O
personagem chegou quase por acaso (nada é por acaso, isso confirma a regra) à
série que o jornalista e escritor Emiliano José vem tecendo há quase três anos,
diariamente, na sua página do Facebook, garimpando as memórias do jornalismo
baiano. Provocado por colegas, decidiu reservar “dois a três capítulos” a Jary
Cardoso, com quem dividiu redação raríssimas vezes. Chegou perto de seis meses.
Por aí já dá para imaginar o surpreendente protagonista da vez, até para o
autor. Ou principalmente pra ele. E bote surpreendente nisso.
Filho
de pai comunista, Antonio Campos, com quem se encontrou pela primeira vez aos 9
anos, Jary foi da aversão ao comunismo a militante revolucionário da Polop; de
adepto do “desbunde criativo” e do "transbunde baiano” e amigo íntimo de
artistas descolados a funcionário por longos 22 anos em jornal careta de
Salvador; atualmente ajuda o filho Tom Cardoso, que seguiu seus
passos no jornalismo, na literatura e na paixão pela área cultural.
Entre as recordações, ele assume que foi per-di-da-men-te apaixonado pela psicóloga Iara Iavelberg, a última companheira do guerrilheiro e ex-capitão Carlos Lamarca (ambos torturados e assassinados pela ditadura militar). Jary era aluno dela e parceiro de célula na Polop. Imaginem quanta adrenalina nessa convivência. Autor de “Lamarca o capitão da guerrilha”, junto com o também jornalista Oldack Miranda, Emiliano enriquece ainda mais a narrativa dedicando alguns capítulos à trajetória de Iara e Lamarca, em paralelo à paixão do jovem Jary.
Como
fica claro na série, “revisitar o passado é sempre uma forma de entender o
presente, e descortinar o futuro”. Reflexão importante quando se vive sob a
ameaça de novos golpes, quando se respira retrocesso.
#MemóriasJornalismoEmiliano acompanha desde os primeiros passos de Jary até a chegada em Salvador, em 1987. Aqui trabalhou na Secretaria de Comunicação da Prefeitura; no Jornal da Bahia; em 1994 tornou-se repórter de Geral de A Tarde, copidesque, redator, subeditor e editor de Internacional e editor de Opinião.
Curtia
a capital baiana, sentia-se em casa. Aqui apaixonou-se pela cantora mineira
Vilma Nascimento, prima de Milton Nascimento, após a separação da primeira
esposa, Aninha, mãe dos gêmeos Denis e Tom. Estão juntos até hoje.
Apesar
de ter sido pau pra toda obra no jornalismo, não esconde que sua grande paixão
sempre foi a área cultural. E ela rendeu a Jary matérias inesquecíveis, com
ídolos como Elis Regina, Mutantes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Jorge
Mautner, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat.....e
outros nomes da contracultura. “Aí
sentia-se como peixe n'água”, define Emiliano. O autor complementa: Era sua forma de combater o
reacionarismo, o sectarismo, difundir a mais ampla liberdade, dar sentido à
ideia de democracia.
Isso explica o entusiasmo com que relembra experiências ricas como as do "Bondinho", revista independente dirigida por Hamilton Almeida Filho, o HAF, e do "Folhetim", suplemento dominical da Folha de São Paulo.
*********************************
(Repórter em ação na Igreja do Bonfim)
Emiliano José
7
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
perdidamente apaixonado
Abro
despedindo-me de mim..
Tenham
calma: faço-o serenamente.
E
logo possa, volto.
São
as artes do acaso.
Há
quem diga ser o acaso uma invenção.
Não
existiria.
Coisas
da filosofia.
Certeza
tenho não.
Estava
posto em sossego nessa série tentando desincumbir-me de mim, depois de ter
passado sete meses escrevendo sobre o grande Navarrinho.
Nessa
série também tenho a pretensão de falar de minha trajetória, a que menos me
atrai.
Pois
é, eu havia retomado o esforço para acompanhar os meus próprios passos, e
nesses dias me vi envolto principalmente em matéria do início de julho de 1975,
feita por mim, publicada no "Jornal da Bahia", com o grande Othon
Bastos.
De
repente, o acaso.
Jary
Cardoso salta à minha frente, sem quê nem pra quê.
E
por isso vou gastar uns dois ou três capítulos dessa série com ele.
Dessa
vez, verdade - não será nada extenso.
Navarrinho
nasceu de sete meses.
Ele,
nascerá em poucos dias.
Nossa
aproximação deu-se principalmente quando ele editava Opinião, em "A
Tarde".
Como
se sabe, há mais de 20 anos colaboro com o centenário jornal.
Surge
no zap dizendo-se apaixonado por Iara Iavelberg - outro.
Claro,
não surgiu assim à toa.
Uma
historiadora quis ouvi-lo.
Nome
da moça é Juliana Marques do Nascimento.
Mestra
e doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense.
Como
doutoranda, desenvolve pesquisa sobre Iara Iavelberg.
Teve
conhecimento de militância dele na Polop e no POC.
Depois,
falamos um pouco dessas duas organizações revolucionárias.
Resolveu
compartilhar comigo, o Jary.
Largo
tudo, e busco um lead na fala dele:
_
Sobre a Iarinha mulher, confesso: no início fui perdidamente apaixonado por
ela.
Per-di-da-men-te.
Não
era pouca coisa, não.
Sofreu
um bocado com essa paixão.
Do
que sei, disputava com muitos.
Iara
era mulher encantadora.
Ele,
tímido, devia pensar ser muita areia pro caminhão dele.
Conheceu-a
como professora no cursinho pré-vestibular do Grêmio da USP.
Ficava
sempre no gargarejo, na primeira fila.
Um
dia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Alberto Freitas: Se Jary
estiver por aí, me confirma se em meados dos anos 1970 fez matérias para a
revista POP.
Jary Cardoso: Sim, fiz
matérias quando a revista era editada por meu grande amigo, o gaúcho Valdir
Zwetsch.
Alberto Freitas: Tenho uma
delas. Se não me engano, uma com Rosa Passos.
Joaquim Lisboa Neto: Como canta
Paulinho da Viola "ela não é flor pro seu jardim / você só sabe tocar
tamborim", abraços camarada!
Raquel Nery: Os
revolucionários também amam. Contar a história por esse viés pode, também, ser
muito revelador.
Adilson Borges: Grande Jary.
Me passou esta bela recordação e eu sugeri e pedi licença para passar a
Emiliano. "Já passei", respondeu. Sensível como sempre, Emiliano
divide com a gente este emocionante registro de uma época.
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Emiliano José
8
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
mesma célula de Iara
Iara
Iavelberg.
Assassinada
faz 50 anos.
Falamos
dela em nosso livro, eu e Oldack, "Lamarca, o Capitão da Guerrilha".
Da
vida e da morte.
"Entre
quatro e cinco horas da manhã do dia 20 de agosto de 1971, os moradores da rua
Minas Gerais, particularmente os do edifício Santa Terezinha, na Pituba, bairro
de classe média de Salvador, acordaram sobressaltados pelo barulho de tiros,
gritos e bombas."
É
da Iara jovem, linda, revolucionária sempre, a recordação saudosa de Jary
Cardoso.
Quando
a conheceu, ela era companheira de célula dele.
Célula
da Polop, organização revolucionária nascida em 1961, incomodada com o que
considerava reformismo do PCB, inspirada teoricamente nos textos de August
Thalheimer, da Oposição Comunista Alemã.
Ele,
aluno no cursinho pré-vestibular do Grêmio da USP, ela professora, meados dos
anos 1960.
Deslumbrado
com a beleza dela, com a desenvoltura, com sua presença no palco - é, uma
professora, um professor, estão sempre em cena, e sabem disso - ele sentava-se
sempre na primeira fila, ali, no gargarejo.
Não,
não tirava os olhos dela.
A
ele não escapava nenhum de seus movimentos.
Não
se sabe se apreendia todos os ensinamentos, tal a fixação na mulher, na linda,
formosa mulher.
Por
quem se apaixonou, sem nunca ter se declarado.
Onde
achar coragem?
"O
quarteirão inteiro tomado, desde a avenida Otávio Mangabeira, que margeia a
praia, até a Minas Gerais, uma rua paralela. Bombas de gás eram lançadas, uma
atrás da outra, contra o apartamento 201 do edifício Santa Terezinha."
Numa
das aulas, Iara vai pra lá, vem prá cá, desenvolta sempre, a sala atenta, e de
repente se aproxima da cadeira de Jary, e senta-se na parte da cadeira dele
onde fazia as anotações, sem interromper a aula, falando e falando,
fluentemente.
Prá
quê?
Jary
Cardoso viu-se em apuros - tesão quase insuportável ao senti-la tão próxima.
A
mulher pela qual era per-di-da-men-te apaixonado, ali, encostadinha nele, e
ele, quase sem ar.
Sabia:
ela não estava nem aí.
Mas
ele, coitado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Devanier Lopes: Endurecer
sempre, perder a ternura jamais....
Jose Jesus Barreto: esse lado
humano das pessoas... o mais íntimo. Isso é o mais bonito. o depoimento de Jary
é belo.
Joaquim Lisboa Neto: Es fuego
hermano...
Isabel Santos: Ufa, né, Jary?
Emocionante. Iara, fibra e garra.
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Emiliano José
9
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
Apocalipse Now e mão amiga
Foi
um cerco de terror, o da rua Minas Gerais, na madrugada de 20 de agosto de
1971.
O
coronel Luiz Arthur de Carvalho, o mesmo que pouco menos de um ano antes havia
ordenado a minha tortura, comandava a operação aos gritos.
Prenderam
um bocado de gente, está tudo lá, no livro sobre Lamarca, escrito por mim e
Oldack Miranda.
Agora
na 18a. edição.
Querendo,
é editado pela Global Editora.
A
primeira edição lançamos em meados de 1980, na Literarte, de Getúlio Santana e
Nildão.
Depois
daquele Apocalipse Now, parecia reinar a paz, se é possível paz depois daquele
terror.
Não,
não havia acabado.
Um
jovem entre 12 e 14 anos morador de apartamento contíguo ao 201, pede para
voltar e pegar livros escolares.
"Dirigiu-se
ao quarto, aquele normalmente destinado à empregada e, ao abrir a porta, viu
uma mulher apontando-lhe dois revólveres. Assustado, recuou, bateu a porta que,
trancada por fora, não se abria por dentro".
A
mulher, Iara.
Jary
Cardoso participou da célula da Polop, integrada por alunos matriculados no
Instituto de Psicologia, parte da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
A
Polop é uma das poucas organizações revolucionárias a não nascer do tronco PCB.
E
já surge defendendo a revolução socialista - não aceitava a noção, vinda da
tradição comunista, da revolução em duas etapas: primeiro, revolução
democrático-burguesa, em seguida revolução socialista.
Nas
rememorações, passados já mais de 45 anos, ele se recorda com ternura de
Iarinha, uma das principais figuras da célula.
Ternura
e admiração:
-
Era personalidade forte, carismática, liderança inconteste na Psicologia, muito
dedicada às lutas do movimento estudantil.
Deve
a ela a entrada na Universidade.
A
nota obtida no vestibular não lhe permitia o ingresso.
Estava
entre os excedentes.
Houve
luta, manifestações na famosa rua Maria Antônia, na porta da Faculdade de
Filosofia, para inclusão dos excedentes.
Recuo
da USP.
Se
não todos, alguns seriam aproveitados.
Seriam
examinados.
Iarinha,
conhecendo-o, companheiro, resolve estender-lhe a mão.
-
Fique tranquilo - disse-lhe.
Não
entendeu...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Roriz Silva: Parabéns amigo
Emiliano pelo esforço em manter viva a memória do terror!
Emiliano José: Abração,
querido companheiro. Dê um beijo em Zefa.
Isabel Santos: Sempre gritos
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(Jary Cardoso)
Emiliano José
10
de setembro de 2021
Jary Cardoso: um
lobby eficaz, e a entrada na Universidade.
O
menino desceu correndo.
Disse
da moça com dois revólveres no quarto de empregada.
O
coronel Luiz Arthur já havia mandado os presos numa caminhonete, entre eles um
bebê de menos de um mês de idade, Antoine Freitas.
Ordenou
a retomada da violência.
Entraram
desabaladamente no prédio novamente, e bombas começaram a explodir.
"Através
dos basculantes, cinco delas foram lançadas para dentro do minúsculo quarto de
empregada. Tantas bombas de gás, tanta fumaça, que assemelhava a um incêndio.
E, em meio às bombas, tiros."
Iara,
lá dentro.
Contávamos,
vocês se recordam: aconteceu a luta dos excedentes da USP.
Jary
Cardoso entre eles.
A
USP, diante de tanta balbúrdia, resolveu então fazer nova seleção.
Iara,
compadecida da situação do aluno e companheiro de Organização, resolve ir à
luta.
Combinando
jeito e ousadia, vai aos professores simpatizantes da causa estudantil,
participantes da banca examinadora.
Conhecia-os
um a um.
Fala
das qualidades do aluno e do quadro político promissor - com aqueles
professores podia se abrir.
Como
deixá-lo fora da Universidade?
Seria
um reforço importante para a vida acadêmica e, também, para a militância em
favor das liberdades e da luta contra a ditadura.
Ele
podia contribuir muito com a "Universidade Crítica", proposta da
Polop para o ensino superior, para a luta contra o Acordo MEC-Usaid, e
naturalmente, insistia, para o combate à ditadura.
Não
bastasse tudo isso, somaria forças na luta da Organização para o enfrentamento
do "reformismo" do Partidão, a favor de uma transformação radical da
sociedade, do socialismo e do comunismo.
Cardoso
foi aprovado.
Agora,
colega de Iarinha no curso de Psicologia da USP.
De
curso e de célula.
Recorda-se
da admiração dela pelos formuladores da linha política da Polop, especialmente
pelo sociólogo Eder Simão Sader, e pelo irmão, filósofo Emir Sader.
Sente
um certo orgulho ao lembrar de alguma admiração dela também por ele, por sua
rápida ascensão como militante. depois de 1965, dezembro, quando incorporou-se
oficialmente à Organização - recrutado, como dizíamos.
Não
demorou muito para sua ascensão como quadro dirigente da Polop...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: E eu, colega
do cara no extinto e glorioso JBa - fase última - , sabia lá que o homi tinha
esse passado todo...Soubesse e teríamos armado uma revolução!!
Isabel Santos: E eu aqui,
mais uma vez, indignada com tanta violência. Aff!
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(Lamarca o capitão da guerrilha, livro de Emiliano José e Oldack Miranda)
Emiliano José
11
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
estudante profissional
Iara
acordou assim sonolenta, estranhando.
Alguma
coisa acontece.
Estava
sempre pronta, como se em guerra.
E
porque em guerra.
Jogou-se
no chão.
Arrastou-se
até a janela, e viu: cerco.
Coração
acelera.
Ainda
no chão, juntou o 22 e o 38, enfiou-os de qualquer jeito na bolsa.
Explosão
de uma bomba.
De
outra.
De
outra.
Arrasta-se,
desviando-se das explosões.
Ouve
os gritos:
-
Pessoal do 201, entregue-se!
Gritos
e sussurros, atmosfera de terror, ouve crianças em desespero, chorando.
Arrastando-se,
sobe na mureta, e num salto estava no apartamento vizinho, entra no quarto de
empregada, deu-se com cama, livros...
Descrevo
isso, livremente, a partir do belo livro de Judith Lieblich Patarra: "Iara
: reportagem biográfica", está la na parte final das mais de 500 páginas.
Preciso
impor-me, e voltar a Jary Cardoso, meu protagonista.
Acontece:
ele apareceu assim de inopino, e apaixonado por uma mulher fascinante,
deslumbrante, e ainda por cima revolucionária, capaz de enredar o autor,
levá-lo pelos belos e trágicos caminhos trilhados por ela, e justo ele, esse
autor, enredado desde antes nos trajetos dela e do Capitão Carlos Lamarca.
Mas,
me imponho, e volto a ele, também grande personagem.
Conseguiu.
Chegou
ao curso de Psicologia da USP, pelas mãos de Iara Iavelberg.
Acontece:
Cardoso era um estudante profissional.
Estava
voltado mais para a militância revolucionária, menos para os estudos
curriculares.
Mais
Marx, menos Freud.
Mais
Lênin, menos Jung.
Mais
Trotsky, menos Lacan.
Não
era um rapaz disposto a pegar o canudo.
Até
tentou: fez os primeiros seis meses de Psicologia.
E
a primeira disciplina, devia ser obrigatória: Estatística.
Parou
aí.
Aguentou,
não.
Nunca
mais aventurou-se a buscar um diploma universitário.
Estudioso,
sempre foi, avesso no entanto à rotina acadêmica.
Jornalista,
tornou-se por acaso:
-
Quando deixei a Polop, tive que arrumar um emprego, e aí virei jornalista.
O
Brasil perdeu um revolucionário de tempo integral, e ganhou um grande
jornalista...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
pai comunista, inveterado sedutor
Iara
sentou-se na cama, lençóis ainda em desalinho.
Respirou
fundo.
Tentava
retomar-se.
Ganhar
algum equilíbrio.
A
vida, um filme, passando ligeiro.
Só
pensava nele.
Lamarca.
Quantos
homens passaram por su vida, quantos amores, todos fugidios.
Fosse
talvez medo de compromissos, quem sabe.
Um
olhar, um toque, e cama.
Assim
seguia.
E
quando ele apareceu, paixão.
Como
se o mundo ganhasse outras cores.
O
barulho lá fora cessou.
E
como estará Lamarca, embrenhado por sertões?
Estará
ouvindo canto dos pássaros enquanto limpa as armas?
Naquele
momento da vida, duas certezas: a da Revolução e Lamarca.
Nunca
pensou dizer homem da minha vida, e agora diz, convicta.
Encontrara
o amor de su vida.
Refletiu:
como escapar dessa?
Cercada,
sozinha... como escapar?
Iria
sair dessa...
Jary
Cardoso não tinha qualquer consciência política de esquerda quando eclode o
golpe de 1964.
Um
reacionário?
Raiva
do pai, é, tinha raiva do pai.
Antonio
Campos, cirurgião-dentista, tenente do Exército, prestista de quatro costados,
preso na Insurreição de 1935, conhecida como Intentona, ostentava grande
cicatriz nas costas - chicotadas da repressão, no dizer da mãe de Cardoso,
Luiza.
Comunista,
o velho.
Chega
a desenvolver militância ao lado de Marighella, em São Paulo.
Depois,
muda-se para o Rio de Janeiro, onde integra direção estadual do PCB.
A
mãe, formada professora na Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da
República, encontra primeiro emprego na sede do PCB, no Brás, no curto período
de legalidade do partido nos anos 1940.
Datilógrafa.
Aconteceu:
Antonio era casado, mas paixão não escolhe estado civil.
Deixara
esposa e filhos no Rio, e aconteceu.
Os
dois juntaram os panos.
Quando
Luiza Cardoso ficou grávida do hoje jornalista, Campos sumiu no mundo.
Escafedeu-se.
Os
camaradas, partido já na ilegalidade novamente, explicaram, com jeito: está
escondido, clima esquentou.
Luiza,
esperta, acaba descobrindo: já tinha outra amante.
Era
daqueles comunistas de uma mulher em cada porto, daqueles homens cantados por
Chico Buarque, lembram? uma mulher em cada porto?
Jary
Cardoso, entre a infância e a adolescência, pegou abuso dos comunistas -
tinha-os todos como o pai, devassos e irresponsáveis.
Raiva,
é, tinha raiva do pai.
A
mãe, ele não sabe por que, deixou a entender sempre jamais ter deixado de ser
apaixonada pelo velho comunista.
Comunista,
às vezes, é sedutor...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Graça Azevedo: E haja romance
no meio de tanta luta. Sigamos.
Joaquim Lisboa Neto: Essa é
lapidar, comunista às vezes é sedutor...
Sônia Maria Haas: Que otimo
relato.
Lucia Correia Lima: Vou ler tudo
no Pilha Pura
Mônica Bichara: Sim, toda a
série está publicada por personagens no
https://pilhapuradejoaninha.blogspot.com/
Isabel Santos: Mais uma
história/trajetória de tirar o fôlego, relatada pela pena poética do querido
Emiliano.
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Emiliano José
13
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
admirador do golpe
Cercada,
sozinha.
Só
contava com si própria.
Um
22 e um 38.
Às
vezes, não se dava conta das fragilidades.
Queria
sempre rompê-las, afrontá-las.
E
às vezes, impossível.
Bateu
pé.
Quis
ir para o treinamento guerrilheiro do Vale do Ribeira.
E
Lamarca, contra a opinião dos demais companheiros, resolve bancar a ida dela.
Pensa:
era o amor invadindo a Revolução, desconhecendo regras.
Não
porque mulher.
Mas,
porque frágil, de saúde frágil.
Não
demorou a retornar.
Não
dava.
O
pensamento volta àquela situação, dramática situação.
Àquele
quartinho.
Duas
hipóteses.
A
primeira, fugir.
A
outra, encarar a morte.
Prisão,
em nenhuma hipótese.
Lembrou-se
de Espinosa, breve amor, a lhe ensinar lidar com armas.
Generoso,
triste, sem nada revelar da paixão por ela, incentivou Lamarca a seguir em
frente quando ouviu a confidência angustiada do amor dele por ela.
O
pensamento voa, e Iara passa a imaginar como fugir dali.
Quem
sabe os donos do apartamento a ajudassem, num rompante de solidariedade e
ousadia?
Saindo
na noite, no carro deles...
O
golpe de 1964 encontra Jary Cardoso entusiasmado: a favor do golpe.
Ele
o chamava Revolução.
Ressentimento
com pai dá nisso.
Trabalhava
perto de casa, em Pinheiros no escritório central da rede das Lojas Duton, moda
masculina.
Auxiliar
de contabilidade.
Entre
os auxiliares do escritório, o respeitado estudante de Economia da USP, Duilio
Sandano.
Militante
da UDN Jovem, convida Cardoso a ingressar no partido.
Recusa.
Cedo
ainda.
Registra:
sujeito de direita, porém letrado, e com alguma honestidade intelectual.
Orientou
leituras, indicou-lhe ótimos livros sobre história econômica do Brasil, não necessariamente
na esteira do pensamento dele.
Um
dia, é surpreendido com um presente do amigo.
Abre:
eram dois livros, clássicos: "Formação Econômica do Brasil", de Celso
Furtado, e "História Econômica do Brasil", de Caio Prado.
Não
os leu, à época, com a atenção devida.
Mais
tarde, valeu-se deles, com gosto.
Guarda-os
até hoje, bem conservados, preciosidades.
Sandano,
sujeito convincente, levou-o a ficar fã de Carlos Lacerda, sobretudo dele.
Mas,
no panteão de Cardoso, estavam ainda Roberto Campos e Castelo Branco, o chefe
da Revolução, presidente-ditador, naturalmente não assim considerado por ele.
Numa
autoironia, e sem condescendência consigo próprio, proclama:
-
O passado me condena!
Trabalhava
meio período na Duton e cursava o Científico à noite, no Instituto de Educação
Fernão Dias Pais, à rua Pedroso de Morais, também em Pinheiros.
E
houve umas férias, no início de 1965...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Solange Souza Lima Moraes: Já tomou a
segunda dose da vacina?! Eu já.
Vamos
marcar para nossa primeira entrevista com o devido distanciamento?! Que achas
Carla França e Emiliano José
Emiliano José: Podemos
Lucia Correia Lima: Vou ler tudo
no Pilha Pura
Mônica Bichara: Com certeza
Lucia Correia Lima: Mônica, estou
procurando uma foto dele. Importante
Mônica Bichara: Claro, Lúcia, estou
contando com os amigos fotógrafos
Mônica Bichara: Manda foto pra
mim, Jary Cardoso. Para editar a série no
https://pilhapuradejoaninha.blogspot.com/ e depois no e-book de Emiliano com
essas memórias maravilhosas
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(Em Andaraí)
Emiliano José
14
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
Carmem, lua e início de conversão
Saindo
na noite.
Ganhando
o mundo novamente.
Sempre
a esperança de rever Lamarca.
É
- pensava escapar.
Estranhava
aquele silêncio.
De
repente, passos.
Revólveres
nas mãos.
Engatilhados.
Espera.
Um
menino.
Doze,
treze anos.
Não
ia atirar.
Ainda
leva o indicador aos lábios.
Quase
suplica silêncio, cumplicidade.
O
menino assustado recua, e bate a porta.
Num
gesto quase automático, tenta abri-la.
Está
presa ali, só abria por fora.
Inevitável:
o menino a entregaria.
Olha
para os revólveres.
Senta-se
novamente na cama, quase em desalento.
Sabe:
está chegando a hora e a vez de Iara Iavelberg.
Lembra-se:
A hora e a vez de Augusto Matraga.
Eles
viriam, com tudo.
Inevitável.
Curioso
ainda pensasse na casa da Vila Mariana, onde viveu momentos maravilhosos com
Lamarca.
Casa
de Joaquim Alencar Seixas, da companheira dele, Fanny, de Ivan, já
revolucionário aos 15 anos, quem sai aos seus não degenera.
Revolucionário,
o casal egresso do velho Partidão.
Sofreu
quando soube, em abril daquele ano, do assassinato do velho Seixas pela
repressão.
Foi
um período sem sobressaltos, a estadia na casa, não obstante intenso, discussões
com muitos dirigentes das organizações voltadas à luta armada...
Em
1965, início do ano, Jary Cardoso passa as férias na fazenda de um tio,
Cornélio, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo.
Curioso,
dana-se a bisbilhotar a estante repleta de livros.
Dois
títulos o atraem: "Análise do homem" e "A República".
Autores,
Erich Fromm e Platão.
Erich
Fromm foi uma iluminação: misturava Marx, Freud e Cristo.
A
miscelânea, quem sabe, tenha valido por muitas sessões de psicanálise, fosse
ele adepto - passa a ver o marxismo sem ressentimento, sem o espectro do pai.
Cursava
inglês na União Cultural Brasil-Estados Unidos.
Roqueiro
raiz: fã de Elvis Presley, Little Richard, Ronnie Self, Gene Vincent and his
Blue Caps.
Americanófilo
típico.
Deixou-se
atrair por uns americanos e aceitou convite para um encontro do movimento Moral
Re-Armament, na Universidade Rural do Rio de Janeiro.
Numa
das palestras, exatamente a de Alceu de Amoroso Lima, bem mais conhecido como
Tristão de Athayde, ele vê irromper no auditório um grupo de estudantes
ruidosos, gritando palavras de ordem contra o imperialismo norte-americano.
Intrigado
e atento, concentra a atenção na ousada e bela oradora à frente da
manifestação, discursando em tom revolucionário.
Beleza
erótica, morena de pele escura, na definição dele.
Não
perdeu tempo, ousadia não lhe faltava.
Terminada
a agitação, aproximou-se da moça.
Ela
não recusou conversa, ao contrário.
Era
do Move - Movimento de Educação, fundado no método Paulo Freire.
Falou
muito no grande educador, e ele pouco interessado, voltado mais a ela mesma,
envolto pela beleza e sensualidade dela, ainda mais bela com aquela
desenvoltura discursiva.
Não
demorou muito, e na noite enluarada, em meio às árvores do campus,
desdobraram-se em ardentes carícias.
Carmem
não era brinquedo, não.
A
capacidade de sedução dela - Carmem Zilda - era muito ampla.
Ela
se impôs a tarefa de trazer Cardoso para a esquerda, tirá-lo daquele antro de
direitistas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Sérgio Buarque de Gusmão: Estou
esperando a parte do Bondinho e do HAF, Rua Lauro Muller, os dois na praia,
catando pedrinhas..
Emiliano José: Ele há de
responder...
Jary Cardoso: Meu caro, a
narrativa de Emiliano deverá chegar nessa parte do Bondinho porque em meus
depoimentos a ele já disse que no meu currículo de mais de 40 anos como
jornalista destaco apenas três atividades: foram as que atuei sob a liderança
de Marcos Faerman (meu 1º mestre, quem me levou pra profissão), Tarso de Castro
(jornalismo de combate com fortes doses de ironia e deboche) e Hamilton Almeida
Filho, o HAF. Este último foi o maior líder de trabalho em equipe que encontrei
depois de deixar a militância comunista. Como repórter sob seu comando no
Bondinho, o HAF nos conduzia como o chefe supremo de um partido político em
luta por uma revolução cultural no jornalismo e nos costumes. Acima dele, na
hierarquia da editora Arte & Comunicação, havia o grande Sérgio de Souza,
mas os repórteres, redatores, diagramadores e ilustradores éramos chefiados diretamente
pelo HAF. Morei com ele e mais alguns "guerrilheiros" meio hippies do
Bondinho numa "comunidade": um apartamento amplo que ocupava um andar
inteiro na Avenida Rio Branco, apelidado de "HAF Palace Hotel" porque
não era uma comunidade tipicamente hippie, só de paz e amor, mas, sim, um grupo
de combatentes anarquistas, adeptos do amor, da paz e também da briga e da
provocação, pautados e dirigidos por um líder forte, beirando o autoritário. Já
a 2ª parte do seu comentário, "Rua Lauro Muller, os dois na praia, catando
pedrinhas...", não entendi. Pode ser que vc tenha misturado alhos com
bugalhos, o que acontece comigo também quando me volto pro passado e os fatos
se embaralham. Mudei pro Rio e morei no final de 1972 e início de 73 na Lauro
Müller, num prédio situado entre o Canecão e o Morro da Babilônia, quando o
Bondinho já tinha deixado de existir uns 6 meses antes. E quem são esses
"dois na praia (qual praia?) catando pedrinhas"?
Emiliano José: Mistérios...
Sérgio Buarque de Gusmão: Também passei
uns dias no apartamento da Rio Branco quando mudei de Belém, onde conheci o Haf
na produção da Realidade especial sobre a Amazônia. Uma festa. Tinha uma cama
d´água para fascinar as meninas...Uma dia recebemos o recém-chegado pessoal do
Ceará, Fagner desconhecido cantando Mucuripe. Um dia fui com alguém ao ap da
Lauro Muller, mas você não estava. Sua mulher, uma menina novinha de que não
lembro o nome, disse que vocês estavam catando pedrinhas na praia. Bons tempos,
que a memória seleciona e reescreve no pretérito perfeito. . Grande abraço.
Lucia Correia Lima: Sérgio Buarque
de Gusmão oxe
Maurício Brasil: Que riqueza,
mestre!❤
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Emiliano José
15
de setembro de 2021
Jary Cardoso: a
francesa
O
velho comunista, cheio de manias.
Machismo.
Não
gostava sequer fosse organizar crianças da rua em brincadeiras pedagógicas.
Até
vê-la quieta, lendo, incomodava-se.
Quando
ouvia Félix Escobar reclamar às vezes reagia: - eu me esforço, quando vocês se
levantam já varri a sala, o terreiro, faço de tudo, e não adianta?
Não,
não adiantava.
Nunca
enfrentara machismo tão entranhado, nem com os militares com quem conviveu na
militância.
João
Lopes Salgado, dele não se esquecia, dirigente do MR-8, não a deixava muito
tempo sem contato.
Atendeu
pedido dela, e um dia seguiu para Serrinha, a 60 quilômetros de Feira de
Santana.
Queria
encontrar-se com o médico Hamilton Safira Andrade.
Lembra-se:
apresentou-se como Maria Lúcia Ribeiro.
Hamilton
Safira, ginecologista, atendeu-a muito atenciosamente.
Disse-lhe:
- eu e meu marido queremos muito ter um filho.
Ainda
se recorda do estranhamento do médico: uma militante da luta armada pretender
fazer tratamento para ficar grávida?
Mas,
se queria, era médico, atendeu: pediu exames sofisticados, a serem feitos em
centros mais adiantados, quem sabe em Feira de Santana mesmo.
Pensava,
lembrava, e de quando em vez, volta à sua realidade, naquele quartinho exíguo,
esperando a hora do ataque, porque impossível não acontecer.
O
menino certamente avisou os homens, e eles viriam...
O
pai de Marie Christine Laznik migrou para o Brasil.
Família
morava numa mansão no Alto de Pinheiros.
Com
a morte do pai, a menina teve de sair da escola particular, e embarcar na
pública.
E
o Fernão Dias, onde Jary Cardoso estudava, era uma das melhores.
Chris,
no intervalo de uma aula para outra, aparece na frente, sobe no tablado, começa
a escrever coisas na lousa, dançando e cantando Chico na letra de João Cabral
de Melo Neto:
-
É a parte que te cabe neste latifúndio, não é cova grande, é cova medida, é a
terra que querias ver dividida...
Ela
o impressionou.
De
verdade.
Chegou
chegando.
Culta,
inteligente, linda, lindíssima.
Ao
pensar nela, nas últimas horas, foi ao quarto de despejo: não encontrou o
disco, o presente dela, espécie de celebração da amizade iniciada quase de
pronto: The Sheriff, do The Modern Jazz Quartet.
Foi
à Internet, reencontrou-o, e o ouviu, extasiado, emocionado, viajando no tempo,
com ela ao lado novamente, a imaginação correndo solta, em busca do tempo
perdido.
Ouve,
numa das faixas, As Bachianas Brasileiras, Villa-Lobos, cujo encanto vivera em
pleno movimento estudantil, na voz da insuperável Joan Baez.
Na
contracapa do The Sheriff, a dedicatória da Chris - como é duro perder, ver
sumir um presente assim, com esse simbolismo.
Ah,
era encantadora, a Chris.
É
encantadora.
Viva,
cheia de vitalidade.
Deu-lhe
de presente ainda edição brasileira de bolso de "As mãos sujas", de
Sartre.
Ao
ler o livro, sentiu-se tocado, e danou-se a comprar livros dele.
Culpa
dela.
Lidou
com a densidade teórica de Chris: política e filosoficamente definia-se como
marxista e existencialista, mistura aparentemente inconciliável, não para
ela...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Jary Cardoso)
Emiliano José
17
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
liberdades e Revolução
A
convivência com Félix Escobar tornou-se insuportável.
Um
dia, toma coragem bate à porta de Hamilton Safira, o médico de Serrinha.
Uma
consulta, e ganhara confiança.
Pediu
refúgio.
Abriu-se
com ele.
Hamilton
Safira vinha da tradição do PCB.
Mas,
como tantos do partido, acolheu Iara com imenso carinho, solidariedade.
Ela
ainda, cultivando ilusões, tentou recrutá-lo, chamá-lo às suas ideias.
Besteira.
De
política, o médico conhecia, e considerava a luta armada, naquelas condições,
um suicídio.
Inviável.
Gostava
de teatro, ela também, e naqueles dias cultivaram leituras comuns.
Agradáveis
discussões.
Iara
vivia um momento difícil.
Não
apenas pela conjuntura de perseguida.
Atormentada
sobretudo pelo fato da impossibilidade da gravidez.
A
paixão a tomara por inteiro: sabe-se lá por que, mas acreditava - o filho
manteria Lamarca ao seu lado para sempre.
É,
dada sempre a amores intensos mas ligeiros, nele parou, amor e paixão se
juntaram e o queria como nunca quis ninguém na vida, e um filho solidificaria
aquele amor, selaria aquela paixão.
Não,
não lhe assaltavam dúvidas sobre o amor dele.
Mas,
um filho...
Como
desejava.
Sofria.
Ainda
o silêncio.
Os
revólveres nas mãos.
A
espera angustiante.
Jary
Cardoso foi provocado.
Por
mim.
Ao
falar da relação entre marxismo e existencialismo.
Chamei,
sem querer, o velho espírito militante
de volta.
A
veia teórica, volta ao passado povoado de intensas discussões sobre os rumos da
vida e da luta política.
Tomei
o cuidado de dizer: marxismo e existencialismo eram aparentemente
inconciliáveis.
Ainda
bem: está lá o "aparentemente".
Mas,
ele tomou da lança, e qual Quixote, veio pra arena.
A
defender, com muita propriedade, o quanto marxismo e existencialismo podiam
conviver e dialogar.
O
quanto são sagradas as liberdades.
As
coletivas e as individuais.
O
quanto de erro houve não apenas no estalinismo, mas no próprio leninismo quanto
a isso.
O
quanto de razão havia em Rosa Luxemburgo, aí já sou eu lembrando, alertando o
revolucionário bolchevique, no comecinho da Revolução, para a ausência das
liberdades.
-
Não vai dar certo - ela profetizou.
Retomou
discussão sobre a própria história da Polop.
Da
organização, conhecia pouco - passei por ela escrevendo livro sobre Victor
Meyer, com a colaboração preciosa de Orlando Miranda, prefácio de Nilmário
Miranda, os dois ex-dirigentes da Polop.
Me
brindou com escritos preciosos do grande Moniz Bandeira sobre a organização
revolucionária.
Não
vou mergulhar nesse território.
Implicaria
digressão longa.
Apenas
registrar minha concordância geral com o pensamento dele, com o raciocínio
teórico, com a necessidade do esforço de sempre, na luta política, conciliar a
luta pelo poder revolucionário com as liberdades, o que não é tarefa simples, a
reclamar sempre a análise concreta da situação concreta.
Volto
a Marie Christine Laznik, a figura a instigar toda essa discussão.
O
Marx adulto, não o jovem Marx, começou a ser conhecido por Cardoso pelas mãos
da Polop, depois de Chris apresentá-lo a um dirigente da Organização.
Cardoso,
como estamos vendo, foi iniciado pelas mulheres.
Ao
menos nas artes da Revolução.
Chris
mostrava muito empenho na formação dele...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
materialismo, existencialismo, psicanálise.
Não.
O
filho, impossível.
Desmoronou,
aquele sonho.
Iara,
acolhida pelo médico Hamilton Safira de Andrade em Serrinha, no território do
Sisal, passou a cobrir pontos em Feira de Santana, encontrando-se com
militantes do MR-8, discutindo a difícil situação política, e sempre querendo
saber de Lamarca, e sabendo pouco por razões de segurança.
Apesar
de mútua antipatia, era obrigada, quando de passagem por Feira, a hospedar-se
na casa de Félix Escobar.
Dia
6 de agosto daquele 1971, ponto com João Lopes Salgado, a quem estimava muito,
e de quem sempre ouvia avaliações esperançosas sobre a luta revolucionária.
O
dirigente do MR-8 não apareceu, e a deixou tensa.
Na
volta a Serrinha, Hamilton Safira a percebe preocupada, apreensiva, insegura.
Ele
se aproxima, cuidadoso:
-
O que houve?
Alguns
segundos de silêncio, mas ela arrisca compartilhar o problema com o médico:
-
Meus contatos caíram.
-
Me ajude chegar a Salvador.
Acolhedor,
carinhoso, ele aponta outra saída:
-
Por que você não pensa em dar uma parada?
Fala
na fazenda de um amigo, onde podia recolher-se em segurança.
Experiente,
e passo a passo, discorre sobre a gravidade da situação do País, não devia
cometer imprudências, sair andando por aí, a repressão nas ruas, pronta para
prender e matar, e o importante é a sua vida, você se preservar, até para a
luta....
Jogada
de volta à realidade: os revólveres nas mãos, o 22 e o 38, pronta para o que desse e viesse, e
sabia que a repressão viria, já passava das sete da manhã...
Jary
Cardoso, às vezes esqueço-me do y do nome dele, e ele não gosta, com razão,
ando mais atento, meteu as caras, conheceu melhor o Marx adulto, sabendo ter de
passar a vida inteira conhecendo-o, pela grandeza da obra.
De
Chris, a danada da Chris, a insistência em formá-lo, em dar-lhe subsídios
teóricos, e ele, por tudo, feliz com isso.
O
olhar dela voltou-se, nas indicações de leitura, para Sartre, Freud e Reich.
De
alguma forma, parecia querer temperar o materialismo histórico e dialético,
mola mestra da formação dos comunistas, com o existencialismo e a psicanálise
Ele
gostou desse tempero.
Dos
três, um preferido: Sartre, a quem somente conhecerá mais profundamente quando
no desbunde com Luiz Carlos Maciel, um especialista no filósofo francês.
Naqueles
anos tão intensos, conturbados, entre o final de 1965 e o final de 1968, viu-se
dividido no meio da luta e de tantas leituras.
Confortável,
não podia negar, a certeza contida na concepção de mundo contida no
materialismo histórico e dialético.
Era
bom, muito bom, sentir a história caminhar a favor do proletariado, da
Revolução, a ideologia do progresso, o desenvolvimento incessante das forças
produtivas entrando em contradição com relações sociais obsoletas, levando o
proletariado a sublevar-se e abrir os horizontes da Revolução socialista,
primeira etapa da chegada ao comunismo.
Ah,
como era bom.
Mas,
era o diabo: as leituras da Chris, perturbadoras.
Causavam-lhe
insegurança.
Via-se
diante do drama da existência, da finitude sem Deus, e quando se punha
solitário a pensar nessa realidade, tão cruel, tão próxima, sentia o chão se
abrir, faltavam-lhe nessas ocasiões parâmetros éticos a lhe dar confiança...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
paixão platônica
Iara
apreensiva, naquele quartinho de empregada.
Certa
da vinda da repressão.
O
menino a entregaria.
Volta
a Serrinha, o pensamento parece uma coisa à toa...
Hamilton
Safira ainda ainda insiste: vamos para a fazenda de meu amigo, você passa um
tempo lá, se cuida, sai do meio do fogo, deixa as coisas acalmarem, e então
volta para a batalha.
Ela,
nada - insistia, era a luta, a necessidade de seguir adiante.
Um
pouco do espírito da época, e talvez a cabeça em Lamarca, em algum lugar do
Brasil, dirigindo a luta.
Na
casa do sem jeito, assim sentiu-se o médico.
Deu-lhe
dinheiro, e ela seguiu para Feira de Santana, para a casa de Félix Escobar.
