria chamado Isabel.
Viagens
de carro e avião, teatro de operações montado em São Paulo.
Idas
e vindas, e não foi possível o contato direto com Theodomiro.
Tudo
por fitas cassete.
"Tudo
gravado. Theodomiro continua em São Paulo, em lugar desconhecido".
Essa,
a história contada por nós ao explicar a matéria para o leitor.
Não
fora exatamente assim, como vocês sabem.
Havia
nosso dever ético e político.
Tínhamos
de cumprir a tarefa: dar aquele furo, garantir a realização da matéria.
E
ao mesmo tempo, preservar a nossa fonte.
Evitar
caísse nas mãos da repressão.
Inclusive
mudando sua localização.
Indicávamos
Theodomiro em São Paulo.
Ele
estava no Rio de Janeiro, como sabem.
Voltando
um pouco.
A
ideia original era entrevistarmos Theo e fotografá-lo - matar a cobra e mostrar
a cobra morta.
Navarrinho
trouxera com ele a máquina fotográfica.
Não
deu certo, vocês sabem...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: ponte aérea, matéria
escrita na
redação do Estadão em São Paulo,
editor examina e
corta parte política,
decidimos não
assinar a reportagem
Conversando
com Navarrinho, vou colocando as coisas no lugar.
Voltei
do último ponto com Natur, cheguei no hotel, e disparamos para a ponte aérea.
Seguir
para São Paulo.
Lá,
na redação do Estadão, numa salinha à parte, escrevemos a matéria.
Checamos,
olhamos uma vez, duas, e Navarrinho foi ao editor de plantão.
O
velho Júlio de Mesquita Neto não estava na casa.
Fiquei
sozinho na saleta, aguardando.
Demorou
algum tempo.
Quando
voltou, Navarrinho não estava muito entusiasmado.
Contou:
um sujeito respondia pela redação, sabia da reportagem, olhou atentamente para
nosso texto, e sentenciou: política não vai entrar, ao menos a parte mais
substancial.
A
fala forte de Theo sobre a conjuntura política sofria censura, autocensura.
Há
jornalistas mais reais do que o rei.
Certamente,
com o velho Júlio de Mesquita a matéria restaria incólume.
O
sujeito mutilou nossa matéria - talvez Navarrinho lembre o nome dele.
Era,
por óbvio, um desrespeito à fonte, ao nosso entrevistado.
Matéria,
um furo daqueles, seria assinada por mim e por Navarrinho.
Reagi
de pronto:
-
Não vou assinar a matéria.
Theodomiro
entenderia meu gesto: ao não assinar, não subscrevia o corte.
Navarrinho
não relutou - acompanhava minha decisão.
Ali,
confirmava-se a grandeza de caráter dele.
A
matéria recebe chamada de primeira página, e ocupa toda a contracapa do Estadão
de 30 de outubro de 1979.
O
título informava: "Theodomiro está em São Paulo".
No
superlead em negrito, informava-se a condição de clandestino dele, dando-o
"em algum ponto de São Paulo" e falava-se das peripécias desde sua
histórica fuga em 17 de agosto daquele ano.
No
pé da matéria, outro box: o manuscrito de Theodomiro.
Um
"A quem interessar possa", destinado a comprovar a autenticidade da
entrevista realizada na clandestinidade, explicando diante disso a
impossibilidade de fotografias.
Matando
a cobra e mostrando a cobra morta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: matéria e a
fuga, e
torturadores, e condenação
à morte, redução
da pena, negação
do
pedido de condicional,
e decisão de
fugir.
A
matéria propriamente, resultado da entrevista com Theodomiro, descia em duas
colunas, até o pé da página.
O
texto seguia abaixo de um subtítulo: "O esquema da fuga ainda é um
mistério".
De
cara, inocentava seus companheiros de prisão quanto a envolvimento na fuga
histórica de 17 de agosto, Haroldo Lima e Paulino Vieira.
Verdade,
com relação a Vieira.
Haroldo
Lima, aí não: participara decididamente.
Denuncia
as torturas quando de sua prisão e aponta os verdugos: Luiz Arthur de Carvalho,
o comandante; capitão Hemetério Chaves Filho, comandante da Polícia do Exército
(PE); agentes Hamilton Nonato e José Felipe Filho, da Polícia Federal; tenentes
Trindade e Botelho, da PE; cabo Dalmar Caribé, da Quarta Companhia de Guardas;
sargento Mário, da PE, e outros cujos nomes não recordava.
Os
nove anos de prisão são ressaltados como um tempo de companheirismo, de
aprendizado, luta comum contra as arbitrariedades da repressão.
Não
deixa de lado a solidariedade nacional e internacional, tão fortes.
Nas
poucas linhas reservadas, permitidas pelo Estadão à política, "critica a
estrutura do governo e as contradições políticas e econômicas - principalmente
a reforma partidária que está no Congresso."
Mais:
"Defendendo
liberdade política e sindical, Theodomiro mostra a necessidade de criação da
'Central Única dos Trabalhadores, ao lado do desenvolvimento das lutas pelo
direito de greve' e o 'estabelecimento de uma alternativa de poder popular'."
Depois,
intertítulo "O ex-preso", e a história de Theodomiro desde a
infância, ocupando a maior parte da matéria.
Reserva-se
bom espaço ao sequestro do embaixador suíço, Giovani Enrico Bucher.
Theodomiro
e Paulo Pontes da Silva, preso com ele, companheiro do PCBR, foram arrolados na
lista pelos revolucionários para sair para o exterior, mas a ditadura endureceu
o jogo, e os dois não saíram, embora nos 45 dias de negociações, fossem
barbeados e preparados para a viagem.
Em
tempo recorde, Theodomiro foi condenado à morte - já em março de 1971. Em
meados daquele ano, a pena foi transformada em prisão perpétua.
Idas,
vindas, anos de luta política e jurídica, e sua pena terminou em 16 anos, 6
meses e 25 dias em 1979, dando-lhe o direito de pedir liberdade condicional,
negada.
Firmou
então convicção: não sairia tão cedo.
E
fugiu.
Este,
o resumo da matéria.
Caiu
como uma bomba.
Um
furo da porra.
Lembro-me
chegando ao "Jornal da República", dirigido por Mino Carta, final da
manhã do dia seguinte à matéria, 31 de outubro, não me lembro o que fora fazer,
e...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Graça Azevedo: As reticências
me matam de curiosidade😂
Emiliano José: Tenha calma
Carlos Navarro: A história é
sua e não vou antecipar nada, mas lembro do rebuliço da repressão em nossa
porta. Não sei como descobriram sobre a sucursal apesar do nosso cuidado. A
pressão só parou com a chegada dele a Brasília.
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Emiliano José
11
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: Jornal da República
e dúvida sobre
barrigada, vingança
com Theodomiro
na Nunciatura,
cerco à casa de
Navarrinho.
Disse:
cheguei ao Jornal da República, em São Paulo.
30
de outubro de 1979.
Exato
dia da publicação de nossa matéria "Theodomiro está em São Paulo" no
Estadão.
O
jornal havia surgido coisa de dois meses antes: 27 de agosto.
Iniciativa
de dois monstros sagrados do jornalismo brasileiro: Mino Carta e Cláudio
Abramo.
Independente,
criativo, ousado, caminhava na esteira dos novos ventos da conjuntura
brasileira - anistia, abertura, não obstante ainda ditadura.
Jornalismo
com aquelas características, no entanto, sob o tacão do grande capital, não
tinha vida longa: em janeiro de 1980, sucumbiu.
Eu,
família na cidade, fiquei mais dois, três dias na capital paulista.
Cheguei,
cumprimentei os conhecidos, entre os quais, Raul Bastos, ex-diretor da sucursal
do Estadão em Salvador.
Acreditem:
havia dúvidas sobre nossa matéria.
Como
se fosse uma barrigada - nome dado a uma notícia ou reportagem equivocada, com
sérios erros ou eivada de distorções.
-
Ué, ele não está no exterior? - era a pergunta comum, base da dúvida, quase
troça.
Sabiam
os autores - nas redações, tudo se sabe.
Eu,
achando aquilo inacreditável - como duvidavam?
Cheguei
àquela redação depois das 14 horas.
Eu,
explicava a matéria, sem revelar tudo - como se sabe, não podia, não devia.
E
os coleguinhas, orelha em pé, desconfiados.
De
repente, as tevês e emissoras de rádio começam a noticiar a entrada de
Theodomiro na Nunciatura Apostólica, em Brasília, praticamente obrigando a
Igreja Católica a aceitá-lo como exilado.
A
redação calou.
Minha
vingança, silenciosa.
Navarrinho,
matéria entregue para edição, na noite de 29 de outubro, hospedou-se no Hotel
Jaraguá, contíguo à velha sede do Estadão na rua Major Quedinho, à época já
instalado no bairro do Limão.