Reencontra-se
com César Benjamin e sabe da queda de José Carlos de Souza.
Tinha
noção dos riscos decorrentes da queda - fora Zé Carlos a conduzir o Capitão
para a área onde ele se encontrava.
Falasse,
e tudo desmoronaria.
Os
dois, no entanto, tinham convicção: Zé Carlos suportaria as torturas durante
uma semana, o prazo-limite fixado pelo MR-8 para o militante abrir o que sabia.
Lamarca
seguramente seria alertado da queda e sairia da área onde estivesse.
Os
dois saíram da casa de Félix Escobar para um ponto.
Esperava-os
Nilda Alves Cunha.
Dali,
Iara Iavelberg segue para Salvador, para o apartamento da Pituba...
Jary
Cardoso reconhece, tantos anos passados: Chris apresentou-lhe um mundo
completamente novo, um admirável mundo novo.
Sob
muitos ângulos.
Paixão
e tesão muito mais intensos do que aqueles sentidos por Carmem Zilda.
Desde
o início da adolescência, ecoava nele o refrão de uma romântica canção
norte-americana: "our day will come...".
Aparecia
à sua frente, quem sabe, o grande amor da vida dele.
Tão
procurado, sonhado desde criança.
Passou
a frequentar a casa dela, logo depois de conhecê-la.
Ele,
atônito, vendo-a conversar freneticamente com a mãe, discutir, brigar - só em
francês.
Levava-o
pelas mãos em visitação aos livros da vasta biblioteca da casa.
Destaque
para os livros de Wilhelm Reich.
Especialmente,
"A função do orgasmo".
Momentos
inebriantes, o jazz na vitrola - é, na vitrola: os tempos eram outros.
Uma
atenção e um carinho jamais recebidos.
Ele,
incomodado: e cadê espaço pra declarar a paixão?
E
como resolver outro impasse: ela namorava firme com Rony.
Ronaldo
Marcos dos Santos tornou-se um dos melhores amigos dele, amizade a perdurar até
os dias atuais.
Rony
tornou-se professor de História Econômica na Unicamp.
A
tese de Mestrado dele: "Resistência e Superação do Escravismo na Província
de São Paulo, 1885-1888).
Passou
a frequentar o bairro dos ricos, o alto de Pinheiros - o Rony também morava por
lá.
O
pai, médico, dava palestras pros amigos do filho sobre arte moderna, projetando
filmes, ao fundo música experimental.
Chris
o fez compartilhar um mundo sofisticado.
Não
obstante, não passou de uma paixão platônica.
Nunca
se declarou.
Noutro
terreno: vivia em dúvida sobre o curso superior, e confidenciou tais dúvidas a
Chris.
Ela,
então...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
opção pela Psicologia
Olhava
para os revólveres, um em cada mão.
Tensa.
As
lembranças a salvavam.
Como
se tivessem o condão de afastá-la daquele momento, vivendo a angústia da espera
e a quase certeza da morte.
Nilda
Alves Cunha, menina, menina, 17 anos, havia trazido-a para o apartamento da
Pituba.
Na
chegada, começando a conhecer as pessoas com quem iria conviver.
Lúcia
Bernadete Cunha, irmã de Nilda, a inquilina.
O
filho dela, Antoine, menos de um mês.
Jaileno
Sampaio da Silva, como Nilda, militante do MR-8.
A
empregada Benedita e a filha Gracinha, de 15 anos.
Agora,
olhando para os dois revólveres, o 22 e o 38, imagina-os todos presos, levados
pela repressão naquela madrugada.
O
pensamento vai e volta.
Lembra-se
das conversas com Lúcia Alverga, no Rio de Janeiro, ainda na VPR, antes de
seguir para a Bahia.
Com
ela conseguia desabafar.
Gozado,
Lúcia, com 18 anos, era, num aparelho tenso, a pessoa mais serena, a
conciliação.
Era
o ombro acolhedor tanto para um Lamarca irritadiço, de saco cheio com a rotina
da vida em aparelhos, quanto para ela.
Não
gosta de pensar, nem balbuciar sobre o quanto estava certa.
Ficassem
no Brasil, ela e Lamarca seriam mortos - tinha essa convicção.
Conversava
tudo isso com Lúcia, dissera tudo a Lamarca, irredutível.
De
fato, os principais companheiros deviam sair do Brasil, concordava, ele
não.
Iara
dizia a Lúcia de seu amor pela vida, do quanto queria viver.
Na
real, na real não via qualquer perspectiva para a esquerda armada naquela
conjuntura.
Era
fácil perceber isso, mesmo sem dispor de grandes referenciais teóricos, e ela
dispunha.
Quando
Lamarca fincou pé para a permanência no Brasil, ela decidiu também ficar, e
correr todos os riscos...
Vivia
em dúvida sobre o curso superior a seguir.
Jary
Cardoso revela as dúvidas a Chris, cada vez mais amizade, levado a recolher a
paixão, imersa no silêncio.
Avaliava
os vários ramos da Engenharia.
Pensava
em Medicina.
Confessa:
pensou até na Escola de Cadetes das Agulhas Negras.
Chegou
a viajar, visitar a escola em Resende.
Curioso:
tinha atração pela carreira militar.
Desde
pequeno, gostava de andar marchando em passo rápido pelo Viaduto do Chá,
simulando marcha militar.
Mas,
a influência da Chris...
Acabou
convencendo-o a prestar vestibular para Psicologia na USP, como ela.
Chris
não era brinquedo, não: passou em primeiro lugar.
No
cursinho pré-vestibular do Grêmio da Filosofia da USP, teve como professores
pelo menos três militantes da Polop: Iara Iavelberg, Carlos Alberto Sardenberg
(ele mesmo, o hoje anticomunista da Rede Globo) e Emir Sader, dirigente da
Organização.
A
Sader, Chris, já enturmada com a Polop, apresentou-o como uma promessa de bom
militante.
Sader,
presente até hoje nas discussões teóricas e na militância política do PT, não
perdeu tempo: entregou a Cardoso uma apostila de bom tamanho com as linhas
básicas do programa da Polop.
Não
demorou, e Cardoso passou a participar das reuniões da célula da Psicologia.
Ela,
a Chris, seguia fazendo a cabeça dele.
Exaltava,
quase mitificava alguns militantes.
Entre
os quais, Ladislas Dowbor, hoje renomado intelectual.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Dowbor, genro
de Paulo Freire assim como o recentemente falecido Chico Weffort
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Emiliano José
21
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
amores
A
existência, feita de encruzilhadas.
Iara,
diante de uma.
Amava
a vida, como poucas pessoas.
Lamarca,
generoso, pretendia ver tantos fora do País, em segurança.
Ele,
não.
Acreditava
ter responsabilidades com a Revolução a impedi-lo de seguir para o exílio.
Repetia
Marighella.
O
revolucionário, assassinado pela ditadura no final de 1969, tomara providências
para tirar muita gente do Brasil.
Nunca
admitia a possibilidade de ele próprio exilar-se.
Assim,
Lamarca.
Iara
amava profundamente a vida, mas encontrara o amor sempre buscado.
Lamarca
era o amor de sua vida, disso tinha certeza.
Se
ele estava disposto a correr todos os riscos, ela o seguiria.
Sabia:
os problemas de saúde acabariam por afastá-la dele.
Teve
de abandonar o treinamento guerrilheiro do Vale do Ribeira por conta de tais
problemas.
Quando
disse "eu também fico", sabia ser uma opção suicida.
A
repressão havia eliminado Marighella.
Agora,
o alvo principal da ditadura era inegavelmente Lamarca.
E
ela iria de roldão, tinha certeza.
Escolhas
diante de encruzilhadas.
Fez
a escolha - pensava nisso enquanto olhava para o 22 e o 38, certa da chegada
dos homens...
Jary
Cardoso, para e pensa: houve Chris, paixão platônica, amizade para sempre.
Já
acontecera Carmem Zilda, serena presença, lembrança de uma noite de luar entre
as árvores da Universidade Rural:
-
No decorrer da militância, me apaixonei por várias companheiras, namorei com
algumas e cheguei a viver junto com uma delas.
Com Marília, irmã de Flávio Koutzi, gaúcho, líder da Dissidência do PCB e depois um dos dirigentes do Partido Operário Comunista (POC), surgido em maio de 1968, continuidade da Polop.
Com
Marília vive seis meses.
Uma
realização:
-
A companheira com quem tive o namoro que mais me realizou em todos os sentidos
foi Miriam Schnaiderman, filha de Boris Schnaiderman, tradutor, professor e
escritor premiado.
Alegria
durou pouco, no entanto.
Trocado
por outro, simples assim.
Coisas
da vida - que nunca tem linha reta, não é verdade?
Miriam
tornou-se cineasta e psicanalista.
Ainda
da Chris, lembrávamos ontem dela enaltecendo os grandes dirigentes da Polop.
Falava
muito do Ladislas Dowbor - dele, Cardoso não se recorda se em algum momento
integrou a Polop.
Mesmo
quando ele entrou na VPR, no entanto, ela continuava exaltando-o.
Em
1969, Chris e a mãe voltaram para a França, e ela, um luxo, passou a estudar
psicanálise com Lacan.
Chegou
a dizer: não tivesse voltado para a França, acabaria deixando a Polop (já POC),
e seguido o mesmo caminho de Iara Iavelberg, integrado uma das organizações da
esquerda armada.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: O nome do
tradutor, professor e 'ex-sogro' de Jary (com ypsylon) era Boris Schnaiderman.
Foi marido da professora baiana Jerusa Pires, mãe do nosso saudoso amigo, o
músico Keko Pires.
Jary Cardoso: Sim, nos livros
de Boris na editora Perspectiva, era assim o sobrenome dele, mas no meu relato
sobre Míriam, segui a forma usada por ela no Facebook, sem o "S"
inicial. Porém, concordo que se use a forma consagrada. Só não aceito que se
escreva o meu nome sem o "y"...
Artur Carmel: Jary Cardoso
Erro crasso ! Associ-o ao 'alemão', já que ouvi, hoje mesmo, Mil falar desse
seu descontentamento qdo se troca o seu y pelo i. Corrigirei agora !!! Mil
perdões !!
Jary Cardoso: Tá perdoado!
Adilson Borges: Dá-lhe,
Carmel!
Artur Carmel: Apenas
contribuindo, amigo.
Adilson Borges: Claro,
car(i)doso 😘
Adilson Borges: Muito legal
ver a história de Jary ser resgatada.
Adilson Borges: Parabéns,
Jary; parabéns, Emiliano.
Artur Carmel: E Jary
caladinho, no extinto JBa, com essa bagagem toda...
Marise Caribé: A vida... que
nunca tem linha reta! ♥️
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Emiliano José
22
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
curso superior completo na Polop
Nas
conversas com Lúcia Alverga, Iara Iavelberg confidenciava o desejo de ter um
filho.
Um
filho dela e de Lamarca.
Sonho
distante.
As
condições de saúde eram um obstáculo quase intransponível.
Nos
últimos dias, fizera exames, atenciosamente atendida por Hamilton Safira
Andrade, o médico de Serrinha, e o obstáculo se confirmara.
E
além disso, havia a discordância dos companheiros de Organização, ao menos
quando estava na VPR.
Na
conversa com Lúcia Alverga, ainda batia pé, acreditava na possibilidade de
superação dos problemas de saúde:
-
Vou ficar grávida, vou ter um filho.
Tudo
junto e misturado, a decisão de ficar no Brasil, o cerco da repressão, o desejo
de ter um filho, desabafava com Lúcia, emoções à solta, arrebentada, chorava.
Uma
revolucionária chora.
Quem
disse que não?
Onde
andará Lamarca?
Quanta
saudade.
Abriu
o tambor do 38, olhou as balas, fechou-o.
Como
estarão Lúcia Bernadete, o pequeno Antoine, Nilda, Jaileno, Benedita, Gracinha,
vivendo o terror, levados presos naquela madrugada?
A
que horas a repressão baterá à porta daquele quartinho onde se encontra
encerrada, sem possibilidade de sair?
Que
viria, viria - disso não tinha dúvida.
E
virá com toda violência...
Jary
Cardoso tenta avaliar, tanto tempo passado, os três anos de Polop.
Corresponderam
a um curso superior completo.
Teoria
- Filosofia e Ciências Humanas.
E
prática - reuniões restritas e de massas, manifestações, assembleias,
congressos, viagens pelo Brasil afora.
Aprendeu
até a confeccionar coquetéis molotov - um perigo, o Cardoso.
O
aprendizado Molotov aconteceu em aulas práticas ministradas por ex-militares
brizolistas, militantes da Polop antes do racha interno.
Aprendeu
ainda a fugir em alta velocidade: num fusca da Polop, normalmente nas mãos
dele, treina saídas rápidas, a mil por hora, ziguezagueando no tumultuado
trânsito de São Paulo sem causar acidentes.
Não
me disse não, mas era quase um curso completo de guerrilheiro urbano.
Marighella,
logo depois, vai sistematizar essas práticas no "Minimanual do
Guerrilheiro Urbano", sucesso no mundo inteiro.
Penso,
e Cardoso não tem qualquer responsabilidade com essa formulação, o quanto a
esquerda era atraída pelo pensamento foquista, pela ideologia debraysta, pelo
livrinho de Regis Debray, A Revolução na Revolução.
Uma
febre à época.
A
Polop, e novamente é formulação minha, nascida com inspiração voltada à classe
operária, com horizonte fixado na revolução socialista, começava a ser atraída
ao voluntarismo foquista.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Daniel de Andrade: Parte desse
momento vivido, encontra-se no QSF-Quem Samba Fica do Rui Patterson, página 48.
Rui Patterson: pensei que era na página 20.
Rui Patterson: Daniel de
Andrade integra um divertido grupo do RS, RJ e... deixa ver, não tem mais
estados com a letra R, que são capazes de despejar as cinzas da própria mãe de
um deles na praia, e no sentido do vento, passando o grupo a ser chamado,
também, de Acinzentados. Esse grupo determinou que todo prefácio literário
tinha obrigatoriamente que se referir à página 20 do livro prefaciado, fosse
que merda que estivesse lá! No caso do QSF-MEG, a página 20 é um elogio a Daniel,
dentro de uma autobiografia, também chamada de O Pequeno Livro de Princípios e
Horrores. Na página 48, trato adequadamente de Habermas, o Jurgen, mas juro que
não lembro muito bem de quem se trata.
Saudades,
Acinzentados! Nos reveremos no pós pandemia pra continuar as loucuras!
Daniel de Andrade: GRANDE
merveille. Assim escreveu Rui De La Mancha. O lanceiro do exército de Branca
Leone, isso sim, página 21 do QSF.
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Emiliano José
23
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
curso intensivo de comunismo
Iara
pensa: a vida revolucionária faz a pessoa amadurecer cedo.
Está
com 27 anos.
Sente-se
com muito mais, tal o acúmulo de experiências.
Não
imagina as relativas à vida amorosa, tão intensas, e variadas.
Não
se reprimiu.
Viveu.
Intensamente.
Reflete
é sobre sua caminhada política.
A
alegria da descoberta da Polop, o mundo novo se abrindo, luminoso.
O
alcance teórico dos dirigentes, a sacudir a cabeça.
Um
aprendizado pra jamais esquecer.
E
depois a impaciência com o teoricismo.
A
angústia diante da violência da ditadura.
Sinal
fechado.
A
sedução de abrir o caminho à bala.
VPR,
depois seus esforços para atrair o Comando de Libertação Nacional (Colina).
A
junção das duas organizações, o Congresso de Teresópolis, oficialização da
VAR-Palmares.
O
Capitão não concordou com os rumos do encontro, e rachou.
Ela
junto.
Refundação
da VPR.
Guerrilha
do Ribeira.
Aproximação
e entrada no MR-8.
E
agora, sozinha, naquele quartinho de empregada.
Sitiada.
Lamarca,
em lugar não sabido.
Ela,
transbordando de amor.
Tristeza
da separação - sabe: contingências da Revolução.
Mas,
isso não afasta, não diminui a tristeza.
Olha
para os dois revólveres, um em cada mão.
Tensão.
Eles
chegarão, e com toda violência...
Jary
Cardoso, ao se aproximar da Polop, sob a forte influência de Iara, foi tomado
logo por um fascínio: a parte teórica.
Ao
chegar à Organização e receber extensa lista de livros considerados
imprescindíveis à formação do militante, foi à luta, numa disciplina até para
ele surpreendente.
Na
biblioteca do grupo, nas bibliotecas das escolas da Faculdade de Filosofia,
tentou encontrar a bibliografia indicada, e ler tudo, atentamente.
Houve
alguns livros emprestados por amigos.
Outros,
comprados em sebos e livrarias.
Recorreu
também à enorme quantidade de apostilas mimeografadas de textos de dirigentes
da Polop e de autores estrangeiros.
Um
intensivão.
Formação
comunista acelerada.
Não
obstante, profunda.
A
Polop, percebendo o interesse, a dedicação do jovem militante com os estudos
teóricos, resolveu confiar-lhe por algum tempo a organização do arquivo
clandestino dela, tão precioso.
Mina,
a encantar o recém-chegado.
Documentos
internos, apostilas com teses e debates, revistas, jornais clandestinos e da
grande imprensa.
O
acervo cobria coisas recentes, mas conservava ricos materiais, raridades
históricas desde a fundação da Polop, em 1961:
-
Folheando essa papelada, e me detendo em muita coisa, tive uma noção da
história recente do comunismo no Brasil.
Lembra
de uma primeira página de jornal, não sabe se de março ou abril de 1964, creio
seja abril, a impressioná-lo vivamente:
"PRESIDENTE
DA UNE FOGE DO PAÍS".
Era
José Serra...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Graça Azevedo: Serra sendo
serra.
Rogério Duarte: meu pai ficou, era o baiano que fazia os impressos, foi torturado. Antes disso, ao ser convidado para representar o Brasil em um congresso de artistas em Moscou, teve o nome vetado pelos dirigentes do partido, um dos quais, sabia através de uma amante, usava dinheiro da união soviética para presentear com joias moças deslumbradas da elite carioca.. Hoje meu pai é morto, e o líder de vocês, Lula da Silva, um amigão do Romeu Tuma, chefe do DOI-CODI... o motorista do Marighela, Aloysio Nunes, seguiu o caminho do Serra.. talvez eu entenda pq, como julgá-lo? José Dirceu, depois de entregar todo mundo em Ibiúna, foi pra Cuba, um por um dos seus parceiros da MOLIPO foram mortos, sobrou ele, que fez cirurgia plástica e esconde dinheiro no Panamá, antes se reunia com corruptos em seu hotel secreto, o St. Peter, em Brasília, onde aliás iria se empregar para progredir a regime semi-aberto. Esculhambação total, mas meu pai eu conheci de perto, fui também uma vítima tardia da tortura que ele sofreu, em abril de 68, na semana santa. Podem ficar com Lula e Dirceu, vão com eles para o inferno que quiserem!
Jose Jesus Barreto: Rogério Duarte
abraço
Rogério Duarte: espero que não
de afogado!
Jose Jesus Barreto: de compreensão e respeito pelo dito.
Daniel de Andrade: Faces da nossa
história recente, relata Rogério Duarte e Jary Cardoso.
........................................................
Emiliano José
24
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
aprendendo na Maria Antônia
Aproximação
e entrada no MR-8.
Ela
sentiu o entusiasmo do Capitão.
No
8, abria-se a possibilidade tão almejada: ir para o campo, trabalhar junto aos
camponeses, desbravar caminho para a guerrilha rural.
Durou
pouco a alegria.
Nuvens
sombrias voltaram.
A
repressão, implacável.
Ditadura
não dava sossego.
Cercava
o MR-8 no Rio de Janeiro, onde ela e o Capitão se encontravam.
Maio
de 1971, os dois têm notícia da queda de Stuart Angel, direção da Organização.
Logo
depois, sabem da morte dele sob tortura, terríveis torturas.
Morreu
sem dar uma palavra aos torturadores.
Ditadura
considerava: a partir dele pegaria o Capitão.
Cerco
incessante da ditadura.
Iara
Iavelberg e Lamarca são informados da prisão do companheiro de aparelho, José
Gomes.
Saem
às pressas do local, e passam a noite inteira rodando de táxi e ônibus.
Ficassem
no Rio de Janeiro, e a queda seria questão de horas.
Final
de junho partem em direção à Bahia...
Jary
Cardoso se impressionara com aquela manchete sobre a saída de José Serra do
País porque entrara na diretoria da UNE justamente para completar
clandestinamente a gestão dele, substituído na presidência por Altino Dantas.
A
UNE, apesar de considerada ilegal pela ditadura, persistiu graças à
insistência, à luta dos estudantes.
Cardoso
assumiu durante a gestão de Altino Dantas, 1965-1966.
Seguiria
ainda na diretoria, sempre indicado pela Polop, nas gestões de José Luiz Guedes
e de Luís Travassos, ambos da Ação Popular, organização a sustentar larga
hegemonia no movimento estudantil, entre o início dos anos 1960 até os
primeiros anos da década de 1970.
Antes
de sair pelo Brasil afora como diretor da UNE, Cardoso vivia na tradicional,
famosa Maria Antônia.
A
rua era o epicentro do movimento estudantil em São Paulo.
Nosso
protagonista vivia ali, entre um gole e outro nos bares, no saguão da Filosofia,
no porão da faculdade onde se situava o Grêmio.
Conversava,
aprendia mais e mais sobre os rumos da Revolução.
De
quando em vez, subia para assistir a alguma aula.
Às
vezes, de um filósofo mais ou menos ligado à esquerda, como José Arthur
Gianotti.
Mas,
também de outros, não necessariamente vinculados ao pensamento de esquerda, ao
menos na avaliação de Cardoso, como Oswaldo Porchat e Bento Prado Jr.
Ele
se recorda de uma aula de Prado Jr.,
onde declarou preferir o jovem Marx ao velho Marx pela simples razão de o
primeiro lhe agradar mais esteticamente.
O
filósofo teve de aguentar risos debochados de intelectuais da Polop.
A
impressioná-lo mesmo, a deslumbrante oratória de Gianotti nas aulas de
Lógica...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Latitude Soluções Empresariais: Bom Dia
Camarada Emiliano. Graças ao nobre companheiro podemos *AFIRMA* que, ao
contrário do que disse um certo porta, NOSSOS HERÓIS NÃO MORRERAM DE OVERDOSES.
Parabéns abraço fraternal.
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Emiliano José
25
de setembro de 2021
Jary Cardoso: Vá
ser filósofo na vida...
Volta
no tempo
Iara
Iavelberg pensa no mês de abril de 1969.
Quando
tudo começou.
Não
esperava a paixão.
Aconteceu.
Sabia
dos temores de Lamarca: mulher e filhos em Cuba, a moral da organização,
bastante conservadora.
Os
adversários, a ditadura, a mídia, podiam começar a dizer, proclamar: Lamarca
tem amante.
Além
de "traidor da pátria", dado a cultivar amantes.
E
lá em Cuba, soubessem, poderia não cair bem.
Mas,
a paixão levou tudo de arrasto.
Passaram
a viver juntos, a se encontrar quando havia chance, nem sempre havia.
Ela
sentia a diferença quando comparava Lamarca e os muitos amores anteriores,
estudantes e intelectuais: mais de 30 anos de idade, mais maturidade, e uma
formação diversa, rica experiência de vida.
Estranhava
aquele silêncio.
Fora
aquele ataque brutal, e agora o silêncio.
Presa
ali naquele quartinho de empregada.
Acariciando
os dois revólveres.
Pensa
na viagem do Rio para a Bahia, iniciada no final de junho.
Sentiu
Lamarca mais descontraído, mais próximo, os dois cheios de carinho um com o
outro.
De
Vitória de Conquista em diante, apenas a Kombi.
O
outro carro, um Volks, voltou para o Rio de Janeiro.
Seguiram
para Jequié ela, o Capitão, Sérgio Furtado, José Carlos de Souza dirigindo.
Em
Jequié, noite de descanso
Dia
seguinte, separação.
Ela
seguiria para Salvador com Sérgio Furtado.
Ele,
para destino desconhecido, Zé Carlos dirigindo.
Coisas
da Revolução.
Gostar,
ela não gostou.
Jeito,
não tinha.
Não
obstante, compreendia...
Gostava
de Giannotti, gostava muito.
Na
verdade, naquele momento apaixonou-se por Filosofia.
Jary
Cardoso chega a participar como ouvinte de um seminário de pós-graduação em
filosofia pura, orientado por Ruy Fausto, intelectual muito respeitado por ele,
considerado um dos principais teóricos marxistas brasileiros.
O
tema do seminário era a leitura de "O Capital", de Karl Marx, no qual
se debatia o ponto de vista do filósofo francês Louis Althusser, um dos
criadores do estruturalismo.
Foi
um momento rico, quando Cardoso mergulhou no estudo de "O Capital" e
dos livros de Althusser traduzidos para o português.
Chegou
também a beber na fonte Delfim Netto.
A
Faculdade de Ciências Econômicas era quase contígua à Faculdade de Filosofia e
ele de vez em quando assistia aulas do mais badalado professor da escola -
registra: ele ainda não se tornara o todo-poderoso ministro da ditadura.
Nos
três anos de militância, se não deu sequência ao curso de Psicologia, encontrou
tempo para a teoria, para filosofar.
Frequentou,
sem muitas faltas, o curso de Teoria de Conhecimento, primeiro ano de Filosofia
Pura, ministrado pela jovem professora Marilena Chauí.
E
um outro de Teoria Literária.
Envolveu-se
profundamente com o de Teoria de Conhecimento.
O
trabalho final do curso deveria se basear no livro "As palavras e as
coisas", de Michel Foucault.
Cardoso
mergulhou neste livro e nos demais indicados pela professora.
A
dissertação mereceu nota 9,5, considerada a melhor da sala.
E
comentário de Marilena: não costumava dar notas altas, só o fizera porque o
trabalho estava impecável:
-
Vá ser filósofo na vida, você leva jeito - aconselhou.
Terminou
jornalista.
A
Filosofia ficou a um canto.
O
curso de Teoria Literária fez como ouvinte no Instituto de Letras.
Teve
o privilégio, no primeiro semestre, de reaprender a ler literatura com o grande
mestre Antônio Cândido...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de setembro de 2021
Jary Cardoso: a
morte e a morte de Iara Iavelberg.
Quando
se encara a morte.
Os
homens demoraram mais do que imaginara.
Sabia:
iria defrontar-se com eles.
Com
a morte.
Sabia:
dali não sairia viva.
O
coração, acelerado.
Mas,
inevitabilidade, e alguma serenidade.
Vem,
a serenidade vem quando diante do inelutável.
Ouviu
os gritos, novamente.
Agora,
só com ela.
Barulho
de bombas.
De
repente, pelo basculante, uma delas cai dentro do quartinho.
E
mais outra.
E
mais outra.
E
mais outra.
E
mais outra.
Fumaça,
um fumacê dos diabos.
Sufocamento.
Ainda
gritou, não obstante soubesse tentativa vã:
-
Eu me entrego!
Ao
primeiro impacto da primeira bala ainda mergulhou em lembranças Lamarca o amor
Ribeira os encontros tanto amor a sonhada guerrilha o mundo em vermelho aurora
apalpou o corpo... e a rajada persistiu, a vida se esvaindo...
Melhor
morta, assim raciocinava o coronel Luiz Arthur de Carvalho, comandante da
operação.
Matar
- rotina da ditadura.
Depois
de Iara, Nilda, depois a mãe Esmeraldina.
Em
seguida no Buriti Cristalino Otoniel e Santa Bárbara, Olderico sobreviveu a
tiros na cara e nas mãos.
Pouco
mais tarde, o sangue de Lamarca e Zequinha tingiu o sertão de Brotas de
Macaúbas onde mataram Corisco e feriram Dadá.
Lamarca
e Iara, contam os mais velhos lá daqueles sertões e os mais novos que ouviram
histórias, os sertões têm histórias inacreditáveis, é, contam: às vezes os dois
são vistos de mãos dadas, catando flores na caatinga, ouvindo encantados o
canto de um bacurau-da-telha, de um alegrinho, um tucão, um beija-flor-de-gravata-vermelha,
um batuqueiro, um pitiguari..., e juram: viram-na sorrindo, feliz, diante do
amor da vida dela, sempre um tanto austero, mas inebriado por aquele amor...
Sei:
os incréus desdenham, mas e vocês
homens
e mulheres de bom coração?
Curioso
estar escrevendo em setembro, cinquenta anos passados sobre a morte do Capitão
Carlos Lamarca.
Da
morte de Iara.
Curioso
tenha Jary Cardoso lido ontem o capítulo "A morte e a morte de Iara
Iavelberg" na décima sétima edição de "Lamarca, o Capitão da
Guerrilha".
E
se emocionado, ela uma de suas paixões, paixão guardada no infinito território
do silêncio, uma de suas maravilhosas
utopias.
Emoção
só possível de ser contada por ele próprio.
O
acaso sempre nos surpreende.
Dizem
até, e volta e meia retorno a essa discussão, inconclusiva para mim, dizem: o acaso não existe.
A
pessoa, seus desejos, suas necessidades levariam-na ao chamado acaso.
Sei
não.
Mistérios.
Verdade:
da ditadura temos nojo.
Assim
lembramos dela.
Deles
dois, de Lamarca e Iara, lembramos com imensa ternura, reconhecimento por terem
dado suas vidas em nome das melhores causas da humanidade.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
Antonio Candido, um mestre pra chamar de seu
Reaprendeu
literatura com o mestre Antonio Candido.
Dele,
guardo terna lembrança.
Peço
licença para duas, três palavras.
Fui
à casa dele, em São Paulo, ousado, pedir-lhe prefaciasse o livro sobre Carlos
Marighella.
Creio
1997.
Elegância
sutil.
A
voz, baixa e serena.
Educado
ao extremo.
Deixando-me
à vontade.
Aceitando
a incumbência.
Eu,
quase sem acreditar, tal a honraria.
Podem
ter certeza: o prefácio é uma preciosidade.
Engrandeceu
o livro.
Lição
de história.
De
como os homens e mulheres devem ser olhados ao longo do tempo.
De
como a esquerda contribuiu para melhorar o mundo.
Viveu
quase 100 anos, e durante a existência iluminou o mundo, com a obra dele, com
claras opções políticas, sereno e firme
defensor do socialismo.
Foi
com ele o primeiro semestre do Curso de Teoria Literária, o reaprendizado de
Jary Cardoso sobre literatura.
Você
sabe o que é ler palavra por palavra poemas de Manuel Bandeira da antologia
"Estrela da vida inteira"?
Ou
contos de Machado de Assis, como "O Espelho"?
Ouvir
extasiado o mestre revelando sentidos ocultos, confrontando frases e conceitos
formulados pelos autores, e sempre trabalhando contextualizações?
Mais
do que aulas.
Shows
de inteligência, sabedoria, refinamento intelectual, nenhuma afetação.
Quem
sabe não faz alarde.
Transmite,
dialoga, aprende junto com os alunos.
No
segundo semestre, Antonio Candido foi sucedido por um discípulo dele, João
Alexandre Barbosa, de vasto legado deixado à literatura brasileira.
Um
curso pra jamais esquecer.
Diria:
o jornalista ia sendo preparado, soubesse Cardoso ou não.
Mais
tarde, recolheria os frutos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Ponciano de Carvalho Jr.: Participei em
Berlim de um Mesa em homenagem ao seu jubileu. Dois ex alunos dele, Lígia
Chiappini e Flavio Wolf de Aguiar. Eles o amavam, falavam do seu mestre como se
falassem de um pai próximo precioso. Quanta sofisticação, simplicidade e
humanidade Na verdade a sofisticação é isso. Um abraço Emiliano.
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(Jary - década de 70)
Emiliano José
28
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
presença judia
Leu
o capítulo "A morte e a morte de Iara Iavelberg".
Muitas,
as sensações.
Impressionou-o
a luta da família para tirá-la da ala dos suicidas.
Família
judia, não se conformava com isso.
Os
judeus consideram o suicídio indigno - os suicidas são enterrados de costas
para os demais defuntos, com os pés voltados para o muro, de modo a não ter
condições de ver os outros mortos.
Os
familiares fizeram essa luta não propriamente por razões religiosas, mas porque
tinham convicção de que ela não havia se matado.
Iara
após a exumação, confirmado o fuzilamento pela ditadura, foi retirada da ala
dos suicidas no dia 11 de junho de 2006.
A
leitura evocou em Cardoso a rememoração sobre o quanto judias e judeus foram
onipresentes na vida dele.
Principalmente
durante a militância comunista e nas transições da direita para a esquerda.
E
da esquerda para a contracultura.
Volta,
volta, chega a um colega do Fernão Dias.
No
colégio, Sérgio Sister lhe dá de presente o "Manual do Kibutz".
Sister
o impressionou logo de cara: fala mansa, calorosa, tão afetuoso.
E
pela crítica aguçada sobre a vida e a política.
O
livrinho sobre a experiência do Kibutz o marcou.
A
prática da fraternidade, auxílio mútuo, a igualdade e a generosidade entre as
pessoas, a construção da vida em conjunto mediante diálogos constantes nas
reuniões, a busca do entendimento de maneira democrática, o colocar-se no lugar
do outro para todos se darem bem.
Um
belo ideal - pena hoje tão distante, tão esquecido pela natureza do Estado
israelense, a massacrar impiedosamente os palestinos: e aí é comentário meu.
É,
Erich Fromm, autor tão importante na vida dele, foi descobrir agora: judeu.
E
os mestres eleitos por ele, Marx e Freud, também judeus.
Cercado
por judeus e judias.
Ora,
e não custa lembrar de Marie Christine Laznik, a primeira judia a encantá-lo, a
apresentar-lhe marxismo, existencialismo, psicanálise e artes modernas.
Forte,
a influência de judias e judeus, Iara Iavelberg entre elas.
Não
esquecer de Marcos Faerman, companheiro de Polop e de jornalismo, sobre quem
ainda falaremos.
De
vários outros, já lembrados, como Boris Schnaiderman, a filha Míriam...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de setembro de 2021
Jary Cardoso: um
judeu comunista
Sei:
os leitores cobram, às vezes, narrativa linear, mas não tem jeito.
O
mando de campo é do protagonista.
Adianto-me
e depois volto.
Tenham
paciência.
Ando
devagar porque já tive pressa.
Nosso
protagonista ainda nem contou direito sua presença na Universidade, fugaz tenha
sido, não obstante intensa, e já se adianta falando de pessoas tão decisivas
nas suas etapas posteriores da vida.
Como
Marcos Faerman - seu companheiro de Polop, dirigente da Organização, e depois
célebre jornalista, repórter especial do "Jornal da Tarde", editor de
"Versus", professor de Jornalismo na Faculdade Casper Líbero, em São
Paulo.
Foi
Marcão, outro judeu na vida de Jary Cardoso, a conduzi-lo ao jornalismo, na
fase pós-militância comunista.
Apresentou-o
a Tarso de Castro, e convidou-o a trabalhar com ele e com o futuro escritor
Fernando Morais na revista "Bondinho".
Vou
me antecipando e revelando o maior feito de Cardoso na profissão: a entrevista
com o "Filho do Holocausto", em janeiro de 1972 para a própria
"Bondinho".
Filho
do Holocausto é o escritor, compositor e cantor Jorge Mautner, fundador do
Partido do Kaos.
Ao
entrevistá-lo, surpreendeu-se com a multiplicidade de seres ocultos em Mautner.
O
cantor de rock e de samba, além de tudo, conhecia de cor e salteado toda a
literatura comunista estudada por ele nos tempos de Polop.
Quer
dizer: sabia de Marx, de Lênin, de Trotsky, da porra toda.
Dominava
Nietzsche e Heidegger.
Esbanjava
noções de física quântica e de teoria da relatividade.
Seria
uma humilhação, não tivesse autoestima em perfeito estado.
E
lá vem judeu: Mário Schenberg, apresentado pelo filho do Holocausto.
Schenberg
era conhecido, destacado militante do PCB.
E
físico de renome mundial, considerado o maior físico teórico do Brasil,
pernambucano da gota serena, perseguido sempre por sua condição de comunista.
Era
também crítico de arte.
Cardoso
entrevistou-o para a revista "Planeta", cujo editor era Edenilton
Lampião, considerado um dos maiores filósofos da contracultura no Brasil. Com Schenberg, fez ainda outra entrevista,
para o "Folhetim", da Folha de S. Paulo, dirigido por Tarso de
Castro.
Fonte
preciosa, Cardoso sabia disso, procurou extrair dele confluências entre a
física quântica e o pensamento oriental - ao menos para a "Planeta".
Sabendo-o
comunista...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de setembro de 2021
Jary Cardoso:
Cabo Anselmo, agente infiltrado.
Sabia:
Mário Schenberg era comunista de carteirinha.
Revelou
então ser filho do dirigente comunista Antônio Campos, contemporâneo dos
baianos Carlos Marighella e Mário Alves.
Lembrou,
falou do pai.
Soube:
Schenberg, um pouco antes de falecer solicitara conversa com ele.
Pediu
a um amigo para encontrá-lo, dar esse recado.
Não
estava em casa quando procurado.
O
cientista morreu logo depois.
Nunca
soube as razões da pretendida conversa.
Jorge
Mautner era muito próximo de Schenberg.
Cardoso
ouviu histórias curiosas sobre o velho Partidão, fruto da relação dos dois.
O
cientista, antes de 1964, teria convidado Mautner e o artista plástico José
Roberto Aguilar, companheiro dele no Partido do Kaos, a integrarem o Comitê
Central do PCB, na intenção de levar novos ares ao vetusto Partidão, constituir
uma célula cultural.
Os
dois teriam aceitado.
Mautner
tornou-se íntimo do partido devido à relação com Schenberg.
Chega
ao apartamento do cientista em São Paulo nas proximidades do Golpe de 1964, mesmo
momento da rebelião dos marinheiros.
E
testemunha telefonema dele para Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de Jango:
-
São ordens de Moscou. Vocês têm que prender os cabos e sargentos revoltosos,
incluindo o cabo Anselmo. Mas, mais importante: libertem os oficiais pedindo
perdão de joelhos.
Jary
Cardoso contextualiza:
-
Essa história, que ouvi de Jorge Mautner quando no final da década de 1970
atuei por algum tempo como assessor dele, me fez lembrar que ao entrar na Polop
encontrei os dirigentes fazendo autocrítica em relação a esse movimento,
conduzido por militantes e simpatizantes do grupo, um deles o próprio cabo
Anselmo. Anos depois, o cabo Anselmo se revelaria agente da repressão
infiltrado na esquerda revolucionária.
Cabo
Anselmo é um dos mais trágicos casos de agente infiltrado na esquerda, capaz de
orientar a repressão ao cerco do aparelho onde estava sua companheira, a
militante paraguaia Soledad Barret Viedma, grávida de um filho dele, morta
naquela ofensiva ao lado de mais cinco companheiros, em 1973, Pernambuco, na chamada Chacina da Chácara São
Bento.
Anselmo
atuava desde o Golpe de 1964 para destruir a esquerda, sem que fosse dada
qualquer atenção aos serviços de inteligência do próprio governo Jango, cujas
investigações já o apontavam como agente infiltrado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Carlos Pereira Neto Siuffo: Hoje sabe-se
também do caso de Severino Teodóro de Mello, militante desde de 1934, e
responsável principal pelas quedas e assassinatos dos membros do CC do PCB.
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Emiliano José
1º
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
voltando a Iara Iavelberg
Quis
ir longe nessa história dos judeus.
Atrás
de sua própria história, quem sabe.
O
historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, de quem Jary Cardoso tornou-se amigo a
partir do momento em que ocupou a Editoria Internacional de "A
Tarde", e continuou amigo até a morte dele, num dos muitos telefonemas da
Alemanha, observou: o sobrenome Cardoso indica descendência judia.
Era
um dos nomes mais utilizados por judeus em Portugal, modo a escapar da
Inquisição - os chamados cristãos novos.
Concluiu:
-
Então sou descendente de judeus por parte de mãe, Luiza Cardoso, bisneta de
imigrante português que constituiu no Brasil a família Cardoso de Almeida.
Mais
além:
-
E também por parte de pai, Antônio Campos, nascido no sul de Minas Gerais e
que, apesar da aparência de um típico mestiço brasileiro com pele um pouco
escura - indicando a mistura de europeu, negro e índio -, era filho de um judeu
baiano, Moisés Campos.
Voltando
aos bancos escolares, ao curso de Teoria do Conhecimento com Marilena Chauí, e
ao conselho dela fosse Cardoso ser filósofo na vida, recolho reflexão dele
sobre o assunto.
Confessa
ter passado a vida adulta considerando fosse o magistério como filósofo o mais
adequado para o jeito de ser dele - como repórter, sempre seguiu uma linha
filosófica na abordagem das questões em pauta.
Mas,
no meio do caminho tinha uma pedra: olhou, olhou, e constatou: os bons alunos
de Filosofia eram os empenhados em gastar seis a oito horas diárias de estudo,
debruçados sobre livros, procedimento só possível a filhos de famílias ricas ou
a gênios capazes de apreender tudo rapidamente.
Então,
jornalismo.
Antes
de chegar à longa trajetória jornalística de Cardoso, é o caso de voltarmos à
militância política dele, de 1965 ao final de 1968.
Já
revelamos alguns momentos, mas não custa rememorar para não confundir o leitor
ou obrigá-lo a voltar a capítulos anteriores.
Na
primeira fase, e disso já falamos, Iara Iavelberg teve presença marcante na
vida política dele.
No
início de setembro de 2021, respondeu a algumas perguntas da historiadora
Juliana Marques, empenhada na história da companheira de Lamarca.
Inevitável
voltar à trajetória de Iara, até porque a iniciação dele na Polop tem a ver,
também, com ela.
Lembra:
ela não ocupou cargos de direção na Organização.
Razões?
Primeira:
o machismo - organizações revolucionárias não estavam livres dessa marca.
Segunda:
ela não se destacava, na Polop, como intelectual teórica, como dirigente apta à
análise da conjuntura nacional e internacional, capaz de desenvolver os
conceitos do materialismo histórico e dialético.
Ela
se destacava, isso sim, como uma militante carismática, cuja qualidade
principal era se comunicar bem com a massa...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
2
de outubro de 2021
Jary Cardoso: as
qualidades de Iara
Iara
Iavelberg era mestra na comunicação com as massas.
Carisma.
Capacidade
de seduzir as pessoas.
Encantá-las.
E
sabia unir teoria e prática.
Era
firme na condução das lutas da faculdade.
E
pragmática.
Sonhar,
mas com os pés no chão.
Cardoso
recorda das reuniões da célula da Psicologia: apresentava as ideias, discutia
não apenas a estratégia, a visão geral, mas a tática da luta concreta, do dia a
dia, as reivindicações pontuais.
Avaliava
as disputas com os adversários.
Os
da Ação Popular, por exemplo.
Adversária
do Partidão, AP, muitas vezes organização aliada, mas em outras momentos,
adversária.
As
alianças, no movimento estudantil, deslocavam-se com facilidade.
Ora
a Polop estava com AP, onde as grandes lideranças eram Luís Travassos e
Catarina Meloni, isso pra falar de São Paulo, e me reporto a eles por convivência
de militância de AP em 1968.
Ora,
com a Dissidência do PCB, onde despontou cedo um Zé Dirceu.
Entre
as organizações defensoras da luta armada contra a ditadura, ou à esquerda do
Partidão, existia um ponto de unidade: ser contra o PCB - o comentário é meu.
A
Polop, uma das poucas organizações revolucionárias cujo nascimento não dependeu
de dissidência com o PCB como a maioria, era avessa a qualquer aliança com o
PCB. AP também não nasceu daquele tronco.
Volto:
nas reuniões da célula, Iara relatava os contatos com as demais organizações,
os conchavos, revelava os bastidores, conhecidos por ela como ninguém.
Dava
opinião sobre as palavras de ordem e as bandeiras a serem defendidas nas
campanhas eleitorais pro centro acadêmico, pro grêmio da Filosofia, para a
União Estadual dos Estudantes.
Quando
se tratava do debate sobre algum documento teórico da direção da Polop,
recolhia-se: tornava-se uma ouvinte atenta, disciplinada.
Talvez
por tais características não tenha ocupado qualquer cargo de direção na Polop.
Cardoso
ascendeu rapidamente na Polop como decorrência do interesse e dedicação na leitura da extensa
bibliografia apresentada pelos dirigentes e, também, dos documentos destinados,
os livros e documentos, à "formação de quadros"...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Ler textos de
Emiliano José é ter aulas de jornalismo fora dos muros da escola
Mônica Bichara: Verdade, cada
capítulo é uma aula. Essa série, além de reavivar a memória sobre nossas
trajetórias e de colegas que vieram antes, mostra a importância de veículos de
imprensa comprometidos com o social, abertos a acolher até ex-presos
políticos...e isso não era pouca coisa não
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Emiliano José
3
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
militante estudioso
Bom
aluno.
Disciplinado.
Disposto
a ser bom militante.
Cardoso
ainda lembra: enchia o saco do Emir Sader, professor de Filosofia.
Queria
por queria entender a dialética materialista.
Emir
Sader está vivo e atuante, militante, continua intelectual respeitado, pode
testemunhar.
Ia
atrás de Hegel.
Corria
atrás de Heráclito.
Já
se disse: percorreu aulas de Filosofia dos melhores mestres: Giannotti, Ruy
Fausto, Bento Prado Júnior.
Giannotti
e Bento Prado foram aposentados compulsoriamente pela ditadura em 1969.
Queria
também, Cardoso queria entender direitinho a Revolução Russa.
Leu
muito Lênin, mas também Isaac Deutscher, e aí entendia também Trotsky.
Mergulhava
na história do Brasil: Caio Prado, Celso Furtado, e inúmeros outros autores.
Estivesse
fazendo Doutorado, e não leria tanto.
Intensivão
da militância, sob a inspiração da Polop.
De
passagem, Cardoso lembra: Carlos Alberto Sardenberg foi professor dele no
Cursinho do Grêmio, ao lado de Iara Iavelberg.
Militava
na Polop - não, não é equívoco, era militante da Polop.
Jovem,
culto, grande capacidade didática, showman - será depois esse sofrível
comentarista da Rede Globo: coisas da vida.
Voltando:
participa intensamente das discussões internas sobre as teses apresentadas para
o Congresso da Polop, de 1967.
Se
não me engano, me contou ter se recolhido durante uma semana na litoral
paulista de modo a se preparar para o encontro.
Levou
uma renca de livros, mal olhou pra praia.
Escreveu
longos textos defendendo a posição original da Organização, terçando lanças
contra os defensores de uma aliança nacionalista - revolução, só a socialista.
A
Polop, desde o nascedouro, era dirigida por intelectuais respeitados, e
Cardoso, aplicado.
Esse
esforço, esse aprimoramento intelectual, o levou cedo à direção.
Falar
em público, ah, um terror...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Mônica Bichara: "De
passagem, Cardoso lembra: Carlos Alberto Sardenberg foi professor dele no
Cursinho do Grêmio, ao lado de Iara Iavelberg. Militava na Polop - não, não é equívoco, era militante da
Polop". Vá entender.....tô dizendo que isso aqui é uma aula
Zeca Peixoto: Conheço vários
que hoje são direitistas de carteirinha.
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Emiliano José
4
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
lado a lado com Iara
Pensa
em Iara.
Como
falava bem.
Como
encantava.
Ele
não.
Cardoso,
quando havia a exigência de falar em público, era um deus-nos-acuda.
Dava
branco.
Agora,
redigir, com ele mesmo.
Era
sua vingança: tudo muito certo, não falava, não sabia falar em público, ao
menos na primeira fase da militância, mas em compensação era muito bom na
elaboração de textos voltados à luta interna, à discussão sobre os rumos da
Revolução Brasileira.
De
uma forma ou de outra, entre ele e Iara às vezes acontecia alguma divisão de
tarefas.
Ela
distribuía entre militantes e simpatizantes o "Informe Nacional",
preparado pela direção executiva da Polop contendo análises da situação
internacional e nacional, além de relatos e posições face a lutas localizadas.
Cardoso,
um dos redatores do tal informe.
Juntos,
buscavam recrutar novos militantes e fontes de recursos financeiros.
Juntos,
participavam de assembleias e tantas outras reuniões estudantis.
Programavam
e executavam pichações pela cidade durante as madrugadas, com palavras de ordem
contra a ditadura e pela união da classe trabalhadora.
Iam
para portas de fábrica, faziam comícios relâmpagos e distribuíam panfletos.
Participavam
de passeatas e manifestações variadas, sempre precedidas de discussões sobre os
esquemas de segurança e álibis para a possibilidade de prisão.
Todas
essas tarefas exigiam muita discussão e planejamento, e ocupavam grande parte
das reuniões semanais das células.
Essa
militância comum com Iara, no entanto, não foi superior a um ano, talvez menos.
Deu-se
de dezembro de 1965 a logo depois de meados de 1966, nas contas de Cardoso.
Foi
destacado para compor diretoria da UNE, e ganhou estrada.
Correu
o País - de ônibus.
De
Porto Alegre a Natal, incursões por Belo Horizonte e Goiânia, além de cidades
de porte médio.
Rico
momento de militância, e além de tudo, conhecendo o Brasil...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Livro História da UNE, incluindo página onde Jary é citado e o texto de conclusão do 29º Congresso da UNE, que foi escrito por ele durante as madrugadas)
Emiliano José
5
de outubro de 2021
Jary Cardoso: mentalidade colonizada
Em
1967, passa a morar no Rio de Janeiro.
Dividia
aparelho com Pery Falcón e Marcos Wilson Spyer Rezende, ambos da Polop e da
diretoria da UNE como ele.
Falcón,
da Direção Nacional da Organização, como Cardoso.
O
Rio de Janeiro continuava lindo, e era a sede política da UNE: ali os diretores
se reuniam antes e na volta das viagens pelo País.
Falcón,
baiano.
Esteve
preso comigo na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, início dos anos 1970.
Somos
amigos até hoje.
Quadro
político consistente, respeitado, dado ao estudo.
Spyer,
mineiro.
Muito
amigo de Nilmário Miranda, também militante da Polop.
Santa
Clara clareou, parece lembrar a batalha de Santa Clara comandada por Che, em
dezembro de 1958: a rua onde moravam em Copacabana chamava-se Santa Clara.
Pequena
casa, numa vila.
Dormiam
em beliches.
Tudo
bem - naquele tempo, ninguém buscava conforto.
Vida
revolucionária.
Vai
e volta, e Marie Christine Laznik assalta a memória dele.
Chris,
presença inesquecível.
Andavam
muito de ônibus na fase inicial da Polop.
Ao
lado, quase sempre, uma amiga muito próxima dela, Bia Forjaz.
A
amiga, ouvindo as conversas dos dois, deixava escapar comentários que mal
disfarçavam a ironia - dizia a respeito de Chris: mais parece uma tutora,
cuidando de ensinar o beabá de uma consciência revolucionária.
Tinha
alguma razão.
E
a Bia não era brinquedo não.
Num
desses encontros, Cardoso manifestou o entusiasmo dele pelos Beatles.
A
propósito de uma das músicas deles, Cardoso disse ser composição de John Lennon
e Paul McCartney, e pronunciou o nome da dupla em inglês escorreito, sem
sotaque - fora aluno aplicado da União Cultural Brasil-Estados Unidos (UCBEU).
Ah,
pra que foi se meter a besta.
É,
porque ela não se conformou com aquele comportamento colonizado, inteiramente
submisso à ideologia do imperialismo norte-americano
Deu
um esbrega nele - ela era daquelas avessas até a beber coca-cola
Ele,
que fazer?
Cristão
novo, enfiou a viola no saco, assustado com tanto sectarismo, tão comum na
esquerda, ao menos numa boa parte dela, à época.
Manhã
cedo, reunião da Direção Nacional da
Polop, e ele teve um bate-boca com Marcos Faerman...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
cachimbo caindo, Caetano e Gil, presos.
Foram
intensos três anos.
Pra
jamais esquecer.
No
nevoeiro da memória, a última atividade na Polop.
Reunião
da Direção Nacional.
Estava
tenso.
Era
final do ano de 1968.
AI-5
havia caído sobre a Nação em 13 de dezembro.
Tudo
parecia desabar.
Ambiente
pesado, sombrio.
Marcos
Faerman cochilava, e o cachimbo volta e meia caía.
Cardoso
não gostou do procedimento.
Cobrou
seriedade revolucionária de Marcão.
Que
porra aquela de cochilar no meio de uma reunião?
Talvez
tenha feito tal cobrança mais pelo espírito transtornado dele naquele momento
do que por qualquer leninismo.
Lembra,
lembra bem, dos momentos anteriores.
Ele
e Pery Falcón caminhavam pela Rua das Palmeiras em direção à Alameda Nothman,
ali por perto da Avenida São João, onde seria realizada a reunião.
Ele
por uma calçada.
Falcón,
por outra.
Norma
de segurança - nada de caminhar juntos.
Logo
à frente, Cardoso nota uma perua da repressão parada em frente à sede dos
estúdios da TV Globo.
Olhou
atentamente, e percebeu, sem padecer de dúvida: dentro da perua, o
Tropicalismo, preso.
Caetano
e Gil, com seus inconfundíveis cabelões, presos pela ditadura - dali serão
levados para o Rio de Janeiro.
Ele
os viu: sentados no banco de trás da
C-14.
Ao
tentar explicar a razão da perua parada em frente à TV Globo, desconfia fosse a
ditadura tentando descobrir paradeiro de Geraldo Vandré.
Era
manhã do dia 27 de dezembro de 1968.
Chegou
transtornado à reunião da Direção Nacional.
Por
isso, o incômodo com o cachimbo caindo;
A todo
momento, o cochilo do Marcão.
E
o cachimbo, caindo.
Teve
bate-boca entre os dois.
Bate-boca
do cachimbo.
Cardoso,
uma pilha.
À
beira de um ataque de nervos.
Sem
pensar muito, levantou-se, foi à estante de discos, escolheu um LP dos Beatles,
e botou-o pra tocar a todo volume...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: a vida como
ela é
Aécio Pamponet Sampaio: Fim de ano
tenebroso !…😉😉😉
Lucilia Duarte: Nem fale! O
ano que não acabou…!
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Emiliano José
7
de outubro de 2021
Jary Cardoso: um
transe, cerimônia do adeus.
Um
transe.
Ou
uma cerimônia do adeus.
Quem
sabe.
Olhou
pra estante, viu aquela fileira de discos.
Levantou-se,
com os dedos procurou um Beatles.
Havia.
Manuseou
a agulha, suavemente desceu com ela, o som a todo volume e...
A
música inebriante o envolveu.
Por
inteiro.
Os
dirigentes da Polop, ainda sem entender nada.
Que
deu nele?
Primeiro
o cachimbo, a explosão com Marcão.
E
agora, aquilo.
Esperassem...
Cardoso,
ao ouvir os Beatles, entrou em transe.
Não
via seus companheiros.
A
nenhum deles.
E...
Passou
a dançar freneticamente.
Sabia-se
bom dançarino, aquele frenesi tinha ciência, conhecimento.
O
corpo respondia a vozes de passado recente, a movimentos aprendidos havia pouco
tempo.
Havia
conhecido era coisa com uma vizinha mais velha fluente em inglês, mais a dança,
ou as danças.
Dançou
Chubby Checker e seu Let's Twist Again.
Dançou
Elvis e seu rock selvagem.
Tornou-se
um excelente dançarino - mais de rock, sua paixão.
Seguia
sem perceber os companheiros - todos revoltados diante daquele espetáculo, para
eles fora da ordem.
Como
faz aquilo numa solene reunião da Direção Nacional da Polop?
O
que é isso, companheiro?
Atônitos
e revoltados.
Ele,
nem aí - dançava dançava dançava.
Não
os via.
Transe
é transe.
Fazia
um mix endiabrado, misturava todas as danças conhecidas.
O
corpo, seu próprio laboratório.
Dele,
saíam movimentos frenéticos, surgidos ali, sem sentir, e sentindo.
E
suando naquela manhã paulistana quando Gil e Caetano sumiram num rabo de foguete.
No
ano seguinte, viu todos aqueles movimentos, aquelas danças ensandecidas, nas
imagens de Woodstock, mais tarde no cinema.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de outubro de 2021
Jary Cardoso: o
desbunde e o mestre
Não,
não pense de simplificar.
Caso
não é pra isso.
Aquele
momento não era de simplificação.
Rompimento.
Virada
na vida.
A
marcar a existência toda.
Ainda
veria alguns dos companheiros da Direção Nacional da Polop.
Zé
Paulo, engenheiro do metrô, procurou-o.
Nome
dele, não o de guerra: Ceici Kameyama.
Queria
razões.
Vinha
de paz.
Cardoso
explicou.
De
boa.
Na
santa paz.
Foi
conversa amena.
Um
Ceici sorridente, acolhedor, amigo, jeito japonês de ser.
Pensa
em Eder Simão Sader.
Sociólogo,
dos maiores intelectuais da Polop.
Pensou
em Caetano falando sobre Roberto Carlos, a gente sabe a quem chama de Rei, e
parafraseou: a gente sabe a quem chama de mestre.
Eder
Sader, mestre principal.
Régua
e compasso.
Após
aquela manhã de rockenroll, ainda o encontrou.
Recebeu-o
sem maus modos, ao contrário.
Como
se o abraçasse, como um amigo.
Não
foi a reação do irmão.
Contou,
Eder Sader contou a reação irada de Emir Sader.
Dava
aula na Université Paris Nanterre, ao saber do desbunde de Cardoso:
"Filho
da puta".
Assim
disse, numa carta, sintético.
Doeu
um pouco - Emir Sader o admitira como militante da Polop, subscrevera a chegada
dele.
Desbunde,
desbundado.
Termos
utilizados para pessoas decididas a se afastarem da luta revolucionária, não
mais dispostas à luta frontal contra a ditadura.
Termos
desqualificadores, próprios da época, marcada pela violência da ditadura, e
também pelo sectarismo de uma parcela ponderável da esquerda, às vezes incapaz
de assimilar a complexidade dos seres humanos, seus medos, demônios, escolhas.
Leitura
insuficiente de Freud, e mesmo de Marx.
Ou
de Sartre.
Erich
Fromm.
Tanta
gente.
Cardoso
carregava a marca do desbunde.
Voltou
a pensar em Eder Sader com carinho.
Um
curso feito durante a militância.
Fora
do campus, Paul Singer, o professor: economia política, história econômica do
Brasil.
Pouco
mais de um mês.
Ao
final de cada aula, sempre conversava com ele.
Um
dia, a pergunta:
-
Você é irmão de Eder Sader? Ou tem algum parentesco com ele?
-
Não - respondeu...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
empatia com o mestre
Não.
Não
tinha qualquer parentesco com Eder Sader.
O
professor dissera:
-
Você se parece muito com ele.
Revelou
no entanto a Paul Singer: era muito próximo de Sader.
Nas
reuniões da Polop, ele o ouvia com redobrada atenção.
Cada
palavra, um sentido.
Sabia
manusear os conceitos.
E
o fazia sem pretensão, sem arrotar superioridade.
E
de modo pudessem todos entender.
Mestre
- não se cansa de dizer: ontem e hoje.
Naquele
dia, diante da pergunta do professor Paul Singer, da afirmação da parecença,
deu de refletir, e de concluir: a semelhança só podia ser resultado da total
empatia com o mestre.
É,
empatia: impregnado dele.
Desenvolveu
gestos e expressões com o mesmo jeito de corpo.
Parecia
incrível a identificação - era real, no entanto.
Costas
um pouco arqueadas, fazia acompanhar os argumentos com uma jogada de mãos,
juntando os dedos, e olhando de baixo pra cima, arregalando os olhos - Cardoso, assim, nas reuniões, nas conversas,
tal e qual Eder Sader, igualzinho, igualzinho.
Paul
Singer, nas aulas, certamente, conhecendo bem Eder Sader, adivinhou parentesco
ao perceber movimentos, trejeitos tão assemelhados.
Não
tinha parentesco, e tinha, não de sangue - apenas, e era muito, identificação.
Carisma
é carisma.
Eder
Sader tinha de sobra.
Ainda
das lembranças dos tempos da Polop, dos tempos do pré-transe, ele mexe no baú,
como um contraponto, e surge outro importante personagem: Erich Sachs.
E
fala-se contraponto porque, não obstante figura de proa da Polop, das maiores,
não tinha qualquer carisma, não fazia qualquer esforço para ser didático, e na
real, falava pouco, economizava palavras.
O
militante abaixo dos capas pretas sempre observava-os com olhar percrustador,
quase invasivo, no silencioso.
Desse
olhar, podia resultar admiração ou crítica, sempre no silencioso - capa preta
era capa preta, e sempre havia uma espécie de respeito reverencial.
Gozado,
do que ouvi, do que li, e Cardoso nesse caso leu mais, o Velho era quase
venerado pela maioria da Polop.
Escrevia
muito, Eric Sachs - assinava Ernesto Martins.
Cardoso
conheceu a Polop por dentro, e sua visão é mais ácida, ou mais verdadeira, sei lá.
Ouvia
os comentários sobre o Velho - maliciosos: fora das reuniões fazia-se
acompanhar sempre de um copo de uísque.
Não
sei, sou eu me intrometendo: não havia aí algum preconceito, má vontade com o
Velho?
E
era uísque do bom, importado, diziam - numa Polop carente de recursos.
Clandestinidade
gera incompreensões, exigências descabidas.
A
Polop se virava nos trinta para angariar recursos.
Vendia
até livros malditos, aqueles duramente criticados pela direção...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
avesso ao debraysmo
Vendia.
A Polop
vendia livros, amaldiçoados fossem pela direção.
Como
"Revolução na Revolução", de Régis Debray, de cujo já falei, se
memória não me trair, e não é incomum fazê-lo.
"Revolução
na Revolução", desculpem, foi uma revolução: mexeu com corações e mentes dos
revolucionários mundo afora, especialmente dos caminhantes da América Latina.
Como
se sabe, o livrinho era defensor extremado do foquismo, doença a tomar conta de
boa parte da esquerda brasileira e latino-americana.
E
digo livrinho, não por desqualificação, mas pelas poucas páginas.
Muitos
exemplares haviam sido impressos, no tempo de militância de Cardoso, na gráfica
do Cursinho do Grêmio da Filosofia da USP controlado por gente da própria
Polop.
Samuel
Iavelberg, irmão de Iara Iavelberg, era um dos diretores.
Então,
a Polop o vendia, e encontrava mercado - muita gente queria ler Debray.
Desse
mal, da doença do foquismo, Cardoso não padeceu.
Construíra
consciência teórica sólida durante a convivência na Polop capaz de resistir ao
canto da sereia das serras e matas e àquele punhado de homens e mulheres
corajosos desvinculados da classe operária com a doce ilusão de conquistar as
massas para a Revolução com o abnegado exemplo deles.
Cardoso
seguia o pensamento dos dirigentes antigos, como Eder Sader.
Revolução
era algo muito mais complicado - se a coragem era essencial, não era o único
elemento, nem o principal.
O
principal, nas circunstâncias de então, e de acordo com a formulação
desenvolvida até ali, era garantir a condução pela classe operária, e envolver
outras classes, à exceção da burguesia, para então chegar à insurreição armada.
Mas,
a doença chegou também à Polop e houve dissidências a se bandearem para o
foquismo, e não se pode esquecer, nessa movimentação, a doce figura de Iara
Iavelberg.
Cardoso,
nos três anos passados na militância revolucionária, jamais vacilou quanto a
isso - o debraysmo não o tocou...
Da
música, nunca se apartou.
Essa
sempre o tocou.
Andava
lado a lado com a Revolução.
Amante
inseparável...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Na Campesina
tem, de Debray, A guerrilha do Che [edições populares]
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Emiliano José
11
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
música e Revolução.
Música.
Amada
amante.
Dela,
Cardoso se nutria quando imerso na Revolução.
Talvez
por ela, se animasse mais ainda a prosseguir na senda revolucionária.
Até
o Dia do Transe.
Daí,
largaria a outra amante, passageira Revolução, ao menos aquela, e seguiria,
cada vez mais apaixonado com a mais amada amante, cujo embalo e som sempre o
levaram vida afora.
Os
Beatles, presença constante, deles não se separava.
Especialmente
"Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band".
E
muita "Louvação", álbum de estreia de Gilberto Gil.
Um
banho de Vandré: até hoje sabe de cor as músicas dele, e até hoje o emocionam.
Como
não se emocionar com "Disparada"?
Como
não lacrimejar com "Pra não dizer que não falei das flores"?
Mistura
tudo, Iarinha e as músicas, Iara Iavelberg e os festivais da Record, os dois
acompanhando com vivo interesse as competições, desfile de talentos,
compositores e cantores e cantoras maravilhosos, um luxo assistir Gil, Caetano,
Chico, Vandré, Edu Lobo, Nara Leão, privilégio difícil de recuperar em
palavras.
Diz:
Chico era o líder supremo - será?:
-
A Faculdade de Arquitetura, onde Chico fingia estudar, ficava pertinho da Maria
Antônia, umas duas quadras subindo a Angélica.
É,
não sei se Chico era o líder supremo - talento, talvez - e é duro dizer mesmo
isso, há Caetano, há Gil, há Edu Lobo, esse timaço chegara pra fazer uma
revolução cultural, e fizeram, e alguns continuam, e todos eternos.
No
embate de massas nos festivais, Vandré era maior.
A
razão: suas canções eram mais à esquerda.
Caetano,
com razão, irá esbravejar contra o esquerdismo nos festivais: vocês não estão
entendendo nada.
Estava
lá, em São Paulo, acompanhei.
Cada
um, no entanto, um olhar.
Tudo
junto e misturado: recorda-se de Iarinha ter namorado Antonio Benetazzo,
carismática liderança de Arquitetura, preso e assassinado na tortura em 1972.
Uma
vez, estivera no apartamento dele, no edifício Copan, concebido por Niemeyer,
recém-inaugurado.
Música
e revolução sob a ditadura...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Marise Caribé: "Música e
revolução sob a ditadura..."❤️🎶
Adilson Borges: Sei que
apressado come cru e que as informações vão pingando. Mas me apresso a dizer
que Jari é casado com cantora, a querida Vilma Nascimento, prima de Milton
idem.
Alberto Freitas: Colé, camarada
revolucionário? Spoiler não vale.
Adilson Borges: Foi mal, mas
qué qué isso, camarada? Não chega a ser spoiler hehehe
Emiliano José: tudo vale a
pena...
Mônica Bichara: Música e
revolução, sempre juntas
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Emiliano José
12
de outubro de 2021
Jary Cardoso: o
mar, Sinatra e Jobim
A
música o persegue.
Ou
o contrário.
Diretor
da UNE, viajava feito o cão.
Estava
em Natal, cumprindo tarefa estudantil pela entidade.
Num
apartamento de um simpatizante da Polop.
As
pessoas não têm ideia de como os simpatizantes eram importantes.
Decisivos.
Eram
nosso anteparo.
Nossa
retaguarda.
Muitas
vezes, contato com o mundo dos cidadãos comuns.
É,
porque clandestinidade joga você no isolamento, e num perigoso, alienante mundo
próprio.
Bom
quando você encontra quem esteja levando a vida rotineira, aquela bem comum, de
ir à padaria todo dia, ao açougue, armazém, jornada de trabalho de oito horas,
essas coisas.
Você
se defronta com a realidade, tão necessária para as elaborações teóricas, de
modo a fazê-las grudadas à vida real, tarefa nem sempre bem cumprida.
Pois
é, ele ficou sozinho um tempo no belo apartamento com vista para o mar, foi pra
lá, foi pra cá, olhava aquele mar azul, verde, cores, cores, o barulho suave
das ondas inebriando-o, e de repente deu de cara com o LP de Sinatra &
Jobim.
Botou
o disco.
Do
sofá, podia olhar o mar.
As
águas do mar agora pareciam se multiplicar em cores.
Deslumbrado,
deslumbradíssimo, como ele mesmo enfatiza -
jamais se esquecerá daquele Sinatra, daquele Jobim, daquele mar de
Natal...
A
UNE pra ele foi uma escola, lado a lado com a Polop.
Já
se disse: ele cumpria com rigor as tarefas políticas, pero não topava de jeito
nenhum ir ao palco, falar para o público - era de uma timidez visceral.
Falava
nas reuniões menores e, já se disse também, escrevia muito - era uma espécie de
escriba da UNE, e não raramente elaborava documentos internos na Polop...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Programa UNE - Carta Política do XXIX Congresso Nacional de Estudantes, realizado em julho de 1967 num convento beneditino em Vinhedo, São Paulo.1 a 7)
Emiliano José
13
de outubro de 2021
Jary Cardoso: a
UNE somos nós...
Vamos
cuidar um pouco da UNE?
Do
tempo de Cardoso na UNE?
A
rigor, ele permaneceu extremamente ativo na entidade durante três gestões.
A
de Altino Dantas, gestão já em andamento, ele chegando no início de 1966.
Vamos
lembrar, não custa, fosse aquele ano uma espécie de marco na retomada das
lutas, retomada cuja participação do movimento estudantil fora essencial.
Retomada
de lutas contra a ditadura iniciada com o Golpe de 1964.
Ousados,
combativos, os estudantes saíram na frente.
Tanto
universitários quanto secundaristas.
Viria
1967, mais quente, e a explosão de 1968.
Altino
Dantas sucedera José Serra, levado a se exilar devido à quartelada.
Em
seguida, Cardoso atua durante toda a gestão de José Luís Guedes, 1966/1967.
Viria
Luís Travassos, com quem convivi no movimento estudantil de São Paulo, eleito
ali pelos meados de 1967.
Tornou-se
celebridade nacional.
Os
mais velhos se lembrarão de capa da revista "Realidade": casaco ao
ombro segurado pela mão direita, perna direita dobrada, pé direito plantado no
muro onde ele está encostado, braço esquerdo ocupado por um jornal, sapato
preto, calça marrom claro ou cor de burro quando foge, o olhar firme, ousado,
esperançoso, jovem, aparentando até menos de 23 anos, nascido em fevereiro de 1945.
E a manchete:
"Este
moço comanda a agitação".
Eram
esses os nossos líderes naqueles tempos, todos muito jovens: Travassos, Zé
Dirceu, Vladimir Palmeira, as principais lideranças de massas do País em 1968 -
nomes de repercussão nacional.
Em
janeiro de 1968, Cardoso é obrigado a se afastar por razões de saúde - assim,
na gestão de Travassos atuou por seis meses.
Já
se disse, mas o leitor não é obrigado a voltar aos capítulos anteriores: nas
reuniões da diretoria da UNE eram definidas as ações seguintes da entidade,
distribuídas tarefas e viagens entre os diretores.
Nos
estados, Cardoso se recorda, havia reuniões com as principais lideranças
estudantis, em geral dirigentes das organizações de esquerda.
Também
tinha contato com a massa estudantil, participando de assembleias, fazendo
rápidos pronunciamentos em salas de aula, nos quais se reafirmava a luta contra
a ditadura e se defendiam as principais bandeiras estudantis daquele momento.
Ele,
sempre, falava pouco e tão somente o da ponta da língua, o já decorado de tanto
ouvir durante as reuniões da entidade.
Incapaz,
incapaz mesmo, de falar de improviso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
dançarino comunista
As
pessoas pensam: é fácil falar em público.
Não
é não.
Tem
gente com pavor.
Nem
pensar.
Assim,
nosso Jary Cardoso.
Rio
de Janeiro.
1967.
Pequeno
palanque armado na Praia do Flamengo.
Cardoso
ao lado de Daniel Aarão Reis, hoje notório historiador, e então presidente da
União Metropolitana de Estudantes (UME), e de várias outras lideranças.
Aarão
Reis deitou falação para aquela multidão ululante, agitada, palavras de ordem a
plenos pulmões a cada pequena parada do orador.
Cardoso,
tenso.
Ia
chegar o momento.
E
então...
-
E agora com vocês o vice-presidente da UNE, Jary Cardoso.
Não
tinha jeito.
Tinha
de atravessar o Rubicão.
A
massa explodiu:
-
U-NÊ, U-NÊ, U-NÊ - ávida por ouvir o dirigente. O coro não parava.
Ele,
tenso.
A
massa queria a voz da UNE - A UNE somos nós, nossa força, nossa voz.
E
Cardoso, vá lá se saber por que, congelou.
Deu
branco total.
Nada
à mente.
Nem
repetir as palavras de Aarão Reis.
Nada.
Então
engrossou o coro:
-
U-NÊ, U-NÊ, U-NÊ...
Balançava
os braços, no ritmo, que nisso ele era bom, e batia os pés, sentia-se dançando,
nisso era bom...
E
gritava o mais alto que pudesse.
Batia
os pés com muita força, quem sabe do nervosismo, tanta que numa das batidas
rachou uma das madeiras de sustentação do palanque, quase cai, alguém o segura
pelos braços, e compreensivelmente não houve discurso da UNE.
Salvo
pelo gongo.
Um
freudiano diria: na real, na real, ele deu um jeito de não usar a palavra - ou
um lacaniano?
Mas,
saiu até com alguma glória do episódio: um dos estudantes presos naquele dia
foi interrogado por um agente:
-
Quem era aquele cara da UNE com jeito de comunista?
Jeito,
tinha.
Só
não gostava de falar em público...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
15
de outubro de 2021
Jary Cardoso: o
Sol nas bancas de revista...
Estranha
e divertida de alguma forma nossa vida de clandestinos.
Eu
tinha um nome frio em Ação Popular - era Edmundo.
Tratado
assim nas nossas reuniões.
E
nos documentos internos, também.
Portava
uma carteira de identidade, falsa por obviedade.
Aí
era então Pedro Luiz Vian.
Mas,
o fato, fato mesmo: quase todo mundo sabia meu nome verdadeiro.
Nem
sei como permaneci em liberdade entre janeiro e novembro, mês de minha prisão.
Sorte.
Afinal,
não era difícil me encontrar.
Cardoso,
como diretor da UNE, não fugia a essa hábito: carregava nome frio, ou nome de
guerra, como se queira - João Campos.
Houve
até entrevista dele para "O Sol".
Do
João Campos.
Pouco
se sabe d'O Sol'.
Provável
maioria desconheça: o Sol nas bancas de revista, em "Alegria,
Alegria", é ele, o próprio.
Duração
efêmera: de setembro de 1967 a janeiro de 1968.
Comando
de Reynaldo Jardim, os editores eram Zuenir Ventura e Ana Arruda Callado.
De
alguma forma, vinculado à contracultura, teria inspirado o mais longevo "O
Pasquim".
Pois
é, João Campos brilhou n'O Sol' - fácil achá-lo nas bancas de revista.
Cardoso,
vocês sabem, é casado com a cultura, apaixonado por ela - um dia, conto melhor.
Outro
caso.
Um
dia, estava em Porto Alegre, diretor da UNE.
Cumprindo
duas tarefas - a da entidade e a da Polop.
Leu
na banca de revista: Gilberto Gil estava na cidade, dera entrevista.
Comprou
o jornal.
Gil
falava de "Lunik-9", mais recente composição dele, renovação de
estilo, prévia de composições tropicalistas a brotar meses depois.
"Poetas
seresteiros namorados correi é chegada a hora de escrever e cantar talvez as
derradeiras noites de luar"...
Cardoso
então lendo no jornal o hotel onde Gil estava hospedado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de outubro de 2021
Jary Cardoso: o
bode, a cabra, a galinha.
Viu,
soube: Gil estava em Porto Alegre.
Deu
o estalo, a lembrança: uma das mais importantes decisões da última reunião da
diretoria da UNE, realizada no Rio de Janeiro, era para cada um dos diretores
buscar apoio de cantores de esquerda.
Deviam
sugerir fizessem shows de arrecadação de fundos para o movimento estudantil.
Apresentou-se
no hotel:
-
Diga ao Gil: um representante da UNE quer falar com ele.
O
astro, já era um, atendeu-o prontamente.
No
próprio quarto.
Aí,
Cardoso tinha o verbo fácil: relatou as discussões na diretoria da UNE,
contextualizou-as, falou dos shows para arrecadar fundos para a luta;
Gil
dispôs-se, favoravelmente.
Mas
na correria daquela conjuntura, o show não aconteceu.
Mais
de quatro anos passados, Cardoso repórter da revista "Bondinho",
surpreendeu-se: Gil dizia lembrar-se daquela conversa de Porto Alegre.
São
inesquecíveis lembranças de sua passagem pela UNE.
Outra.
Chega
ao Recife, depois de uma viagem de ônibus, longa, longa, quase eterna, daquelas
com muitas paradas por cidadezinhas do sertão nordestino.
Em
cada parada, cenas surpreendentes para um paulista da capital: passageiros com
roupas, aparência e linguajar de personagens do Cinema Novo.
Um,
carregava uma gaiola com aves.
Outro,
segurava uma galinha pelos pés.
Outro,
verdade, puxava um bode e uma cabra com cordas.
Os
animais no corredor, com os donos de pé.
Ele,
deslumbrado.
Chegou
estropiado na Estação Rodoviária do Recife. Cansaço da desgraça.
O
cansaço logo se dissipou.
Estudantes
o receberam em festa, e acompanharam-no durante os trajetos pelas faculdades -
um séquito seguia o líder.
Depois
de incontáveis reuniões, assembleias, passagens em salas de aula, recebe um
aviso: repressão tomara conhecimento da presença dele no Recife.
Desse
bandeira, o prenderiam...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: chá de
Nordeste faz bem
Luciana Mandelli: UNE - União
Nacional dos Estudantes a matéria do que somos feito.
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Emiliano José
17
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
braço de soldado
Todos
os santos protetores, as meninas, os meninos, estudantada toda, o séquito, o
aconselhavam: melhor sair logo da cidade.
Logo,
não.
Urgentemente.
Mais
rápido pudesse, senão meganhagem chega.
Destino
próximo dele, João Pessoa.
Melhor
mesmo, ideal, seria seguir de avião.
Desaparecer
rapidamente pelo ar.
Mas,
e dinheiro?
Moçada
não contou conversa: passaram sacola, cada um deu o que pôde, antiga vaquinha,
hoje crowdfunding não é?, e problema resolvido.
Cristina,
inesquecível, linda, simpática, a acompanhá-lo o tempo todo, veio com as duas
mãos cheias de notas amassadas:
-
Pegue. Aqui há o suficiente para um lanche e passagem de avião para a Paraíba.
Meteram
Cardoso num carro, levaram-no para o aeroporto.
Um
emocionante, comovente bota-fora.
Tão
comovente, tão, a ponto de conter-se para sufocar as lágrimas.
Estão
gostando?
Tem
mais.
Cardoso
não é homem de pouca aventura, não.
Ele
e Pery Falcón arrumaram as malas e tomaram o rumo das Minas Gerais, Beagá.
Encontro
estudantil.
Foram
para a casa de um simpatizante da Polop.
Casa
à disposição, dono viajando.
De
repente, batem à porta.
Susto.
Preocupados,
não esperavam ninguém.
Falcón
abriu a janelinha da porta para ver quem era.
Um
braço fardado irrompeu bruscamente, alcançou a chave na fechadura da porta, e
trancou os dois pelo lado de fora:
-
O que vocês estão fazendo aí? - perguntou o soldado com inconfundível voz de
comando.
Tão
rapidamente como apareceu, deu meia-volta, com clara disposição de tomar
providências, chamar reforços.
Receberam
a galinha pulando.
Cardoso,
em momentos de extrema tensão, age friamente e com presteza.
Primeiro,
olhar os bolsos.
Encontrou
duas coisas comprometedoras: um papel com anotações e uma carteirinha falsa de
estudante da Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro....
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joao Coutinho: Pery conta que
estava escondido atrás de uma cortina, mas teve os pés vistos pelos meganhas.
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Emiliano José
18
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
fogo purificador
Que
fazer com provas de crime tão comprometedoras?
A
carteira falsa de estudante usava para garantir refeição gratuita no tempo de
moradia comum com Falcón e Marcos Wilson, os dois companheiros de UNE e de
Polop.
Moravam
numa vilinha da Rua Santa Clara, aparelho da Organização, em Copacabana.
Lembrei
agora, tudo junto e misturado: morei em vila semelhante, e de lá tenho ternas
lembranças, mas longe de Copacabana.
Penha,
nas cercanias da Igreja, tão alta, quase alcançando o céu para a imaginação de
menino, morando arranchado naquela casinha de tia Zezé e Tio Tatiu.
Devia
correr o ano de 1957.
Como
cabíamos todos na casinha, nem imagino.
Só
nós éramos seis - mamãe e cinco filhos, e mais um tanto do lado da tia, e ali,
se tivesse dois quartos, muito.
Pobre
se vira nos trinta.
As
anotações, mais perigosas ainda, deu um jeito: seguiu orientações da Polop.
Militares
da Organização haviam ensinado: nesses casos, dobre o papel formando uma
sanfoninha, coloque-o de pé no chão, acenda o fósforo, toque fogo nas duas
pontas superiores.
Teve
prazer: bonito, o fogo consumindo o
papel na direção horizontal e vertical.
Pegou
as cinzas sobrantes, um quase nada, jogou na privada, puxou a descarga.
Prova
do crime, desaparecida.
Quanto
à carteirinha de estudante, com foto e nome falso, despediu-se com alguma
tristeza, sem consumi-la com o fogo purificador: escolheu um livro na estante
do quarto, guardou-a cuidadosamente entre as páginas, devolveu o livro para o
mesmo lugar.
Era
um risco, mas não teve disposição de queimá-la.
Não
acreditava fossem revirar a casa de cabeça pra baixo.
Uma
dúvida sempre o acompanhou: quem tenha pegado aquele livro, vendo a carteirinha
cair, se assustou?
Ou
se perguntou de onde teria vindo aquele estranho personagem?
Como
de se esperar, o soldado voltou...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de outubro de 2021
Jary Cardoso: um
pouco mais de adrenalina
Diabo
quando carece vem acompanhado.
Soldado
voltou.
Acompanhado
de um policial.
Direto
para a delegacia.
Cardoso,
não sabe onde foi buscar essa calmaria de espírito, mantinha-se tranquilo.
Como
fosse ali, a passeio, turistar.
Era
a primeira prisão dele, mas não se assustou.
Enfrentará
uma segunda - conto mais tarde.
O
delegado interrogou os dois, ele e Pery Falcón, ao mesmo tempo.
Foi
logo perguntando:
-
Que é que vocês estavam fazendo no local?
Os
dois contaram historinha combinada: estavam na casa do amigo porque iriam
assistir a aulas na universidade.
Cardoso,
sempre no espírito zen budista - todo calmo, explicando sílaba por sílaba.
Falcón,
no normal, é muito tímido - ou parece ser.
Nunca
teve receio de falar em público, mas é tímido.
Fala
baixo.
Me
recordo bem dele durante intervenções do Coletivo da Galeria F da Penitenciária
Lemos Brito, em Salvador.
Dada
a palavra a ele, ainda demorava alguns segundos, olhando pra baixo, e depois
iniciava: firme, sempre intervenção densa, contextualizada, à Polop.
No
olhar de Cardoso, ao relembrar o momento da delegacia, o vê nervoso, levemente
trêmulo, gaguejando um pouco.