Soube:
já havia viatura próxima à casa dele, em Salvador.
Como
os órgãos de segurança souberam dos autores, ninguém imagina.
Talvez
supusessem - Theodomiro passara quase nove anos na Penitenciária Lemos Brito em
Salvador, sucursal fizera inúmeras matérias com ele, natural então fossem
repórteres da Bahia os autores.
O
jeep do Exército rodava em torno da casa onde Navarrinho morava, penso mora até
hoje, num condomínio da Pituba - queria dar sinais de presença.
A
família o informou dessa exibição.
Depois
de muitas voltas, foi embora.
Havia
dado o recado.
A
redação do Estadão, em São Paulo, recebeu vários telefonemas dos órgãos de
segurança logo na manhã do dia 30 de outubro, quando a matéria explodiu.
Os
editores, nem uma palavra - já estavam habituados àquela pressão.
Jornalismo
sob a ditadura, cerco permanente.
O
cerco só parou no dia 31 de outubro, quando...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: cerco sobre sucursal
só cessa com
entrada de Theodomiro
na Nunciatura,
ainda negociações em
torno da
matéria, generais em polvorosa
O
cerco da repressão à sucursal só cessou quando no dia 30 de outubro à tarde
houve a notícia da entrada de Theodomiro na Nunciatura Apostólica, embaixada do
Vaticano no Brasil, em Brasília.
Os
olhares da repressão e de toda a mídia se voltaram para Brasília.
Volto
à noite de nossa chegada ao Estadão, dia 29 de outubro daquele 1979.
Quando
chegamos à redação, não estavam Júlio de Mesquita Neto, nem Miguel Jorge,
diretor de redação.
Só
restava, como responsável pela redação, o Ornelas - não sei o primeiro nome.
Navarrinho
era o negociador.
Ia
e vinha, eu ali na sala ao lado da diretoria, aguardando solução.
Matéria
já entregue.
Restava
decisão.
Navarrinho
acompanhava os telefonemas de Ornelas, de perto.
Dizia
estar falando com Júlio Mesquita Neto.
Navarrinho
acredita fosse na verdade com Miguel Jorge - simulação.
Decisão,
já contamos: cortaram a parte política.
Na
manhã seguinte, é informado não só da presença do jipe militar rondando a
residência dele em Salvador como da ligação de não sei quantos generais para a
redação do jornal em São Paulo, querendo saber onde Theodomiro se encontrava e
quem eram os redatores da matéria.
Navarrinho
comenta hoje: quando Theo apareceu em Brasília foi um alívio - repressão
suspendeu o cerco, e o alvo principal era ele próprio, diretor da sucursal.
Recorda:
não tinha qualquer informação sobre o passo seguinte de Theodomiro, sobre o
asilo dele na Nunciatura.
-
Talvez você soubesse, mas eu não - ele diz.
E
aqui, passados mais de 40 anos, esclareço: eu também não sabia.
Já
esclareci isso em livros, mas Navarrinho não deve ter lido, pois disse agora
não ter certeza se eu estava de alguma forma envolvido na operação.
Sei:
face às minhas relações de amizade, companheirismo com Theodomiro é difícil
acreditar não estivesse.
Fácil
pressupor fosse tudo combinado comigo.
Não
foi.
O
PCBR fez uma baita operação de despistamento com a nossa matéria.
Como
eu conhecia um bocado das regras da clandestinidade, nunca perguntei isso a
Theo nem aos companheiros do BR.
Como
a matéria foi pensada no esquema montado por eles...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: regras rígidas da
clandestinidade,
operação Sagradas
Escrituras, eu e
Navarrinho sem saber
de nada,
histórias a contar para os netos.
Ditadura
é ditadura.
Nela,
impunha-se, muitas vezes, a clandestinidade.
E
tal situação, reclama regras.
Rigorosas.
Descumpridas,
prisão, tortura, morte.
Imagino
tenha o PCBR, com a responsabilidade de assegurar a vida do sujeito mais
procurado do País, imaginado fórmulas de driblar a repressão para dar chances a
Theodomiro de entrar sossegadamente numa embaixada, e pedir asilo.
Advirto:
quiserem saber detalhes da fuga e de como ele entrou na Nunciatura Apostólica
em Brasília, vocês encontrarão em matéria da número um da revista Caros Amigos
e no livro O cão morde a noite, tudo escrito por mim.
Aqui,
só tangencio.
O
partido deve ter pensado: temos amigo histórico na grande imprensa, está no
Estadão, vamos providenciar matéria feita por ele, e no dia do arerê, da
polvorosa, reportagem na rua, repressão feito barata tonta, nós entramos na
embaixada.
-
Será que dá certo? - alguém na reunião pode ter perguntado, quem sabe Bruno
Maranhão, o comandante da operação, regressado do exílio logo depois da
anistia.
-
Não custa tentar - teria dito um outro, quem sabe Renato Affonso, dirigente da
operação.
E
aí mandaram Natur de Assis Filho fazer o contato comigo.
O
restante vocês sabem.
Eu
e Navarrinho e o Estadão entramos no plano "Sagradas Escrituras" sem
saber - o nome foi dado por mim agora.
Tanto
quanto o resto do País, fomos surpreendidos pela chegada de Theodomiro à
Nunciatura Apostólica pedindo e forçando o asilo, ao lado de Chico Pinto e
Airton Soares - Chico aparece nos jornais como tendo sido avisado da presença
de Theodomiro na embaixada.
Nada.
Ele
e Soares foram parte ativa da operação, mas isso não se falaria à época.
Paro
- resisto à tentação de contar como foi.
Em
algumas ocasiões, falando com Bruno Maranhão, pretendia esclarecer algumas
coisas da operação, até hoje guardadas a sete chaves, embora a maioria já
reveladas, e ele, não obstante ditadura já derrotada, não abria nada - sempre
achava houvesse rastros da ditadura por aí: e hoje a gente é obrigado a
reconhecer o quanto ele tinha de razão - estou enganado ou o coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra foi declarado marechal nas últimas horas?
Estive
muitas vezes com Theo, com Natur, com Renato Affonso, e eles envoltos no manto
do silêncio, ao menos quanto a como tínhamos entrado na operação "Sagradas
Escrituras".
Tinham
certeza, certamente: desse certo, e eu me sentiria honrado de ter participado,
e melhor mesmo não soubesse porque se caísse não tinha como revelar nada - regra
fundamental da clandestinidade, e é bom não esquecer fosse ainda ditadura.
Creio,
e não perguntei, ser esse também o sentimento de Navarrinho.
Coisas
do jornalismo do tempo de ditadura.
Temos
alguma coisa, pouca coisa seja, pra contar pras nossas netas sobre a caminhada
de um tempo de terror e de trevas.
Sorte
tenhamos sobrevivido para tanto.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Uma ponta de
orgulho, de vez em quando, talvez vaidade de estar ficando velho, mas creio que
você deveria contar mais, afinal foi um momento da história da repressão na
ditadura e ficará para a posteridade, como tantas outras informações dos seus
livros.
Artur Carmel: Natur se foi
cedo...
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Emiliano José
14
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: divergências com
o diretor de
redação, mania de não levar
desaforo pra
casa, espírito de Mariazinha
do Boqueirão,
outras vezes espírito
conciliador do
pai, política no posto de comando.
Há
histórias paralelas a essa matéria, a explicar muito dos acontecimentos do entorno.
Navarrinho
já havia enfrentado divergências com Miguel Jorge, diretor de redação do
Estadão à época.
Faz
um perfil: o book dele quando chegou ao Jornal da Tarde era uma revista
pornográfica de uma rede de saunas - Relax for Men.
Uma
turma de Minas Gerais chegou ao Jornal da Tarde.
Entre
os vários mineiros, Luciano Ornelas - agora descubro o nome do sujeito da noite
da autocensura.
Chegaram
juntos ao Jornal da Tarde.
Miguel
Jorge chegou depois à chefia de redação do Estadão.
Navarrinho
não o tem como um sujeito inteligente.
Ao
contrário.
Numa
ocasião, enchentes na Bahia, mandou desaforos para a sucursal, criticando
cobertura, e Navarrinho não contou conversa: respondeu duramente, desaforos em
dobro.
É
daqueles: dá um boi pra não entrar numa briga, uma boiada para não sair.
Pense
num sujeito tolerante - é ele.
Agora,
não pisem no calo dele: aí baixa o espírito de Mariazinha do Boqueirão, saca
das armas, e é tiro pra todo lado.
Nem
sempre, no entanto.
No
dia da entrevista de Navarrinho com Júlio Mesquita Neto para tratar da matéria
de Theodomiro, obter o aval dele, foi exatamente o dia da visita de Leonel
Brizola ao jornal depois de voltar do exílio, parte de um périplo realizado por
ele aos meios de comunicação mais importantes.