Delegado,
sempre pronto a atazanar preso, foi pra cima dele:
-
Por que você está todo nervoso enquanto seu colega está aí, todo tranquilo?
Falcón,
provocado, refez-se, e seguiu adiante com a mesma história.
Acabou
sendo um demorado lero-lero, conversa mole pra boi dormir, delegado querendo
justificar a presença deles ali.
Deu
nada.
Não
havia provas de crime, e delegado não era do ramo - do aparelho repressivo da
ditadura.
Mas
de qualquer forma fez a advertência dele:
-
Prestenção: se forem encontrados fazendo subversão por aí, a coisa vai ficar
feia pro lado de vocês.
Lero-lero.
E
foram soltos.
De
Beagá, esta lembrança.
Não
tão comovente como a do Recife.
Mas,
com um pouco mais de adrenalina...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
20
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
XXIX Congresso da UNE, 1967
Foi
uma breve passagem.
Três
anos breves.
Mas
valendo por uma vida.
Por
várias universidades.
Aprendizado
para nunca mais esquecer.
Passagens
pela Polop e pela UNE, as duas entrelaçadas.
Tive
tentação hoje de me jogar à frente.
Contar
história da prisão de Cardoso na OBAN, mas resisto.
Sei,
aguço curiosidade das pessoas, mas não posso enveredar por estradas vicinais.
Imponho-me
continuar na via principal.
Por
enquanto, UNE e Polop, entrelaçadas.
Atuava
na entidade de massa, mas sob a orientação da Organização.
Cardoso,
o autor da longa Carta Política do XXIX Congresso Nacional dos Estudantes,
realizado em julho de 1967, no Convento Beneditino de Vinhedo, em São Paulo.
Esse
congresso foi uma façanha do movimento estudantil.
Antes
de chegar à reunião do convento, com 400 delegados de 18 estados, houve muitos
encontros preparatórios, a reunir milhares de estudantes por todo o País.
Eu
dava os primeiros passos no movimento estudantil secundarista, no Jaçanã, e
tinha como parceiro Pedro de Oliveira, mais tarde diretor de arte da revista
"Veja", militante comigo em Ação Popular, depois do PCdoB, onde está
até hoje.
Uma
parte preparatória do XXIX Congresso, com uma centena de estudantes, foi
realizada na casa dele, à rua Dr. Zuquim, em Santana.
Como
fosse uma festa.
Maneiras
de driblar a repressão.
Não
era tarefa simples dar forma final à Carta Política.
De
alguma forma, sou eu a dizer, era uma espécie de treino jornalístico, servindo
de base para se tornar mais tarde um grande jornalista.
Tinha
de fazer mediações, compreender a diversidade de forças presentes no encontro,
perceber a força hegemônica, não desprezar as demais - exigia talento e muita
sabedoria política.
Demonstrou
capacidade para tanto...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de outubro de 2021
Jary Cardoso: a
complexidade das forças políticas do XXIX Congresso
Talvez
hoje à distância não seja fácil analisar a correlação de forças naquele XXIX
Congresso da UNE.
Decorreram
já mais de cinco décadas, quase cinco décadas e meia.
Então,
necessário dar uns dois dedos de prosa.
Até
pra compreender a proeza de Cardoso, ao elaborar a Carta Política daquele
encontro.
Já
se disse: 400 delegados.
Os
principais líderes da esquerda do movimento estudantil, presentes.
Ação
Popular, a força hegemônica.
Existia,
ainda, as Dissidências do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul.
Quando
falamos Dissidências, estamos nos referindo a forças egressas do velho
Partidão, a romperem com o "pacifismo" do velho partido.
Da
costela do PCB, saiu a maioria das organizações da esquerda armada, a se
configurarem entre o ano anterior e aquele 1967.
Afinal,
o PCB fora o grande partido da esquerda, desde 1922, crescendo muito sobretudo
após 1945, não obstante depois a volta à clandestinidade sob Dutra, minimizada
durante os anos 1950 e 1960, até a chegada do Golpe de 1964, quando então veio
a porra.
Natural,
com as dissidências, oferecesse oxigênio à esquerda armada, e mais ainda no
movimento estudantil, onde o PCB, por isso, perdia terreno aceleradamente.
O
XXIX Congresso foi vencido, então, por AP, Dissidências e pela Polop.
Talvez
fosse o caso de dizer os nomes dos diretores eleitos no encontro.
Presidente:
Luís Travassos.
José
Carlos da Mata Machado, de Minas Gerais,
assassinado pela ditadura em 1973, como dirigente de AP.
De
Pernambuco, José Carlos Moreira.
Luiz
Raul Machado, do Rio de Janeiro.
Esses
quatro, da tendência hegemônica, AP.
José
Roberto Arantes, de São Paulo.
Nilton
Santos, do Rio Grande do Sul
Jaques
Zajdsznajder, do Rio de Janeiro.
Os
três, das Dissidências.
Uma
parte disso, registrada no livro sobre a UNE, coleção História Presente, edição
de 1980.
E
por fim...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Jary Cardoso: Emiliano
desperta minhas lembranças. É um grande prazer recordar nomes como o de Luiz
Raul – era um amigão de verdade, tínhamos ótima sintonia, demonstrava gostar
muito de mim e vice-versa. Lamento ter perdido contato com ele completamente.
Outro que me marcou: Mata Machado – assim o chamávamos – era um gigante pra
mim, sentia profunda admiração por ele. Tinha carisma, era um cara pra gente
ficar amigo à primeira vista, incrível capacidade de expor ideias, jeito de
estadista. Nos meus tempos de militância, aponto pelo menos três que me
pareciam ter nascido pra ser presidente do país: Mata Machado, Altino Dantas e
Marco Aurélio Garcia.
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Emiliano José
22
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
Polop e o cerco do foquismo
Por
fim, na constituição da diretoria da UNE, os integrantes da Polop.
Pery
Falcón, da Bahia.
Marcos
Wilson Spyer Rezende, das Minas Gerais.
Jary
Cardoso, São Paulo.
A
Polop, contanto fosse a organização menos poderosa das três em termos de
representatividade de massas, era, de outro lado, a mais articulada
intelectualmente.
Era
a organização de menor número de centros acadêmicos presente no XXIX Congresso.
O
estofo intelectual, a capacidade de unir o pensamento acadêmico com a política,
a formulação ampla, capaz de juntar os aspectos nacionais e internacionais,
deram a ela a condição de ocupar esses três lugares na direção da UNE.
Creio
já ter dado algumas palavras sobre a Polop.
Penso,
no entanto: o que abunda não prejudica.
E
carece - afinal foi ali a vida de Cardoso naqueles três breves longos anos.
Nasce
fora da costela do Partidão, caso raro.
Pensa
a Revolução como socialista.
Vem
1964, e logo sofre o assédio do pensamento debraysta, do foquismo, assédio a
afetar maior parte da esquerda.
Enfrenta
dissidências, entusiasmadas com a luta armada.
Animada
pelas greves de Osasco e Contagem em 1968, superestimadas por ela, resolve
tirar a roupa de Polop e vestir a do Partido Operário Comunista (POC),
anunciado simbolicamente no dia Primeiro de Maio de 1968.
Grande
parte do POC, no entanto, anima-se também com a luta armada - a onda debraysta
não era brinquedo, não.
Lênin
havia se debatido com a doença infantil do esquerdismo - ela vai e volta.
O
núcleo tradicional da Polop resiste, e reorganiza-se sob o nome Organização de
Combate Marxista Leninista (Política Operária).
Encerra
existência quando do surgimento do PT, como várias outras organizações
revolucionárias nascidas durante a ditadura.
No
XXIX Congresso, as propostas da Polop foram defendidas em plenário por Pery
Falcón, com brilho.
Cardoso
relembra:
-
Meu papel foi semelhante ao de um repórter, anotando as melhores formulações
ouvidas em plenário e nas reuniões de cúpula de que participei.
A
experiência anterior como aluno ouvinte de Filosofia, redator do Informe
Nacional e de textos para o debate interno da Polop, foi essencial.
Deram-lhe
condições para sistematizar as conclusões de cada comissão e dos debates em
plenário.
Seguiu,
ao escrever a longa Carta Política do XXIX Congresso, a ordem tradicional dos
textos da Polop: análise da situação internacional, seguida de apreciação mais
longa do quadro nacional, e por fim definição do papel do movimento estudantil
naquele cenário, até chegar ao programa final de 11 pontos.
Essa
Carta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Zacarias: Memórias muito
importantes e necessárias.
Emiliano José: obrigado, meu
velho
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Emiliano José
23
de outubro de 2021
Jary Cardoso: um
programa democrático para o ensino
O
programa de 11 pontos, da lavra de Cardoso, foi levado à discussão nas bases
estudantis de todo o País.
Colaborou
decisivamente para as intensas mobilizações em vários estados, a desaguar
sobretudo em 1968, cujo momento culminante foi a Passeata dos 100 mil, no Rio
de Janeiro.
Denunciava
o imperialismo, a ditadura, propunha a
luta contra o acordo MEC-USAID, contra a reforma universitária, a privatização
das universidades, a entrega do ensino
ao controle dos capitais estrangeiros, contra as medidas de adequação da
Universidade aos interesses do imperialismo e a extinção da gratuidade do
ensino, e defendia o ensino gratuito em todos os níveis.
Exigia
aumento de verbas para a educação e a entrada na Universidade de todos os que
concluíssem o curso secundário.
Chamava
a população à luta antiimperialista, e contra as tentativas de esmagar o
movimento estudantil, além de insistir na luta contra a militarização do
ensino.
Havia
ali, naqueles 11 pontos, um chamado à luta e um tom quase profético.
A
rigor, o projeto MEC-USAID, grosso modo, tornou-se vitorioso, lamentavelmente.
Se
olharmos com atenção, os 11 pontos constituíam-se num programa profundamente democrático para a
educação brasileira, olhos abertos para o processo de privatização já em
andamento, a nos levar, nos dias de hoje, à presença hegemônica do capital
privado no ensino - a luta do povo brasileiro não foi capaz de evitar isso.
Chegamos
hoje ao dramático quadro de uma hegemonia avassaladora do ensino superior
privado, hoje abocanhando 85% das matrículas contra apenas 15% do ensino
público.
Sem
contar o até agora inexorável avanço da presença do capital estrangeiro, em
proporções assustadoras, a ameaçar a soberania do País.
Poderíamos
dizer: a UNE avisou!
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
documento histórico contra o imperialismo
Revisitar
o passado é sempre uma forma de entender o presente, e descortinar o futuro.
A
Carta Política do XXIX Congresso da UNE é um documento histórico essencial.
Já
se falou da conclusão, sintetizada nos 11 pontos.
Olhar
para a análise da situação internacional nos remete ao imperialismo, de um
jeito ou de outro tão presente nos dias atuais.
Império
não termina de um dia para o outro.
Cardoso
caprichou, numa análise sintética.
O
traço característico do panorama do mundo naquela quadra histórica era a luta
dos povos oprimidos da Ásia, África e América Latina pela libertação de seus
países.
"E
a reação violenta e sistemática oposta pelo imperialismo norte-americano."
Tão
recente, não?
Império
contra-ataca.
Os
EUA, por quase todo o século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial,
jamais deixou de massacrar povos, impiedosamente, e muita vezes enfrentar
improváveis e retumbantes derrotas, vide Vietnã, e mais recentemente, a
vergonha do Afeganistão - vergonha lá deles.
Império
em decadência, mas ainda império.
Ainda
violento.
Ainda
disposto a dominar o mundo.
Dando
de cara agora com um rival, poderoso, a China.
Esses
comunistas...
Cardoso
escrevia, descrevia: os golpes de estado em Ghana, Indonésia, Brasil, invasão
da República Dominicana, a guerra contra o heróico povo vietnamita, "tentativas extremas de manter, pela
força, um sistema econômico que promove o lucro
de alguns às custas da exploração de muitos".
A
Carta defendia: ao movimento estudantil cabia organizar-se em entidades
nacionais e internacionais, engajar-se nas fileiras das lutas dos povos
oprimidos contra a penetração e dominação imperialista.
"Fazemos
nossa a luta do heróico povo do Vietnã, da Bolívia, e de todos os que hoje
enfrentam - inclusive com armas - a penetração imperialista."
Quando
inicia a análise da situação nacional, Cardoso arrisca interpretação polopiana:
o imperialismo não é uma força externa a atuar na realidade brasileira...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
crítica das armas, crítica teórica
Disse:
Cardoso arriscava uma interpretação polopiana ao falar sobre o imperialismo na
Carta Política do XXIX Congresso da UNE.
Arriscou
mesmo.
Duas
ou três palavras sobre isso.
As
outras organizações não estavam tão seguras da afirmação feita constar por ele
na Carta: o imperialismo não se constituía numa força externa a atuar na
realidade brasileira.
A
esquerda ainda se debatia com esse debate, fortemente marcada pelo viés teórico
do PCB.
O
imperialismo, nele, era visto como agente externo.
E
as demais forças de esquerda ainda não haviam resolvido inteiramente essa
questão.
Muitas
ainda tinham o imperialismo como força externa, e não como intimamente
vinculado às classes dominantes locais, vinculação ainda mais acentuada com o
Golpe de 1964, como diz Cardoso.
As
demais forças, à exceção da Polop, ainda depositavam alguma esperança na
chamada burguesia nacional.
E
daí decorria a visão da Revolução em duas etapas.
Primeira,
democrático-burguesa, na qual a burguesia local teria protagonismo.
Segunda,
socialista, aí sob completa direção do proletariado.
A
Polop, desde o nascedouro, em 1961, defendia a revolução socialista, sem passar
pela etapa democrático-burguesa, lastreada, no plano histórico e teórico, mais
num Caio Prado Júnior do que num Nelson Werneck Sodré.
Cardoso
resolveu arriscar e deu certo.
Ou
não se percebeu, ou então as demais forças decidiram relevar.
Mais
importante eram as conclusões - provavelmente raciocinaram assim.
A
Polop, tendo o relator, podemos dar a Cardoso essa condição, conseguiu
influenciar bastante o XXIX Congresso.
Curioso
registrar: mesmo algumas organizações da esquerda armada não conseguiram
superar a proposta da revolução em duas etapas.
A
radicalização chegava à forma, não ao conteúdo, em matéria de estratégia
revolucionária.
A
crítica das armas não fora alcançada pela crítica teórica - a Polop, ao menos
seu núcleo tradicional, poderia dizer isso até se dissolver, quando surge o
PT...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
democracia e reformismo
Na
esteira da análise do imperialismo, Cardoso seguia.
A
etapa do imperialismo, naquele momento histórico, exigia a readequação da
estrutura econômica, política, militar e cultural dos países da periferia do
mundo aos interesses do capital internacional.
É
esse o ponto de partida para entender o Golpe de 1964.
A
Carta do XXIX Congresso explicava: a crise econômica, marcada pela inflação,
ameaçava os lucros dos que exploravam o trabalho do povo.
Seguindo
o pensamento de então, da esquerda, chamava a situação anterior ao golpe de
"pretensa democracia".
"A
pretensa democracia de antes de 1964 foi substituída por uma ditadura
militar".
A
não resistência ao golpe é jogada nas costas da ilusão reformista das
lideranças.
Aqui,
embora não explicitamente, deve se dirigir especialmente ao PCB.
Aquelas
lideranças defendiam o caminho de reformas parciais na estrutura econômica
pelas quais podia ser conseguida uma parcela do poder - essa a leitura da Carta
do XXIX Congresso.
Claro:
era mais complexa a formulação do PCB, advinda especialmente da Declaração de
Março de 1958, quando o PCB faz uma virada democrática, documento elaborado
pelos melhores quadros do partido.
Na
visão de grande parte da esquerda, especialmente no pós-1964, era um documento
"revisionista", ápice do reformismo - não vamos, no entanto, nos
estender sobre isso.
Na
visão da Carta da UNE, lavra do relator Cardoso, aquelas lideranças reformistas
"não compreendiam a necessidade de organizar independentemente o
povo".
Sem
nível de organização e consciência necessária, "esse povo seria colocado a
reboque das classes dominantes".
O
erro das lideranças de então se agravava, na visão do texto da Carta da UNE, ao
propor uma frente com a burguesia brasileira.
Era
só um pensamento desejoso, pois a burguesia, chamada nacional, não queria nada
com a esquerda, mas sim com o capital internacional e com os golpistas.
E
o golpe se deu, aconteceu, e a ditadura durou 21 anos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
Freud explica.
Foram
três anos intensos.
Três
longos breves anos.
Cardoso
sabe disso.
São
parte de sua vida.
Inesquecíveis.
Para
o bem e para o mal.
A
UNE, depois dele, seguirá.
Aos
trancos e barrancos.
A
ditadura tentará por todos os meios calar aquela voz.
Matou,
não teve dúvida, matou alguns dos dirigentes da entidade depois da saída de
Cardoso da linha direta de atuação.
Passaram
por ela Honestino Guimarães, Humberto Câmara, José Carlos Novaes da Mata
Machado, Helenira Rezende - todos ex-diretores da entidade, todos assassinados
impiedosamente pela ditadura, em variadas circunstâncias, na esteira sangrenta
do pós-AI-5, sob o tacão do ditador Garrastazu Médici.
Os
três primeiros, de Ação Popular.
Dois
deles, Câmara e Mata Machado, tragados numa operação a envolver um cachorro,
ex-militante passado pro lado da repressão, entre outubro de 1973 e fevereiro
de 1974 - Nilmário Miranda anuncia livro próximo sobre os sete dirigentes de AP
mortos nessa ofensiva violenta.
Helenira
foi morta no Araguaia, desaparecida, entre tantos em meio àquele massacre.
Vai
demorar algum tempo até a entidade voltar a mostrar abertamente a cara.
Somente
no ano de 1979, em Salvador, Congresso de Reconstrução, baiano Ruy Cesar eleito
presidente.
História
a ser contada por mim, talvez, havendo brecha, em outro momento.
Com
o AI-5, logo depois dele, Cardoso saltou da barca da militância direta.
Já
falamos do transe - não foi uma fala, foi um transe, uma dança enlouquecida, a
levá-lo a outros territórios em seguida - à fruição da cultura, ao jornalismo.
Nada
de uma decisão consciente.
O
inconsciente às vezes fala mais alto.
Falou
quando o AI-5 desabou sobre o País.
E
sobre cada pessoa, sobretudo àquelas com alguma consciência.
O
grito veio sob a forma de um transe.
O
inconsciente dizia, seu corpo falava dançando belamente descontrolado: acabou a
brincadeira, não há mais espaço para amadorismos pueris.
A
prisão de Gil e Caetano, estopim.
Não,
nada vinha do pensamento articulado.
Revolta
das vísceras - lembro de um livro de Mariluce Moura com esse título, final dos
anos 70, início dos 80, forte romance-testemunho, um grito de dor.
O
transe vinha do interior, das vísceras, do inconsciente, cuja força nem sempre
a razão controla - era o mal-estar de que fala Freud.
Mal-estar
na civilização, mal-estar na cultura, ou
na anticivilização, na anticultura, encarnada na ditadura...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
longo transe, e Sartre, e Marx.
Após
aquela dança, aquele frenesi, transe, Cardoso saiu da reunião livre, leve e
solto.
Como
se resgatasse a sensação de liberdade cultivada desde criança, a sensação
lentamente perdida no curso da militância.
Sentia
novamente aquela gostosa sensação de liberdade.
Dali,
da reunião, foi pro apartamento de Christine, rua dr. Cesário Mota Júnior.
Vila
Buarque, em frente à Santa Casa.
Lá,
o transe voltou: dançou novamente, freneticamente.
Ao
som dos discos de jazz dela.
O
transe durou três dias.
Dançava,
dançava, dançava.
Intervalos
apenas para jogar conversa fora, dar risadas, gargalhar, fazer refeições.
E
dormir sem hora pra acordar.
Acolhido
pela Chris, sem ser cobrado de nada.
Liberdade,
liberdade.
O
País estava mergulhado numa escuridão de assombrar.
Tinha
noção.
Mas,
sentia-se livre.
Mesmo
quando saiu do transe, a sensação era de liberdade.
Começou
a tomar consciência, em meio à liberdade: tinha uma vida a ser usufruída.
Quatro
meses depois daquela ruptura drástica, completaria 21 anos.
Ainda
em janeiro de 1969, caiu em si.
A
realidade o visitava.
O
mundo seguia em frente, precisava trabalhar, arrumar dinheiro pra pagar os
boletos, como diz a moçada hoje.
E
procurou Marcos Faerman - logo, logo contaremos o início da trajetória
jornalística dele.
Ele
volta a refletir: a ruptura com a militância comunista, não foi, como diria
Marx, um raio caído num dia de céu azul, de repente.
Quando
amigos íntimos o provocavam a explicar a ruptura, saía com uma tirada
espirituosa - definida por ele como uma boutade sem muita consistência:
-
Sartre e a Tropicália salvaram minha vida.
Meia
verdade ou mentira inteira.
O
mundo era mais complicado.
Tá
legal - Sartre havia mexido com sua cabeça...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Artur Carmel: "Sartre
fora !", pensou Jari....
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Emiliano José
29
de outubro de 2021
Jary Cardoso: à
beira do abismo, e livre.
Sartre
é um mundo.
Um
dos maiores do século XX.
Pensador
capaz de mexer com a cabeça de qualquer um.
Mexeu
com a de Cardoso.
Desde
os primeiros momentos da militância, conviveu com Sartre.
Quis
casar Marx e Sartre - arrisco.
Quis
um Marx humanista, talvez - e para mim, Marx foi radicalmente humanista, no
sentido de pretender a libertação do gênero humano das garras desumanas do
capitalismo.
Chris
o apresentara a Sartre já nos primeiros dias da atividade revolucionária.
Foi
sendo tomado pela visão sartreana, fosse por sua vulgata, fosse por instigantes
peças de teatro, mas tomado, invadido.
Na
mente, "o existencialismo é um humanismo" - ele refletindo sobre o
estar no mundo, sobre a individualidade, ele e seu mundo.
"O
que vem antes é a existência, não a essência" - reflexão angustiante para
quem vivia a defrontar-se com a noção do homem submetido, determinado pelas
condições materiais do mundo, aquelas verdades advindas do marxismo, tão reais.
O
existencialismo era sedutor, confortável.
Cardoso,
sem aprofundar Sartre como deveria, enfronhado sempre com os estudos
marxistas-polopianos, atraído, seduzido pelo existencialismo, fixava uma
posição no meio do turbilhão revolucionário: a cada momento, diante de cada
situação, deveria assumir a existência.
E
assim seguiu, e assim rompeu com o mundo da militância direta.
Nenhuma
essência mais como parâmetro.
Estranha
sensação, a daquele momento.
Sem
chão.
Sem
onde pisar.
À
beira do abismo.
Estranho:
envolvido por todos os lados pelo
universo misterioso, anos-luz além da atmosfera terrestre e outros infinitos
anos-luz pra dentro de moléculas e átomos - transe, embalado pelo transe.
Superamedrontado
- não, nada era simples.
E
ainda assim, sentindo-se absolutamente livre.
Situação
nova, muito diferente do vivido até ali no dia a dia da militância...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Vânia Cairo: Maravilhaaa
!!!
Jary Cardoso: O escritor
Emiliano vai se saindo com maestria. Bravo, amigo! Especialmente num aspecto,
Emiliano José está me ajudando muito: abandonei a militância comunista,
"desbundei" (atitude que significava covardia pra uns e coragem pra
outros), mas jamais cuspi no prato polopiano que alimentou minha mente e me
educou pra vida. Vejo com satisfação que Emiliano deixa isso claro.
Lucia Correia Lima: exato.
Daniel de Andrade: VIVA MARX,
ENGELS, LENIN...viva o comunismo, abaixo o desbunde.
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Emiliano José
30
de outubro de 2021
Jary Cardoso:
Panis et Circensis
Livre.
Outro
mundo.
Entender
o porquê daquela virada talvez leve uma vida.
Pistas,
já foram dadas.
A
vida, dado aquele salto, dava-se em território diverso do experimentado no dia
a dia da militância.
Naquele
tempo, e quando pensava "naquele tempo" já sentia ter passado muito
tempo, tudo parecia explicado,
Previamente
explicado pelo devir histórico.
Bastava
apurar a capacidade de pensar dialeticamente, com base no materialismo
histórico, e os acontecimentos eram enquadrados, compreendidos.
De
alguma forma, o mundo era mais simples.
Complexo
e simples simultaneamente.
Previsível.
Confortável
a vida quando protegida pela concepção marxista-leninista do mundo, e
confortável também porque compartilhada pelas pessoas do entorno, companheiras
e companheiros.
Volta
e meia, surgia Sartre, a incomodá-lo, desequilibrá-lo por instantes, a lembrar
do indivíduo, da existência singular.
Logo,
no entanto, o incômodo se dissipava: conversas, reuniões, os debates, a
história a caminhar inexoravelmente em direção à Revolução, as leituras
indicadas pra boa formação dos quadros políticos, recuperavam o chão, a
militância prosseguia, Sartre recolhido a algum canto da alma, o coração batia
forte, lágrimas corriam soltas a cada vitória da Revolução, vitórias sempre
aparecendo de forma muito mais grandiosas do que verdadeiramente eram - afinal,
no caso brasileiro, vivia-se sob uma ditadura, a durar ainda durante muito
tempo, como se sabe.
As
fortalezas daquele mundo seguro foram sendo minadas, no espírito de Cardoso,
por Sartre, já lembrado, e pelo Tropicalismo.
Na
explicação dele, passado tanto tempo, abriram a cabeça, arejaram o espírito.
Foram
abrindo, nada será como antes.
E
chegou o momento do rompimento.
No
processo, veio Gil, com seu "Louvação", em 1967.
Ah,
quem suporta tanta beleza?
"Procissão",
"Ensaio Geral", "Viramundo", esta com Capinan, todas as
demais canções da preciosidade daquele LP.
"Louvação"
viria antes da explosão do Tropicalismo, com "Panis et Circensis", em
1968.
Caetano
já o havia impressionado, ele e Gal: "Domingo", lançado no início de
1967.
Não
foi, insisto, um raio caído num dia de céu azul, como os leitores estão
percebendo.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Vânia Cairo: Profundo.. .
Joaquim Lisboa Neto: Louvando quem
bem merece
Deixando
o ruim de lado
Torquato
Neto se não me trai a memória musical
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Emiliano José
31
de outubro de 2021
Jary Cardoso: caminhando contra o
vento...
A
Revolução seguia.
A
grande Revolução, sonhada pelos revolucionários.
E
o tomava.
Havia
a outra, insidiosa, a não pedir licença: a revolução musical, cultural.
Em
1967, quando Cardoso estava tão entusiasmado com a luta revolucionária, ocorre
o lançamento de "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band", maio de 1967.
Foi
um marco daquela geração.
Da
contracultura contemporânea.
Um
disco revolucionário.
Se
prêmios valem, conquistou quatro Grammy.
E
mexeu muito com a cabeça de Cardoso, não obstante ele prosseguisse impávido em
direção ao horizonte revolucionário, certo do devir histórico.
Andava
pelo Brasil, diretor da UNE e dirigente da Polop, embalado pela música.
Acompanhado
também por Vandré, mais afinado então com a perspectiva do combate à ditadura.
Gostava
da trilha sonora de "Arena conta Zumbi", de Edu Lobo e Ruy Guerra.
Ah,
não deixava de lado a música barroca de Vivaldi.
Nem
o jazz de Wes Montgomery ou o do The Modern Jazz Quartet.
Houve
o impacto da entrevista de Caetano ao poeta Augusto de Campos, dada à Revista
Civilização Brasileira, defendendo a retomada da linha evolutiva da música
brasileira.
O
livro do próprio Augusto de Campos: "Balanço da Bossa".
Campos
tornou-se um mestre para Cardoso.
Marxista
radical, o poeta concretista queria ir às raízes do marxismo, muito diferente,
na visão de Cardoso hoje, do "fundamentalismo marxista-leninista que eu
seguia e pregava na Polop".
Campos
apresentou-lhe a arte revolucionária.
Recorda-se
do lema de Maiakóvski: "não existe arte revolucionária sem forma
revolucionária".
Quando
Caetano surgiu cantando "Caminhando contra o vento sem lenço sem
documento" já estava conquistado por essa nova forma de arte, de cultura,
pensamento, muito embora seguisse na senda revolucionária, dirigido e dirigente
da Polop...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Sgt Pepper's,
o disco lisérgico; A day in the life interpretada por Wes Montgomery e Jeff
Beck, na minha modesta opinião, foi além da versão original.
Alberto Freitas: A própria Sgt
Peppers, com a Jimi Hendrix Experience, e With a little help from my friends,
com Joe Cocker, são melhores que as versões originais.
Artur Carmel: Fundamental,
tb, para o aperfeiçoamento do revolucionário Jari foi sua passagem pelo lendário
JBa, no Bauxo-Dutra....
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Emiliano José
1º
de novembro de 2021
Jary Cardoso: a
discussão do desbunde.
Vou
caminhando, e conhecendo Cardoso.
Muitos
de nós.
Poucos
sabiam da história de militância dele.
Tampouco
do desbunde.
E
repare: ele tem é tempo de Bahia, de jornalismo - vocês ainda vão conhecer,
tenham paciência, ando devagar porque já tive pressa.
O
desbunde era quase uma instituição à época porque muito frequente no tempo em
que o filho chorava e a mãe não via.
O
desbundado não era bem visto pelos persistentes.
Assim
conhecido o militante revolucionário a saltar do barco.
Muita
gente não quis encarar, depois de experimentar a dureza da travessia, e muitos
dos combatentes não a completaram: ficaram a meio caminho, mortos pela
ditadura.
Lembro
de caso comigo: fora recrutado por Adura, nome inteiro dele pode ser encontrado
n'O cão morde a noite', lembro agora não, e ele 1969 resolve se picar pro
Canadá, e eu fiquei puto - um desbundado.
Me
chamara pra luta e agora fugia.
Hoje,
encaro de modo diverso.
O
tempo é senhor da razão.
Natural
a avaliação de tantos, a compreender: o sinal está fechado pra nós.
Melhor
jogar corpo ao chão, esperar tempo bom, escapar da morte.
A
maioria dos desbundados não se tornou reacionária.
Só
não queria, não tinha condições subjetivas de enfrentar a luta direta num tempo
em que o inimigo havia decidido usar o martelo-pilão para esmagar a formiga - a
frase foi usada pelo general Adyr Fiuza de Castro, a formiga éramos nós.
Alguns
dos desbundados podem ter sepultado os ídolos revolucionários de outrora, e
talvez também as antigas lições.
Outros,
guardaram no espírito muitos dos valores da velha militância, a acompanhá-los
vida afora, naturalmente transformados, o rio nunca é mais o mesmo.
Cardoso
é dos últimos.
Não
jogou fora o bebê com a água do banho.
Guarda
respeito com seus velhos companheiros e companheiras.
Não
esquece Eder Sader.
Não
deixa Rosa Luxemburgo fora de seu horizonte.
Nem
Trotsky.
Nem
Marx.
Tantos
outros, cujas antigas lições ainda calam fundo no espírito.
Naquele
momento, no entanto, saltou.
E
sentiu-se livre.
Resgatou
o passado roqueiro...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isadora Browne Ribeiro: Compreender
que ali era o limite e que insistir era se expor ao martírio foi tão sábio
quanto doloroso. Buscar outra militância, uma expiação também.
Jose Jesus Barreto: até porque há
várias formas e linguagens em uma grande revolução. há quem escolha o caminho
da arte, do belo... também transformador.
Ruy Espinheira Filho: Faz pouco
escrevi mensagem aqui, Mariluce, mas não a estou encontrando. Há quanto tempo
não nos vemos... Parabéns, pelo aniversário, desejo-lhe todas as felicidades e
vida longa. Fique com o abraço maior do Ruy Espinheira Filho.
Adelia Andrade: Felicidades
Murilo Ribeiro: Parabéns .
Felicidades, tudo de mais maravilhoso em sua vida. Tenha um ótimo e abençoado
ano. Saúde. Abraço.
A
BANDINHA HOJE TOCA PARA VOCÊ!
Luiz Cláudio Santana Brito: Feliz
Aniversário!
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Emiliano José
2
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
como 2 e 2 são 5.
O
passado roqueiro gritava naquele momento, naquelas horas do transe.
Como
2 e 2 são 5.
Como
libertar-se da vida certinha, e muito perigosa, do militante.
Tudo
junto e misturado: Gal berrava - é preciso estar atento e forte, não temer a
morte.
E
aí a militância ganhava força, tornava-se colorida, a mente alargava-se, tal e
qual o efeito do "Sargent Pepper" dos Beatles.
Chegar
àquele momento, o do transe, para ele libertação, não foi fácil, não.
Nem
um pouco.
Certamente,
e sou eu a dizer, Cardoso, além de tudo, sentia o bafo da presença dos
torturadores, o pesadelo cercando-o numa São Paulo povoada de tiras por todos
os lados.
Ambiente
pesado, o AI-5 com toda sua promessa de terror.
Sartre
e a Tropicália apresentando um contraponto radical à visão quase religiosa de
mundo sugerida pelos manuais do "marxismo-leninismo" ajudaram-no
muito no rompimento.
Penso
estar nítido que "marxismo-leninismo" não é sinônimo de marxismo, mas
de uma visão linear e autoritária da história, onde Lênin, na visão de Cardoso,
não obstante suas qualidades de intrépido líder revolucionário, tem grande
responsabilidade.
Marxismo,
outra coisa.
Sartre
e a Tropicália, no entanto, não foram os responsáveis para salvar a vida de
Cardoso.
Temos
de voltar um pouco.
Início
de 1968.
A
UNE havia decidido: Cardoso iria representar o movimento estudantil brasileiro
num congresso da União Internacional de Estudantes, sob hegemonia soviética, a
ser realizado em Cuba.
Receberia
documentos falsos, tomaria um avião pra Bulgária, e de lá seguiria para Havana.
Cuba
vivia o ápice do entusiasmo guerrilheiro, a idéia de fomentar guerrilhas na
América Latina.
Revelou
o projeto à mãe...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
3
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
salvo pelo gongo
Mãe,
cês sabem: filho nenhum arrenega.
Tá
lá no coração respeitoso.
Guardadinha.
Sempre.
Pode
ser o pior sujeito.
Mãe
é mãe.
Cardoso,
então, amor sem fim.
Luiza
Cardoso ouvia com atenção o filho.
Anunciava
a viagem pelo mundo.
Ia
desembarcar em Cuba.
Ela
tinha noção do comunismo.
Sabia
das grandezas e dos riscos.
Ouvia.
A
notícia a enchia de orgulho.
Ver
o filho, ainda tão jovem, cheio de determinação, de horizontes, querendo mudar
o mundo, parecença com o pai.
Quem
sai aos seus não degenera.
Comunista
é coisa do bem, soubera ainda jovem, mesmo não entendesse tudo.
De
orgulho e de medo, sentimentos contraditórios na alma.
Medo
de perder o fruto do grande amor da vida dela.
Antônio
Campos, comunista, e dos tradicionais, linha prestista, fora o grande amor, não
importa tivesse um dia partido, dado, era dado a um rabo de saia.
Medo
de perder o filho depois de partir naquele rabo de foguete - é, parecia um rabo
de foguete.
O
filho ia partir - pra muito longe.
Trapaças
do destino, e Cardoso vê aparecer um inchaço na cintura, lado direito.
Médico
sentencia: hepatite.
Mãe
correu pra lá e pra cá, mãe é pra essas coisas.
Internou
o filho como dependente no Hospital do Servidor - servidora estadual, não foi
difícil.
Colocado
num quarto.
Determinação
médica de repouso absoluto por 30 dias.
A
hepatite e a mãe o livraram da viagem a Cuba.
Onde,
talvez, se entusiasmasse ainda mais com a Revolução.
Com
a guerra de guerrilhas, difícil, porque sua formação consistente não
permitiria.
As
portas para o transe seguiam abertas.
Salvo
pelo gongo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(A mãe Luiza Cardoso)
Emiliano José
4
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
mãe abriu as asas, protegeu a cria
Hepatite,
e foi colocado num quarto onde ouvia radinho de pilha dia todo.
Ao
menos.
Parecia
prisão.
Sabia
não fosse, porém.
Lembra
nitidamente e com emoção do grande sucesso "San Francisco", hino dos
hippies da Califórnia.
Ouvia-o
na voz de Scott McKenzie.
Verdade,
verdade, ainda sabia pouco sobre os hippies.
Um
ano depois, já bem mais íntimo deles, empolgariam o desbunde dele.
Um
companheiro da Polop o substituiu na viagem a Cuba.
Só
mais tarde vai saber das artes e manhas de mãe.
Mãe
está sempre pronta a proteger a cria.
Tenha
qualquer idade, e ela a coloca debaixo da asa caso acreditem na proximidade de
algum risco, perigo.
Mãe
deu um jeito de se aproximar de um médico dirigente do hospital.
Evocou
sentimentos maternos, protetores, e pediu-lhe pequeno favor, coisinha de nada:
falseasse um pouco o diagnóstico.
O
médico relutou, sorriu, olhou para a mãe de coração na mão.
Afinal
ele ia para terra comunista, e isso era grande risco.
Ela
dissera: com essa viagem, meu filho corre risco de vida.
Voltar
ao Brasil vindo de lá, se os homens descobrem, morte certa.
-
O senhor sabe, não sabe?
O
médico sabia, nem fosse de simples ouvir falar.
Relutou,
sorriu, olhou para a mãe de coração na mão.
Quem
resiste?
Não
era um deslize ético tão grave.
Aliás,
nem era.
O
rapaz, pensou o médico, é verdade: havia contraído apenas uma hepatite leve.
Custava
diagnosticá-lo com uma variante grave de infecção do fígado?
Cês
sabem, né?
Falou
em variante, paciente logo se assusta.
Médico
pensou, pensou, e resolveu atender a mãe.
Não
relutou mais.
Os
dilemas morais evaporaram.
Deu
o diagnóstico a prendê-lo no hospital por 30 dias, e assim impedir o diabo da
viagem.
E
pôde testemunhar a mãe feliz, sorridente, a cria ali ao lado, protegida.
Longe
de Cuba, da União Soviética.
Seria
bom até.
Ficaria
orgulhosa, se fosse.
Mas
não naquela situação.
Tudo
isso Cardoso só tomou ciência mais tarde.
A
mãe contou a arte, um pouco temerosa.
Que
filho vai brigar diante de uma atitude tão protetora como aquela?
Teve
a companhia de Scott Mckenzie, cantou baixinho "San Francisco",
seguindo a estrada do grande amor pelos Beatles...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de novembro de 2021
Jary Cardoso: tsunami a caminho
Era pra ser nosso homem em Havana.
Não foi.
Artimanhas de mãe frustraram a missão.
A partir daí, a Polop resolve puxá-lo para o trabalho interno.
Arrisco dizer: provavelmente a Organização percebeu nele fortes atributos de Capa Preta.
Menos de liderança de massa.
Cumpria bem suas tarefas na UNE.
No entanto, e isso já foi contado, não era de falar, de dirigir-se às massas, uma timidez dos diabos para falar para multidões, para plateias de qualquer tamanho.
Em pequenas reuniões, tudo bem - soltava o verbo.
Mas, nas demais, calado.
Era quadro já experimentado naquele início de 1968, era redator de tantos documentos da Organização, intervinha bem nos debates internos.
Então, Polop o substitui na direção da UNE, e o traz para as tarefas internas, o que, de alguma forma, era uma ascensão - aqui sou eu, interpretando.
Passava, não fosse ainda, a ser um quadro político reconhecido, com densidade teórica para executar funções dirigentes - Capa Preta.
O ano de 1968 transcorreu assim, cuidando da Polop.
Trabalho interno, modo de dizer.
Não ficava somente entre quatro paredes.
Mantinha-se, sob orientação da Polop, articulando a relação com as demais organizações revolucionárias.
Acompanhando, como quadro dirigente, as movimentações, inclusive estudantis.
Recorda-se de ter ido à rua Maria Antônia, onde ficava a Filosofia da USP, centro nervoso do movimento estudantil, um pouco antes da batalha campal de 3 de outubro de 1968.
Envolveu o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), aquartelado no Mackenzie, e os estudantes da USP, à frente dos quais estavam Luís Travassos e Zé Dirceu.
Resultou na morte de um estudante, José Guimarães, e ferimentos graves em pelo menos duas estudantes - Mirtes Semeraro Alcântara Nogueira, a mais gravemente atingida pelo ácido jogado pelo CCC.
Fora tomar o pulso da luta estudantil, avaliar os próximos passos, como a Polop devia se movimentar, tentar pensar a conjuntura - complexa, difícil.
Viria Congresso da UNE, prisão de todo mundo, clima esquentando, e logo depois o AI-5, e a maior parte da esquerda não percebia o tsunami a caminho...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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6
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
Caetano - uma iluminação, estrela cintilante
Há
iluminações na vida.
Estrelas
cintilantes.
A
existência segue, e elas sempre ali: brilhantes.
Caetano
é para Cardoso essa estrela cintilante.
Primeiro
contato, o disco Caetano e Gal.
A
primeira descoberta, dessas pra valer, no entanto, foi "Alegria,
Alegria".
Mexeu
com coração e mente.
Identificou-se
com o clima da canção, não com a letra - afinal, ele caminhava pelas ruas do
Rio de Janeiro com lenço e com documento - não obstante falso, o documento.
A
voz de Caetano, aquela maneira singularíssima de cantar - tão singular: a
poesia dele ia ao âmago do ser de Cardoso.
Como
a voz de um amigo-companheiro-amado.
Descoberta.
Arrebatamento.
Conquista
para todo o sempre.
Tudo
vindo dele, desde "Alegria, Alegria", era olhado, sentido com muita
atenção, como filosofia, todas as músicas, bandeiras de luta, eram recados
existenciais profundos, a norteá-lo sempre, sempre, uma alegria alegria.
Caetano
foi um raro para sempre.
As
mensagens dele, a poesia doce e forte, salvaram-lhe a vida.
Ao
menos é como Cardoso interpreta o momento do desbunde.
Foi
a imagem dos dois presos, Caetano e Gil, o gatilho para o desbunde.
Explicação
para um transe, demora.
Só
veio uns três meses depois.
Estava
em Porto Alegre, já trabalhando com carteira profissional assinada, voltando ao
mundo normal, se é possível falar em normalidade sob uma ditadura, e isso no
trágico ano de 1969, pós-AI-5.
Jornalista,
já.
Chegou
à condição pelas mãos de Marcos Faerman - da trajetória jornalística, falaremos
com mais vagar, tenham paciência.
Numa
mesinha de bar, com o jornalista Luiz Pilla Vares, jornalista e tradicional
militante de esquerda.
Queria
saber o porquê.
Por
que o desbunde?
-
Quando Pilla perguntou sobre a minha ruptura, me vi diante do mesmo branco
mental provocado por você, Emiliano.
Pilla
não se importou com a ausência de uma explicação racional de Cardoso.
Adiantou-se:...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
explicação para o desbunde
Aí,
o Pilla disse:
-
A causa da sua atitude é a mesma que tanto critiquei na Polop e que me levou a
sair da militância e me tornar apenas um simpatizante. Eles [os dirigentes] não
respeitam a individualidade dos militantes, exigem e cobram que sejam
tarefeiros e disciplinados, sem que possam cometer o mínimo ´desvio
pequeno-burguês´.
A
explicação vinha como um bálsamo.
Naquela
mesa de bar, Cardoso respirou profundamente.
O
desbunde começava a ganhar uma resposta.
E
vinda de Pilla, não era pouca coisa.
Pediu
mais uma.
Valia.
Comemoração.
Cês
devem estar perguntando: quem era Pilla?
Nome
de batismo: Luiz Pilla Vares.
Militância,
começou no PCB, início dos anos 60.
Rapidamente,
no entanto, seduzido por Rosa Luxemburgo e Trotsky, chegou à Polop.
Um
dos fundadores do Partido Operário Comunista (POC), juntamente com Erich Sachs,
Emir e Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii e Raul Pont, entre
outros.
Surgido
o PT, ingressa e se torna presidente do partido em Porto Alegre.
Ligado
à cultura, torna-se secretário de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos
prefeitos Olívio Dutra e Tarso Genro, e secretário da Cultura no governo Olívio
Dutra.
Um
militante - ele próprio assim se definia.
Um
intelectual orgânico.
Nasceu
em 5 de março de 1940, mesmo mês e dia do nascimento de Rosa Luxemburgo - ano
dela, 1871.
Com
a polonesa, se encontrará, através de sua extensa obra revolucionária.
Pra
quem cultiva coincidências, outra: Villa morre no dia 9 de outubro de 2008,
mesmo dia do assassinato de Che Guevara, em 1967.
Foi
este militante a encontrar a explicação para o desbunde...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
desbundados de todo o mundo, uni-vos!
Repare:
o desbunde não teve ensaio, nenhuma preparação prévia.
Aconteceu
de repente.
Numa
performance dançarina - já contamos.
Analise
quem quiser: a sensação de autêntica
liberdade pessoal recuperada naquelas horas mágicas continuou acompanhando
Cardoso por bom tempo.
Se
desbundado era considerado pelos revolucionários como xingamento, sinônimo de
covarde, ele tratou de logo se juntar a muitos outros desbundados, tanto ou
mais assumidos.
O
adjetivo migrou para sentido contrário.
Virou
elogio.
Ao
menos para aquela tribo e o entorno.
Numa
ousadia iconoclasta, podiam lançar uma palavra de ordem, a parafrasear
tradicional dito comunista:
Desbundados
de todo o mundo, uni-vos!
Sentiu-se
integrado a uma multidão jovem, aflorada desde a metade final dos anos 60.
Juventude
revolucionária.
Desvinculada
de partidos políticos e religiões tradicionais.
Volta
no tempo, e se vê dirigente repressor policiando comportamento de militantes,
como no caso de Marcos Faerman e seu cachimbo.
O
cachimbo caía, já se contou, ele cochilava por conta de suas extenuantes
jornadas como jornalista do "Jornal da Tarde".
Brilhante
jornalista.
Cardoso,
então um stalinista, ao menos na prática, não podia admitir tivesse Marcão o
privilégio de sobrepor a criatividade intelectual aos deveres da Revolução.
Em
reflexão atual, Cardoso identifica, no militante stalinista de então, uma
inveja enrustida face ao bem sucedido, brilhante Marcão, bem superior ao
parafuso graduado de uma engrenagem rígida - ele próprio.
Marcão,
amigo solidário, fraterno, a levá-lo para o mundo do jornalismo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Num cantinho,
num barzinho, lendo deliciosos relatos do compa Emiliano
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Emiliano José
9
de novembro de 1021
Jary Cardoso:
jornalista começa a surgir
Não
era pra menos.
Ter
algum ciúme do Marcão, natural.
Sujeito
não era pouca coisa, não.
Naqueles
tempos, militando na Polop, já era grande jornalista.
Talvez
já tenha falado nele, mas o que abunda não prejudica.
Grandes
jornalistas há e havia muitos.
Ele,
um tipo singular.
Coube
como uma luva no Jornal da Tarde, surgido ali por 1966, disposto a inovar, a
abrir fotos, e a soltar o texto dos repórteres, tivessem texto para tanto.
Ele
tinha.
Não
se continha - ia adiante na criatividade, tal e qual desejava o jornal, outro
lado bem pensado do Estadão, tão conservador em tudo.
Empresariado
tem é arte, sabe das coisas: apresenta mercadorias a gosto do freguês.
Ao
falar em jornalismo literário, Marcão aparece com destaque, ou deve aparecer
porque pode acontecer esquecimento.
Sacudia
as estruturas do jornalismo tradicional, arrebentava com o lead - quem quisesse
encontrá-lo lesse o texto inteiro.
Buscava
a subjetividade dos personagens, a humanidade deles.
Era
uma espécie de Truman Capote, autor do insuperável "A sangue frio".
Tinha
parecença com Hamilton Almeida Filho, o HAF, outro furacão do jornalismo
brasileiro.
Nasceu
no Rio Grande do Sul
Do
que sei, jovem, ingressa no PCB, trabalha no jornal Última Hora, de Porto
Alegre, onde publica o Caderno de Cultura, lado a lado com Luís Fernando
Veríssimo.
No
Jornal da Tarde, ficou entre 1968 e 1992.
Trabalhou
em O Pasquim, na revista Ex, fundou Versus - simultaneamente à grande imprensa,
fazia guerrilha na imprensa alternativa.
Ele,
bom observador, jornalista, já colocara os olhos nos textos de Cardoso, nos
documentos escritos por ele para a Polop, e gostara do estilo.
E
especialmente das tiradas irônicas dele durante as reuniões.
Ironia,
bem utilizada, é arma eficiente para jornalista.
Reparem:
resolveu testá-lo.
Ainda
em 1968, propõe a Cardoso escrever matérias para o jornal Ultima Hora, de São
Paulo.
O
jornal entregara a Marcão a tarefa de escrever matérias para a edição de
domingo.
Ele
vinha fazendo sob o pseudônimo de Marc Ferrer para não enfrentar problemas com
o JT.
Marcão
passa a encomendar frilas para Cardoso sobre movimentos guerrilheiros na
América Latina, luta dos negros nos EUA, tantos assuntos - enchia-o de
livros e revistas estrangeiras para cada
um dos temas, e ele tocava o pau.
O
novo Marc Ferrer, muito elogiado por Marcão...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
pequeno-burguês...
Vida
é assim.
Num
dia você se altera, briga com o sujeito, zanga com o cachimbo dele, e no outro
corre a pedir ajuda.
Diriam
os muitos sábios do sertão: mundo dá é volta.
Vida
requer cuidado.
Bom
não destruir pontes.
Menos
ainda, arruinar amizades.
Veio
o transe, e aquela sensação delirante de liberdade, o mundo se ofertando de
outro modo.
Mas,
logo, uma espécie de cair em si.
A
emoção da liberdade persistia.
Mas
a vida continuava, e não havia mais sequer aquela pequena ajuda dada pela Polop.
Precisava
dar conta de si.
E
dar conta de si custa.
Foi
atrás de quem?
Do
Marcão.
Nunca
deixara de ser amigo dele, não obstante o destempero com o cachimbo.
E
ele nem zangado ficara com a história do cachimbo.
Amigo
de verdade.
A
meio caminho da conversa com Marcão, pensou nos muitos momentos de angústia sob
a clandestinidade.
Era
estar vivo para morrer.
Vivia
sempre olhando pros lados e pra trás, ressabiado, impressão de sempre estar
sendo seguido, preparado para enfrentar a repressão a qualquer momento.
Cuidando
de não deixar rastros, nem dar bobeira - qualquer descuido podia comprometê-lo,
e aos companheiros.
Recorda:
num ônibus com Eric Sachs, o Velho, principal dirigente da Polop, confidencia
suas dúvidas existenciais, ser ou não ser militante comunista. Secamente, o
Velho responde:
-
Isso ocorre muito entre a pequena burguesia.
O
pano desce.
Ele
emudece.
No
caminho, para a conversa com Marcão.
Pedir:
ser jornalista pra conseguir o pão de cada dia.
Marcão
não se fez de rogado.
Deu
um jeito.
Era
fevereiro de 1969.
Cardoso
gozara o mês sabático.
Agora,
trabalhar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Jary fotografado por Vilma Nascimento em 2017)
Emiliano José
11
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
vida de copidesque
Mudar-se.
Partiu
Porto Alegre.
Fevereiro
de 1969, e Cardoso teve a carteira profissional assinada como jornalista
profissional pela primeira vez.
Sei
o significado de uma carteira profissional.
No
meu caso, em outubro de 1960, aos 14 anos, experimentei a sensação.
Tornei-me
bancário, em São Paulo.
Como
se me tornasse adulto precocemente, contribuindo para o sustento da família.
Cardoso
iniciara vida de trabalhador, também aos 14 anos, nas Lojas Duton, na capital
paulista.
Agora,
dando jeito de se sustentar, depois de ter chutado o balde.
Ter
saído da militância clandestina na Polop.
Marcos
Faerman chamou-o, atendendo pedido dele, para trabalhar na Zero Hora, na
capital gaúcha.
O
dono, lembra-se, era Ary de Carvalho.
Jornalista,
agora de verdade.
Primeiro,
repórter.
Um
mês depois, editor do Caderno D, suplemento cultural, criado por Faerman, de
curta duração.
Vida
breve, tal caderno, mas publicação de grande qualidade, a ponto de merecer
elogios de Samuel Wainer, o celebrado dirigente de Última Hora, já numa fase
outonal face às perseguições da direita brasileira, capitaneada por Carlos
Lacerda, e pela ditadura militar.
Terminada
a fase cultural, paixão de Cardoso, teve de se conformar com o trabalho de
copidesque - nisso, era bom, mesmo não o fazendo com tanto entusiasmo.
Desde
o secundário, considerado o rei dos verbos - era portanto sujeito a dominar o
português, e podia assim corrigir os pobres repórteres, ao menos aqueles cujo
domínio da língua não fosse dos melhores.
Copidesque,
leitor comum tem de saber, sempre foi o terror dos repórteres.
Alguns
deles, mais tolerantes, cuidadosos - chama o repórter, conversa, explica.
Outros,
arrogantes, metem a caneta, não querem nem saber
Repórter
só saberá dia seguinte, matéria publicada, o efeito da guilhotina.
Não
sei o estilo de Cardoso.
Gostando
ou não, a tarefa de copidesque o ocupou durante a maior parte da trajetória
jornalística de quarenta anos.
Jornalista,
é preciso esclarecer, tem de se virar nos trinta.
É
trabalhador, como outro qualquer.
Dificilmente,
vive de um só emprego.
Ainda
em 1969...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Jary Cardoso: Fui copy do
primeiro tipo. Sempre respeitando os repórteres, geralmente injustiçados em
termos de salário e de consideração pelos chefes, embora cumpram as tarefas
fundamentais do jornalismo: garimpar as informações, saber interpretá-las e
conseguir transmiti-las. Cabia ao copy a redação final de acordo com o tamanho
disponibilizado pelo editor, com as regras gramaticais e de clareza e fluência
do texto. Para isso, é claro, o diálogo com o repórter é imprescindível.
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Emiliano José
12
de novembro de 2021
Jary Cardoso: um
dia, Brigitte Bardot
Copidesque,
cês lembram?
Falei
nele.
E
no rei dos verbos, nosso Cardoso.
Penso
em Guimarães Rosa, agora.
Sujeito
quando entra no rio, e Cardoso é homem das águas, nadador experiente, pensa
chegar num ponto, e terminada a jornada, se vê noutro, completamente distinto.
Eu
pensava começar a falar da caminhada dele como jornalista, e tenho de voltar.
Nosso
rei dos verbos viu o Estadão irromper na sua vida um dia.
Estava
o rei no primeiro ou segundo Científico, ali pelos 15, 16 anos.
Segurem
a ansiedade, vamos devagar porque já tive pressa.
Teve
experiência traumática.
A
professora de português entra sala adentro e informou: a partir daquele dia,
uma vez por semana, os alunos deveriam escrever uma dissertação na sala a ser
entregue no final da aula.
O
tema, anunciado a cada vez.
No
primeiro dia, mandou ver: Brigitte Bardot.
Dona
Ruth Prado, com Bardot, entusiasmou a sala, menos a Cardoso.
A
professora Ruth foi pra sua mesa, sentou-se e exigiu concentração e silêncio
absoluto.
Nosso
rei dos verbos olhava para a professora, para a folha em branco, pro teto, pro
título, e não sabia começar, não imaginava como.
Paralisado.
Tá
legal: sabia dela, de ouvir falar, mas não assistira a um único filme
envolvendo-a, todos proibidos para menores de 18 anos.
Sabia
bastante, fosse suficiente, pelas fotografias - lindas, sensuais, deslumbrantes.
O
que escrever?
Sensações
solitárias, fotos à sua frente, movimentos frenéticos, tão linda, supersexy, o
mundo, aquele vasto mundo, em suas mãos?
Não,
não podia.
Cadê
coragem, cadê clima?
Levou
zero em Brigitte Bardot - entregou a folha em branco, alvinha, alvinha, virgem,
virgem.
Primeiro
zero, e primeiro zero a gente nunca esquece.
Desde
a entrada na escola, aos seis anos, jamais havia experimentado a dura sensação
de um zero.
E
justo zero em Brigitte Bardot, tão presente em seus sonhos - os das noites e
dos dias.
Justo
ele, sempre entre os primeiros da classe e quase invariavelmente o melhor em
Português.
No
ginásio, vence a competição de verbos promovida na classe pelo professor Nelo
Lorenzoni, e é vice-campeão do ginásio inteiro na disputa entre os melhores de
cada classe.
Ah,
Brigitte Bardot, o que você fez comigo?
Nu,
no meio da sala?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Essa
despirocou -dentre milhares, milhões de marmanjos- Roger Vadim
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(Luiza Cardoso com os netos)
Emiliano José
13
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
mãe superprotetora, menino mimado
Verbo
era com ele mesmo.
Naquela
disputa de todo o ginásio, entravam apenas verbos irregulares.
O
professor sorteava o verbo e o tempo a ser conjugado pra cada competidor.
Quem
errasse menos, ganhava.
Cardoso
foi vice-campeão.
Pensava
no zero em Brigitte Bardot.
Justo
ele, tão bom em gramática.
Só
tirava nota 10 nas dissertações.
Ele
próprio, no entanto, faz confissão: no caso das dissertações, havia, talvez ele
exagere, uma fraude.
A
julgamento das leitoras, e dos leitores.
Mãe,
cês sabem como são, podendo dar um empurrão, não vacilam.
A
dele, Luiza Cardoso, fora formada na melhor instituição de São Paulo para o
ensino de professores, famosa Escola Normal Caetano de Campos, situada na Praça
da República.
Luiza
era mulher de muitos predicados: especializou-se em Canto Orfeônico, disciplina
criada na década de 1930 por Heitor Villa-Lobos.
E
filha do jornalista, maestro e compositor Luiz Baptista Cardoso de Carvalho,
Mello Dias o nome artístico.
Quem
sai aos seus, não degenera.
De
qualquer ângulo se olhasse, escrevia bem, muito bem: caligrafia perfeita e
textos muito interessantes.
Fluência,
capacidade de descrever o visto e o vivido, daquelas escritoras cuja timidez
não permitiu desabrochasse.
Não
publicou nenhum livro, a professora Luizinha.
Deixou
herança, no entanto: cartas substanciosas para amigas, amigos, parentes,
preenchia com diários as páginas da agenda anual, brochuras com memórias pessoais
e da família Cardoso de Almeida, cafeicultores poderosos da região de Botucatu.
Mãe
assim, tão prendada intelectualmente, no mais, superprotetora, suportaria
inerte assistir ao filho único, e mimado, sempre mimado, sofrendo feito cão
danado para escrever dissertações pedidas pelo professor de Português no
ginásio?
Nem
morta.
-
Qual o tema, meu filho?
Tomava
da caneta e...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
aprendendo a escrever sem mamãe
Quem
é que essa professora pensa que é?
Luizinha,
professora Luizinha, sabia de si, de seus valores.
Português,
com ela mesma.
Nenhuma
professora iria dificultar a vida do filho, tão inteligente.
E
danava-se a escrever, com a letra arredondada.
Tempo
dela, além de tudo, aprendia caligrafia.
Escrevia
quase desenhando cada palavra.
Era
Cardoso, o filhinho, dar o tema, e ela, com zelo, esmero, escrevia, desenhava a
dissertação.
Fácil:
ao filho restava copiar, com sua letra, não tão arredondada como a da mãe,
entregar à professora, e correr pro abraço.
Um
dez atrás do outro.
A
professora olhava pro aluno com admiração.
E
ele, mal acostumado.
Gostou
daquela vida boa.
Era
leitor dedicado, fã de tantos autores, familiaridade com os livros.
Mas,
nada de praticar o escrever, nada de exercitar redação própria.
Por
isso, ficou nu quando surpreendido por Brigitte Bardot - a professora pediu
assim, sem quê nem pra quê, fizessem redação na própria sala de aula.
Que
porra.
Olhou
pros lados, e cadê mamãe?
Aquele
zero, contraposto aos tantos dez tirados em outras redações, o fez cair em si,
ganhar coragem.
Com
todo respeito, passados alguns dias, foi pra cima da mestra, a de Bardot:
-
Professora, o que faço pra me tornar capaz de escrever dissertação na sala de
aula?
Na
sala de aula - fosse em casa sabia como.
Ruth
Prado não parou pra pensar:
-
Leia diariamente o principal editorial do Estadão, na página ´Notas e
Informações´. Leia e releia, analise o texto, entenda por que começa de um
jeito e não de outro, atente para o desenvolvimento de cada tese defendida pelo
jornal.
Introduziu-o
nos segredos do jornalismo tradicional e conservador, mas ensinou-lhe também o
caminho das pedras para escrever bem.
Religiosamente,
cumpriu a tarefa dada pela professora.
Em
pouco tempo, já escrevia por conta própria na sala de aula.
Podia
não tirar dez como nas redações anteriores, aquelas de mamãe, mas as notas não
eram de envergonhar ninguém.
Aprendera
a escrever.
E
dez anos depois, estava no Estadão, redator da Editoria Internacional...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
15
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
dona Ruth tinha razão...
Na
Editoria Internacional do Estadão, penteava telegramas.
Do
jargão jornalístico - pentear telegramas.
Recebia
material das agências internacionais de notícias, e dava forma adequada a cada
uma delas.
Atento
às regras do lead, sublead, titulação, diabo a quatro.
Depois
de bom tempo penteando, passa a copidesque da reportagem geral.
Dez
anos de Estadão, experiência a lhe dar régua e compasso, garantir empregos posteriores, na maioria das
vezes atuando como copidesque.
Volto
à dona Ruth, célebre aqui por Brigitte Bardot: a dica dela orientando-o a
visitar diariamente os editoriais do Estadão, alimentou a simpatia dele pela
direita e pela UDN.
Por
um tempo, ao menos.
No
terceiro ano do Científico, depois de informar dona Ruth sobre a decisão de
prestar vestibular para Psicologia da USP, ouvindo sugestão da subversiva Marie
Christine Laznik, já a meio caminho para
se tornar inteiramente de esquerda, ouviu sombria advertência dela:
-
Aquilo é um antro de vermelhos!
Convenhamos:
ela sabia das coisas.
Era
mesmo.
Cardoso,
nos três anos seguintes, será vermelho roxo, discípulo de Rosa, Trotsky, Lênin,
e de um certo ponto de vista até de Stálin.
Até
irromper o transe.
Antes
de nos perdermos, voltemos a Porto Alegre, onde Cardoso começou sua jornada
jornalística.
Além
da Zero Hora, lá chegado pelas mãos de Marcos Faerman, ainda em 1969 aprendeu
muito jornalismo como repórter da sucursal da Abril, orientado por Paulo Totti.
Porto
Alegre foi experiência essencial para os anos seguintes, não obstante curta.
Início
de 1970, volta pra São Paulo e é contratado como repórter da sucursal de O
Cruzeiro.
Ele
nunca se esquecerá: estava na revista, famosa O Cruzeiro, e de repente no meio
do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
A
pedra: segunda prisão.
O
passado me condena...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
redator de Internacional
Ia
contar a segunda prisão de Cardoso, mas devo abrir um parênteses.
Necessário.
De
modo a fazer justiça ao nosso protagonista, corrigir-me.
Apressei-me,
nadei na superficialidade, e fiz dele penteador de telegramas.
Baseado
num breve relato dele, dizendo-se "redator da Editoria Internacional do
Estadão, trabalhando em cima de telegramas, atento às regras do lead, sublead e
tal".
Nada
mais errado.
Trabalhar
na Editoria Internacional do Estadão cobrava qualidades de redator, bom texto,
conhecimento, qualidades de pesquisador.
Não
se penteavam telegramas.
A
partir deles, eram feitas matérias, muitas aprofundadas pelas pesquisas dos
redatores.
Estadão
sempre deu muita importância à conjuntura mundial.
Assim,
Cardoso esteve longe de apenas pentear telegramas - isso sequer se fazia no
Estadão, ao contrário da prática de muitos jornais brasileiros.
Chegadas
as notícias das variadas agências internacionais, botava mãos à obra - não se
tratava de reescrever apenas, mas de produzir matérias.
Isso
o tornou ainda mais experiente como redator e como pesquisador.
Quando
sentia insuficiências nos telegramas, mandava buscar livros na biblioteca do
jornal para dar substância à matéria.
Teve
o mundo nas mãos nesses anos de Estadão.
Às
vezes, para algumas matérias especiais, levava pilhas de livros pra casa -
estudar, e depois redigir.
Teve
momento de especialização dele em África, na sequência dos movimentos de
independência no Continente, especialmente os das ex-colônias portuguesas.
Não
obstante jornal conservador, o Estadão ia sempre buscar pessoal de esquerda, de
modo especial para a Editoria Internacional.
No
caso de Cardoso, quem o indicou foi Marcos Wilson Spyer, de quem já se falou
nessa série - ele o conhecia da Polop, sabia dos dotes de redator dele,
desenvolvidos a partir dos documentos elaborados por ele para a Organização, e
tinha certeza da potencialidade do ex-companheiro comunista, sobretudo quanto
ao conhecimento do quadro internacional.
Fecho
o parênteses.
Cardoso
é rigoroso, bom jornalista: estava errado quando falava em ter trabalhado uma
década no Estadão: foram oito anos - rapidamente, a primeira vez, de 1º de junho
de 1976 a 7 de junho de 1977; e depois, de 13 de fevereiro de 1980 a 16 de
junho de 1987.
Penso
ter me redimido, parcialmente ao menos.
Agora,
posso pensar na segunda prisão dele.
No
próximo capítulo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de novembro de 2021
Jary Cardoso: na
sucursal do inferno
Fazia
ano e meio já.
Estava
noutra, não mais na militância clandestina.
Repórter
da sucursal de O Cruzeiro em São Paulo.
Assentado
na profissão, Cardoso era já jornalista reconhecido.
A
vida surpreende, às vezes, nem sempre para o lado bom.
Há
aqueles momentos de estar na hora errada, no lugar errado.
Foi
a uma festinha de recepção a um casal de amigos, Jô e Tina.
Conhecera
o casal nos meados dos 60, no Rio de Janeiro, apresentado por Marie Christine.
Cardoso
não se parecia mais com o militante clandestino.
Cabelão
comprido, colar de argolas grossas de metal no pescoço com um crucifixo na
ponta à altura do peito.
Eventualmente,
valia-se da maconha.
Meio
hippie.
Não,
não ia imaginar fosse a casa um aparelho de organização guerrilheira.
Escondia
o Felipe.
Militante
da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Conhecia
o Felipe - do círculo de amigos da Chris.
Em
plena festa, todo mundo alegre e feliz, repressão chegou chegando naquela noite
de maio de 1970.
Levou
em torno de 40 pessoas.
Todas
para a sucursal do inferno - como propriamente era chamada a Operação Bandeirante,
nascida menos de um ano antes, a servir de modelo para a criação dos DOI-CODI
(Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa
Interna), estrutura central da repressão em todo o País.
Cardoso,
nessa barca.
Seguiu
na mesma barca de Felipe - uma C-14.
Algemado,
Felipe já era objeto, no caminho, do sadismo dos torturadores - era o principal
alvo deles.
Não
tinha ideia exata de quem era o Felipe, não mesmo.
Saberá
depois tratar-se de Henri Philippe Reichstul, nascido em Paris em 1949, e
militante então da VPR.
Vai
se tornar celebrado economista.
No
governo Fernando Henrique Cardoso, será presidente da Petrobrás.
Felipe
sempre evitou falar do assunto.
Tem
fortes razões.
A
família foi duramente atingida pela ditadura - matou sua irmã, Pauline
Reichstul, no ano de 1973, dia 8 de janeiro, no chamado "Massacre da
Chácara São Bento", em Pernambuco.
Cardoso
passou a primeira noite dormindo sentado num banco de madeira.
Ao
lado de Cláudia Hollander, de quem fora namorado - os dois à espera do
interrogatório.
Cláudia
será astróloga da Folha de S. Paulo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
18
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
amor contra o terror
A
primeira noite passou dormindo no banco de madeira, ele e Cláudia Hollander.
Felipe,
o alvo principal da OBAN, rapidamente passou a ser torturado no andar de cima.
Cardoso
ouvia os gritos.
Sei:
é experiência horrível.
Tanto
ser torturado quanto ouvir os gritos de qualquer pessoa sendo torturada.
É
tortura.
Dia
seguinte, o próprio comandante daquela máquina de moer gente, daquela sucursal
do inferno, Carlos Alberto Brilhante Ustra, herói do atual presidente,
interroga Cardoso.
Ao
lado dele, uma fera selvagem.
Rapaz
jovem, olhos faiscando de ódio, aprendeu cedo a odiar comunista ou quem ele
pensasse ser.
O
menino ia tirando de uma sacola os pertences apreendidos com Cardoso e
colocando tudo em cima da mesa.
Fez
cara de monstro mais terrível quando levantou o colar hippie, mostrando-o ao
chefe como troféu, evidência de periculosidade.
Cardoso
não se enervou.
Permanecia
calmo.
Como
na primeira prisão.
Talvez,
quem sabe, a consciência de estar então inteiramente fora da atividade
revolucionária o ajudasse, o tranquilizasse.
Ou
então, uma atitude mesmo: aquela - diante do perigo o espírito sabe
equilibrar-se e encarar o inimigo, se inimigo houver, e no caso havia.
Ustra
falou pouco.
Poucas
perguntas.
Não
era peixe grande naquele momento - disso o torturador devia saber.
Cardoso
tomou a iniciativa:
-
Será que o senhor podia ler esse documento? - apontou-o entre os pertences
dele.
Ustra
pegou, passou os olhos.
Documento
da sucursal de O Cruzeiro, onde ele trabalhava.
Pedia
às autoridades que permitissem realizar as tarefas jornalísticas dele.
Se
colar, sempre bom, senão sério risco: inventou historinha.
Estava
realizando matéria sobre "terrorismo".
Dispensado,
porrada nenhuma, levado a uma cela onde passou outra noite.
Muitos
na cela.
Alguns,
em bom estado, nenhum sinal de porrada.
Outros,
estropiados pela tortura.
Ao
ser liberado, depara com Tina, mulher do Jô.
Seguem
juntos para uma casa - não se recorda onde nem de quem.
Ficaram
num quarto.
Fizeram
amor.
Amor
contra o terror...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de novembro de 2021
Jary Cardoso: um
morde, outro assopra
Tempos
sombrios, aqueles.
Sei:
alguns dirão dos de hoje, também sombrios.
Dirão
de um presidente saudoso de Ustra.
Negacionista.
Genocida.
Ainda
assim, os anos da ditadura militar, bem mais sombrios.
Especialmente,
os anos do governo Médici, quando a máquina de matar e torturar foi aprimorada.
Por
serem tempos assim, marcados por terror e morte, difícil remontar o mosaico, organizar
lembranças.
Cardoso,
quando interrogado por Ustra, não sabia ser ele o Ustra, o terrível torturador,
o maior assassino daquele regime.
Só
vai saber bem mais tarde, quando ele começou a ser revelado, quando a campanha
pela anistia ganhou fôlego.
Não
se sabe como reagiria soubesse de quem se tratava.
Sei
de companheiros tremendo ao deparar com ele - e não era pra menos.
Ou
ao deparar com Sérgio Paranhos Fleury, outro terrível torturador e assassino do
período.
Talvez,
no entanto, ele, mesmo sabendo, mantivesse o mesmo padrão - calmo, sem se apavorar diante dos monstros
da ditadura.
Volta
à casa, as memórias vão e voltam, à festa de recepção ao casal Jô Amado e
Cristina Dubeux - a Tina.
Jô
Amado será editor-chefe da edição brasileira do Le Monde Diplomatique.
Estava
ele sossegado, relaxado, refestelado num sofá quando a invasão, e um meganha
estúpido empunhando arma pesada aos gritos mandando-o sair daquele conforto,
que porra.
Na
C-14, no caminho para a OBAN, um agente se aproxima e puxa papo, assim
amigavelmente, voz baixa e pausada, recomendando-lhe calma:
-
Se você não deve nada, nada lhe acontecerá.
Fazia-se
de protetor, enquanto outro policial dava porradas em Felipe.
Não
era de se enganar - desse jogo sabia, sobre ele discutira muito nos seus tempos
de Polop.
Sempre
há o selvagem e o bonzinho, um morde, outro assopra - besta quem se iludisse.
Pensava:
comigo não.
Do
caminho, guarda outra imagem: a do motorista.
Jaqueta
de couro preta e brilhante, direção arriscada, fazendo barbaridades no trânsito,
tocando terror.
Era
só ver moça ao volante ou como passageira, reduzia a velocidade da perua,
emparelhava, e fazia gracinhas machistas.
Outro
agente gritava questionando a virilidade dos rapazes dos carros, acompanhantes
eventuais das moças.
Na
OBAN, Cláudia Hollander, muito nervosa, chorava, lamentava.
Um
agente, com pinta de torturador, gritou:
-
Cala a boca!
-
Comporte-se!
Apontou
para Cardoso:
-
Faça como ele, que está aí, quieto e relaxado...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Edgard Navarro: "Amigos
presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais... as recordações - retratos do
Mal em si -, melhor é deixar pra trás..."
A
sensação é de que a roda do tempo girou ao contrário e que estamos de volta nas
mãos do inimigo...Sim, decerto a tortura é de outra natureza, mas não deixa de
ser tortura. O país está se tornando num circo de horrores, é só ver nos
noticiários...
Adilson Borges: Verdade, mas
podemos dizer que o atual inferno o país escolheu; não foi imposto sob o poder
das botas e dos fuzis, e dele podemos nos livrar ano que vem...
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Emiliano José
7
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
explicação para o desbunde.
Aí,
o Pilla disse:
-
A causa da sua atitude é a mesma que tanto critiquei na Polop e que me levou a
sair da militância e me tornar apenas um simpatizante. Eles [os dirigentes] não
respeitam a individualidade dos militantes, exigem e cobram que sejam
tarefeiros e disciplinados, sem que possam cometer o mínimo ´desvio pequeno-burguês´.
A
explicação vinha como um bálsamo.
Naquela
mesa de bar, Cardoso respirou profundamente.
O
desbunde começava a ganhar uma resposta.
E
vinda de Pilla, não era pouca coisa.
Pediu
mais uma.
Valia.
Comemoração.
Cês
devem estar perguntando: quem era Pilla?
Nome
de batismo: Luiz Pilla Vares.
Militância,
começou no PCB, início dos anos 60.
Rapidamente,
no entanto, seduzido por Rosa Luxemburgo e Trotsky, chegou à Polop.
Um
dos fundadores do Partido Operário Comunista (POC), juntamente com Erich Sachs,
Emir e Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii e Raul Pont, entre
outros.
Surgido
o PT, ingressa e se torna presidente do partido em Porto Alegre.
Ligado
à cultura, torna-se secretário de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos
prefeitos Olívio Dutra e Tarso Genro, e secretário da Cultura no governo Olívio
Dutra.
Um
militante - ele próprio assim se definia.
Um
intelectual orgânico.
Nasceu
em 5 de março de 1940, mesmo mês e dia do nascimento de Rosa Luxemburgo - ano
dela, 1871.
Com
a polonesa, se encontrará, através de sua extensa obra revolucionária.
Pra
quem cultiva coincidências, outra: Villa morre no dia 9 de outubro de 2008,
mesmo dia do assassinato de Che Guevara, em 1967.
Foi
este militante a encontrar a explicação para o desbunde...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
21
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
Tarso de Castro, Amenidades, Folhetim.
Tarso
de Castro, do lido e sabido, foi dos
grandes do jornalismo brasileiro.
Com
G maiúsculo.
Dos
melhores.
Dos
iconoclastas - registre-se.
Um
dos fundadores do jornal O Pasquim, criador do Folhetim, da Folha de S. Paulo,
para lembrar alguns poucos feitos.
Reparem:
a biografia dele é de autoria de Tom Cardoso - "Tarso de Castro : 75 kg de
Músculos e Fúria".
Reparem
mais um pouco: Tom Cardoso é filho de Jary Cardoso.
Fui
saber disso somente agora.
Havia
me encontrado com ele quando ao desenvolver a 17ª edição de "Lamarca, o
Capitão da Guerrilha".
Com
ele, vírgula - ao pesquisar n'O cofre do Dr. Rui', sobre o memorável roubo,
livro de autoria dele.
Quem
sai aos seus não degenera.
Cardoso,
filho, é autor de vários livros.
Então,
em 1971, Cardoso é indicado por Marcos Faerman para trabalhar com a fera.
Castro,
depois de sair brigado com a turma d'O Pasquim, cria nova publicação.
Sócios
da empreitada: Glauber Rocha e Luiz Carlos Maciel.
Jornal
de Amenidades - sede no Rio de Janeiro.
Cardoso,
correspondente em São Paulo.
Durou
pouco: proeza de 11 edições, término de existência no final de 1971.
Tarso
de Castro não quis deixar Cardoso desamparado: foi a Cláudio Abramo, diretor de
redação da Folha de S. Paulo, e pediu por ele.
Por
alguns meses, redator da edição dominical.
Durou
muito não.
Alguns
meses, e novamente desempregado.
O
amigo de sempre, padrinho principal, Marcos Faerman, chama-o para embarcar no
bonde junto com ele.
-
Vamos pro Bondinho.
Foi.
A
revista Bondinho nascia da iniciativa...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
amizade e fúria
Antes
de pegar o bonde, falar em amenidades.
Jornal
de Amenidades, criação do Tarso de Castro.
Admiração
e carinho - o mínimo a se dizer dos sentimentos de Cardoso quando se fala nele.
Foi
relação intensa, amizade sincera.
Jornalista
de posições.
Tomou
de armas ao lado de Brizola no Palácio Piratini, na Campanha da Legalidade, em
1961, quando a resistência organizada pelo governador gaúcho garantiu a posse
de Goulart, contra a opinião dos chefes militares, sempre golpistas, ontem e
hoje, insista-se.
Muitos
civis foram para o Piratini, dispostos à luta.
Tarso,
um deles.
Então,
em 1971 criou o JA - assim conhecido, assim aparecia na capa em letras
garrafais, Jornal de Amenidades, por extenso, vinha em corpo menor.
Eram
amenidades, uma atrás da outra, e serviços.
Houve
entrevistas interessantes.
Uma
delas, no número 7, feita por Cardoso: com o psiquiatra José Gaiarsa - título:
"Psicanálise já era", três páginas.
Jornal
de amenidades, mas provocativo.
Tarso
de Castro não faria publicação sem sal sem gordura.
No
número 11, Tarso de Castro pensou numa enquete, ouvindo personalidades:
deveriam listar quem consideravam os cinco mais chatos do País.
Um
dos cinco, necessariamente incluído, de acordo com orientação do editor, era
Ele - e por Ele subentendia-se Médici, não nominado.
Cardoso,
o repórter a entrevistar os famosos de São Paulo.
Juca Chaves sartou de banda:
-
Sabe como é que é, né, os que eu considero chatos ainda têm muito poder, e eu
preciso fazer meus shows para sobreviver.
Amarelou,
o Juca - ácido com Juscelino, suave com a ditadura.
O
JA inovava quanto a serviços - numa das edições, técnicos eram entrevistados
para falar sobre os eletrodomésticos, como consertar, conservar, tempo de vida,
coisas assim: tentava ser útil.
Foi
um novo caminho encontrado pelo Tarso de Castro, muito diferente d'O Pasquim',
de que foi editor por muito tempo, e do qual foi um dos principais
idealizadores - para Cardoso, O idealizador.
N'O
Pasquim', desde o início teve conflitos com os demais fundadores, como em
qualquer redação.
Depois
da briga final, na interpretação de Cardoso, foi apagado da história do jornal
- "tal e qual Stálin fazia com os inimigos",
Cardoso
teve uma ideia, e começou a tocar em frente: escrever um livro sobre a imprensa
marginal.
Entrevistou
Luiz Carlos Maciel, Jaguar, e propôs ouvir Tarso de Castro.
Topou.
Da
seguinte maneira:...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
23
de novembro de 2021
Jary Cardoso: a
tempestade, em nome do Pai
Cardoso
começou a fazer as entrevistas, pensando no livro sobre a chamada imprensa
marginal, ou alternativa, como mais conhecida.
Depois
de entrevistar algumas das estrelas daquele jornalismo, parou.
E
o livro não chegou às livrarias.
Falou
do projeto para Tarso de Castro, e revelou a intenção de entrevistá-lo.
Era
personagem intrigante, raro, pelo brilhantismo e, não se negue, boa dose de
autoritarismo, dado ao mandonismo.
Estrelas,
às vezes, são assim.
De
lembrança de Cardoso: chegou a dar murros em Ziraldo, levado a nocaute por ele.
Um
rebelde, um anarquista, não propriamente sem causa: o anticapitalismo era a
causa.
Em
meio a tudo isso, cultivava admiração por Brizola, vinda desde a Campanha da
Legalidade.
Tinha
momentos de loucura, desvario: um dia, num bar, no Rio, dinheiro no bolso
proveniente de anúncios d'O Pasquim', pegou tudo e jogou pela janela, os
transeuntes assustados e admirados e lutando para pegar as notas.
Um
personagem assim, valia a pena.
Difícil
pensar nele como sujeito para dirigir comercialmente qualquer empreendimento, e
por isso os conflitos permanentes com quem tivesse pés no chão.
Um
dia, depois de ter pedido entrevista, Cardoso é surpreendido: Castro chega à casa dele em São Paulo, toma
da máquina de escrever, três laudas num rompante - era o que tinha a dizer.
Não
usou porque o livro restou na gaveta, abandonado, rascunho.
O
filho Tom aproveitou a pesquisa dele, recolheu as pérolas, e incluiu tudo no
livro sobre Tarso de Castro.
Não
é difícil concluir o quanto aquela tempestade de músculos e fúria fascinava
Cardoso.
Na
memória, retém uma enormidade de coisas sobre ele.
Mistura
grandes personagens do jornalismo brasileiro nessas memórias, maior parte deles
em trajetória de conflitos com a tempestade...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
24
de novembro de 2021
Jary Cardoso: o
lápis do Serjão
Quando
fala da convivência da Fúria com grandes personagens do jornalismo, Cardoso não
está exagerando.
Tarso
de Castro sempre conviveu com os maiores, por ser um deles.
Pero,
de difícil convivência, como já dito e redito.
Esteve
lado a lado com Sérgio de Souza, por exemplo.
Dos
maiores jornalistas que conheci.
Convivi
com ele primeiro no Jornal da Bahia, em 1978, quando editor-chefe do Jornal da
Bahia. Na ocasião, entre vários, trouxe junto outra fera, Narciso Kalili, com
quem também convivi - dos grandes, inegavelmente.
Serjão,
o avesso do avesso da Fúria.
Sereno,
tranquilidade pra dar e vender, talento e sabedoria a esbanjar.
Comandou
muitas redações.
Sem
nunca dar um grito.
Figura
fundamental de Realidade, nos primórdios da revista.
Fundador
da Caros Amigos, revista onde publiquei, no número um, a histórica fuga de
Theodomiro Romeiro dos Santos, além de outros textos.