Navarrinho,
na antessala, aguardando pra ser recebido, quando irrompem na sala de Júlio
Mesquita o próprio Brizola, acompanhado de Miguel Jorge e de integrantes da
comitiva do ex-governador.
Miguel
Jorge cumprimenta Navarrinho.
Depois
disso, houve a conversa com Júlio Mesquita Neto, cuja sala era contígua à
redação - havia uma porta independente e outra voltada para a redação.
Como
Navarrinho havia sido visto por Miguel Jorge, achou de bom tom não sair sem
cumprimentar os companheiros da redação.
Podia
ter saído pela outra porta, mas preferiu não fazê-lo.
Miguel
Jorge o interpela grosseiramente:
-
Que é que você está fazendo aqui?
Navarrinho,
estupefato.
-
Como é que você vem falar com dr. Julinho sem passar por mim? - completou Miguel
Jorge.
Navarrinho,
do jornalismo e da política, minimizou.
Nesse
caso, preferiu esse caminho - engoliu o sapo.
Havia
o objetivo maior: a matéria com Theodomiro.
Aí
baixava o espírito do pai, Carlos Navarro, muito mais afeito à conciliação do
que Mariazinha do Boqueirão, a fera.
O
sujeito já não gostava de Navarrinho, não engolira a resposta desaforada do
passado.
Com
a visita a Júlio de Mesquita Neto sem passar por ele, ganhou inimigo pra vida
toda.
Isso
seguramente explica por que a parte política da matéria sobre Theodomiro foi
vetada - dedo de Miguel Jorge, cujas divergências com Navarrinho jamais foram
esquecidas.
Vetar
a matéria por inteiro, não podia - havia sido acertada com Júlio de Mesquita
Neto.
Teve
o gostinho, no entanto, de vetar a fala política de Theodomiro.
A
pequenez anda à solta por aí...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Pedro Formigli , João Paulo Costa , Adilson Borges, Paolo Marconi, José Carlos Teixeira Welinton Aragão, Jorginho Ramos e Carlos Navarro)
Emiliano José
15
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: terminando uma
história,
caminhada do protagonista
continua, uma
volta ao passado, Querida cidade
Vontade
é de seguir viagem.
Mas,
é hora de caminhar para o encerramento.
Essa
caminhada foi iniciada em janeiro deste ano, vocês se lembram.
Com
fantásticas histórias, sobretudo do reino encantado de Iaçu.
Depois
de tanto reboliço, vamos começar a jornada final.
Dessa
escrevinhação, entenda-se.
História
de Navarrinho segue, há muita estrada pela frente.
Sobretudo,
penso, a do romancista, não mais promessa.
Caminho
para a reta final.
Pero,
não esperem pressa.
Sempre
com Almir Satter: ando devagar porque já tive pressa.
Gosto
de situar as coisas no tempo.
Uso
do cachimbo faz a boca torta: mania de jornalista.
Ano
de 2022, e Navarrinho será surpreendido por 60 anos de imersão na atividade
jornalística.
Primeiro,
de forma amadora,
Amadora,
mas intensa.
Já
falamos, penso.
Mas,
o que abunda não vicia.
Primeiro,
transitou pelo rádio, pelo Alagoinhas Jornal, pela revista Cometa.
O
jornal, de responsabilidade do dentista Walter Campos, cuja duração foi longa.
A
revista, editada por funcionários do Banco do Brasil, não aguentou tanto tempo
assim - ainda assim durou uns três, quatro anos.
O
rádio, já falei demoradamente.
Navarrinho,
rapaz ousado, cheio de latim, danou-se a pensar como cronista, Stanislaw Ponte
Preta de Alagoinhas - e isso foi lhe servir para o resto da vida.
Foi
ali a sua Estrada de Damasco - a luz ofuscou os seus olhos por instantes, o
mundo ficou colorido, e ele nunca mais saiu dessa estrada.
Escrevendo,
a imaginação volta-se para o livro de Antônio Torres, lançado esses dias, ele,
nascido em Sátiro Dias, convivendo com Alagoinhas - lindo, o Querida Cidade,
tudo a ver com a história de meninos pobres, mais tarde brilhantes, atrevo-me a
dele falar, ainda na exata metade da leitura.
Navarrinho,
ele mesmo, ao falar de Alagoinhas, quem sabe possa a ela se referir também como
querida cidade, a lhe dar régua e compasso.
Profissionalmente,
o início foi dezembro de 1968, no Jornal da Bahia.
Antônio
Torres, apresentado a João Falcão por Mário Alves, pai de Agliberto Lima,
comunista de Alagoinhas, borracheiro na cidade.
Foi
lá, também, no Jornal da Bahia, o início dele como jornalista.
Destinos
se cruzando por aquela querida cidade.
Torres
vai se tornar consagrado romancista, não é preciso dizer mas digo, e Navarrinho
inicia mesma caminhada.
Ao
longo da vida, nas tantas palestras, ele insistiu sempre: quem quiser ganhar
dinheiro, se dar bem, não seja repórter.
Jornalismo
não dá camisa a ninguém.
Dá
pro gasto, no limite, não mais.
Há
exceções, mas devem ser consideradas assim, e não devem iludir ninguém.
Então,
em princípio, é atividade a requerer algum sentido de missão, alguma
vocação.
Mesmo
aqueles eventualmente bem remunerados, e ele se recorda de fase com ótimo
salário como chefe da sucursal do Estadão, não têm condições de acumular alguma
fortuna.
A
fortuna acumulada, ele reflete hoje, é a dignidade, o reconhecimento de uma
vida reta, íntegra, sentimentos presentes na sociedade e nos colegas de
profissão, a par de uma evidente
competência profissional, talento indiscutível, carisma, capacidade de chefiar,
construir equipes, e aí já sou eu
registrando...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Pois é
Zapatilla, coisa de amigo historiador, história bem maior que o personagem.
Emiliano José: O personagem é
que é grande mesmo
Mônica Bichara: O personagem é
gigante, merece todas as homenagens. Trajetória digna de um filme - óia eu
dando ideia hehehehe Mas não se avexe não que quando o noveleiro Emiliano diz
que está caminhando pro final, tem muitos dias ainda pela frente. E o
protagonista merece
Graça Azevedo: Carlos Navarro,
não concordo.
Carlos Navarro: Vocês, Mônica
e Graça, também são suspeitas, pela amizade.
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Emiliano José
16
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: balanço, o feliz
encontro com o
jornalismo, satisfação
de fazer o que
sonhou desde a juventude,
e continuar
fazendo, eterno aprendiz.
Alguma
coisa o jornalismo lhe proporcionou.
O
elementar: casa própria.
Uma
vida de trabalho e uma casa própria.
Vive
nela até hoje.
Condomínio
de classe média na Pituba.
A
aposentadoria é merreca.
Viver
dela, nem pensar.
Por
isso, trabalha até hoje.
Nem
é lamento: constatação.
Situação
da maioria dos jornalistas - sabe disso.
Fala
com tranquilidade, paz de espírito.
A
falta de bens materiais, o fato de não ter acumulado alguma fortuna, não lhe
traz nenhum amargor.
Viveu
até aqui com os poucos confortos da classe média e sempre voltado para a
profissão escolhida desde muito jovem - uma escolha apaixonada.
Paga
as contas, toma seu uísque, viaja - e não está bom?, ele pergunta e responde
positivamente.
Insiste,
jornalismo não é só ganha-pão.
É
antes de tudo, vocação.
Não
sabe como viveria tivesse sido levado a outra atividade.
Provavelmente,
muito infeliz.
Ele
vai confessando, e eu vou viajando na minha própria história, levado aos 14
anos a ser bancário, e sumindo no mundo aos 22 anos, prometendo a mim mesmo
jamais voltar a um banco para trabalhar.
Como
Navarrinho, profissionalmente fui me encontrar no jornalismo.
Considera-se
um privilegiado.
Sabe:
muita gente, quem sabe a maioria, não faz o que desejaria, mas o imposto pela
vida, o determinado pelas circunstâncias.
E
segue infeliz, almejando um dia aposentar-se, e quando se aposenta...
Ele
não tem qualquer lamento, e até hoje o trabalho profissional dele, a
complementar a aposentadoria, é fundado no aprendizado do jornalismo.
Quando
saiu do Estadão, não só se dedicou ao marketing político, como desenvolveu
vários projetos jornalísticos, entre os quais muitas revistas, algumas
regionais, outras, nacionais.
Se
o cidadão, a cidadã, sonhou na juventude ser médico, engenheiro, advogado,
jornalista, e conseguiu realizar o sonho, é um felizardo, independentemente dos
ganhos materiais.
-
Sou um felizardo. Fiz o que quis a minha vida inteira.