Morreu
cedo, e sobre ele, produzi o texto "O lápis do Serjão", referência à
mania dele de corrigir, copidescar os textos à lápis, nada de caneta, e era um
olhar tão rigoroso quanto o de Jary Cardoso, não fosse mais - foi minha maneira
de homenagear um mestre, última homenagem.
Editor
de alguns livros meus - Marighella e Renzo, entre eles.
A
partir de certo momento, não queria mais ver Tarso de Castro pela frente.
Assim,
com um mundo de gente - pense num sujeito capaz de acumular desafetos.
O
talento, enorme, era proporcional à capacidade de provocar divergências e
inimizades.
Não
se falou, ainda, dele editor da revista Careta e nem do jornal O Nacional,
título recuperado por ele - no passado, editado pelo pai, Múcio de Castro.
Bebia
muito, e nunca quis ouvir conselhos de moderação.
Morreu
de cirrose hepática, aos 49 anos.
Viveu
a vida confrontando desafios, criando, dando murros em ponta de faca, abrindo
caminho na porrada.
Fúria,
tempestade.
De
tanto ouvir falar dele, ansioso pra ler o livro de Tom Cardoso - repito, pra
não ouvir perguntas: 75 kg de Músculos e Fúria.
Nosso
protagonista, hoje, foi ofuscado pela Fúria - é da vida...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
pegando o bonde
Ontem,
falando de Tarso de Castro e Sérgio de Souza, disse de possível relação entre
eles, direta.
Não
é bem assim.
Cardoso
me corrigiu.
Aconteceu
assim: já saindo, ou já fora do Jornal de Amenidades, criado por Tarso,
publicação já no fim, resolve fazer uma entrevista com Tarso de Castro.
Ligou
o gravador, e pau.
Escreveu.
Na
matéria, entre tantas coisas, Fúria desencava um bom número de jornalistas,
estrelas consagradas, com quem convivera, a quem conhecia de cor e salteado.
Matéria
quente, pensou Cardoso - e era.
Serjão,
editor do Bondinho, onde Cardoso já estava, recebe, coloca-a na gaveta.
E
lá a matéria restou.
É
provável Serjão tenha considerado impróprio comprar briga com colegas de
profissão, alguns provavelmente amigos dele.
De
integridade a toda prova, era, no entanto, dado à conciliação, não estivessem
em jogo princípios essenciais.
Dela,
da matéria, Cardoso jamais teve notícia, nem da fita cassete.
Assim,
esclarecido: Cardoso nunca testemunhou tenham os dois trabalhado juntos.
De
confronto entre os dois, se é possível chamar assim, apenas esse - indireto,
silencioso.
Ainda
perseguindo trajetória jornalística de Cardoso, vamos surpreendê-lo agora numa
revista, já dissemos de passagem.
Bondinho
começou patrocinada pelo grupo Pão de Açúcar - a revista era distribuída
gratuitamente nas lojas e supermercados do grupo.
Reuniu
a nata do jornalismo brasileiro, especialmente profissionais egressos da
Realidade, rompidos com os novos rumos imprimidos pela Editora Abril à revista.
Além
de Serjão, podem ser lembrados Narciso Kalili, Woile Guimarães, Roberto Freire,
Mylton Severiano da Silva, Hamilton Almeida Filho, Odiléa Toscano na
Ilustração, George Love e Cláudia Andujar na fotografia.
Brinquedo
não - um time de primeira linha.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Mylton
Severiano da Silva, Myltainho -deve ser o mesmo-, grande admirador de Osório
Alves de Castro, na Enfermaria, Caros Amigos junho 2001, ele publicou texto
sobre o centenário do nosso romancista
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Emiliano José
26
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
marido e mulher na carona de um motoqueiro
Era
ali, no meio de tanta cobra criada, a próxima parada de Cardoso.
Último
número do Jornal de Amenidades (JA) saiu no final de agosto de 1971.
Foi
pra Ubatuba, litoral paulista, casa de amigo.
Desempregado,
melhor fosse passar tempo flanando, ao lado de jovens malucos e criativos, como
ele mesmo define, entre os quais Afonso Coaracy, conhecido dele nas
movimentações estudantis, do curso de Direito da Católica, ele e Zé Dirceu,
ambos da Dissidência do PCB.
Nesses
dias de Ubatuba, Coaracy dá carona a duas lindas meninas.
Conversa
vai, conversa vem nessa carona: ele casou com uma, Cardoso com a outra, Ana
Lúcia - Aninha.
Carona
proveitosa.
Casou
no final de outubro, a contragosto do pai, magistrado mineiro da Justiça do
Trabalho.
Pai
disse ao genro: arrume trabalho.
Tive
tentação jornalística de lascar um "vá trabalhar, vagabundo", mas me
contive, que o juiz não devia de ser assim tão abusado.
Nem
Cardoso era de levar desaforo pra casa.
Mas,
ajuizado, tomou um ônibus, desembarcou no Rio de Janeiro, pediu socorro ao
amigo Tarso de Castro, naquele momento meio desacorçoado, ele próprio sem
perspectiva de trabalho, decepcionado com os amigos ricos, incapazes de
colocar a mão no bolso para ajudá-lo a garantir a sobrevivência do JA.
Assim
estivesse, não se negou no entanto a ajudá-lo: pegou um papel e escreveu ligeiro bilhete para Cláudio
Abramo:
"Este
é meu amigo Jary Cardoso. Contrate-o. Tarso".
Impositivo.
Sem
rodeios.
Meteu
o bilhete num envelope e entregou-o a Cardoso.
Foi
com tal envelope a chegada dele à redação da Folha, e ficou impressionado como
o consagrado jornalista obedeceu à ordem.
Contratado
em 16 de novembro de 1971, demitido em 22 de janeiro de 1972 - meteórica
presença.
O
editor da Editoria de Domingo, José Álvaro Moisés, mais tarde sociólogo de
nomeada, não foi com a cara dele.
Tem
certeza: fez boas matérias.
Mas,
o santo não bateu, fazer o quê?
Aí,
chegou ao Bondinho, convidado a trabalhar com o Marcos Faerman e com o hoje
celebrado Fernando Morais, na Editoria de Artes e Espetáculos.
Quem
diz é Cardoso: ele e Aninha iam de carona para a redação do Bondinho.
Na
garupa da moto de Fernando Morais.
Queria
uma foto: os três, bem agarradinhos.
Não
consegui...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
27
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
Bondinho, motivo de orgulho
Início
de 1972.
Cardoso
chegava ao Bondinho.
Foi
experiência ligeira.
Em
maio, se os meus registros estiverem bons, a experiência terminaria - Bondinho
deixaria de circular.
Teve
primeira fase, de novembro de 1970 a dezembro de 1971, bancada pela rede de
supermercados Pão de Açúcar.
Depois,
vida própria.
Mas,
como suportar?
Custos
são altos.
Aguentou
até maio do ano seguinte.
Foram
13 edições nessa fase, segundo Rubens Fernandes Júnior, no texto "A
experiência da revista Bondinho".
Foi
uma das mais brilhantes experiências da imprensa alternativa.
E
pelas informações, chegou a rodar 400 mil exemplares.
Cardoso
considera a revista uma de suas grandes experiências jornalísticas.
Os
trabalhos realizados no decorrer daqueles poucos meses foram marcantes na
opinião dele, motivos de orgulho.
Pode
lembrar entrevista de capa com Bethânia
- não era pouca coisa, não.
Ou
com Mautner - outro gigante.
Matérias
nas páginas internas, de grande significado.
Com
o Rei do Baião, o show de volta do Luiz Gonzaga, inesquecível.
A
visitação do feminismo, com Rose Marie Muraro.
Reviveu
Estúpido Cupido, Banho de Lua - entrevistou Celly Campello.
Luiz
Carlos Maciel, considerado um dos gurus da contracultura, um dos fundadores de
O Pasquim.
Nada
disso, nenhuma dessas entrevistas nasceram ao acaso.
O
chefe direto dele era Hamilton Almeida Filho - o HAF.
Faz
parte da santíssima trindade de Cardoso no jornalismo - a ele se agregam Marcos
Faerman e Tarso de Castro.
HAF
conhecia o time, sabia as matérias mais apropriadas ao talento de Cardoso, e
foi pautando-o.
Frustração,
a primeira: a não publicação da entrevista com Tarso de Castro.
Houve
uma segunda: jornalismo tem disso - sucessos e frustrações.
Esta,
com Elis Regina.
HAF
pediu fosse atrás dela.
Desembarcou
no Rio de Janeiro.
Ao
lado dele, acompanhando-o, a mulher, Aninha.
Conversa
fluiu, e ele não esquece a contribuição de Aninha - ajudou a criar o necessário
clima de intimidade para uma boa entrevista.
Ele,
tentando manter postura profissional, esforçando-se.
Explique-se.
Elis
aparecia pra ele como personalidade fortíssima, além de tudo encantadora,
mulher linda, deslumbrante, e sexy - tem de confessar tais impressões.
E
aí...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
olhos de ressaca
Elis
Regina, são recordações de Cardoso, enfrentara havia pouco tempo frustração
amorosa com Nelson Motta e acabara de se
apaixonar por César Camargo Mariano, este vivendo com outra mulher.
A
entrevista prosseguiu na mansão dela, na avenida Oscar Niemeyer.
Papo
demorou, e no curso, Elis convidou-os, a ele e Aninha, para dormirem na mansão.
Destinou
aos dois um amplo quarto.
Papo
invadiu altas horas, e Aninha seguiu antes para dormir.
Cardoso
levou mais algum tempo jogando conversa fora.
Elis
levantou-se, e começou a subir a escada em direção ao quarto dela.
Ele,
olhando os passos daquela mulher exuberante.
Nos
primeiros degraus, ela para.
Olhava-o,
ele retribuía, e retribuía com olhos de ressaca.
Mirava
Elis de baixo para cima, e o grave, ou o melhor, ela estava de minissaia.
O
olhar dela, também olhos de Capitu, de ressaca, cobiça - ao menos assim
interpretou-o.
Ela
parada, os dois se olhando.
Segundos
intensos.
Ele
juntou todas as forças do espírito, esmagou o tesão, resistiu.
Havia
casado com Aninha fazia pouco tempo.
Não
podia colocar tudo a perder.
Elis
subiu, sozinha.
Cardoso
foi para o quarto onde Aninha já dormia a sono solto.
Chegou
a São Paulo, entusiasmado, saboreando previamente o feito jornalístico.
Escreveu
a matéria, entregou-a.
Passava
o tempo, e nada de vê-la publicada.
Um
dia, Narciso Kalili, um dos editores da revista, chegou à mesa dele:
-
É tudo mentira aquilo que a Elis disse pra você. Conheço ela muito bem, eu
trabalhava na Record e as invenções e mentiras dela eram muito frequentes. Não
tem condições de sair essa matéria.
Outra
frustração - e das grandes.
Ao
menos ficaram boas lembranças da conversa, do papo alegre, e daqueles
inesquecíveis segundos dos olhares de ressaca...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: pimentinha
ardia
Joaquim Lisboa Neto: A vulcânica
baxinha
Joaquim Lisboa Neto: Resistiu a
cair nos braços da malagueta
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Emiliano José
29
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
HAF Palace Hotel
Pensa:
a última edição da revista Bondinho trazia Zé Celso (Martinez Corrêa) na capa,
maior parte da matéria dedicada ao Oficina-Uzona, grupo teatral liderado por
ele.
Naquele
maio de 1972, Cardoso continuava morando com Ana Lúcia, Aninha, a primeira
mulher.
Moravam
no HAF Palace Hotel.
Todo
mundo chamava assim o apartamento de andar inteiro, de elevador privativo, no
final da avenida Rio Branco, na capital paulista, oficialmente residência do
editor-chefe do Bondinho, Hamilton Almeida Filho - HAF.
Na
prática, o apartamento prestava-se a acolher o funcionamento de parte da redação
- ali se trabalhava duro na distribuição das pautas, no recebimento das
matérias, na edição, no fechamento da revista.
E
era, de alguma forma, uma comunidade meio hippie e meio profissional.
Havia
alguns moradores fixos - o próprio HAF e a mulher dele, Lúcia Correia Lima, e
também Cardoso e a mulher.
O
apartamento era grande - Cardoso, pela amizade com HAF, gozou desse privilégio.
Alta
frequência de jovens e obstinados jornalistas da pesada.
Um
dia, Zé Celso e Renato Borghi chegaram com suas tralhas e acamparam na enorme
sala do apartamento.
Os
dois multiplicaram a agitação - choviam discursos, debates entre berros e
gargalhadas, noites e dias seguidos.
Desses
discursos e debates, todos participavam.
No
meio desse fuzuê, saía a Bondinho.
Tudo
muito louco, tudo muito bem, mas no meio do caminho havia uma pedra.
Repressão
não estava pra brincadeira.
1972
era período Médici, o mais terrível da ditadura.
Marcos
Faerman, já fora da revista, manda um recado impositivo para Cardoso:
"Sai
imediatamente do País. Os homens estão a fim de te pegar. Seu nome consta como
fundador e dirigente do POC. Fui mais uma vez chamado para interrogatório e vi
a lista das pessoas em que eles estão interessados. Pega suas coisas básicas e
some!".
Não
pensou duas vezes.
Ganhou
a estrada.
Ele
e Aninha, grávida.
O
ônibus no caminho para Pedro Juan Caballero, cidade fronteiriça do Paraguai,
colada a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.
Destino
final: Santiago do Chile, onde Salvador Allende governava....
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de novembro de 2021
Jary Cardoso:
tarefa arriscada
Estava
numa rota de fuga já conhecida.
Convém
dizer conhecida como.
Voltar
um pouquinho no tempo.
Vivera
o ano de 1969 em Porto Alegre, já contamos a experiência dele no Sul, onde
iniciou a trajetória jornalística.
Voltara,
e estava sossegado em casa, e ao mesmo tempo atormentado porque desempregado,
sem saber rumo a tomar.
Encontrara
uma profissão
Era
jornalista agora, mas sem emprego.
Amiga
muito querida, já falada em prosa e verso aqui, bate à porta.
Ela
o levara à Polop, cês sabem dela: Marie Christine Laznik.
Cês
sabem também: Cardoso estava afastado das atividades revolucionárias diretas,
depois do transe.
Ela
foi entrando e logo dizendo: pudesse, queria um favor dele, um grande favor.
Sabia
de uma coisa: pedido dela, por tudo, nunca poderia negar.
Marie
disse da situação.
Filho
mais novo do casal Boris e Regina Schnaiderman, Carlinhos, havia se metido
com uma das organizações da luta armada.
Cardoso
não se recorda se Ação Libertadora Nacional (ALN) ou Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR)
Resumo
da ópera: ninguém menos que o famigerado Sérgio Paranhos Fleury estava no
encalço dele.
Pegassem-no,
ninguém imaginava o destino do rapaz, se escaparia com vida sequer.
Ela
ouviu dos pais o apelo dramático: alguém precisa acompanhar Carlinhos na fuga
para o Chile.
E
fosse alguém com alguma experiência, traquejo.
Na
cabeça dela, ninguém melhor, mais apropriado: Cardoso.
Indicou-o
aos pais.
Só
não havia combinado com o russo.
Fazia-o
agora.
Ouvindo-a,
o pensamento a mil.
Estava
fora das atividades revolucionárias, mas como deixar de atender o pedido de
pessoa tão querida?
E
de um casal, também tão respeitado, querido?
Boris,
professor de línguas orientais, tradutor de Maiakóvski, de tantos poetas
russos.
Regina,
psicanalista ortodoxa da escola freudiana, mulher de fibra, personalidade
fortíssima.
Os
dois o conheciam bem.
Só
podiam confiar o filho a alguém da mais profunda confiança...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
1º
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
segurança de adolescente rebelde
Boris
e Regina Schnaiderman era um casal raro.
Além
de tudo, pais de Miriam, com quem Cardoso havia namorado.
Fora
Marie Christine o anjo anunciador para aquele mundo judaico-comunista.
Heresia
dizer isso?
Judaico-comunista?
Ora,
e quem foi Marx?
E
tantos outros judeus, comunistas?
Cardoso
era bem aceito entre aqueles judeus intelectualizados, eruditos em alguns
casos.
Um
goy - um não judeu amigável e de confiança.
Ele
próprio, bem mais tarde, descobrirá, se isso tiver importância, também ter
sangue judeu - Cardoso é sobrenome típico de cristãos novos.
O
casal saudou calorosamente a aceitação da tarefa de deixar o filho no Chile.
Deram-lhe
dinheiro para as despesas de viagens, instruções sobre a rota a seguir e
disseram até do comportamento - espécie de manual de segurança: ele conhecia
bem do ramo, mas o que abunda não prejudica.
Deveria
tentar manter-se ligeiramente distante de Carlinhos, mas sempre de olho nele e
nas pessoas do entorno.
Atenção:
caso a polícia apanhasse o menino, era importante Cardoso estar a salvo para
poder avisar a família imediatamente.
Levou
consigo um número de telefone, devidamente mocozado.
Viagem
longa, cansativa.
Houve
momentos de relaxamento na segurança, e ficaram juntos.
E
a proximidade às vezes desembocava em conflito porque o Carlinhos era um
adolescente bem rebelde, a acreditar na avaliação de Cardoso, e é pra
acreditar.
Final
de jornada, e Carlinhos foi entregue no Chile, como o combinado.
Confessa:
com problemas de relacionamento e tudo, gostou do rapaz.
Nunca
mais soube dele.
Curioso,
pesquisou na internet, e o localizou, falando em 2015 como secretário municipal
de Saúde de Guarulhos, onde também teria sido vereador, não sabe por qual
partido.
Ar
tranquilo, nenhum sinal mais daquele jovem agitado, e muito parecido com o pai.
Tempo,
tempo, tempo...
A
viagem o preparara para a outra, a de quase meados de 1972.
O
destino, novamente Chile...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Jary com Ana Lúcia esperando os filhos gêmeos)Emiliano José
2
de dezembro de 2021
Jary Cardoso: on
the road
Quando
você pensa no diabo quieto, ele volta a atentar.
Imaginava
não fosse ser mais incomodado pela ditadura.
Estava
na dele já havia algum tempo.
Ditadura
o vigiasse, e saberia estar devotado ao ganha-pão, agora ali no Bondinho, dando
duro.
Adianta,
não.
Ditadura
é ditadura.
E
qualquer indicativo, volta atrás do antigo militante.
Fica
a marca.
Quando
Marcão lhe deu a dica - os homens estão a fim de você - deu frio na barriga.
Quando
disse saia do País, não pensou duas vezes.
Nos
momentos difíceis, sempre pensava rápido.
E
a experiência dos tempos de militância na Polop lhe valia muito.
Defrontado
com o perigo, era tomado sempre por uma calma impressionante.
Conversou
com Aninha, mostrou-lhe não haver outra alternativa.
Grávida,
arrumou algumas mudas de roupa, e pé na estrada
- os dois.
À
saída de São Paulo, olhava prum lado, pra outro, todas as antenas ligadas,
verificando não estar sendo seguido.
De
ônibus, primeiro para Pedro Juan Caballero.
De
lá, Assunção.
Do
Paraguai, destino Buenos Aires.
Da
capital argentina, seguir para Santiago do Chile, onde Allende governava, onde
a esperança de um socialismo fundado na democracia parecia real.
Passaram
por Mendoza, o ônibus seguindo - atravessaram os Andes até chegar à capital
chilena.
Não
fora possível participar da finalização da última edição do Bondinho.
Providencialmente,
no entanto, alguém, no dia da partida, entregou-lhe uma prova de pré-impressão
da revista.
Durante
a longa viagem e os três meses de Chile, lia e relia o Bonde.
Tentava
no percurso, ele e Aninha, guardar parecença com jovens brasileiros em viagem
turística.
Levava
a tiracolo o inseparável gravador cassete, o velho companheiro de tantas
entrevistas.
Em
cada parada, e foram muitas, inseria no cassete fitas com gravações de Roberto
Carlos ou de músicas pop de sucesso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
banzo do exílio
Quem
tivesse saído do Brasil, aquela ditadura Médici, anos de terror, sobretudo no
pós-AI-5, estar no Chile era uma sensação muito boa.
Já
era ditadura de alguns anos, desde 1964, a brasileira.
No
Chile, aquele clima democrático, as ideias de esquerda em alta.
Cuba,
presença constante - modelo, exemplo de luta revolucionária, bastião de
resistência.
De
repente, o dinheiro levado do Brasil começou a escassear.
Viver
custa, mesmo acolhidos na casa do amigo encontrado na estrada, ele e a mãe tão
generosos.
As
deliciosas empanadas chilenas, seriamente ameaçadas.
Cardoso
resolve então, coração partido, torrar nos cobres um presente da mãe, de meses
antes: preciosa máquina fotográfica Pentax.
Rendeu
tantos pesos chilenos, a máquina, a ponto de dar aos dois a ilusão de pessoas
ricas.
Saíram
entrando em lojas, comprando ponchos vistosos, dos melhores.
Passaram
a comer nos melhores restaurantes.
Vida
boa.
É,
mesmo ricos, o banzo surge, apesar da liberdade e dos pequenos prazeres.
Tristeza
profunda, sentiam os dois.
Cardoso
sentia uma falta terrível do Brasil.
Falta
danada de conversar com brasileiros.
Viver
os costumes do País, a cultura, jeito de ser.
Aninha,
a cantar baixinho músicas de Chico, Caetano, acreditando distrair-se, de modo a
não pensar muito na vida levada no Chile, distante da Pátria, enquanto a
barriga crescia para dar espaço aos gêmeos.
Não,
os filhos não podiam nascer ali, tão distantes da família.
De
modo nenhum.
Cardoso,
lendo ficção científica.
Conseguia
viajar num "Mundo Paralelo" - título do autor preferido dele então,
Clifford D. Simack.
A
descoberta dessa literatura, no Bondinho - nele se publicara alguma coisa da
área, textos e desenhos.
Na
bagagem da fuga, havia muito dessa literatura.
Cardoso
vivia, ainda, invocando a mãe, pretendendo tivesse ela a capacidade, nessa
invocação, de resgatar a mediunidade reprimida por ele quando jovem ateu e
incrédulo.
Quando
menino, tinha visões, rostos, bichinhos coloridos se mexiam e queriam se
comunicar com ele - ao menos, pareciam pretender tal comunicação.
Tinha
medo - dizia à mãe.
Ela
o levou a uma sessão espírita para afastar tais espíritos.
No
Chile, vontade, tentação de tê-los de volta.
A
mãe, no Brasil, preocupada, morrendo de saudade, e querendo-o por perto.
Começou
a mexer os pauzinhos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(A mãe Luiza Cardoso regendo um de seus muitos corais de estudantes)Emiliano José
5
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
mãe é mãe
Ele,
no banzo chileno, doido pra ter os espíritos de volta.
Com
eles, pegar um disco-voador e sair deste mundo cruel.
Quem
sabe, os espíritos o levassem a territórios menos inóspitos, mais solidários e
sem ditaduras.
A
mãe, preocupada.
Mãe
é mãe.
Queria
porque queria: voltassem os dois.
O
mais rápido.
Nem
pensar em nascimento dos netos longe dela.
Íntima
de um companheiro de fraternidade espírita, foi atrás pra levar uma conversa.
Sujeito,
fosse nada, era militar da ativa.
Major
Dirceu, da Aeronáutica.
Naqueles
tempos, mão na roda.
Foi
até ele e contou a história.
-
Meu filho está no Chile. Mulher grávida de gêmeos. É jornalista hoje, só isso.
Teve umas coisinhas no passado. Está limpo, mas teme ser preso ao desembarcar
de um avião chileno.
O
major, atento, ouviu tudo com atenção em respeito à fraternidade espírita.
Ouviu
e garantiu:
-
Mande seu filho embarcar. Estarei no Galeão. Acompanharei o desembarque dele.
Mãe
é mãe - se ela não faz milagres, nem Deus faz.
Dinheiro
para as passagens, tinha.
Ainda
restava algum da venda da milagrosa Pentax.
Pegaram
o avião em Santiago.
A
mais longa viagem aérea feita na vida.
Ele
e Aninha desceram tensos.
Ditadura
é ditadura.
Major
Dirceu estava lá, como prometido.
Homem
de palavra.
E
de correr riscos.
Fazer
aquilo sob uma ditadura, requeria coragem.
Serviço
completo: levou os dois para a casa dele.
Por
alguns dias, foram muito bem tratados pela família do militar.
Até
partirem para São Paulo.
Pulou
fogueiras.
A
primeira, não ser incomodado pela ditadura brasileira.
A
segunda, não ser alcançado pela feroz ditadura chilena, implantada 11 de
setembro do ano seguinte, o facínora Pinochet à frente, Allende sob as cinzas
do La Moneda.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
6
de dezembro de 2021
Jary Cardoso: Bondinho,
cartão de apresentação
Saltar
fogueiras não era propriamente algo desconhecido para Cardoso.
Muitas,
na vida.
Agora,
cuidar do pão de cada dia.
Gêmeos
a caminho, existência cobrava providências.
Ao
voltar pra São Paulo, sentiu-se distante do pessoal do Bondinho, cujo fim
acontecera em maio daquele ano.
-
"A turma radicalizou, se enturmou com Zé Celso, e acabaram todos
presos".
HAF
editou jornal na prisão.
Cardoso,
acompanhava tudo de longe.
Curioso:
sentia-se estrangeiro em São Paulo, deslocado.
E
havia o espectro da OBAN.
A
tigrada, quem sabe, poderia ainda botar as mãos nele.
São
Paulo era o epicentro da repressão no País.
Melhor
tirar o time.
Aninha
e ele aportaram novamente no Rio de Janeiro.
Os
pais dela garantiram aluguel de apartamento na Rua Lauro Muller, décimo quarto
e último andar de prédio em frente ao Canecão.
O
apartamento ficava nos fundos do prédio e havia um janelão na sala, a permitir
visão deslumbrante do Morro da Babilônia.
Começava
nova história, intensa e de pouca duração.
Trabalhar
com o empresário tropicalista Guilherme Araújo, a quem ele apresentou-se como
ex-repórter do Bondinho, boa carta de apresentação.
Do
Bondinho, lembranças sempre presentes.
Naquele
momento, iniciando nova jornada, e com um tropicalista, mais ainda.
Desde
"O Pasquim" de Tarso de Castro, lançado em meados de 1969, as
atenções dele como jornalista estavam voltadas para esse tipo de publicação.
Nas
bancas, ia atrás de cada edição d'O Pasquim', com a obstinação de colecionador
- é provável que reste boa parte dessa coleção na casa dele.
Não
só d'O Pasquim'.
Foi
assim também com "Flor do Mal", surgida em 1971, fundada por Luiz
Carlos Maciel, Tite Lemos, Rogério Duarte e Torquato Mendonça.
Excitou-se
quando viu o Bondinho na bancas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Da Flor do
Mal, quando vivia em Beagá, li as se não me equivoco três e nada mais
edições. Se não for viagem lisérgica era
tamanho A4
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Emiliano José
7
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
desbunde concentrado
Precisava
fazer o cerco.
Aproximar-se.
Assim
como quem não quer nada, querendo.
Começou
frequentando a redação da revista, na sede da Arte & Comunicação Editora
(A&C),1971.
Quando
o Bondinho despontou nas bancas, leva um susto: nunca vira uma publicação
alternativa de tanta qualidade.
A
A&C editava o Bondinho e outras publicações, como o Grilo, primoroso gibi
underground - continha a vanguarda dos quadrinhos brasileiros, europeus e
americanos: segurou as pontas entre 1971 e 1973, censura determinou o fim.
Editou
ainda o Jornalivro, de 1971 a 1975, comandado pelo escritor Roberto Freire,
psiquiatra reichiano, anarquista: pretendia levar clássicos da literatura para
as bancas de jornais a preços populares,
e conseguiu.
No
frigir dos ovos, tomou o bonde.
O
Bondinho, já foi dito, foi a mais rica experiência jornalística dele.
Esses
dias, provocado por mim, Cardoso deu-se de abrir algumas caixas de papelão em
casa e deparou com preciosidades: quase todas as edições do Bondinho
independente e algumas da fase patrocinada pelo supermercado Pão de Açúcar.
Topou
também com várias edições do Ex, corajoso jornal libertário, sucessor do
Bondinho.
Pesquisadores
podem se deliciar com esse acervo.
Talvez
já tenha dito: a redação do Bondinho era constituída de jovens com aparência
igual à dele, até mais espalhafatosa: cabelos compridos, roupas coloridas,
camisetas curtas, umbigo sempre aparecendo, calças bocas de sino, colares,
pulseiras, anéis, festival de cores.
Desbunde,
pero desbunde concentrado.
As
edições do Bondinho permitiram a Cardoso navegar por sobre a história dele na
revista.
Dele
e de parceiros.
Estava
acompanhando a edição onde se encontra a entrevista de Tom Zé, concedida a
Ricardo Vespucci, repórter preferido de Hamilton Almeida Filho (HAF).
Vê
sair de uma sala de repente, o próprio, Tom Zé...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
Tom Zé e a "Preta Velha"
Antônio
José Santana Martins.
Tom
Zé.
Filho
de Irará.
Sertão
de gente braba.
E
talentosa.
Terra
perigosa, porque cheia de comunistas.
Ele
próprio, de família vermelha.
Os
Santana dali de Irará fizeram história na luta revolucionária.
Ligados
ao PCB.
Mais
famoso deles, Fernando Santana.
Saiu
de Irará para impressionar o País e o mundo - esteve exilado quando do golpe de
1964.
Deputado
algumas vezes.
Outro,
quase tão famoso quanto Fernando Santana, nascido naquelas paragens de Irará:
Aristeu Nogueira, dedicado à luta revolucionária, dirigente do partido por
décadas.
Ali,
desembarquei um dia pelas mãos de Edson Barbosa, filho de Tieta e de Edson, ele
iraraense talentoso, festejado publicitário.
Ali
fui sempre muito bem acolhido desde o início dos anos 80, e tive votos quando
disputei mandatos parlamentares.
Em
meio aos Santana, fiz amizades: tanto o velho Fernando, o velho João, pai de
Elísio.
Elísio
Santana, com quem até hoje convivo, tantos outros.
Tom
Zé vem daquela terra abençoada, agraciada pela presença de tantos comunistas.
A
revolução dele, real, espécie singular de tropicalista, veio por outros
caminhos, mas se de Irará não podia ficar à margem da Revolução.
O
singular personagem, Cardoso viu sair de uma sala na redação do Bondinho.
Era
fã dele.
No
gargarejo, vibrara num show dele com Os Brazões.
Não
resistiu, vocês sabem o que é tiete: abordou-o.
Tom
Zé, simpático, acessível.
De
cara, Cardoso sentiu-se amigo íntimo dele.
Mãe
morava ali perto, chamou-o para puxar um fumo.
Tom
Zé não relutou: vamos nessa, alegria, alegria.
Foi
entrar no apartamento e se encantar com Vó Mercedes, a "preta velha",
como a mãe de Cardoso a chamava, nascida de "ventre livre", mãe dela
escrava do primeiro Cardoso da família vinda de Portugal, ele poderoso cafeicultor
da região do interior de São Paulo, Botucatu.
Mercedes
foi babá de três gerações dos Cardoso, inclusive babá dele, Jary Cardoso.
Tom
Zé, amor à primeira vista:
-
A dona Mercedes é idêntica, na aparência e no jeito de ser, às tias e avós de
Irará, minha terra natal.
Tão
entusiasmado e enlouquecido com a madrinha e avó de criação de Cardoso, que a
erva restou abandonada.
Fumo,
pra quê fumo?
Ouvir
Mercedes foi seu delírio naquele dia.
Preferia
aquele papo ancestral a qualquer outra coisa.
A
preta velha roubou a cena.
Ela
o levou de volta aos velhos tempos de Irará...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Carlos Pereira Neto Siuffo: Esqueceu, o
grande Vicente Santana, irmão de Fernando, também comunista e grande pessoa.
Emiliano José: Faltam muitos,
Carlinhos...
Carlos Pereira Neto Siuffo: Sei, Juca, que
foi Ministro da Cultura, gostava de dizer que na Bahia até o PC era
aristocrático, pois pertencia a uma família -a Santana. Exagêro, claro.
Edgard Navarro: Sou fã de Tom
Zé e do Baião Atemporal:
"No
último pau de arara de Irará
Um
da família Santana viajará."
E
também sou fã de um tal de Emiliano José.
Emiliano José: Edgard Navarro
honrado
Artur Carmel: Família
Santana de Irará ! Sou fã !!
Emiliano José: Somos
Carlinhos Safira: Eu também
amigo Fernando
Jailson Alves: Tom Zé se
encanta sempre com o simples. E quase sempre, suas sofisticadas canções partem
do simples. Belo texto, Camarada Emiliano José
Aleksei Santana Turenko: Bacana!
Paulo Marcos Voz: Bárbara
Anunciação não conheci essa gente comunista toda, mas vc os representa bem
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(Aninha é a autora dos desenhos em preto e branco)
Emiliano José
9
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
desembarque de mala e cuia
A
chegada ao Bondinho foi de mala e cuia.
Já
trocamos palavra sobre isso.
De
raspão.
Mais
uns dois dedinhos de prosa.
Aninha,
mulher de Cardoso, a primeira, fez amizade rapidamente com Lúcia Correia Lima,
casada com HAF.
Se
não sabem, Lúcia é talentosa fotógrafa, baiana, amiga, cujo pai tem fantástica
história de militante, já contada por mim num dos meus livros da série
"Galeria F: Lembranças do Mar Cinzento" - Mário Alves.
Militante
de base, não dirigente nacional, como o homônimo dele, assassinado em 1970 pela
ditadura, biografado pelo nosso colega jornalista Gustavo Falcón.
Mário
Alves, comunista, borracheiro em Alagoinhas, obrigado a fugir para São Paulo
por conta do golpe de 1964, que saiu a
caçar o PCB no município.
Dona
Íris, mãe de Lúcia, tornou-se minha amiga querida.
Agliberto
Lima, é também amigo querido, irmão de Lúcia, dos maiores fotógrafos do País,
meu colega no Estadão.
Assim,
estamos em casa ao falar de Lúcia.
Ela
gostou muito do casal.
Convidou
os dois para morarem num dos quartos do enorme apartamento onde ela e HAF
residiam - andar inteiro de edifício situado no final da avenida Rio Branco.
Sopa
no mel pro casal.
Mãe
de Cardoso se juntara com um companheiro da Federação Espírita.
Sujeito
não gostou do jeito de Cardoso - filho mimado e dependente não era com ele.
E
o expulsou.
Com
o convite de Lúcia, ele e Aninha não eram mais sem-teto.
E
o apartamento, como vocês já sabem, era também, redação do Bondinho.
O
casal pegou as poucas tralhas e foram para o HAF Palace Hotel - assim chamado
pelos jovens repórteres e diagramadores do Bondinho, frequentadores por dias e
noites do local.
Assemelhado
mais a uma comunidade hippie, creio já ter dito isso, mas repito.
Mas,
ninguém se engane: dirigida por duro comandante.
HAF
nem sempre era paz e amor.
Aninha,
formada pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, gostava de desenhar
e pintar.
Fez
amizades com o pessoal da editoria de Artes.
Colaborou
com ilustrações pra a seção de cartas e para várias matérias, inclusive para a
entrevista feita pelo casal com Maria Bethânia, capa da revista.
Cardoso
lembra de uma espécie de treinamento, não planejado: antes de fazer qualquer
matéria para a revista, ajudava a tirar do gravador as entrevistas em estilo
ping-pong, destaque da publicação...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Que lindo filme Jary e Emiliano José me trazem de volta. Mas amado amigo Emiliano, um romântico amante dos fracos e oprimidos. Defensor dos trabalhadores oprimidos pelo burro cruel capitalismo. Pai era MÁRIO DANTAS Alvez, veio para ficar sossegado. Mas em Alagoinhas tinha uma das melhores casas de Auto-peças. A borracharia era um dos seus comércios bem sucedidos. Uma das lembranças da infância foi mãe - que foi ver Lula no Pelourinho qdo ele falava para o povo subindo em um caixote - brigando comigo porque queria brincar com água da cadeira do dentista. Pense. Qual filha de borracheiro com 6 filhos vai ao dentista?! Kkk
Mônica Bichara: Esses
comentários são tão importantes para complementar as histórias e a história.
Adoro essa interatividade que as redes proporcionam e que levamos para os
livros da série
Emiliano José: Ele nunca foi
borracheiro, Lúcia? Pensei tivesse sido. Terei de alterar o livro, havendo 2ª
edição. E cobrar das fontes que me informaram errado. Informei no livro as
demais atividades. Bom mesmo, será o livro que você está escrevendo : fará
justiça ao grande pai. Beijo
Lucia Correia Lima: Ele teve sim uma borracharia que comprou para ajudar um amigo. Mas seu carro chefe como próspero comerciante era uma grande loja de peças para automóveis. Mas o povo sempre sacana, nunca via seu boné italiano. O chamava de Mário da Barracha. Invejosos. Foi a auto-peças que lhe deu uma vida boa. A ele e a todos do partido ou não, que ele ajudava de muitas formas. Como ao Antônio Torres , que pai pagou o trem para apresentá-lo ao João Falcão e no mesmo dia começar a trabalhar no jornal do companheiro a pedido por ordem de pai. Veja esta história no discurso de posse de Antônio Torres tanto na ABL do Rio quanto a ABL da Bahia. Eu tenho vou copiar p vc. Beijos no ❤
Emiliano José: Pela memória
dele, seu livro é importante.
Lucia Correia Lima: Na luta por ele. Emiliano, MUITO MUITO importante seu incentivo. Grata. Tá duro, mas sou otimista
Antônio Torres: Lucia , querida: é verdade, sempre rendi minhas homenagens ao seu pai, o
desprendido, muitíssimo generoso, melhor dizendo, Mário Alves, tão bem lembrado
pelo confrade - na Academia de Letras da Bahia - Emiliano José num dos seus
livros da série "Galeria F: lembranças do mar cinzento", que vim a
ler recentemente. Mencionei o grande empurrão que ele deu para o meu ingresso
no jornalismo numa crônica que escrevi para o Jornal do Brasil ("Tributo a
um comunista"), que veio a ser incluída no livro "Sobre
Pessoas", de 2007, e numa entrevista ao diretor teatral Aderbal Freire
Filho, num excelente programa que ele fazia na TV Brasil, "A arte do
artista". E mais e mais. Eu o conhecia apenas de vista, em Alagoinhas, daí
a grande surpresa da pergunta que ele me fez, ao se sentar ao meu lado num
banco da praça principal daquela cidade, a J. J. Seabra, depois de me dizer que
havia gostado muito de um artiguete que eu havia escrito para um jornalzinho
local, quis saber se eu não queria trabalhar "num jornal de verdade".
E aí, poucos dias depois, ele me levou para o Jornal da Bahia, fazendo-me
entrar nele pelas mãos do seu dono, João Falcão. Fiquei só um ano no JBa., de
onde parti para a Última Hora de São Paulo, e nunca mais vi o Mário, a quem
consigno aqui a minha eterna gratidão.
Emiliano
José: Obrigado pelo depoimento
Lucia Correia Lima: Antônio Torres, você como todo nordestino é uma nobre criatura. Poucos se lembram de que nos empurra para uma nova vida. Estou sempre a falar de Saulo Garroux. Que me levou para o Departamento de Criação da REALIDADE, eu meninas indo almoçar com Zé Hamilton Ribeiro, só para lembrar de uma das feras onde era mascote. Jesus Oxalá Ala lhe proteja lhe inspire e que o mundo mais ainda encontre seu talento.
Lucia Correia Lima: Mônica Bichara
sim. Cria uma dinâmica rica para o leitor.
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Emiliano José
10
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
complacência da imprensa diante do terror
Na
fase mais dura da ditadura, fazer jornalismo exigia coragem e talento para
driblar a repressão em sentido lato, e a censura, no plano específico.
Coragem,
claro, para aqueles dispostos a fazer jornalismo.
Nossa
grande imprensa incomodava-se, claro, com a ditadura, mas nem tanto - ia acumpliciando-se,
a bem da verdade.
Lembro
do jornalista Bernardo Kucinski, amigo, convivemos no "Em Tempo",
estivemos juntos mais recentemente, hoje brilhante escritor.
O
livro dele - "Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da Imprensa
Alternativa", além de tratar com rigor o objeto principal, aborda também a
grande imprensa - olhaí Cardoso, a publicação lhe servirá, se já não a tem em
mãos, para pesquisas em torno do livro a caminho, de sua lavra.
A
censura prévia regular em "O Estado de S. Paulo" e "Jornal da
Tarde", em agosto de 1972, afetou pouco o modo de produção daqueles dois
jornais, como diz Kucinski, mas teve um efeito essencial: reforçou o poder
dissuasório do sistema - da ditadura - sobre os demais jornais, "que
docilmente se autocensuram":
"Frequentemente,
os jornais resvalavam para o colaboracionismo veiculando notícias plantadas
pela polícia sobre 'fugas' ou 'atropelamentos' de presos políticos,
indiscriminadamente chamados de 'terroristas'. Tornavam-se, assim, cúmplices do
processo de liquidação desses presos".
Complacente
- assim Kucinski define o comportamento da grande mídia com o autoritarismo da
época.
Da
imprensa convencional, entre 1970 e 1974, a contrariar o colaboracionismo,
Kucinski ressalta uma exceção: o jornalista Hélio Fernandes.
Durante
quase 10 anos, o jornalista enfrentou censura prévia rigorosa no diário
dirigido por ele, "Tribuna da Imprensa", sem jamais transigir ou
negociar com o censor.