E
com certo orgulho, afirma ter procurado sempre empenhar-se no exercício do
jornalismo, utilizar o conhecimento acumulado, e nunca esquecer a condição de
um eterno aprendiz.
Quando
chefiou, procurou sempre ouvir os liderados, nunca impor nada, sem deixar de
comandar - e aqui é testemunho meu.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Luiz Brasileiro Brasileiro: Este
Navarrinho é a peste mesmo, a febre do rato do jornalismo, fazer o que quer não
é para qualquer um.
Carlos Navarro: Belo trabalho,
trabalho de historiador, afora as deferências de amigo. Eu não teria paciência
para ser historiador, a menos que encomendasse as pesquisas.
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17
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: volver ao início,
EBC e Facom,
trajetória.
Já disse: a
gente pensa mandar na escrita.
Manda não.
Agora
mesmo imaginava caminhar para o fim dessa história, e sou tentado a volver ao
início.
Ao
princípio da caminhada jornalística de Navarrinho, quando ele simultaneamente
trabalhava no "Jornal da Bahia" e estudava Jornalismo.
Minha
prosa é motivada pela Facom, onde dei aula por 25 anos, e onde Navarrinho
estudou a partir de 1969, depois de ter passado no vestibular em 1968.
E
por um depoimento do querido Florisvaldo Mattos, cuja participação na minha
banca de exame de admissão para professor da UFBA em 1982 jamais esquecerei.
Facom,
hoje.
Não
era em 1962, quando o Curso de Jornalismo se iniciou.
Na
Joana Angélica, onde funcionou até 1968, quando se formou a primeira turma.
Em
1969. passa a funcionar em prédio vizinho à Reitoria, no Canela.
A
UFBA resolveu tirar o curso da solidão, e talvez a emenda tenha sido pior que o
soneto, e ele passou a fazer parte da estrutura da Escola de Biblioteconomia e
Documentação, creio mais tarde denominada, talvez por isso, Escola de
Biblioteconomia e Comunicação.
Alunos
e professores intensificaram a luta para criação de curso próprio.
Isso
aconteceu ainda no Canela, e logo depois criou-se a Faculdade de Comunicação,
mais tarde transferida para Ondina, onde funciona até os dias atuais.
Florisvaldo
recorda-se da criação dos Laboratórios de Jornalismo e de Fotografia, da
impressão e circulação pelo jornal A Tarde, de um caderno com notícias e fotos
de ambos os laboratórios, e da abertura dos professores para promoção de
seminários temáticos de jornalismo impresso, audiovisual, cinematografia,
literatura e ciências humanas.
Foi
na Facom meu Mestrado e Doutorado - hoje ela se constitui um dos centros de
excelência do ensino de Comunicação no País.
Ela
também, além de Alagoinhas, a querida cidade, deu a Navarrinho régua e
compasso.
Amanhã,
se não ocorrer nenhuma tentação, volto à etapa final dessa escrevinhação sobre nosso
protagonista...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: orgulho de
caminhada ao
lado de tantos
profissionais e
de ter se
mantido íntegro,
cabeça erguida.
Nesse
balanço, Navarrinho fala do orgulho de ter compartilhado caminhada com tantos
jornalistas, fonte de rico aprendizado, sobre os quais já falamos.
Da
Bahia e do restante do País.
Ricardo
Kotscho, Raul Bastos, Enio Squeff, Audálio Dantas, Fernando Pedreira, Clóvis
Rossi - alguns assomam à memória, nomes nacionais jamais esquecidos.
O
conhecimento em jornalismo é sempre compartilhado.
Navarrinho
sabe disso.
Em
muitos, há a crença no virtuosismo individual, e essa crença às vezes obscurece
a visão.
Vi,
chefiando equipes, repórteres brilhantes desaparecerem rapidamente por uma
visão demasiadamente otimistas de si mesmos.
E
observei gente claudicante, sem brilho na fase inicial, firmando-se ao longo do
tempo porque se esforçando, observando, aprendendo, revelando-se grandes
repórteres, porque conscientes do conhecimento compartilhado, da condição de
eternos aprendizes, como todos nós.
Ele,
Navarrinho, chegou a ganhar dois Prêmio Esso - um sobre estatais, outra sobre
mordomias, supersalários, sob a batuta de Ricardo Kotscho, esse brilhante
repórter.
Realização
profissional - no balanço, Navarrinho não tem queixa a registrar, nenhuma.
A
caminhada até aqui, amplamente vitoriosa.
Vitoriosa,
aqui, significa tanto o trabalho profissional quanto, no decorrer da vida,
manter-se íntegro, indiferente a ouro, incenso e mirra.
ACM,
atilado, e irônico, e maldoso, dizia haver três tipos de jornalista.
O
que quer notícia.
O
que quer emprego.
E
o que quer dinheiro.
Acrescentava:
político esperto é aquele que não troca as bolas - não dá notícia a quem quer
emprego, dinheiro a quem quer notícia, emprego a quem quer dinheiro.
Não
sei se é boa definição, mas é arguta, e tem base na realidade.
Navarrinho
permaneceu vida inteira entre os primeiros - sempre atrás da notícia.
De
ACM, manteve respeitosa distância, e
como profissional, revelou sempre todas as suas maracutaias e estripulias.
No
balanço, lembra: nunca foi vanguarda de esquerda.
Foi
líder estudantil, adquiriu noções claras de democracia, de liberdade, alicerçou
convicções, mas não assumiu posição de vanguarda militante...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: maior parte da experiência sob ditadura, formação
de esquerda,
escolha pelo jornalismo
Há
de se lembrar, e Navarrinho se recorda: boa parte de sua experiência
jornalística, se consideramos o período de 1962 a 1985, foi desenvolvida sob a
ditadura.
E
a ditadura impunha regras.
Os
governadores, ressalvadas suas singularidades, eram nomeados pela ditadura.
Ninguém
há de ignorar as diferenças entre um Luiz Viana Filho e um ACM.
Ou
entre Roberto Santos e ACM.
No
entanto, considerado isso, não se pode esquecer encontrarem-se todos sob o
mando, sob o tacão da ditadura.
Se
aceitavam aquela condição, o de serem governadores nomeados pela ditadura,
tinham noção do significado disso
Sabiam
do fardo a ser carregado, da marca histórica a pesar sobre seus ombros.
Ajoelhou
tem de rezar.
Agora,
o mando de ACM era o mais despótico - isso ninguém ignora.
Nas
mãos dele, jornalistas sofreram mais, e muitos também tiveram a coragem de
fazer o bom combate.
Navarrinho,
um deles.
Tem
uma convicção: a escola política dele, desde muito cedo, foi de olho crítico em
relação a governos.
Como
haveria de ser diferente, sendo de uma tradição de esquerda, e vivendo a maior
parte da trajetória sob a ditadura?
Como
haveria de ser diferente sendo admirador de Guevara?
E
a foto do revolucionário ainda emoldura o escritório na casa dele.
Como
havia de ser diferente, tendo sido ele fundador do MDB, em Alagoinhas, querida
cidade?
Como,
se perseguido pela ditadura depois de duro discurso contra o AI-5?
Tem
consciência de ter, a partir de 1969, trocado de trincheira.
Agora,
era o jornalismo - exclusivamente.
Confessa:
não tinha muita coragem para pegar em armas.
Viu
amigos sumindo assim, assassinados pela ditadura.
Não
tinha também concordância com a forma de luta.
E
sabe: a escolha pelo jornalismo talvez tenha sido uma maneira de compensar
inconscientemente o fato de não assumir a luta armada.
Ele
ouvira de um velho político: os milicos vão esmagar vocês, é a luta do
estilingue contra o canhão.
O
general Adyr Fiuza de Castro disse um dia - nós usamos o martelo pilão para
matar a formiga.
Durante
um tempo chefiou a VI Região Militar, cuja jurisdição era Bahia e Sergipe.
Então,
compreendendo isso, Navarrinho mergulhou no jornalismo.
Uma
trincheira política, com suas singularidades, suas regras, sua ética.
A
busca incessante da verdade - a utopia permanente do jornalismo.
Atuou
sempre com isso na mente.
Trocou
a militância direta, da rua e dos aparelhos, pela militância jornalística.
Sem
ser partidária, não deixa de ser militância.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: consciência de sempre
ter combatido a
ditadura pela militância
jornalística, um
homem realizado profissionalmente.
Navarrinho
é um sujeito modesto.
Exagera,
às vezes.
Num
ponto, abandona a modéstia: quando fala de sua militância jornalística, no
período da ditadura de modo especial.
-
Eu consegui combater a ditadura sem cometer deslizes jornalísticos, sem em
nenhum momento ter atentado contra a verdade, distorcido fatos, incorrido em
deslizes éticos.
-
Combati a ditadura, enfrentando Antonio Carlos aqui na Bahia, e esse
enfrentamento foi definidor em minha existência.
E
explica: quando terminou a experiência no Estadão, em 1997, foi trabalhar fora
do Estado.
E
aí lembra só ter voltado à Bahia por um convite meu - chamei-o para fazer a
campanha de Nelson Pelegrino à prefeitura de Salvador, que eu coordenei, em
2004.
Sinceramente,
não tinha noção desse papel: ter contribuído para a volta dele à Bahia.
Mais
tarde, quando Wagner derrota a oligarquia em 2006, o cenário se desanuviou.
E
ele pôde voltar de modo mais consistente ao Estado.
ACM
salgava a terra.
Deixava-a
inóspita para quem não ajoelhasse e rezasse.
E
Navarrinho nunca o fez - não era dado à servidão.
-
Enquanto houve ditadura, eu combati a ditadura - ele reafirma.
Lembra:
-
Afora tantas outras matérias, essa matéria feita por nós sobre Theodomiro, é um
óbvio combate à ditadura.
Um
balanço sereno dessa longa caminhada:
-
Fiz o que quis, na profissão que escolhi, cheguei ao topo da profissão, ao
menos na minha aldeia, e sou um homem realizado.
E
por realizado, como ele já insistiu, entenda-se profissionalmente, não com
acúmulo de fortuna.
E
isso não é pouco: chegar à maturidade, ultrapassados os 70 anos, e sentir-se
realizado é um privilégio.
Nunca
parou.
-
Jornalista quando para de escrever, vai escrever - filosofa.
Na
lida jornalística, você tem parâmetros relativamente rígidos.
Trabalha
com fatos, cercado por eles, pisa em ovos, toma cuidado para não errar, para
não distorcer, ouve as diversas fontes.
Não
escreve livremente.
Senti
isso muito cedo.
E
fui buscar alternativas: trabalhar na imprensa alternativa.
Ou
já em 1980, colocar "Lamarca" na rua, ao lado de Oldack Miranda.
Navarrinho
sempre sentiu também essa limitação...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: o rígido círculo das
regras do
jornalismo até o momento da
libertação
não sou que me navego
quem me navega é
o mar cavalo selvagem
Volto,
e me valho do próprio Navarrinho: jornalista quando para de escrever, vai
escrever.
Vida
inteira, jornalista está na linha de produção.
É,
quem não conhece a profissão, pode idealizá-la.
Vê-la
através das lentes do cinema, da ficção.
Nós,
trabalhadores, sabemo-nos numa linha de produção.
Lidando
com uma delicada mercadoria - não deixa de ser mercadoria o diabo da notícia.
Tem
valor de uso e valor de troca, a acompanhar lições do velho Marx, aquele
endiabrado feiticeiro, a nos revelar segredos antes indevassáveis.
Na
redação, lida diária, você não escreve o que quer.
Está
contido por regras, dinâmicas, rotinas das quais não é possível escapar.
Há
um complexo sistema de poder nas redações.
Os
meios de comunicação, todos eles, sofrem a determinação em última instância do
modo de produção, no nosso caso do capitalismo.
E
as redações se articulam vinculadas às regras do capitalismo, e a mercadoria
notícia acaba ligada a tais regras.
O
jornalista se mexe no meio desse arcabouço, faz milagres, revela coisas às
vezes desagradáveis para o sistema.
Faz
coisas que Deus e o Diabo duvidam.
Mas,
contido sempre por algumas regras inflexíveis.
Nós
temos visto o desenvolvimento de um arsenal de críticas ao governo Bolsonaro
por parte dos meios de comunicação, mas a política econômica segue incólume,
destruindo um século de direitos da classe trabalhadora, só para dar um
exemplo.
Talvez
haja jornalistas nesses meios querendo abrir a boca, e não podem.
É
o capitalismo, estúpido - não custa parafrasear o assessor de Clinton, James
Carville.
Não
se escreve livremente no dia a dia da profissão. Talvez um cronista ou outro.
Os repórteres, editores, editorialistas, todos eles são submetidos diariamente
às regras de cada veículo, sempre
determinadas por mecanismos externos, já falados.
Repórter,
Navarrinho sempre foi, e disso tem orgulho.
Sabe
nunca ter sido livre, ao menos não inteiramente livre.
Sabe
ter realizado prodígios.
E
tem ciência dos limites.
Jornalista,
um dia fica mais velho, deixa a redação, e então vai escrever o que gosta.
Voar.
Publique
ou não.
Uma
quase vingança.
Aí
pode cantar não sou quem me navega quem me navega é o mar segue nos braços de
Paulinho da Viola é ele quem me carrega como nem fosse levar a escrita correndo
solta cavalo selvagem...
Assim,
com ele.
Voltou-se
para a ficção.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Sempre
Paviolando
Como
dizia Clodomir Morais, jornalista mexe com mercadoria perecível
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Emiliano José
22
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: dores e delícias de
ser repórter, a
ditadura do fato, o dia da
libertação,
quando para de escrever
só voltando a
escrever, imaginação.
Eita
mundo vasto mundo e eu não chamo Raimundo.
Nem
Drummond.
Nem
quisesse, e não podia explicar esse vasto mundo do jornalismo.
Navarrinho
fala das dores e delícias de ser repórter.
Delícias,
as descobertas diárias, a busca de pistas inexploradas, a perguntação, fontes
assustadas, ou não, a angústia e a pressa de escrever quando na redação, onde
está o lead, pergunta chave, e não tem como pensar muito, tem de escrever, e aí
ver o texto publicado, inteiro ou não, a depender dos interesses e às vezes do
humor do editor.
Dura,
intensa, rica rotina.
Dores,
muitas.
E
uma prisão: o fato.
Recentemente,
durante a posse na Academia de Letras da Bahia, março deste ano da graça ou
desgraça de 2021, falei disso.
De
como o fato aprisiona o texto.
De
como eu próprio senti isso ao longo de minha vida profissional e das
dificuldades para me livrar dessa maldição.
Porque
se importante considerar o fato, essencial também deixar voar minimamente as
asas da imaginação, de modo a não empobrecer o texto, de maneira a não
endurecer a realidade, torná-la áspera ao pobre do leitor.
Mas,
o fato, eis ele sempre presente, qual maldição, o fato é: libertar-se dele é
muito difícil.
Na
reportagem, ele é o senhor, inconteste.
O
repórter o considera rei.
E
gosta de considerá-lo assim.
Navarrinho
acentua: quem não foi repórter, tem dificuldades de apreender o essencial do
jornalismo.
E
é verdade - quanto aprendizado.
Não
sei, mas como repórter sempre estive incomodado pelo autoritarismo do fato, ou
pela forma como o jornalismo o trata.
Talvez,
outra vez Drummond, porque quando nasci um anjo torto desses que vivem na
sombra disse: vai, vai ser gauche na vida.
E
ser gauche é complicado - torna o sujeito sempre um incomodado, rebelde, chato
muitas vezes.
Não
estou sozinho.
Insisto
no mantra de Navarrinho: jornalista quando para de escrever, vai escrever.
Descobre
a existência de outro mundo, vasto mundo, mais além do fato.
Descobre
a delícia de voar.
Dar
asas a si mesmo, abrir portas à imaginação.
Por
isso, talvez tantos romancistas, poetas, escritores de tanta espécie foram
jornalistas.
Esqueceram
os fatos, ou deram a eles outra roupagem: colorida, divertida ou dramática.
Passaram
a olhar o mundo lá de cima, das nuvens.
Assim
Navarrinho, quando deixou levar-se nas águas da ficção...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Raquel Nery: Mas também tem
o caminho inverso, querido Emiliano. A prosa contemporânea tem seu tanto de
ancoragem factual, o romancista que se assume personagem de sua ficção... E os
recursos para os dois movimentos não são exatamente os mesmos? Narrar ou
relatar, o que os distingue só pode estar em algum fora da linguagem, uma
instância inacessível ao leitor. Deixe estar: jornalistas e romancistas, os
melhores, aqueles que borram esses limites.
Emiliano José: Só
borrando-os...
Emiliano José: Sem
escravidão...
Emiliano José: Ancoragem
factual, sim...
Joaquim Lisboa Neto: Gabo,
Galeano...
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(Foto: Lúcia Correia Lima - Navarrinho e Waldir Pires em 2012)
Emiliano José
23
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: trabalho até hoje,
casamento em São
Paulo, filhas correndo
mundo, de
Portugal aos EUA, de Xangai
a Saigon, netas
e netos, alegria da vida.
Nunca
deixou de escrever.
De
valer-se de todo o aprendizado como repórter, como editor, diabo a quatro.
Até
hoje, trabalha profissionalmente na Secretaria da Fazenda, produzindo material
qualificado para o secretário, levantando às quatro da manhã.