Assim,
quem quiser discutir a censura no período da ditadura, a relação dela com a
grande imprensa, bom pesquisar com mais cuidado antes de produzir textos
aligeirados, antes de colocar tudo no mesmo saco, antes de embarcar no discurso
liberal vazio, dissociado da história, tão comum.
E
com isso não se está minimizando o esforço dos trabalhadores jornalistas a
laborar nessa grande imprensa, cujo interesse em busca da verdade, aqueles de
convicções democráticas, era constante, sempre atrás de brechas onde revelar
alguma coisa daquele tenebroso período.
A
imprensa alternativa, sim, teve de rebolar, se virar nos trinta pra produzir
alguma coisa.
E
produziu.
Muito.
O
Bondinho, nessa conjuntura, procurava caminhos, desbravados pelo ímpeto,
coragem, talento dos jornalistas reunidos em torno dele.
Exercitava
a liberdade de expressão pela palavra das pessoas entrevistadas.
Deixava-os
falar, comentar...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
11
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
desafio de novo livro
Protagonista
e jornalista, é problema.
Cardoso
sugeriu: você começou, agora siga adiante.
Imprensa
alternativa, vá em frente - propunha.
Voltei
ao hoje romancista, nosso querido Kucinski.
À
obra de referência: "Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da imprensa
alternativa" - lembrei-me de um faroeste famoso, "No tempo das
diligências": com o olhar de hoje, nada dignificante.
E
aí pensei: não dá pra seguir o conselho de Jary Cardoso.
Daria
outro livro - vou deixar a tarefa pra ele, nesse momento meio atarantado com
pauta dada a ele por Tom: mais não digo porque não estou autorizado a revelar
qual o livro trabalhado pelo filho.
Anoto
apenas uma coisa.
Relendo
Kucinski fui surpreendido por um registro dele - releitura é sempre cheia de
descobertas.
A
ver comigo e com a própria história de Cardoso.
Naturalmente,
a ser conferido.
Em
1968, ele argumenta, quando Ação Popular, organização revolucionária a que
pertenci, decidiu pela política de integração na produção, optou por enviar
seus militantes ao mundo operário, camponês e de bairros, caindo na
clandestinidade se necessário, quando isso ocorreu, os jornalistas da base de
AP na revista "Realidade", contrários a essa diretriz, deram origem à
linhagem dos "alternativos existenciais e antidoutrinários".
Foram
eles, diz nosso Kucinski, os criadores do "Bondinho",
"Jornalivro", "Grilo", "Foto-Choq",
"Ex", "Viver", "Mais um", "Extra Realidade
Brasileira" e "Domingão":
"Começaram
por um jornalismo engajado mas anti-doutrinário, passaram por uma fase de
experimentação com drogas e terminaram num jornalismo 'kamikaze', através de
Ex, em que cada edição era um ataque definitivo ao regime ditatorial."
Só
isso, sei, dá baita discussão.
Provoca
tremenda controvérsia.
É
pauta para o livro de Cardoso.
Tentar
saber, eu não sei, quem era da base de AP na "Realidade".
Narciso
Kalili, Roberto Freire e Sérgio de Souza, me parece, foram de AP - não o digo
de modo definitivo, é afirmação sujeita a chuvas e trovoadas.
Para
concluir quanto a isto, insistindo: passo a bola pro próprio Cardoso.
Quando
estiver lavrando o eito, ajudo - se requisitado.
Acho
empreitada do maior valor.
E
ele já tem em casa material para excelente ponto de partida.
Grande
desafio, estimulante...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de dezembro de 2021
Jary Cardoso: a
cama d'água...
Era
uma festa, o hotel do HAF.
Festa
de muita responsabilidade.
Não
imaginem um bocado de pessoas a vagabundear.
Nem
pensar.
Que
ali tinha mando, e mando forte.
HAF
não era brinquedo não.
Bondinho
tinha de chegar ao destino.
Agora,
moçada de então, era compenetrada na curtição:
até
instrumentos de trabalho serviam ao prazer.
Depois
de cada nova entrevista, a gravação ecoava pelo apartamento, e moçada então
ouvia e reouvia, enquanto alguém fazia a degravação.
Dessa
curtição, Cardoso participou muito, degravando uma porrada de gente, com muito
gosto.
Sempre
com o cuidado de manter as palavras do entrevistado, intrometendo-se apenas
para alinhavar uma frase, outra, prejudicada pela oralidade do entrevistado.
Festa,
o Hotel do HAF.
Trabalho
criativo?
Ócio
criativo - antecipando Domenico De Masi?
O
fato é que ali todos trabalhavam alegres, alegria, alegria, até porque a
maioria adorava Caetano.
Após
cada nova reportagem, o artista botava em slides todo o material e o exibia
numa das altas paredes da sala através de um projetor, enquanto um potente
aparelho de som reproduzia em alto volume os discos preferidos da tribo.
Sei,
corro riscos : slides? que diabo é isso?
Quando
falei artista, o fotógrafo da reportagem.
Slides,
as novas gerações irão ao dicionário - Google, não?
Havia
um álbum de preferência, e não cansava: os dois LPs da gravação ao vivo do show
Gal-Fatal.
Mal
ia terminando a última faixa do segundo LP, e já havia alguém de plantão pra
colocar novamente no começo do primeiro disco.
Assim
eram as noites, assim eram os dias, e nem sempre se sabia quando dia quando
noite:
-
Até hoje, quando ouço faixas desses discos de Gal, revivo com intensa alegria o
clima daquele apartamento, mistura de trabalho com curtição e erotismo.
Cardoso
completa:
-
Havia muito sexo no ar, as meninas soltas e exuberantes, namoros, beijos,
amassos, tudo multiplicado pela enorme cama d'água que ocupava boa parte do
quarto de HAF e Lúcia.
Ah,
aquela cama d'água:
-
Só de deitar naquela cama, já dava vontade de fazer amor.
Roberto
Freire, famoso reichiano, aparecia por lá, afundava numa poltrona, e assuntava,
em silêncio, olhar perscrutador, a cama d'água e todo o resto, estudando aquela
loucura...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Como Mônica ama valorizar os comentários vou contar de como "risos" entrou nas entrevistas. Os editores me botaram também para "tirar" as entrevistas da fita. Quase todas em um super profissional gravador Huer. Não lembro se escreve assim. "Não perca um detalhe." Era séria recomendação.
Pois bem: quando o entrevistado ria ou gargalhava. Sempre um riso que virava coletivo, pois as entrevistas, muitas eram feitas por mais de um jornalista e as vezes convidados dos jornalistas ou das fontes, abria parênteses e colocava (risos). Colocava também (gargalhadas) e sinalizava os silêncios.
Lembro de Chico Buarque que bebia uma bebida verde, ficar triste silencioso. Era ditadura. Ele, por exemplo, falava, meditava sobre o futuro das filhas. Vinha um silêncio triste. Mas os editores passaram a botar somente (risos).
Mônica Bichara: Verdade, amo
os complementos de quem viveu a situação. Enriquece a narrativa e torna a série
mais interativa
Lucia Correia Lima: Vero. Eu
também sempre procuro os comentários dos textos que leio. Foi feliz ontem.
Artur Carmel: Roberto Freire
não esteve à altura do apto de HAF...Certa feita, aqui em SSA, numa de suas
inúmeras incursões pelo país, para ratificar a tese "sem tesão não há
solução", perguntei-lhe sobre seu signo zodiacal e o cara se ofendeu...Sem
tesão não há solução!
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Emiliano José
13
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
dançando nus...
Vai
contar um dia tim-tim por tim-tim.
Vai.
Quando
estiver na estrada, cavalo bom, de passo, vai se recordar do Hotel do HAF, e
contar tudo.
Ali
tem história pra mais de metro e meio.
Promessa
já está feita: Cardoso vai escrever sobre a imprensa alternativa, nanica,
marginal, como se queria chamar.
E
o Hotel do HAF, capítulo especial.
Só
para apimentar, ele solta uma historinha aqui, outra acolá sobre o Hotel do
HAF.
Assim,
o leitor vai ficando curioso, esperando o livro.
Falaram
tanto na cama d'água, daquelas só vistas em motéis, a ponto de um casal amigo
pedir uma visita ao hotel.
Visitar
a cama: só, nada mais.
Casal
chegou, cumprimentou timidamente todo mundo, e seguiu para a principal atração
do hotel.
Entrou
no quarto.
Os
dois, deslumbrados com a cama.
Nunca
haviam visto coisa igual.
Devia
de ser bom demais fazer amor ali, não?
Início
de noite, resolveram ir às vias de fato, por que não?
Já
que estamos aqui, né?
Bom
demais, demais de bom.
Ninguém
na redação se assustou quando os dois apareceram no salão dançando.
Dançando
nus.
Êxtase.
Felicidade
completa.
Estivesse
ali, e Roberto Freire se deliciaria - Reich tinha razão.
Uma
vez ao menos, Sérgio de Souza, líder máximo da Arte e Comunicação Editora,
sentou-se na famosa cama.
Ele
e a esposa.
Ao
lado de um monte de jovens, erotismo e fumacê no ar.
Não,
se entusiasmem não.
Serjão
não caiu na gandaia, nem a esposa.
Leve
sorriso, cúmplice, respeitou a curtição.
Na
dele.
Entrar
no jogo, aí já era demais.
Porque
era do jeito dele.
E
porque era o chefe.
Tudo
isso, junto e misturado, atraiu Cardoso.
Bondinho
juntava os dois mundos: o comunismo anterior e a contracultura vívida por ele
naquele momento histórico...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
TRANSBUNDAR
HAF
e equipe selecionavam as celebridades a serem entrevistadas.
Celebridades
de esquerda.
Bondinho
tinha lado.
Chico
Buarque e Chico de Assis, por exemplo.
Assis,
assim apresentado na capa da primeira edição de 1972: "teatrólogo, ator, astrólogo, músico,
poeta, etc., ser humano por vocação".
Do
mundo, líderes internacionais da contracultura.
Guitarrista
da banda The Who, Peter Townshend: "fala de Jesus, juventude,
drogas".
Yoko
Ono: "Mulher é o negro do mundo".
Indispensáveis,
os tropicalistas.
Tom
Zé, o genial bruxo de Irará.
Rogério
Duprat: "o maestro descobre que bom é criar com liberdade".
E
outros líderes do movimento, presentes na edição do início de fevereiro de
1972.
A
edição marcava a volta à cena dos tropicalistas.
A
capa, um desbunde.
Melhor,
um
TRANSBUNDE
como
grafado na capa, em letras garrafais, seguido de subtítulo:
"Número
especial: a volta/Gil depoimento total/CAETANO lança verbo transbundar/GONZAGA
encontra com Gil/CAPINAN miséria da cultura/MACALÉ músico e operário/TUDO
EXCLUSIVO".
Títulos
não são pra qualquer um.
Manchetes,
subtítulos, chamadas constituem territórios singulares do jornalismo.
Muitos
títulos do Bondinho eram da lavra de um mestre: Mylton Severiano da Silva -
Miltaynho.
Brasileiro:
levava y e Silva no nome.
Cardoso,
besta nem nada, costumava sentar ao lado dele para acompanhar a elaboração
daqueles pequenos textos, aquelas sínteses admiráveis, as chamadas
provocativas.
Edição
seguinte, e Cardoso é colocado em campo.
Reportagem
a várias mãos.
Imprensa
alternativa.
Entrevistou
Luiz Carlos Maciel, criador da "Flor do Mal'.
Chamada
de capa:
"Underground
- Flor do Mal, Presença, Pato Macho, Verbo, Sobrou só um. Por quê?"...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: bons ? tempos
!
Lucia Correia Lima: sim, pois
lições p sempre
Joaquim Lisboa Neto: Myltainho. Grande
admirador do nosso Osório Alves de Castro
Edson Valadares: Soube que foi
o Heleno que planejou a fakada.
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Emiliano José
15
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
viagem pro carnaval de Gil e Caetano
E
veio o maior acontecimento do Bondinho:
-
A ordem: todos para a Bahia.
O
HAF Palace Hotel entrou em transe.
Todos
queriam ir.
Você
já foi à Bahia, nego?
Registrar
e participar do carnaval.
Não
um carnaval qualquer: aquele, de homenagem a Caetano e Gil, de volta à Bahia,
depois de London, London, o triste exílio dos dois, iniciado em 1969.
Foi
um reboliço: ninguém queria ficar pra trás.
Todos
queriam participar daquela cobertura.
Dinheiro
pra passagens de avião, cadê?
Nem
pra ônibus não tinha.
Galera,
nem aí.
Iria
de qualquer jeito.
Um
amigo dos editores, apresentou armas: emprestaria uma Variant.
Nela,
caberiam alguns chefes.
E
o restante?
O
restante, não queria nem saber: fosse em carroceria de caminhão, iria.
Perder
aquele carnaval, por nada deste mundo.
O
restante, descolar, transar um jeito.
Pra
morte, não há jeito.
Pro
resto, sempre há.
Um
frenesi: repórteres, fotógrafos, diagramadores, desenhistas, nervos à flor da
pele.
Alguns,
foram a pé até a Via Dutra.
Como
os hippies de todo o mundo, polegar levantado, pediam carona.
Um
parava, dizia, só vou até o Rio - embarcavam os que coubessem.
De
lá, seguiriam com outro.
Alguns,
de plantão em postos de gasolina: tome-lhe descobrir destino e suplicar carona.
Cardoso
e Aninha localizaram um motorista de caminhão.
Ia
para o Nordeste.
Passava
por Salvador.
Não
precisaram insistir muito.
Verdade,
verdade: os olhos dele brilhavam só de olhar pra Aninha, escandalosamente linda
e atraente.
Cardoso
percebeu, mas fazer o quê?
Melhor
aproveitar.
Guardando
o devido respeito, olhar não mata.
Motô
conversava muito, os três na cabine.
Viagem
corria bem.
Depois
de muito chão, param os três num posto à beira da estrada: tomar banho, comer.
Chuveiro
ao ar livre.
Cardoso,
toma banho só de cueca.
Aninha,
de calcinha e blusa.
Sem
soutien, roupa molhada, transparente.
Certamente,
motô viu tudo.
Foi
ganhar estrada, e ele cresceu em ousadias.
Cantadas
indiretas pra cima de Aninha.
Fez
até alusão a uma transa, valendo-se do movimento dos limpadores de parabrisa
durante chuva.
Cardoso,
no meio, ressabiado.
Tentando
desviar a conversa.
Confrontar,
não.
Sujeito
era parrudo, dava pra enfrentar não.
Viagem
tensa, os dois com medo.
Respiraram
aliviados quando se despediram dele em Salvador com um civilizado muito
obrigado.
Mais
ainda, Aninha: intacta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
resolver os complexos do Freud
Para
Cardoso e Aninha, não foi uma estadia tão confortável.
Salvador
estava quente naquele fevereiro de 1972.
Eu
olhava o carnaval detrás das grades, na "Lemos Brito", onde chegara
no início do ano anterior.
Eles,
os dois, andando pelas ruas, e dormindo muito mal.
Tinham
de se ajeitar num vão superior de uma casa no Pelourinho, um calor infernal,.
Suavam
os dois a noite toda.
Sequer
puderam fazer amor - é Cardoso confessando, segredo não é com ele.
Terça
de carnaval: 15 de fevereiro.
Datar
carnaval em Salvador, no entanto, é temerário.
É
festança de dias.
Eu,
detrás das grades.
É
provável, muito provável, houvesse algum carnaval na Galeria F.
Havia
uma turma do MR-8 virada na porra, da folia, da desgraceira no caminho da
feira, e grades não engaiolavam a alegria dela.
Eram
o hoje respeitável professor José Carlos de Souza.
O
nosso operário Diogo de Assunção Santana.
Denilson
Vasconcelos, mais tarde jornalista - já fez a viagem para o reino dos
encantados.
Carlos
Moreira Villanueva, cuja profissão nem me recordo.
Alegravam
aquele mundo cinzento: vozes, rebolados, timbaus e cachaça.
É.
Até
algum tipo de cachaça davam um jeito de fabricar - nunca provei, de besta.
Os
demais, ou entravam na roda, mesmo meio ressabiados, ou ficavam à espreita,
mais ressabiados ainda, mais sem jeito ainda.
Estes,
os caretas - como negar fosse eu um dos mais?
Agora,
meio afastado, achava maravilha aqueles loucos, recriando o carnaval em plena
Galeria F, plena ditadura Médici, o assassino a ocupar a presidência da
República, terceiro ditador desde o golpe de 1964.
Me
perguntarem qual a matéria prima da cachaça, sei não.
Careta,
não queria saber.
Volto
ao Bondinho.
Antes
da revoada para Salvador, havia saído o número do TRANSBUNDE, cês já conhecem.
Caetano
e Gil, já figuravam naquele número.
Datado:
3 de fevereiro a 16 de fevereiro - Bondinho era quinzenal.
Edição
seguinte, foi a da AUDÁCIA - entrevista com Walmor Chagas.
A
entrevista era bombástica, mesmo - Walmor propunha modo simples de resolver os
complexos de Édipo e de Eletra: meninos, meninas, completassem 15 anos, deviam
dormir com a mãe, com o pai.
Já
pensou?
Renato
Pompeu, copidesque, foi a Serjão, todo escabreado:
-
Olhe isto aqui: pode dar problemas para a revista.
Sérgio
de Souza, sendo Serjão, nem levantou os olhos, seguia com seu lápis implacável
a copidescar um texto:
-
Não sou censor.
Pompeu
despachou a entrevista na íntegra: liberada.
Ditadura
apreendeu a revista.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
viver a chegada dos baianos
Imaginar,
não ia.
Eu
o conhecia pouco.
Mas
a entidade sobrevoou meu território, e pediu prestasse atenção.
Prometi
dois ou três capítulos, porque não esperava mais.
E
o personagem ocupou a cena desde setembro.
E
parece não sair tão já.
A
entidade, o sábio Adilson Borges.
O
protagonista, Jary Cardoso, cês sabem.
Talvez
ninguém o tenha percebido na devida dimensão por modos antigos, aprendidos
havia tempo.
Tomara
lições de catacumbas durante o enfrentamento da ditadura.
Soube
ficar ali no cantinho, sem nada alardear.
Por
costume.
Agora,
estou aqui, me danando a persegui-lo, a reencontrá-lo em meio a muitas
peripécias.
É
bom quando a gente é surpreendido.
Já
aconteceu comigo.
Com
muitos personagens dessa série.
Mais
um.
A
gente conhece pouco do mundo.
Lá
ia eu saber dessas ousadias de Walmor Chagas?
Sabia
nada.
E
de repente, por Cardoso, vou saber de radicalismos dele, dessa confrontação com
os complexos de Édipo e Eletra, confrontando ou concordando com Freud, a
provocar apreensão do Bondinho.
Nem
sabia de Elis censurada pelo Bondinho.
Nem
tanta coisa, tudo vida de Cardoso.
Sobretudo
no momento mais luminoso do jornalismo dele - ele assim o considera.
O
momento do jornalismo cultural, da contracultura, se assim quisermos
considerar.
São
décadas de jornalismo, mas foi aqui, na cultura, o encontro, sua Estrada de
Damasco, metáfora bíblica de que me valho sempre.
Quando
o Bondinho saiu com Walmor, a tropa toda já estava na Bahia - então souberam da
apreensão.
O
primeiro Bondinho pós-Salvador levava Jorge Mautner na capa.
Matéria
de Cardoso. numero da primeira quinzena de março de 1972 - Bondinho, se repita,
era quinzenal.
HAF
chama Cardoso, ali na casa alugada por Gil no Rio Vermelho, onde estava toda a
redação do Bondinho no momento, e dá a ordem: entreviste este cara - apresenta
Mautner.
Edição
seguinte, segunda quinzena de março, Bethania ocupa a capa, e é Cardoso
novamente a fazer a entrevista.
Estava
virado no capeta, nosso Cardoso.
HAF
botou os olhos nele, não tirou mais.
Pra
não ser injusto, Aninha participou da entrevista com Bethania.
Só
depois de tudo isso, vai aparecer Caetano na capa, número de 31 de março a 13
de abril, entrevistado pelo próprio HAF provavelmente durante aquela estadia em
Salvador.
Caetano
foi a principal produção daquela ida à Bahia - uma viagem.
A
ordem pra todo mundo ir para Salvador foi mais uma maneira de todos viverem a
experiência da volta dos baianos Gil e Caetano.
Não
foi propriamente uma cobertura...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: A capa de
Walmor ele estava nú ou quase, sentado em uma privada. A casa de Gil e Sandra
era em Amaralina.
Emiliano José: Obrigado. Nada
como testemunha ocular da história...
Marylene Melgaço Valadares: Amei
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Emiliano José
18
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
terror do atrás do trio elétrico
Quando
fevereiro chegar, Cardoso verá completado meio século.
Não
é de idade, não.
Já
tem um pouquinho mais.
Meio
século da estadia dele em Salvador com turma do Bondinho.
Você
já foi à Bahia, nego?
Ao
chegar, a sensação de pousar em outro planeta.
Tá
legal, eu aceito o argumento: ele já estivera na cidade, cinco anos antes.
A
estadia anterior, no entanto, fora em outra conjuntura, outro astral.
Dois
dias, meados de 1967, correria, um sem-número de reuniões com líderes
estudantis, companheiros de militância, ele, dublê de dirigente da UNE e da
Polop.
Cabeça
e compromissos de jovem militante comunista.
Mal
olhava pros lados.
Guarda
apenas a imagem vista da janela de um bonde: baianos, baianas, com roupas
brancas, caminhando por uma avenida central, imaginada por ele hoje sendo
avenida Sete.
Andavam
num ritmo bem mais lento, com ar muito mais descontraído do que estava
acostumado a ver no Viaduto do Chá ou no Anhangabaú.
E
claro: Salvador vivia então seu cotidiano, a rotina da vida.
Nada
a ver com os dias de carnaval, de loucuras e festas, de fuga da rotina ou se
quiserem fuga da chamada normalidade.
Primeiro
choque, em 1972, foi térmico.
Sol
fortíssimo: queimava a pele.
Hospedagem
no sótão superior de um velho casarão no Pelourinho.
Da
janelinha, o olhar se perdia, reconhecendo a velha cidade: sucessão de velhos
telhados e torres de velhas igrejas.
Dentro,
nada é perfeito, calor infernal a invadir a noite, a ensopar o corpo, lençol,
colchão.
Exaustos
estivessem, ele e Aninha não resistiram e ganharam as ruas.
Você
já foi à Bahia, nega?
Cabelões,
os dois, roupas coloridas e curtas.
Barrigas
à mostra.
Peixes
n'água: em meio àquela multidão alegre, maluca, exuberante: cantava, dançava,
falava alto, gritava, dando gargalhadas.
Relembra,
como hoje: arrepiou-se todo, conteve lágrimas de emoção, tal a sensação.
Não
tinham noção, no entanto, do que era ir atrás do trio elétrico.
Mínima
noção.
Surgiu
a multidão ululante atrás do trio elétrico parecia tempestade furacão tufão vá
lá o que seja eram empurrados pra frente pros lados pra trás não se governavam
recebiam safanões sem saber de onde vinham as agressões se intensificando nunca
imaginavam e de repente dois ou três caras correndo se enfiando entre os
foliões passavam a mão na bunda dos dois um deles meteu a mão por trás e entre
as pernas de Aninha agarrando com força o sexo dela ao redor parecia ninguém
ver nada ou ser todo mundo cúmplice os dois apavorados como se no meio de
redemoinho até caírem fora sem saber como respirando...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
19
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
Mautner e o choque com a Bahia
Atrás
do trio elétrico
Só
não vai quem já morreu
Quem
já botou pra rachar
Aprendeu,
que é do outro lado
Do
lado de lá do lado
Que
é lá do lado de lá
Não
queriam sentir?
Atrás
do trio elétrico, a loucura?
O
sem sentido, ou todos os sentidos?
Só
não vai quem já morreu.
Aninha,
sobreviveu, apalpada de todos os modos, sobreviveu.
Cardoso,
também: nunca passaram tanto a mão na bunda dele.
Aprenderam
que é do outro lado do lado de lá do lado que é lá do lado de lá, tão simples.
Caíram
fora da multidão.
Aquilo,
no entanto, era irresistível.
Continuaram
ali ao lado, do lado de cá que é do lado de lá.
Um
inexplicável deslumbramento os prendia.
Dia
seguinte, casa de Gil e Sandra Gadelha, HAF ordena fazer matéria com Jorge
Mautner, Cardoso, apresentado, começa a conversar com o sujeito, de cabelos
mais compridos do que os dele.
De
repente, noite já, e marcianos desembarcaram na terra.
Luzes
intensas iluminaram toda a área livre e todos os aposentos da ampla residência.
Parece
mentira, mas alguns se assustaram.
Nunca
não tinham visto nada igual.
Alguns:
é polícia?
Outros:
disco-voador?
Muita
viagem.
Os
mais intrépidos, mais valentes, mais corajosos, correram pra frente da casa,
dispostos a desafiar o monstro, fosse qual fosse.
Cardoso
na linha de frente.
Era
sim: uma nave espacial.
Monstruosa.
Dezenas
de spot-lights acesos no alto.
Silenciosamente,
a nave havia pousado em frente à casa de Gil.
Diante
da nave, Cardoso não resistiu: chorou à vontade, nem esforço fez para conter o
choro, emoção.
O
trio elétrico, o mistério se dissolvendo, vinha com inscrição ao lado, em
letras garrafais:
CAETANAVE.
Repórter
é o diabo, e descobre: trio era de Orlando Tapajós, discípulo de Dodô e Osmar.
Aqueles
marcianos queriam simplesmente, com aquele trio, saudar a volta de Caetano e
Gil à Bahia, ao Brasil, depois de exilados em Londres por mais de dois anos.
E
não era pra comemorar?
Seguiu
a entrevista com Mautner - o próprio qualificaria a matéria como histórica.
Um
marco na vida de Cardoso:
-
Me levou a uma síntese dialética entre o passado comunista e a contracultura
abraçada nos últimos anos.
Inseparável
gravador cassete, de sungas, sentados no chão, a entrevista foi acontecendo, no
costume dos desbundados, hippies e outsiders.
Mautner
também sentiu o choque:
-
Vim pra conhecer a Bahia. Encontrei um negócio assim que eu nunca imaginava.
Sabia indiretamente pela literatura, pela música baiana. Mas você chegar e ver
isso aqui dá até um choque cultural. Tive um choque primeiro com o carnaval,
porque eu constatei que o carnaval é bem violento aqui...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Jose Jesus Barreto: outra Bahia,
outros carnavais, outros tempos! até os Ovnis curtiam
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Emiliano José
20
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
chinês na guitarra, um Jimi Hendrix
Também
Mautner teve os cabelos puxados no carnaval.
Você
já foi à Bahia, nego?
Já
foi atrás do trio elétrico?
Porém,
quando ele falava "violento", ia além do aspecto físico, brutal,
estúpido mesmo de alguns ou de muitos.
Queria
dizer da "parte selvagem, agressiva da coisa, que tem assim um sadismo
muito grande, um sadismo meio saudável, mas sadismo", como ele dizia.
E
adiantava uma posição controversa:
-
É violento também no sentido de ter raízes bem plantadas na África, uma cultura
basicamente negra no que tem de irracional, de dionisíaco... não sabia que a
Bahia era tão forte nisso.
Cardoso
nunca esquecerá aquela experiência.
Recordará
sempre a alegria e a disposição daquele mergulho.
Vários
da turma do Bondinho acharam tudo aquilo muito engraçado e transável, inclusive
a violência e o sadismo:
-
Lembro que uma menina linda e bem jovem, tipo mignon, da área de arte da
equipe, desapareceu no meio da folia, nunca mais foi vista. Quem a viu pela
última vez, contou da felicidade dela nos braços de um musculoso negão.
Bom
tenha encontrado a felicidade - penso.
O
Bondinho havia entrado de cabeça na cobertura dessa volta dos tropicalistas
antes.
O
jornalista, escritor, dramaturgo e psiquiatra Roberto Freire, egresso de
"Realidade", um dos fundadores e diretores da Arte & Comunicação,
fez questão de participar da reportagem sobre Gil, em janeiro de 1972, desde
sua chegada a São Paulo logo após a volta do exílio londrino.
Os
jornalistas seguiam Gil matando saudade da cidade onde morou no alvorecer e
desenvolvimento do tropicalismo.
Estavam
no encalço dele quando da passagem pela boate Stardust, onde tocavam o
multi-instrumentista Hermeto Paschoal e o guitarrista Lanny Gordin, tropicalista
de primeira hora, considerado prodígio da guitarra, e filho do russo dono da casa noturna, Alan
Gordin.
Gil
ficou ali por umas seis horas, ouvindo e conversando:
"Depois,
no fim da madrugada, no vestiário dos empregados, fez um improviso de mais de
meia hora com Lanny".
Esta,
a apresentação da entrevista intitulada "Gil está sabendo tudo", de
Hamilton Almeida Filho, o HAF, publicada no Bondinho 34, primeira quinzena de
fevereiro de 1972.
De
Lanny, nascido em Xangai, não custa dizer, por justo: tão bom na guitarra,
chamado de "Jimi Hendrix brasileiro"
até por Caetano e Gil...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jôh Castro Lima Castro Lima: Também os leio
com atenção e muito prazer, aliás, tudo que Vc escreve me encanta e desperta
profundas e deliciosas reflexões. Obrigada, Emiliano José ! Bjo
Emiliano José: ô, Jôh, outra
querida. Me honram: a leitura, o carinho, a amizade.
Sônia Maria Haas: Adoro ler teus
textos, eles são preciosidades. Obrigada
Emiliano José: Sônia,
obrigado a vc pela leitura
Joaquim Lisboa Neto: Tive o grande
prazer de assistir Lanny Gordin arrebentando na guitarra em 1972 num show de
Gil em Beagá no teatro Francisco Nunes; a execução da Ema gemeu em roupagem
rock antológica, lisérgica
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(Jary entrevistado por Jorge Mautner pro programa dele na TV Brasil, cerca de 40 anos depois da entrevista que fez com ele pro Bondinho. Na casa de Gil no Horto)
Emiliano José
21
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
cristas-de-galo para Gil
Foi
noite pra jamais esquecer.
Dia
clareando, andavam pelo Largo do Arouche, famoso por variado mercado de flores.
Roberto
Freire olhou pras flores, pra Gil - resolveu presenteá-lo.
Parou
em frente a uma das barracas, pediu.
Ele
escolheu - flores vermelhas, cristas-de-galo.
Entregou
o buquê a Gil.
Havia,
quem sabe, alguma nostalgia no ar.
"O
sonho acabou".
Título
da mais recente composição de Gil então.
E
tema principal do depoimento dele ao Bondinho.
Dizia,
em meio a um cenário nacional devastador, ditadura comendo no centro: o
movimento da contracultura e dos hippies chegara ao fim.
Agora,
TRANSBUNDE, título dessa edição do Bondinho.
A
partir de então, cada um fosse transar, descolar, conquistar e realizar o seu
próprio desbunde.
Sem
desistir da utopia libertária.
Este,
o recado dominante da edição, passado também pelas entrevistas e depoimentos de
Caetano, Capinan e Macalé.
Chegar
à edição do TRANSBUNDE deu trabalho.
Todos,
no HAF Palace Hotel, passaram dia e noite passando para o papel as falas dos
artistas, reproduzidas sempre em alto volume por potente gravador de rolo.
As
vozes mansas, firmes, calorosas dos baianos ecoavam na redação.
Se
paravam pra almoçar ou descansar um pouco da dura jornada, as fitas continuavam
tocando, eles ouvindo.
Capinan,
brilhante Capinan, mansamente desancava os colunistas da grande imprensa.
Via-os
usando o poder deles para esculachar os artistas, impor avaliações.
Queriam
ser eles os juízes sobre quais produtos deveriam chegar ao distinto público.
Como
se pudessem, e de alguma forma podiam, mas não de modo absoluto.
A
Cardoso impressionava a sabedoria e lucidez dos tropicalistas.
Era
como fosse uma aragem suave em meio ao deserto, um oásis naqueles tempos
sombrios de governo Médici, tempos de mortes e desaparecimentos, tortura,
prisões, cenário de terror.
E
eles falando, suavemente, sem perder o tom, sem deixar de exaltar liberdades,
sempre naturalmente com o cuidado de não cutucar o leão com a vara curta.
Caetano,
com seu jeito sedutor, falava maravilhas dos trios elétricos, levava aos céus o
carnaval baiano.
E
o Bondinho já vinha na onda de valorizar o jeito de ser do nordestino, do
nortista.
A
redação, envolvida por esse clima: Cardoso recorda os slides com as notáveis
fotos de Amâncio Chiodi de feirantes nordestinos, povo na rua.
E
aí uma parte da redação resolveu embarcar para a Bahia...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
maracatu atômico
A
entrevista com Mautner, outro choque.
Não
bastasse o choque cultural e físico com o carnaval baiano, agora aquele.
Um
choque existencial.
Quem
acompanha a série, sabe: ordem para a entrevista partiu de HAF.
Cardoso
não sabia quase nada dele.
Alguns
artigos n'O Pasquim'.
Só.
HAF
provavelmente também o conhecesse pouco.
Revendo
as coisas, Cardoso deduz ter sido Gil a dar a dica da entrevista a HAF.
Ele
se aproximara de Mautner em Londres, proximidade a se prolongar no Brasil.
Firmou-se
uma parceria existencial e musical.
Resultou
em pelo menos um hit: "Maracatu Atômico", composição de Mautner e
Nelson Jacobina, sucesso na voz de Gil.
"Filho
do Holocausto" - assim se definia o judeu nascido no Rio de Janeiro em 17
de janeiro de 1941.
Aos
sete anos, família muda pra São Paulo, onde ele cresce entre livros e música.
Cardoso
caprichou na abertura da matéria:
"Jorge
Mautner chega aos 31 anos com três livros publicados ("Narciso em Tarde
Cinza", "Deus da Chuva e da Morte" e "Kaos"), mais
dois escritos, "Fragmentos de Sabonete" e "Vampiro da
Babilônia", feitos em inglês, nos Estados Unidos. Lá, Mautner foi lavador
de pratos, ajudante de garçom, datilógrafo das Nações Unidas e aprendiz de
paganismo pop. Sua entrevista ao Bondinho foi feita logo depois do carnaval de
Salvador, numa casa alugada no bairro do Rio Vermelho. Nela, Mautner aponta os
manás da nova cultura."
Olho
os títulos, e me surpreendo - tenho um livro denominado "Narciso no fundo
das Galés", e o cinza me acompanha no "Galeria F - Lembranças do Mar
Cinzento".
Talvez
por filhos do mesmo tempo, herdeiros dos mesmos símbolos.
Foi
entrevista e aprendizado, entrevista e choque.
Mautner
expressava uma impressionante diversidade de culturas filosóficas, literárias e
de vivências em mundos variados - da elite burguesa à marginalidade - foi
cantor de rock em churrascarias, onde passava por americano.
Na
entrevista, Cardoso apanhou muito...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Luiz Denis Graça Soares: Descobri ontem
à noite a existência do livro de entrevistas do Bondinho. Editado pela Azougue,
tem uns cinco exemplares na Estante Virtual
Emiliano José: Denis, corra
atrás
Luiz Denis Graça Soares: já peguei o
meu...fica à disposição depois da leitura
Luiz Denis Graça Soares: Estas
entrevistas estão disponíveis em algum lugar?
Emiliano José: Denis, só na
coleção do Bondinho
Lucia Correia Lima: Como é bom
reviver um tempo de renascimento e total liberdade p criatividade que O
Bondinho exigia com carinho e a mesma alegria buscada no carnaval da Bahia.
Joaquim Lisboa Neto: Salto no
escuro
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Emiliano José
23
de dezembro de 2021
Jary Cardoso: Mautner e a questão racial
Jornalista
às vezes vicia.
Costuma,
arruma um jeito de lidar com a fonte, e crê possa sempre ser do mesmo jeito.
Cardoso
lia e ouvia as entrevistas dadas ao Bondinho.
Nelas,
as pessoas se abriam pra valer, a ponto de fazerem confissões sobre pensamentos
e sentimentos muito íntimos.
Cardoso
foi ouvir Mautner nessa pegada.
Levou
tombo.
Tentava
levá-lo para as confissões pessoais, e ele escapava.
Com
elegância.
E
erudição.
Teorização
e análises históricas e conjunturais.
Não
deixava o sujeito penetrar em sua subjetividade, ao menos no território das
intimidades.
Tombo,
no entanto, é maneira de dizer.
As
coisas ditas por Mautner eram geniais.
Seduziam-no.
Mautner
tinha ciência da conjuntura.
Sabia
do terror de Médici.
Abrir-se
era óbvio risco.
Ele
não era adepto do sincericídio.
Então,
filosofava.
Chamava
seu entrevistador: mora na filosofia pra que rimar amor e dor.
Mais
tarde, sob Geisel, decorrer da chamada abertura lenta e gradual, Cardoso saberá
de militância graúda de Mautner no Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Aí,
então, entendeu melhor a estratégia de Mautner durante a entrevista.
Tal
estratégia não eliminou o lado fascinante da entrevista.
Mautner
trouxe coisas do passado.
Marcas
fortes da militância revolucionária.
Tempos
de Polop, e lá vem memória, sobraçava livro de James Baldwin, "Terra
Estranha", lia e relia.
Refletia,
a partir de Baldwin, sobre a questão racial, sobre ser negro numa sociedade
racista, como a brasileira.
Como
Baldwin, Stokely Carmichael o seduzia, tornado, numa fase, presidente honorário
dos "Panteras Negras", a mais radical organização antirracista dos
EUA.
Tudo
voltava durante a entrevista com Mautner.
De
repente, ela fala da Bahia:
"Você
tem aqui uma população bem enraizada na sua cultura. O candomblé dá uma
segurança de referências pra todo baiano. É uma cultura que ainda não foi
destruída no mundo industrial. É uma cultura tribal, instintiva. Isso é muito raro hoje em dia, e coincide com
a procura da vanguarda no mundo desenvolvido, num certo setor da
intelectualidade também, que começa
desde a beat generation com Kerouak, Allan Ginsberg, com o branco que queria
ser preto, a importância desse vitalismo negro na cultura. E lá o movimento
pop, hippie, underground, sei lá, o que você quiser chamar, tem elos por mais
diferentes entre si, ele também é essa cultura...Se você comparar com a cultura
preta americana, essa aqui está intacta, certo?"
Tudo
muito forte para Cardoso...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Mautner é um
tropicaoslista muito ilustrado.
Joaquim Lisboa Neto: O relógio de
Cardoso quebrou...
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Emiliano José
24
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
Mautner e a Rainha Cigana
E
eles estavam viajando, conversa boa, sentados ali na casa de Gil, Cardoso embevecido
com a tanta sabedoria de Mautner, nem parecia fosse 1972, tenebroso.
No
carnaval da Bahia, o clima de terror do País parecia se dissolver,
fosse
por alguns dias, horas, mas parecia.
Lembro,
sempre lembro, abro parênteses, tudo junto e misturado porque quem escreve
sempre se intromete: estava preso.
Curiosamente,
aquele início de ano na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito não fora tão
tristonho.
Ao
contrário.
Era
um momento de distensão, interno fosse.
No
final de 1971, as celas foram abertas durante o dia.
Era
possível conviver naquela meia-lua de vinte celas, reservadas aos prisioneiros
políticos.
Antes,
era tranca dura.
Fechados
tempo inteiro.
Por
isso, 1972 era ano cujo início prometia.
Ao
menos, possível um cotidiano mais rico, mais conversas, análises compartilhadas
da conjuntura, trabalho comum no artesanato, discussões nos grupos de estudo.
Fecho
o parênteses, e volto.
Cardoso
e Mautner numa boa, e de repente, irrompem na casa dois cabeludos de sunga,
como eles dois - sunga e mortalha, imprescindíveis vestimentas do carnaval
baiano.
Barulhentos,
espalhafatosos os dois.
Entregaram
uma caixa preta para Mautner.
O
Filho do Holocausto abriu, gostou do que viu: um bandolim.
Os
visitantes traziam consigo um violão e um atabaque.
A
vida, a Bahia, sem linha reta - a entrevista é deixada de lado.
Ou
não, quem sabe pudesse tudo aquilo ser considerado continuação: lamentos de
blues em bom português misturados com batuque brasileiro de raiz africana.
"A
noite é escura e o caminho é tão longo que me leva à loucura. Andando e
dançando no fio da navalha, eu sou o faquir, eu sou o palhaço, e um grande
canalha..."
"Estrela
da noite", música feita em homenagem à mulher dele até hoje, "Ruth,
rainha cigana".
Foi
longa, a entrevista.
Especial,
porque realizada em meio à balbúrdia.
Ocupou
sete páginas do Bondinho.
Quiserem
conhecê-la na íntegra, só ir atrás do livro "Entrevistas Bondinho",
da Azougue Editorial, organizado em 2008 por Miguel Jost e Sérgio Cohn.
Jamais
esquecida por Cardoso.
Prolongou-se
no tempo.
Na
leitura dos livros dele, na audição de cada novo disco, nos encontros com ele.
Em
1973, quando atuou como assessor de divulgação de Guilherme Araújo no Rio de
Janeiro, Mautner era um dos contratados do empresário tropicalista.
Cardoso
estreita relações com o Filho do Holocausto.
Final
dos anos 1970, vira assessor de divulgação dele.
Uma
vez, no pós-Bondinho, encontra HAF
Não
perdeu a chance:
-
HAF, sabe que continuo fazendo a entrevista com Mautner encomendada por você?
HAF,
surpreso, Cardoso segue:
-
É trabalho pra toda a vida.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
25
de dezembro de 2021
Mautner: a
bandeira do meu partido
Mautner
foi definitivo.
Não
somente uma entrevista.
Cardoso
foi tentando absorver os ensinamentos dele.