Aposentadoria
não permitiria segurar as pontas da família.
Lembra:
casou-se com Popoia em 1973, dezembro, numa igrejinha de madeira, guardada na
memória até hoje, linda, linda, só não mais do que a noiva levada ao altar.
Igreja
de São Pedro e São Paulo.
Curioso.
Casamo-nos
no mesmo ano.
Com
uma diferença: eu estava preso, e o casamento se deu por procuração.
No
caso de Navarrinho, o casamento vai se aproximando dos cinquenta anos de
duração.
Brinquedo,
não.
Muito
amor.
Dois
dias depois, desembarcam em Salvador.
Nem
esquenta a cama.
Quarenta
e oito horas passadas, e viaja para Porto Seguro, ele e Agliberto Lima.
Primeira
grande matéria de página sobre os índios Pataxó - tem noção da importância
daquela reportagem.
Para
o "Jornal da Bahia".
Popoya,
a esperá-lo.
Sozinha,
sem conhecer ninguém na cidade - era de São Paulo.
Marileni
Machado - o nome de Popoia.
Ganhou
Navarro ao casar - no nome e pela vida afora.
Estradas
de terra, viagem de barco, não havia jeito de chegar facilmente às aldeias
Pataxó.
Duas
semanas de trabalho.
Navarrinho
é pai de Mariana - todo mundo Machado Navarro.
Casada
com Ricardo Vasques, já inundou de alegria a vida de Popoia e Navarrinho com a
neta Luísa, de 11 anos atualmente, e Pedrinho, um capeta de sete anos.
É
pai de Juana, casada com Peter, baiano de nome inglês, e do amor deles nasceu
Sofia
Felicidade
sem fim por ter nos três anos de idade completados recentemente aprendido a
rodar bambolê, e Navarrinho não se contém de tanta alegria ao contemplar tanta
graça.
Joana
mora há mais de 11 anos em Lisboa, já é cidadã portuguesa.
Curioso.
Uma
de minhas irmãs, Vera Lúcia, também mora em Lisboa desde o final dos anos 1980.
Mariana,
a mais velha, correu mundo: primeiro Chicago, nos EUA.
Depois,
Xangai, ali: na China.
Girou,
girou, foi parar em Saigon.
Para
Navarrinho, como voltar à juventude, aos programas de rádio dirigidos por ele,
quando a maioria das locucões giravam em torno da guerra do Vietnã, onde
empostava a voz ao dizer SAIGON, não nega, sempre ao lado dos vietnamitas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de agosto de 2021
Carlos Navarro Filho: neta a quem puxar,
maravilhoso mundo da ficcção se
insinuando,
gostando, chegando perto, eu sou eu
mesmo...
O
avô tem a quem puxar.
Nessa
mania de ficção, acompanha os passos de Luísa, a neta.
Navarrinho
finalizava "Boquira".
Pediu
à neta: escreva alguma coisa sobre o livro.
Ela
tomou da caneta e mandou ver:
"Eu
tenho um avô inteligente, e que para mim é o melhor.
Apesar
dele estar velhinho, eu sei que ele escreve lindamente!!
Eu
participei do lançamento do seu primeiro livro.
Fiquei
tão feliz que cheguei até a dar autógrafos com ele.
Um
dia quero ser escritora, igual ao vovozinho!
Agora
que vocês aprenderam um pouco sobre o meu avô, conheceram ele melhor?"
O
texto compõe a quarta capa de "Boquira".
Datado:
Saigon (Ho Chi MInh) 12/10/2017.
Luísa
tinha sete anos.
Capista.
Insisto:
Navarrinho tem a quem puxar, vai longe.
Tem
futuro: basta seguir os passos da neta.
Agora
em São Paulo, mãe e pai de volta ao Brasil depois de tanto correr mundo, já com
11 anos.
Navarrinho
começou a divagar, sem estar condenado a responder o que, quem, quando, onde,
por que, como. - escravidão do lead.
Devagar,
foi se achegando, como quem nada quer, e de repente, invadia o mundo da ficção,
ou a ficção o invadia.
Escrever
sem compromisso.
Deixar
personagens tomarem conta da cena, guiá-lo.
Não
sou eu quem me navega, quem me navega é o mar...
Aí
então pôde dizer, como Riobaldo Tatarana:
"Eu
sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada sei. Mas desconfio
de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre
- o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por
fundo de todos os matos, amém!"
É
o velho Guimarães Rosa e seu protagonista de "Grande Sertão:
Veredas", insuperáveis.
Navarrinho
sentiu-se assim: qualquer ideia ligeira, e ele passava a persegui-la, sem medo,
sem travas.
Rastreando
a ideia ligeira pelo fundo de todos os matos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Beleza
Zapatilla, Luísa é um dos meus orgulhos. Os outros dois respondem por Pedro e
Sofia, a mais novinha. Avô coruja. Sem contar é claro Mari e Ju, além de Pops.
São razões de existir.
Graça Azevedo: Tenho o
autógrafo dela! Orgulho!
Carlos Navarro: Você lembra?
Ela toda compenetrada à mesa, assinava com tinta vermelha e fazia ao lado um
coraçãozinho.
Joaquim Lisboa Neto: Lhe
parodiando, delícia de leitura
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Emiliano José
25
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: jornalismo e literatura,
o primeiro livro
a gente nunca esquece,
Goroba,
deixa o sonho me levar,
andar pela velha
Salvador, beber, comer...
Navarrinho
fala muito da relação jornalismo literatura.
Dos
tantos escritores, escritoras nascidos nas redações.
No
Brasil e no mundo.
Não
compensa arriscar citar nomes.
Lista
infinita.
Os
leitores darão asas à imaginação.
Ele
começou quando saiu das redações.
Eu
comecei no decorrer da minha vida profissional, talvez incomodado com o volume
de restrições do dia a dia, dos códigos estruturais a me cercar, limitar,
prender.
Não
com a literatura, mas com personagens históricos.
Comecei
com Lamarca, junto com Oldack Miranda, e depois segui viagem solitária, em
busca de nossa história, especialmente a época de terror da ditadura.
Disse
não com a literatura, mas sei da existência de uma zona de sombra - era também
literatura, construção de personagens, não obstante sempre uma construção
fortemente ancorada em fatos.
Discuti
isso em texto recente, e no meu discurso de posse na Academia de Letras da
Bahia em março.
Ouvia
Navarrinho contar histórias, muito interessantes, e o aconselhava, insistia
até: escreva, meu velho, bote no papel.
Ele
seguia sem fazê-lo.
Aconteceria
um dia.
Tinha
noção: ninguém avança na ficção sem estar ancorado nos fatos, na realidade, sem
vincular-se a coisas da vida, aquelas ao seu redor.
Ouvia
conselhos daqui e dali para escrever, avançar no terreno da ficção.
E
um dia ousou;
Primeiro
livro, "Goroba", saborosa reunião de contos, de 2015.
E
primeiro livro ninguém esquece.
Deixou-se
voar pela velha Bahia, sobretudo Salvador.
Muito
do território da vida de jornalista, Centro Histórico de Salvador: Rua da
Ajuda, Ladeira da Montanha. Rua Chile, Avenida Sete, Terreiro de Jesus, Pau da
Bandeira, Largo do Mocambinho, Largo Dois de Julho.
Andou,
transitou por todos esses recantos, pegou taco na Sinuca do Abel, comeu e bebeu
no Varandá, na Cantina da Lua de Clarindo Silva, querido, acolhedor Clarindo, no Porto do Moreira, simpático e
irascível Moreira, andou pelo 63 e pela Maria da Vovó, não conta tudo porque
tem juízo, e nem eu falo de toda Salvador revelada por ele.
Começou
a soltar-se, sentir-se livre, longe das amarras do jornalismo.
Chega
de tanta pesquisa, tanta checagem - agora, território dos sonhos, o pensamento
parece uma coisa toa mas como é que a gente voa quando começa a pensar...
Não,
não ficou apenas em Salvador.
Seria
pouco...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Encerrando com
Lupicínio. Pensamento voa
Carlos Navarro: Atesto: foi um
dos que mais insistiram em que eu escrevesse, mas sempre me faltou coragem, até
que um dia decidi me expor, agora a meia dúzia de três leitores (como dizia
João Ubaldo) vai ter de aguentar porque não paro mais.
Carlos Navarro: Lembro de como
começou Lamarca, o livro. Eu tinha feito uma grande entrevista com Olderico, um
irmão de Zequinha, que trabalhava na construção do metrô de São Paulo e veio a
Salvador para audiência na Justiça Militar. Foi para o Jornal da República, ou
Isto É (não lembro agora, mas Raul Bastos estava nos dois), e aí, me parece,
você teve a ideia. Corrija aí se estiver errado.
Emiliano José: Com exatidão,
lembro não. Sei que resolvi fazer longa entrevista com ele, talvez nessa vinda
dele. Devia ser primeiro semestre de 1979, talvez provocado pela sua matéria.
Entrevista feita, procurei Mariluce: que faço com isso? - Escreva um livro -
ela respondeu. Toquei o barco. Saiu Lamarca.
Carlos Navarro: Lembro, você
procurou primeiro Mariluce, depois uma colega de SP, o nome talvez seja Mônica,
não lembro, era amiga mas a memória é fogo. Ela chegou a ir ao local do
assassinato de Lamarca e a partir daí não lembro mais. Parece que desistiu no
meio do caminho.
Emiliano José: Isso. Era
Mônica mesmo. Quem foi ao Buriti foi Mariluce. Mônica ajudou em São Paulo. Por
variadas razões, as duas não suportaram continuar. Oldack chegou e finalizamos.
Lançamos meados de 1980. Está na 18a. edição. Agora, 17/9, meio século da morte
do Capitão.
Emiliano José: Nome dela:
Mônica Teixeira.
Emiliano José: Mônica,
egressa do Colégio Vocacional, avançada experiência de São Paulo à época. Eu a
conheci primeiro como dirigente da UBES, em 1969. Vamos nos reencontrar quase
dez anos depois, ela já brilhante jornalista.
Emiliano José: Do Vocacional,
além dela, jornalistas, lembro de Moacyr Oliveira Filho, William Waack, Isabel
Gouvêa (fotógrafa), desde 1978 na Bahia. Poeta, Cristina Santeiro.
Emiliano José: A diretora,
Maria Nilde Mascelani, presa e torturada pela ditadura.
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Emiliano José
26
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: João da Roça Velha, Mariazinha do Boqueirão, Nambu e Zabelê, delícia de
"Goroba".
Não.
Salvador
é parte substancial de "Goroba".
Mas
não é tudo.
Como
iria deixar de lado o velho João?
Como
ignorar Mariazinha?
Os
dois, daquelas cepas de longa duração.
Os
dois, teimosos, querendo vida, muita vida.
Só
seguindo viagem ali por perto dos 100 anos, ou mais.
João
da Roça Velha.
Mariazinha
do Boqueirão.
Pai
e filha.
Cada
um daria um romance, ou mais.
Dois
contos no "Goroba".
Só
ganharam isso.
Até
agora.
Avô
de Navarrinho, velho João da Roça Velha, típico personagem de Euclides da
Cunha, um forte, homem do sertão, destemido, corajoso, arretado, desses de dar
um boi pra não entrar numa briga, uma boiada pra não sair.
Navarrinho
percebeu, como Gabriel García Marquez: a riqueza da literatura está ali, à mão.
Um
rico personagem, aquele bugre terceira geração de tupinambás, cor de bronze,
baixinho e atarracado.
Nunca
brigara, mas quando o provocaram, foi juntar espingardas e facões e esperou os pistoleiros
dos Medrado despontarem na estrada e meteu bala e foi pistoleiro cair de cavalo
e aquele tropel e aquela fuga dos valentes convertidos em covardes rapidamente.
Juntar
espingardas e facões e filhas e filho.
É,
Mariazinha do Boqueirão, juntinho juntinho do pai, rente que nem pão
quente, a primeira a disparar, verdes
anos, e incapaz de ver pai enfrentar jagunços sozinho.
Que
nada: mexeu com pai, mexeu comigo, meteu bala.
Mãe
de Navarrinho, Mariazinha do Boqueirão.
Cavalgava
e atirava como ninguém.
Tudo
aconteceu no santo império de Iaçu, terra natal de Navarrinho, onde durante
muito tempo Chico Preto reinou, e Nazinha manda até hoje, e a filha Cleidiana é
a primeira na linha sucessória.
Terra
de Nambu e Zabelê.
Nambu,
o cego, pedindo esmolas nas ruas de Iaçu, Zabelê, fiel companheira, e o capeta
do Xuxu, menino de seis, sete anos a atazanar os dois, gritando a plenos
pulmões em dia de feira:
-
Nambu e Zabelê!
Zabelê,
virada no cão, respondia:
-
Levanta a saia da mãe que tu vê.
Um
dia, Zabelê, em meio à feira de Iaçu, tirou a faca sete tostões do califon e
saiu atrás de Xuxu, só não lhe furando o bucho porque ele saltou pra dentro de
casa.
Xuxu
levou surra de relho fino do pai pra jamais esquecer.
Nem
Navarrinho esqueceu.
Xuxu
era ele.
Delícia
de conto.
Achem
logo o livro.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: o fascínio das gavetas
dos velhos
repórteres, restos amarelecidos,
matéria-prima
para romance, de Boquira
a Santo Amaro,
padre e mula sem cabeça.
Lançou
"Goroba" e começou logo a pensar no passo seguinte.
E
nasceu um romance: "Boquira".
Estava
tudo lá na gaveta.
Repórter
é assim, ao menos os mais antigos: tem uma gaveta cheia.
Tanta
coisa inexplorada, restos.
Às
vezes, ouro em pó.
São
fascinantes, as velhas gavetas.
A
gente vai lá, mexe, e descobre, redescobre.
Boquira
era a história da Cobrac - Companhia Brasileira de Chumbo.
Na
real, da presença no Brasil da multinacional francesa Penarroya.
Instalada
primeiro em Boquira, a 659 quilômetros de Salvador.
Estive
lá em 2014, nas andanças políticas.
Terra
de Francisco Alexandria, bravo jornalista baiano, autor de "Dom Carlos
Corleone", explosivo livro sobre ACM.
Depois,
a Cobrac deslocou-se para Santo Amaro, infestando-a de cádmio, chumbo, e
doenças incuráveis em decorrência da presença desses metais pesados.
No
"Invasão", alternativo da década de 1970, escrevi, junto com Linalva Maria de Souza e
contando ainda com a colaboração de Navarrinho, a matéria de capa do jornal:
"Chumbo neles", Cobrac no centro, ênfase em Santo Amaro.
É
história de chumbo, sangue, muita dor, morte, doenças.
Em
1971, cinquenta anos passados, Lamarca é morto ali perto, em Ipupiara, encostado
em Brotas de Macaúbas, e o aeroporto construído pela empresa foi base de apoio
das tropas assassinas da ditadura.
Navarrinho
mexeu nos restos, e que restos, e resolveu então produzir um belo romance.
Tem
história de padre namorador e ambicioso e de mula sem cabeça.
E
tem caso anterior carece contar, se acalmem.
Os
restos tinham história de censura, de autocensura...
Navarrinho,
no início dos anos 70, viajou pras terras daquele Oeste, passou dias
mourejando, descobriu coisas que até Deus e o Diabo duvidam sobre a tal Cobrac.
Chegou,
mandou ver, escreveu tudo, enviou pro "Estadão", e o jornal achou por
bem não publicar.
Nem
sempre era a ditadura a proibir.
Os
restos da empreitada, sobreviveram na gaveta, abandonados.
Ele,
então, agora, 2017, remexeu nas poeiras da gaveta, releu páginas de anotações
amarelecidas, e teve a ideia do romance, e gostou da ideia, e meteu mãos à
obra.
Foi
dos sertões ao Recôncavo.
De
Boquira a Santo Amaro.
Exumou
o cadáver...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Navarrinho autografando Boquira em SP para Ricardo Kotsho )
Emiliano José
28
de agosto de 2021
Carlos Navarro Filho:
ideia de unir vários jornais e enfrentar ditadura com
publicação de
reportagem sobre Penarroya,
no fim apenas
"Estadão" e "Jornal da Tarde" roeram a corda, e Boquira, o
romance.
Agoniado.
Navarrinho
estava assim.
Perguntando-se:
os jornais da Bahia não têm força para publicar essa matéria?
Não
lhe saía da cabeça aquela Penarroya, e o silêncio ensurdecedor sobre ela.
Naquele
início dos anos 1970, recém-saído da Universidade, mil ideias fervilhando na
mente, escolheu concentrar-se naquela: viajar para Boquira, escarafunchar
aquela história, e publicar.
Bem,
mas havia uma pedra no meio do caminho.
Ou
mais de uma, vá se saber quantas.
Sabia:
faltava cacife aos jornais locais para topar aquela parada.
Tempos
de Médici, o terrível ditador.
Tempos
de ditadura.
De
terror e medo.
Trabalhando
simultaneamente no "Jornal da Bahia" e no "Estadão", uma
ideia o acicata, fustiga a mente: por que não juntar forças?
Por
que não unir "Estadão", "Jornal da Tarde", e os jornais
locais para a reportagem sobre a Penarroya e suas ligas de chumbo, seus milhões
de dólares enviados para o exterior, e isso já estou misturando Boquira e Santo
Amaro?
Agrupar
o "Jornal da Bahia", dirigido por João Carlos Teixeira Gomes e Rafael
Pastores, "Diário de Notícias", sob o comando de Tasso Franco, e mais
"Estadão" e "Jornal da Tarde", e meter as caras sertão
adentro para dissecar a multinacional.
Foi,
viu e venceu: convenceu os dois jornalões paulistas, e deu segurança às
publicações locais.
A
reportagem sairia nos quatro.
E
viajou.
Passou
bom tempo por aquelas terras áridas.
Na
volta, entusiasmado, escreveu.
Os
dois jornais do Sul, os mais fortes, destinados a oferecer retaguarda, só
publicaram a primeira das quatro reportagens.
Roeram
a corda.
Os
outros, cumpriram o acordo.
Raul
Bastos, colega nosso de "Estadão", dirá mais tarde a um choroso
Navarrinho:
-
Essas reportagens foram censuradas por quem era contra a censura.
Contra
até certo ponto, como se vê.
Navarrinho,
um nó na garganta.
E
uma certeza: um dia todo aquele material seria publicado.
Promessa
dele, de repórter.
Embora
agora revelado num romance: "Boquira".
E
vocês, leitores, quiserem conhecer a empolgante história da Penarroya, sentir o
calor do sertão, tornar-se íntimo das malandragens de Padre Nazário, dos
prejuízos causados pela multinacional ao povo de Boquira e de Santo Amaro da
Purificação, tratem de ir atrás do livro.
Podem
ter certeza: vale a pena.
Dá
um bom filme.
Contatem
o autor: ele gosta de autografar.
Envia
pelo correio...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isabel Santos: Sim, vale a
pena ler Boquira. Reportagem maravilhosa, que nos faz refletir.
Joaquim Lisboa Neto: Cê sabe mais
do que eu, Francisco Alexandria pegou cárcere por denunciar a Penarroya
Joaquim Lisboa Neto: Li reportagem
no Boca do Inferno
Emiliano José: Teve também no
Invasão
Carlos Navarro: Zapatilla os
dois primeiros repórteres a irem a Boquira, pautados por mim, foram Agliberto
Lima (Estadão) e Dailton Mascarenhas (DN). Aos dois dediquei o livro.
Carlos Navarro: Eu fui depois
atualizar os dados e reunir mais elementos para o livro.
Carlos Navarro: Obrigado por
falar no Boquira, se alguém se interessar pode me ligar, embora esteja à venda
na LDM e no Amazon.
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(Lançamento de Goroba, em 2016)
Emiliano José
29
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: Visitação de Eça,
Goroba I, Goroba
II, Jorge Amado e
García Marquez,
ideia de novo romance.
Sei
não.
Mas
andaram dizendo de novas artes.
Navarrinho
desde cedo foi arteiro, desde as ruas de Iaçu, nem Iaçu de verdade era ainda e
ele já vivia de atazanar cego e guia Nambu e Zabelê levanta a saia que tu vê e
tome-lhe relho fino do velho tão novo e tão novo morreu o pai Carlos Navarro.
De
novas artes, ouvi dizer, é novo romance, sabe-se lá qual.
Ouvi,
não sei onde, de leituras, ele fuçando Eça de Queiroz, não sei se O crime do
padre Amaro, se O primo Basílio, se os Maias, tantos, porque Eça é quase
infinito.
Tive
a tentação, com ele não corro risco, de propor empréstimo: tenho comigo as
obras completas do português.
Se
quer mesmo içar velas, e navegar pela obra de Eça, empresto os três grossos
volumes - corro o risco de propor: pode
ser já o tenha.
Aí
o vinho pra comemorar a volta de "Invasão" pode ser, ou não,
comemoração também, devolução de Eça, tiver terminado a leitura.
Navarrinho
é leitor voraz, vou descobrindo.
Autor
em construção, como todo sujeito a mergulhar na ficção.
Seu
"Goroba e amores errantes", nascido em meio à pandemia, é até agora o
ponto alto de sua caminhada literária, iniciada, alguns podem dizer,
tardiamente: besteira - não tem tardiamente em literatura.
Goroba
é irmão.
Subcaçula
dos tantos filhos de Mariazinha do Boqueirão.
É
o conto de número 13 de "Goroba - contos", de 2015.
Percebe-se
o quanto o endiabrado irmão o marcou.
Viria
o Goroba da pandemia.
A
gente fala irmão para apresentar.
Mas,
Navarrinho, nesse último romance ou novela, o desliga da materialidade familiar
e o joga no panteão de personagens dignos de um Jorge Amado e de um Gabriel
García Marquez, revelando um gênio inventivo surpreendente, realismo mágico, a
causar em mim alguma inveja: evidencia capacidade de se desligar da maldição
dos fatos, maldição a acompanhar velhos jornalistas como eu.
Não,
não vou resenhar.
As
leitoras, admiradoras, sei, há muitas, hão de procurar por aí, comprar, e pedir
autógrafo ao autor.
Leitores,
também.
Vale
a pena.
Sem
exagero: dá filme, como 'Boquira".
Só
gostaria, e muito, de descobrir o que a leitura de Eça está a sugerir à mente
inquieta do autor.
Gostaria,
mas parece segredo guardado a sete chaves...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Carlos Navarro: Provocações,
provocações. Grato pela oferta, tenho os clássicos de Eça. Mas estou,
efetivamente, engatinhando em novo projeto. Se vingar vamos ver o que dará.
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(Marileni e Navarrinho - Place De l’Ecole, na entrada na Sorbonne)
Emiliano José
30
de agosto de 2021
Carlos Navarro
Filho: fim de jornada,
e longa vida
literária para Navarrinho,
alegria por ter
compartilhado tanta história.
É
preciso saber dar ponto final.
Fácil
né não.
Vontade
de seguir contando.
Comecei
essa jornada no final de janeiro deste 2021.
Percorri
longo trajeto, a me cobrar sete meses, mais um tiquinho.
Caminhada
diária, sem falhar um dia.
E
chego ao fim.
Não
da história de Carlos Navarro Filho, viva, forte, presente.
Confesso
a dificuldade.
Querendo
continuar a convivência com Mariazinha do Boqueirão, com João da Roça Velha,
com Goroba, queria ainda acompanhar outros tiroteios, andar pelas ruas e roças
de Iaçu, nem Iaçu ainda, Paraguaçu, um buliçoso arruado, transitar pela via
férrea, a de lá e a de Alagoinhas.
Curioso,
muito: convivi com Navarrinho, foi meu chefe, e depois sempre nos encontramos,
amizade serena e forte.
Mas,
conhecê-lo mesmo, agora, puxando pelo fio de sua história de vida.
Ele,
retraído, me mandou poucas linhas quando propus essa caminhada.
Percebi.
Repórter
formado por ele, fui perguntando.
E
despontou um forte personagem.
Sobretudo,
um grande jornalista.
Brilhante
e digno.
Formou
muita gente, eu me incluo entre seus discípulos.
Sempre
me impressionaram as histórias contadas por ele, e dizia: escreva.
Começou,
e olhando melhor descobri o enorme talento dele para a ficção.
O
último livro dele, "Goroba e os amores errantes" é coisa de gente
grande.
Tenho
convicção de ter conseguido revelar apenas uma pequena parcela da vida dele.
Sinalizei,
quem sabe, para uma autobiografia, certamente muito rica.
Tornei-me
ainda mais íntimo de Iaçu: terra de Navarrinho, de Chico Preto, de Nazinha, de
Cleidiana, esta também uma de minhas personagens nessa contação de histórias de
jornalistas, e das mãos de quem recebi título de nobreza do Santo Império de
Iaçu, pergaminho folhado a ouro a ser entregue proximamente.
Vida
que segue, como diria nosso companheiro de "Estadão", Ricardo
Kotscho.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Navarro: Pois é
Zapatilla, só mesmo repórter fuçador e com veia de historiador. Nunca falei
tanto de mim com um amigo. No fim ficou um belo trabalho, não pelo
entrevistado, mas pela capacidade do perguntador de reagir rápido em cima de um
fato novo, ou de um viés que o entrevistado não imaginou. Abração e parabéns.
Emiliano José: O mérito é do
personagem
Mônica Bichara: Esse
personagem daria fácil um ano inteiro de capítulos diários, que história rica
que foi surgindo nesse novelo desenrolado por Emiliano. Ainda bem que nosso
noveleiro não se acomodou com as poucas linhas recebidas. Uma verdadeira
biografia, parabéns aos dois. E agora é comigo, Navarrinho, quero fotos para
ilustrar essa contação
Carlos Navarro: Obrigado moça.
Vamos nos falar, você vai ter de fazer o mesmo garimpo de Emiliano, me dizer
quais preu ir atrás. Valeu. Bj
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Comentários
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