Lembra:
na entrevista pro Bondinho, focou na negritude.
Foi
perceber, no decorrer, uma abordagem mais complexa.
Convivendo
com ele, compreendeu: entendia a miscigenação como característica cultural do
Brasil, exemplar para o mundo - o amálgama brasileiro.
Numa
entrevista a Omar Godoy, publicada na revista "Cândido", da
Biblioteca Pública do Paraná, lembrada agora por Cardoso, ele definia os
objetivos do Partido do Kaos, criado por ele, com atividades encerradas em 1962
porque ele entrou para o PCB: impedir um novo holocausto e irradiar a imensa
grandeza e profundidade da cultura brasileira.
Na
entrevista, recorre ao "Patriarca da Independência", José Bonifácio.
definindo o Brasil em 1823:
"Diferentemente
dos outros povos e culturas, nós somos o amálgama, esse amálgama tão difícil de
ser feito".
E
ele, Mautner, completava:
"E
tudo aqui é amálgama mesmo, essa é uma das nossas riquezas."
Eu
ignorava a música, letra e música tão belas, trazidas a mim por Cardoso agora,
e não sabia tivesse ele, Mautner, cedido os direitos autorais ao PCdoB,
transformada em hino do partido desde 2017 - li isso agora sobre "A
bandeira do meu partido":
"A
bandeira do meu partido
é
vermelha de um sonho antigo
cor
da hora que se levanta
levanta
agora, levanta aurora
leva
a esperança, minha bandeira
tu
és criança a vida inteira
toda
vermelha, sem uma listra
minha
bandeira que é socialista
estandarte
puro da nova era
que
todo mundo espera, espera
coração
lindo, no céu flutuando
te
amo sorrindo, te amo cantando
mas
a bandeira do meu partido
vem
entrelaçada com outra bandeira
a
mais bela, a primeira,
verde
e amarela a bandeira brasileira."
Surpreendente,
este Mautner, por tudo - surpreendente para mim, ignorante dele até aqui, só
ruídos até agora.
Obrigado,
Jary Cardoso.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
mulatos mais cafuzos que tudo mais
Mautner
não é passado.
Percorre
nosso tempo.
Não
só porque vivo.
Mas
pela densidade do pensamento.
Esses
dias, Caetano foi parar no "Roda Viva".
Arejou
aquele ambiente.
A
jornalista Adriana Couto, cheia de simpatias, lembrou esforços de Caetano em
busca da ancestralidade dele.
E
aí recordou o fato de Caetano referir-se ao pai como mulato.
-
Hoje essa terminologia soa pejorativa, há outras formas de falar.
Chega
a perguntar a Caetano como ele se identificaria diante do recenseador do IBGE.
tentando, quem sabe, induzi-lo a dizer negro.
Caetano,
bem distante do polemista agressivo de tantas ocasiões, e às vezes agressivo
com muita razão, reagiu com serenidade de monge budista.
-
Sou pardo.
-
Tem uma música no meu disco que fala isso.
Lembrava
da música "Meu Coco":
-
A primeira palavra que aparece na música é mulato.
Somos
mulatos, híbridos e mamelucos
E
muito mais cafuzos do que tudo mais
O
Português é o negro dentre as eurolínguas
Superaremos
cãibras, furúnculos, ínguas.
E
acentua ter dedicado o disco a Jorge Mautner:
-
Que é um eterno defensor idealizado da miscigenação brasileira.
-
Ele sabe por que. É judeu, de origem austríaca, cujos pais tiveram que fugir
para o Brasil devido ao nazismo.
-
O amor dele pelo que viu no Brasil ninguém vai apagar. Ele acha um
deslumbramento a miscigenação brasileira.
Por
outro lado, argumenta Caetano, a miscigenação virou um mito de beleza
brasileira, que atrapalha coisas que precisam ser feitas, estatísticas a serem
aprimoradas, problemas a serem enfrentados.
-
Assim, tem muita gente que decide modificar a terminologia que se pode ou não
se pode utilizar em termos de raça.
-
Eu não sou obrigado a concordar com tudo isso. Essa movimentação, em grande
parte americanizada, é muito útil ao Brasil, se o Brasil souber aproveitar.
-
Porque eu sou antropófago. O Brasil
precisa saber comer, metabolizar isso, e não se deixar dominar por isso.
-
Quanto a mulato, não vejo por que não usar. Meu pai era mulato, a pessoa que eu
mais adorava e respeitava. Tirada de mula? E qual o problema? Não tenho nada
contra as mulas.
Caetano
deu uma aula.
Tem
mestres.
Seguramente,
entre eles, Oswald de Andrade.
E
inegavelmente, Mautner, como reconhecido por ele.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Artur Carmel: Também as
políticas de reparação deste país terminaram por cair em mãos erradas...
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(Jary e Aninha hippies na praia)
Emiliano José
27
de dezembro de 2021
Jary Cardoso: um
editor imbecil
No
Brasil, depois da fuga para o Chile, Cardoso vai morar no Rio de Janeiro.
Ele
e Aninha.
Nascem
os filhos, gêmeos Denis e Tom - dezembro de 1972.
Trabalha
com Guilherme Araújo.
Atua,
simultaneamente, no "Diário Notícias - redator da editoria Nacional.
Fazia um freelancer aqui, acolá, especialmente para a Sucursal da "Abril" e para o "Caderno B" do "Jornal do Brasil".
Lembra
bem: no segundo caderno do "Jornal do Brasil" fez duas boas matérias.
Uma,
com Jackson do Pandeiro.
Outra,
com o ator e dramaturgo Walmor Chagas.
Dele,
vocês se recordam: entrevista com ele causara apreensão do Bondinho pela
ditadura.
Sugestão
dele de as pessoas terem relações com o pai e a mãe para se livrarem dos
complexos de Édipo e Eletra não fora bem recebida por Médici e sua tropa -
senso de humor do ditador e da tropa, zero.
Tentou
recuperar o nome do editor do "Caderno B" do "JB", mas não
conseguiu.
De
um episódio com ele, sim.
Encostou
na mesa onde Cardoso dava tratos numa reportagem.
Começou
a conversar, a falar da matéria feita por ele com Bethânia no Bondinho.
Arrematou
com um comentário arrasador, tipo bronca dura de profissional experiente pra
cima de foca:
-
Vocês tinham tudo na mão e perderam a grande oportunidade de fazer a Bethânia
abrir o jogo como lésbica e falar de suas relações homossexuais.
Cardoso
quase não se conteve de tanta raiva.
Ódio
mesmo.
Vontade
de xingá-lo com todos os impropérios vindos à cabeça.
Nunca
mais voltar àquela redação.
Mas
quem tem dois filhos com poucos meses de idade se contém.
O
pão das crianças, sagrado.
Sujeito
se revelou: daqueles acostumados a faturar fazendo sensacionalismo com a vida
privada de artistas famosos.
E
ele acredita que o sujeito sequer leu a entrevista do Bondinho com atenção.
Lesse,
ia deparar com uma fala de Bethânia, muito esclarecedora:
-
Quando eu tô amando eu sou de uma fidelidade! Quando eu num tô, sai da frente: homem,
mulher, periquito, cachorro, papagaio, tudo!
Precisa
mais?
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
28
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
patrulhas ideológicas, realismo socialista
Segundo
semestre de 1973, e Cardoso volta pra São Paulo.
Depois
de ter produzido shows de Caetano, Gil, Macalé, Gal, Luiz Melodia, Mautner e
Wanderléa, sob a batuta de Guilherme Araújo.
E
ter ralado simultaneamente no "Jornal do Brasil", "Diário de
Notícias", Sucursal da "Abril".
Os
gêmeos Denis e Tom, com sete meses.
Rolou
ser repórter da revista "Química & Derivados", do Grupo Técnico
da Abril.
Logo,
logo promovido a redator principal, e lá permaneceu por dois anos e meio.
Entre
1975 e 1976, copidesque da editoria Internacional do "Estadão",
levado por Marcos Wilson Spyer - creio já ter revelado isso, mas o leitor não é
obrigado a lembrar.
Demitido,
junto com um monte de jornalistas.
Entre
1977 e 1978, sem carteira assinada, repórter fixo do "Folhetim", da
"Folha de S. Paulo", sob o comando de Tarso de Castro.
Havia
gostado muito da experiência do "Bondinho".
No
"Folhetim", vive o maior sucesso, seus quinze minutos de fama.
Ocupou
a capa do suplemento com entrevistas de muita repercussão.
E
isso quando o jornal batia recordes de vendagem - inéditos 200 mil exemplares
vendidos nas bancas nos dias de domingo.
Era
comum jovens comprando a "Folha" só para levar o "Folhetim"
- deixavam o resto na banca.
Entrevistas
e matérias com nomes consagrados, e capazes de gerar boas controvérsias.
Já
pensou em Glauber, Caetano, Gil, Mautner, Macalé, Gal, Zé Celso?
Todos
eles desfilaram no "Folhetim" pela pena de Cardoso.
A
tônica era o combate às chamadas patrulhas ideológicas, a defesa dos artistas
baianos e dos tropicalistas
Noutra
vertente, entrevistou intelectuais renomados para a série 'Que país é este?"
Repressão
sempre andou de olho nele, e ele crê, entre tantos motivos, matéria com Caio
Prado Jr. ter chamado atenção dos órgãos de segurança.
Velho
comunista, intelectual respeitado, contrário à linha considerada reformista do
PCB, defendia teses semelhantes às da Polop.
Na
entrevista, apresentou armas: revelou ser filho de comunista histórico, Antonio
Campos.
Entrevistou
também Sérgio Buarque de Holanda, descendo o pau nas elites brasileiras,
Gilberto Freyre, adepto da ditadura, e Darcy Ribeiro, inimigo visceral dela.
Em
nenhum momento, sentiu-se tentado a qualquer proselitismo de esquerda.
Maior
entusiasmo: combater as patrulhas ideológicas da esquerda "careta e burra",
cujas viseiras tornavam-na incapaz de compreender as complexidades da
conjuntura histórica, e seguia exigindo dos artistas produção enquadrada no
realismo socialista.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Jary deve
reunir todas as entrevistas de todos e todas. Publicar livro. Mesmo que seja
como no velho mundo: só capa dura e miolo com papel jornal.
Joaquim Lisboa Neto: Eu era um desses que preferia o Folhetim à Folha. Folhetim publicou texto de Lourenço Diaféria sobre Osório Alves de Castro quando da partida deste em dezembro 1978
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Emiliano José
29
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
cultura, realização no jornalismo.
Desde
o transe, a saída da luta revolucionária direta, Cardoso aprofundou ainda mais
sua visão sobre a visão esquemática da esquerda tradicional, especialmente
quanto à cultura, às artes, à poesia.
Desenvolveu
ainda mais a noção da natureza essencial da liberdade.
O
período no "Folhetim" foi enriquecedor para fortalecer essas
concepções de mundo.
Maiakóvski
seria perseguido pela patrulha da esquerda caso estivesse poetando no Brasil
naquele período - tem convicção disso.
Teve
uma agradável surpresa nas entrevistas para o "Folhetim".
Foi
ouvir Mário Schenberg.
Comunista
notório, de carteirinha.
Anos-luz
à frente daquelas patrulhas, capaz de olhar o mundo com lentes bem ampliadas,
de incorporar a Antropofagia Cultural de Oswald de Andrade e até filosofias
orientais.
Desde
o início, tentei buscar em Cardoso sua concepção de jornalismo - afinal, é
sujeito de algumas décadas de profissão.
Ele,
provocado, me remeteu a um artigo de jornalista gaúcho, Nei Duclós.
Ele
o conhecera quando ambos trabalharam na "Zero Hora", em Porto Alegre.
Diria:
Duclós tem visão idealizada do jornalismo, mas não importa - é assunto pra
outro momento.
Afirma:
jornalista é protagonista, interfere no processo de representações da realidade
por meio da imagem, da palavra, do som.
A
meta do jornalista "é revelar o que os outros escondem, por isso raramente
se dá bem".
É
uma sombra do poder, um olho em cima do crime - é o pensamento de Duclós, e eu
reflito: ah, como seria bom fosse verdade.
Diz
mais: todo jornalismo é investigativo.
Faz
parte da fauna selvagem.
Uma
parte faz parte, uma reduzida porção faz jornalismo investigativo, pequena
parte faz parte dessa fauna selvagem - acrescento.
Hoje,
espécie em extinção, ao menos na chamada grande imprensa, na mídia empresarial.
Com
esse artigo, Cardoso me sinalizava sobre sua concepção do jornalismo, parte de
sua visão.
Considera
ter vivido feliz no fazer jornalístico enquanto esteve vinculado à área
cultural, quando teve chance de fazer entrevistas de fundo, ouvir pessoas cujo
pensamento iluminavam a existência, sobretudo aquelas envolvidas com as artes,
com a cultura em sentido ampliado.
Aí
sentia-se como peixe n'água.
Como
se por aquelas vozes fizesse a luta de que tanto gostava: combater o reacionarismo, o sectarismo,
difundir a mais ampla liberdade, dar sentido à ideia de democracia.
Então,
se posso extrair um resumo do balanço da vida jornalística dele, poderia dizer
ter sido curto o período de realização, de exploração das próprias
potencialidades - a maior parte do tempo cumpriu tarefa, e cumpriu bem, com
responsabilidade, sem, no entanto, o entusiasmo do "Bondinho" e do
"Folhetim".
Ousadia
minha dizer isso, e ele pode até fazer um pé de página, um comentário me
contrariando, querendo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
mergulho em águas cristalinas
Nei
Duclós, encontrou-o na "Zero Hora".
Marcão
o apresentou como "jovem e promissor poeta".
Cardoso
já conquistara a posição de segundo do Caderno do jornal.
Passou
pra Duclós todo o aprendizado recebido de Marcão.
Não
era pouco.
Na
época, cercou-se de livros, todos indicados por ele.
Tome-lhe
Hemingway, Norman Mailer, John dos Passos, Truman Capote.
Com
ele aprendeu o avesso do avesso do jornalismo tradicional:
abrisse
as matérias obedecendo ao primeiro impulso sentido logo ao voltar da rua com os
rascunhos nas mãos.
Nada
de lead, sublead.
Nada
de linguagem asséptica.
Começar
com uma ideia, uma frase capazes de despertar a curiosidade do leitor.
Como
se apontasse uma tese a ser desenvolvida ao longo do texto.
Necessário
ter capacidade de fluência, de manter o leitor ligado.
Matérias
deviam ter um dinamismo, um texto capaz de garantir a leitura até o fim,
importasse pouco o tamanho, se uma tira, uma página, duas.
Nada
da ideia estreita de o leitor ficar satisfeito lendo o primeiro parágrafo, como
ensinam as técnicas jornalísticas nascidas no final do século XIX.
Cardoso
defende: era a filosofia de jornalismo criada por Mino Carta e desenvolvida por
Murilo Felisberto no "Jornal da Tarde", "com toques da erudição
literária de Marcos Faerman".
Marcão
sabia, e por isso recomendava leituras: esse jornalismo havia se desenvolvido
em outras partes do mundo - quem quiser começar a treinar esse jornalismo,
recomendo sempre "A sangue frio", de Truman Capote.
Restava
fosse desenvolvido no Brasil.
O
"Jornal da Tarde" foi um experimento inovador nesse sentido.
-
Esse era um jornalismo capaz de me fazer sentir como um peixe nadando em águas
cristalinas.
Quando
ele se defrontou com o áspero dia-a-dia do jornalismo, desapareceu esse prazer.
Não
era mais o jornalismo do Marcão, do Tarso de Castro, do Hamilton Almeida Filho.
Não
era mais a praia dele.
Foi
nela, no entanto, onde passou a maior parte da vida profissional.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
31
de dezembro de 2021
Jary Cardoso:
Revolução dos Mutantes
Possa,
e ele sempre retorna à convivência com Marcos Faerman.
O
primeiro mestre a gente nunca esquece.
Nem
a primeira matéria.
Lembrar:
Marcão havia convidado vários artistas muito loucos e desbundados para compor a
redação da "Zero Hora".
Pretendia
viessem a ser jornalistas, não fossem ainda.
Com
eles, faria o Caderno D do jornal.
Fez.
Achou
desse jogo: "Os Mutantes" estavam em Porto Alegre naquele início de
1969.
Os
irmãos Sérgio e Arnaldo Batista e Rita Lee.
Pauta
revolucionária: iriam dar show numa boate.
A
casa levava nome muito sugestivo: Encouraçado Butikin.
Rememorava
inesquecível episódio revolucionário de 1905, o do Encouraçado Potenkim, na
Rússia, espécie de marco da caminhada em direção à Revolução de 1917, e
certamente o filme de Serguei Eisenstein, considerado o melhor filme de todos
os tempos na Feira Mundial de Bruxelas de 1958, e como o décimo primeiro melhor
filme de todos os tempos pelo British Film Institute, em 2012.
Daí,
Encouraçado Butikin - durante ditaduras, há sempre meios de fazer a
resistência, e às vezes, um nome, uma alusão, ajudam, garantem acesa a
esperança, mantém os sonhos.
Um
deleite para Cardoso.
Nada
melhor para o pontapé inicial como jornalista.
Foi
pro hotel onde "Os Mutantes" estavam hospedados.
Sobraçava
o livro "Balanço da Bossa", de Augusto de Campos - para ele, bíblia
de iniciação do tropicalismo.
Não
perdeu tempo, zagueiro bom não perde viagem: pediu autógrafo a Rita Lee no
livro.
Fez
a matéria com muita garra.
Quando
Marcão leu, exultou: sentiu orgulho pelo pupilo.
Acertara:
o novato sabia dar trato às letras, entendera o espírito da coisa.
Título
da reportagem, dado por Marcão:
"A
REVOLUÇÃO DOS MUTANTES".
Gol,
um belo gol, e logo no primeiro jogo.
Cardoso
sentiu-se confiante pra seguir adiante.
Seguiu.
Fosse
aquilo o jornalismo, era só correr pro abraço.
Mas
não era.
Havia
momentos de apelo ao jornalismo investigativo, pautas nessa direção.
Desse
jogo, jamais gostou...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Alberto Freitas: Sidney Miller,
que era ligado ao partidão, contou, antes de morrer, que a ditadura forçou o
fechamento do Encouraçado.
Emiliano José: o Butikin?
Alberto Freitas: Sim. O
nome, segundo um oficial do comando do sul, era uma evocação ao comunismo.
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Emiliano José
1º de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
distância de jornalismo investigativo
É,
essa história de jornalismo investigativo, aquele celebrado por Nei Duclós, não
era com ele.
Nem
que a vaca tossisse, e o boi saísse voando.
Gostava
não.
Jornalismo
investigativo, heroico, aquele de arriscar a vida, com ele não.
Não
é bem tivesse medo.
Não.
Questão
é não se encaixar no espírito da coisa.
Não
conseguir jogar coração e razão em tarefas desse tipo.
Uma
vez, repórter da "Folha Ilustrada", segundo caderno da
"Folha", editor o chama e o coloca em campo atrás de uma pauta.
Questão
seguinte, diz o editor: presidente da Ordem dos Músicos é conivente com desvio
de recursos de direitos autorais - denúncia chegada à redação.
Aquilo
era corrupção.
Caiu
em campo - que fazer?
Ouviu
um, outro, tentava entender, pra escrever.
Prazer
nenhum na matéria.
Não
lhe agradava escarafunchar merda.
Chega
a Gilberto Gil - arredio que só a porra.
O
homem do "Domingo no Parque", cortante, foi logo ao ponto:
-
Quer saber de uma coisa? A corrupção está entranhada em todos os lugares. Faz
parte da vida social.
Da
matéria, Cardoso não gostou nem um pouco - nem se recorda qual o resultado,
embora saiba ter se desdobrado em série.
Caminhando,
ia conhecendo as aptidões.
Cada
um só se conhece como fruto da própria experiência.
No
"Bondinho" deu-se muito bem com o trabalho, as muitas matérias em
torno da cultura, as entrevistas, tudo.
Não
houve nada de jornalismo investigativo.
Findo
o "Bondinho", toda a equipe praticamente lançou-se à empreitada do
"EX", publicação também alternativa.
Mas
de combate direto e frontal à ditadura a exigir muito jornalismo investigativo.
De
combate tão direto a ponto de ter vida curta: no número 16, quando estampou
forte reportagem sobre a morte de Vladimir Herzog, foi fechado pela ditadura,
cuja atitude sempre era de horror à verdade.
Aquele
número do "EX", a repercussão obtida, foi parte do início das
movimentações a redundar no fim da ditadura, dez anos depois.
A
chamada sociedade civil começava a se levantar.
De
modo particular, a Igreja Católica, sob a liderança em São Paulo de dom
Evaristo Arns, puxou culto ecumênico na Igreja da Sé, a maior manifestação
contra a ditadura desde 1964, realizado no dia 31 de outubro de 1975, poucos
dias após o assassinato de Herzog pela ditadura.
Para
a iniciativa do "EX", não chamaram Cardoso.
Sabiam:
praia dele era outra:
-
Fui apenas um leitor na primeira fila. Não tinha o perfil para aquele trabalho.
Escrever,
entrevistar, tudo bem.
Escarafunchar,
fuçar vida dos outros, mexer na merda, nada a ver.
Tivesse
razão Nei Duclós, e tinha, aquele jornalismo não era com ele.
Se
jornalismo fosse só aquilo, e ainda bem não fosse, não era jornalista...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Reinhard Lackinger: Penso que
jornalista investigativo antes de tudo é um eterno indignado e como tal um
revolucionário que não escolhe o caminho. Ele pega o rochedo na diretíssima!
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Emiliano José
2
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
aprendendo Brasil
Qualquer
mergulho na memória, e Marcos Faerman aparece.
Afinal,
Marcão foi decisivo na vida profissional de Cardoso.
Não
apenas profissional.
Fora
também o gatilho do transe dele na reunião da Polop, ele bancando o estalinista
furioso, e depois deixando de lado a militância direta.
Logo
após a saída de Cardoso da Polop, Marcão, sujeito do bem, nem mágoa guardara
com aquela explosão do amigo, chama-o:
-
Vou lhe dar algumas coisas pra fazer no "Jornal da Tarde".
Cardoso
se entusiasmou.
Mas
Marcão avisou: é pra aprendizado, vai ganhar nada.
Marcão
era editor de Esportes.
Começou
treinando, fazendo frases curtas, treinando.
Ali,
Cardoso começou a perceber: dava pra
coisa.
Cardoso
vai sempre lembrar dele como um mestre.
Guarda
na memória e nos arquivos algumas entrevistas.
Aquelas
a ensinar de Brasil.
Ele
pode dizer: Brasil não se aprende na escola.
Como
o samba.
Tá
certo, havia lido muito, mas as entrevistas, o intercâmbio, foram uma nova
Universidade.
Inesquecível
a entrevista com Caio Prado Jr., para a "Folha de S. Paulo", 21 de
maio de 1978.
Ouvi-lo
dizer: o Brasil perdeu o bonde do capitalismo, chegou atrasado.
Ou
falar do sucesso do capitalismo americano, com fortes traços europeus, que se
transportaram para lá e criaram um país moderno.
Diferente
do Brasil.
Pra
cá, vieram os portugueses tratando o território como um negócio, para
explorá-lo.
Ouvi-lo
fazer a celebração do capitalismo, bem Marx, e simultaneamente, mostrar ter
esse modo de produção já cumprido a sua tarefa....
A
iniciativa privada virou um sistema inviável, de funcionamento emperrado.
Antes,
baseada na concorrência.
Agora,
não mais, só monopólios.
O
capitalismo está se decompondo - mais dia, menos dia está acabado.
E
quem chegou atrasado, dizia o historiador, "vai pegar o rabo do
rojão".
Não
tem mais jeito: não dá mais para construir um país propriamente capitalista.
A
industrialização exige um nível de cultura que o Brasil não tem.
Assim
seguia Caio Prado.
Uma
análise situada naquela década, passados já mais de quarenta anos.
Com
algum grau de catastrofismo.
Mas,
inegavelmente preciosa, e cheia de verdades do ponto de vista estratégico.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Artur Carmel: O que ocorreu
com a 'chegada do capitalismo no Brazil' , mais de um século depois, também
ocorreu com a globalização (ou globarbarização, segundo TomZé) : o país não
estava preparado (parece que nunca estará) e a tal globalização foi (está
sendo) crudelíssima para com o povo brasileiro.
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Emiliano José
3
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: lições
de mundo
Caio
Prado Jr. soltou-se na entrevista com Cardoso.
Claro,
provocado pelo repórter, bastante preparado pela escola polopiana, também de
alguma forma herdeira do pensamento do professor.
Lembrar
sempre: corria o ano de 1978.
Ele
dizia da exigência cultural feita por qualquer processo de industrialização, já
não mais reduzida à fábrica de tecidos, metáfora utilizada por ele.
Não
adianta só a elite estudar - e olhem como isso é atual.
"A
formação de técnicos depende de um nível cultural que vem de baixo. Numa massa
muito grande, vai selecionando, selecionando e vai subindo. Aqui não acontece
assim. Essa massa brasileira você sabe o que é, não é? Você vai transformar
isso de repente, de uma hora pra outra?"
E
Caio Prado constatava, ao olhar o panorama mundial do desenvolvimento
capitalista: agora está cheio de gente na frente, e não havia chance de vencer
toda essa gente.
No
passado, olhava-se para o Japão, e o país era encarado como Terceiro Mundo.
Ah,
quanto engano.
"O
Japão, embora não tivesse ainda aquele desenvolvimento, era uma população que
tinha um nível muito alto. Desde o século passado a população inteira era
alfabetizada."
A
base para o assustador desenvolvimento do Japão era a formação, a cultura, a
educação.
Quando
chegou a hora, e quiseram fazer computadores, automóveis, diabo a quatro,
fizeram, "e muito bem, não é?"
Nós
não temos aquelas condições - acentua.
Brinca
um pouco com o tempo, ao dizer que nós temos "a eternidade na nossa
frente". Quem sabe, em 200, 300 anos, o Brasil chegue a um grau
impressionante de desenvolvimento...
Mas,
e lá vem o professor e seu olhar estratégico, "antes de acontecer isso,
esse capitalismo vai se decompor e vem outro regime depois".
A
mudança, o fim do modo de produção capitalista, inevitável - "é a história
do mundo, uma transformação contínua, né?"
Difícil
marcar data, mas que tal mudança vem, lá isso vem, não há dúvida.
O
capitalismo não tem nem mais moeda, virou bagunça, desorganização total.
"O
Jimmy Carter desvaloriza o dólar, atrapalha a vida de todo mundo porque os EUA
não podem mais importar produtos, acham muito caro".
Fala
de reunião realizada naqueles dias, na Cidade do México, a reunir as sumidades
da economia mundial representando todos os grandes países.
Resultado:
zero.
Fracasso
total...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
4
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
revolução burguesa ou socialista
Não,
não era qualquer um, o entrevistado.
Um
dos maiores intelectuais brasileiros.
Caio
Prado Jr. era referência em qualquer debate sobre os rumos da luta política no
País.
Em
1966 escreveu "A Revolução Brasileira".
Pelo
livro, recebeu o título de "Intelectual do Ano", o prêmio "Juca
Pato", instituído pela "Folha".
Nas
discussões sobre os rumos da Revolução Brasileira, dois grandes nomes
demarcavam campos: ele e Nelson Werneck Sodré, outro gigante.
Caio
Prado, analisando o Brasil como país essencialmente capitalista.
Nelson
Werneck Sodré, tendo o Brasil ainda com presença acentuada de relações
semi-feudais, e portanto ainda à espera de uma revolução burguesa, com
esperanças na burguesia nacional.
Curioso:
os dois vinham de um mesmo tronco: o PCB.
Enquanto
Sodré permaneceu na linha tradicional, ele avançou na interpretação do Brasil.
Sodré
continuava a dar sustentação teórica a grande parte da esquerda brasileira, com
sua visão de revolução em duas etapas - primeiro revolução burguesa, depois a
socialista.
Nessa
barca, estavam não só obviamente o Partidão, como quase todas as organizações
da esquerda armada.
Caio
Prado, ao contrário, dava sustentação aos que advogavam a revolução de uma
etapa só, a socialista, por entender o País como capitalista - e aqui
envolviam-se poucas organizações, entre as quais a Polop, não necessariamente por
influência direta dele.
Então,
era um gigante, o entrevistado.
Que
País era o Brasil?
Ele
tentava explicar na entrevista a Cardoso.
"A
massa brasileira foi formada como? Foi formada por africanos trazidos pra cá,
que perderam a cultura de lá que eles tinham. Cultura no sentido geral.
Perderam porque foram jogados aqui como escravos, não tinham vida de família,
não tinham nada. Quer dizer, eram animais dentro de uma estrebaria. Era a massa
brasileira, formada assim."
O
País era tão violento com os trabalhadores-escravos, tão cruel, a ponto de a
Itália dificultar a imigração para o Brasil.
Considerava
fossem maltratados os italianos chegados ao Brasil para trabalhar.
"E
eram mesmo, não podiam deixar de ser. Estavam habituados a lidar com escravo,
vinha um homem livre, não estava habituado àquilo, sofria, né?"
Na
entrevista, ele explica: não criticava por criticar.
Sempre
se interessou pelo Brasil.
"Mas
não tenho esse patriotismo idiota de pensar que patriotismo é falar das
grandezas do Brasil."
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
5
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
três gigantes e compreensão do Brasil
Enquanto
entrevistava Caio Prado, Cardoso pensava nos caminhos para chegar até ali.
Tarso
de Castro concebeu a série "Que País é este?" para o
"Folhetim".
Cardoso
estava lá.
Foi
quem deu a ideia de ouvir Caio Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda.
A
sugestão dos três gigantes não veio ao acaso.
Herança
do curso com Antonio Cândido, inegavelmente também um dos maiores intelectuais
brasileiros, feito antes.
Fora
aluno dele, no tempo de militância da Polop.
No
"Vários escritos", do velho mestre, espécie de bíblia para Cardoso,
está dito: quiser compreender o Brasil sujeito deve ler "'Formação do
Brasil Contemporâneo", de Caio Prado, "Casa Grande e Senzala",
de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de
Holanda.
Esses
três autores foram uma espécie de divisor de águas - até surgissem, não existia
análise tão acurada sobre o Brasil.
Espécie
de privilégio das gerações seguintes: ter essas obras à mão para decifrar o
Brasil, cuja tarefa é espinhosa.
Ao
ouvi-los, Cardoso tinha em mente extrair dos três o sumo da visão deles sobre o
Brasil.
Não
queria ater-se ao contingente, a uma conjuntura específica.
Mais
estrutura.
Menos
conjuntura.
Aqui,
lembro dito recorrente quando dei aula: repórter não é só perguntar.
Tem
de saber o conteúdo das perguntas.
Ter
pretensões.
Formação
histórica.
Isso
sobrava em Cardoso, garantia para tornar as entrevistas peças históricas.
Ele
chegou pra Tarso de Castro e disse: temos de ouvir os três.
O
editor gostou da ideia.
Dos
três, na avaliação dele, o mais importante foi Caio Prado.
Além
do "Formação do Brasil Contemporâneo", havia "Evolução Política
do Brasil", também essencial, para lembrar duas das muitas produções dele.
Nomes
têm história: assim com "Que País é este?"
Nasceu
de expressão de Francelino Pereira, presidente da Arena em 1976, reagindo a
dúvidas da oposição sobre promessas de Geisel: regime seria aberto gradualmente
e os governadores seriam eleitos pelo voto direto dali a dois anos.
Como
se duvida da palavra de um presidente?:
-
Que País é este? - perguntava Pereira.
Ano
seguinte, Geisel fechou o Congresso, aumentou o mandato dos presidentes para
seis anos, e decidiu fixar indicação de um terço dos senadores pelo próprio
regime, sem voto - chamados senadores biônicos.
Que
País é este?...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Artur Carmel: Ô meu mestre Emiliano José , quando se fala de Brasil e seus pensadores - uns mais ilustrados e despreendidos de utopia e fanatismos que outros - quase que todo o "pensamento", todas as teses, só abarcam até pouco mais da redemocratização caolha do país. E em quase todos os enunciados, esses mesmos pensadores clamavam, esperavam, mesmo que veladamente, por a chegada da esquerda ao poder. A esquerda chegou ao poder e "esqueceu" boa parte de todas as teorias desses lendários intelectuais brasileiros, ao se alinhar com setores retrógrados da política e do empresariado brasileiro. Meio que num jogo de adivinhação, o que podemos esperar dessa esquerda - que teve o país nas mãos, mas não conseguiu realizar o sonho, o esforço , de todos esses intelectuais e teólogos da libertação nacional e mundial do julgo capitalista, além do sonho do povo brasileiro, e o povo brasileiro não são só os miseráveis, os comunistas e identitaristas - o que podemos esperar dessa esquerda cheia de perrengues estruturais e judiciais? Veremos um novo Lula, a pregar um novo Brasil? Que podemos esperar?
Emiliano José: Querido Carmel, boa discussão. Ainda bem que temos pontos de concordância e outros de discordância. Muito, muito mesmo foi feito durante os governos liderados pelo PT. O combate vitorioso à fome, um fato. Houve políticas públicas voltada às maiorias, e o País melhorou muito, inegavelmente. Fruto do pensamento e prática da esquerda. Se não existissem erros, estaríamos fora do território humano. Muitos. O saldo, no entanto, largamente positivo. Tanto que tiveram que dar um golpe e excluir pela orcrim de Curitiba o candidato favorito, colocando-o na cadeia, hoje reconhecido inocente. Sei, no entanto: o espaço aqui é insuficiente. Teremos outros espaços, passados pandemia e pandemônio. Vão passar. Abração.
Artur Carmel: Sim,
amigo...Houve melhoras, afinal de contas quem estava assumindo o país (posse do
1° mandato de Lula) era um homem vinculado a uma corrente progressista e no
qual todos os que votaram nele - a maioria, pelo menos - esperavam não menos
dele. Só que, após o segundo mandato (e já no meio deste) "coisas
estranhas" começaram a acontecer no país e continuaram acontecendo no
governo Dilma - diga-se, uma mulher proba, mas arrodeada de hienas, inclusive
da própria agremiação. Por quê Lula, o homem, o mito (sim, Lula tb é (ou
foi) um mito) não conseguiu fazer a roda parar? O que fez Lula para desatar o
nó górdio da corrupção, da ganância dos lobos aliados? Aquilo deu nisso, deu em
Moro, deu em Bozo, deu ruim. Sei, e vc tb sabe, que as coisas não são "tão
simples assim", e que existe muito mais petróleo, gás, plataformas,
navios, comoditties e acordos mal-feitos do que nossa vã filosofia (e
ideologia) possa perceber. Mas que Lula, Zé Dirceu et caverna perderam a mão,
lá isso é verdade.
Emiliano José: Rende grande discussão. Disse: nesse espaço,
impossível. Em outro, e não deve demorar, faremos. Evidente, como disse, temos
diferentes visões. E como também disse: ainda bem. Só assim, discussão. Chega o
momento.
Artur Carmel: Tem toda razão
qto ao espaço...Espero que em breve possamos, presencialmente, continuarmos o
debate. Profícuo, desde já! Abraço !!
Luciana Mandelli: Emiliano José
e as entrevistas? temos?
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Emiliano José
6
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
raízes do atraso
Caio
Prado dizia, olhando para o Brasil: é preciso ver a realidade como ela é.
Não
critico por criticar, dizia a Cardoso:
-
Não fiz outra coisa na vida senão me interessar pelo Brasil. E compreender e
conhecer este País.
Escapar
de nossa herança histórica, o único jeito é elevar o nível da população, não só
cultural, mas tudo: educação, saúde.
-
Outro dia eu li no jornal o resultado de uma pesquisa feita pelo Ministério da
Saúde, que diz que 50% dos brasileiros são doentes. Você já imaginou uma coisa
dessas?
A
elevação do nível da população brasileira será um benefício para o País inteiro
- dizia:
-
E não se cuida disso.
O
que conta num País não são as estatísticas.
É
o indivíduo.
É
preciso saber o que é a média do homem brasileiro:
-
Você não vai dizer que é uma coisa admirável, né?
Fazer
grandes empreendimentos, grandes empresas, impressionam à primeira vista:
-
Mas o homem que está trabalhando lá, o que ele está ganhando com isso?
Aborda
a impressionante concentração urbana:
-
O indivíduo que vem morar na cidade fatalmente tem que gastar mais, comprar
mais coisas. No campo, você tem outras condições. Ele pode até viver melhor no
campo e gastando muito menos do que gasta na cidade. Na cidade tem uma porção de
despesas que não tem no campo.
Então,
fala-se no aumento do consumo, mas isso não significou o essencial: aumentar a
qualidade de vida do indivíduo:
-
Economistas têm esse grande defeito de deixarem completamente de lado o aspecto
humano das coisas, né? Consideram só o número.
O
sujeito que consumia 10 passou a consumir 20, dobrou. E no entanto a situação
dele pode até ter piorado. E os economistas não entendem isso.
Para
falar das raízes do Brasil, ele mergulha na análise de Portugal.
Espanha
e Portugal marcharam ao lado da Contra-Reforma, e Portugal muito mais.
A
Reforma foi o reflexo na religião de toda uma transformação social e econômica
na Europa, foi o Renascimento.
A
cultura moderna começa praticamente aí, no século XVI, com a destruição da cultura
antiga - "o aristotelismo, a escolástica, enfim toda essa coisa, né?
Portugal
não teve isso porque os jesuítas dominaram Portugal:
-
Você sabe que a Ordem dos Jesuítas foi organizada pra lutar contra a Reforma, e
manteve Portugal dentro daquele sistema antigo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
7
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
ficando pra trás
A
Ordem dos Jesuítas foi criada para isso, lutar contra a Reforma, e manteve
Portugal no mundo antigo.
Pombal
tentou a transformação dessa cultura - reformou o ensino, veio a Universidade
de Coimbra.
Mas
não aguentou, ficou nos propósitos, foi excluído.
E
foi posto ao lado exatamente porque as forças retrógradas não aceitavam as
propostas dele.
Dominaram
de novo.
É
isso, dirá Caio Prado: Portugal se atrasou, o mundo caminhava, e Portugal
ficava pra trás:
-
É um país que ficou à margem da Europa. Não é um país europeu. A Espanha,
também, em grande parte, mas menos que Portugal.
A
História tem de ser interpretada assim, dirá o mestre:
-
Não é dizer que o único fator da vida humana é ganhar dinheiro - esse
materialismo vulgar, se diz até que "o marxismo é isso", mas isso é
falso, né?
Tem
que se considerar o conjunto do indivíduo. Claro: a primeira coisa que se vê
são as condições de vida dele - enfatiza o professor.
E
a partir disso, analisar a história das várias civilizações.
O
caso do Japão é típico.
Fala-se:
o Japão é muito diferente, na mentalidade, em tudo:
-
Mas vá conversar com um homem de negócios japonês. É como um americano, senão
melhor.
O
Japão, dirá o mestre, cria problemas terríveis para os EUA, é um concorrente e
tanto, "criaram coisas novas que os americanos ficam assim meio
espantados". E evidentemente o Japão não tinha uma mentalidade capitalista
há 100 anos.
O
certo: há circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo em alguns
países, em outros, não.
Não
se trata de "ah, nós temos jeito pra isso?" - o professor recusa esse
senso comum.
Nem
aceita qualquer espécie de determinismo, a ideia de uma causa e um efeito:
-
Não existe uma causa. Existe um
processo, um conjunto de circunstâncias que estão se desenvolvendo.
As
condições de vida criam uma mentalidade e a mentalidade depois reinflui sobre
as condições de vida.
-
Qualquer indivíduo analisando a sua própria vida está vendo isso. A vida
transforma, ele se transforma, e também transforma a vida. Vai orientando a sua
vida e modificando-se, assim também a história de um País. E no Brasil acontece
isso.
O
fato: Brasil nasceu como negócio.
Caio
Prado insiste: o português é essencialmente um comerciante, não é um
industrial.
O
português dá o "Pão de Açúcar" - empresa formidável, a se estender
por vários países:
-
Agora, onde é que eles estão na indústria?
Sintetiza:
-
A gente não pode dizer é isto ou aquilo, é um conjunto de fatores. E o conjunto
de fatores é desfavorável ao desenvolvimento capitalista.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
8
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: é
o capitalismo, estúpido!
Da
análise sobre o desenvolvimento capitalista, das dificuldades históricas do
Brasil para chegar a um capitalismo de cara própria, Caio Prado salta, na
entrevista a Cardoso, para a situação política.
Lembra:
naquele momento, início dos anos 80, não existia mais censura prévia, não
obstante o País vivesse ainda sob uma ditadura.
Se
ditadura, sempre existia o risco de a censura voltar:
-
Daí, o medo, a autocensura - que é a pior censura que existe: o hábito de escolher
as palavras e a maneira de dizer para evitar qualquer suspeita.
O
clima político estava melhorando, o terror diminuía devido, entre outros
fatores, às pressões internacionais.
A
campanha de Jimmy Carter pelos direitos humanos influía muito, importando pouco
a sinceridade ou não do presidente americano.
E
era inegável, também, na avaliação de Caio Prado, o enfraquecimento do governo
- da ditadura.
A
ilusão do "Brasil Grande Potência" ia desaparecendo:
-
Agora, a dívida externa ultrapassa 30 bilhões de dólares, há déficit na balança
comercial, e a crise econômica leva até empresários a protestarem.
Recorre
a conhecido ditado popular:
-
Casa que não tem pão, todos brigam, e ninguém tem razão.
Não
bastasse isso, ocorre uma coisa espantosa: "a escolha do presidente e dos
governadores é feita sem dar satisfação a ninguém":
-
Se o Figueiredo não for capaz de governar o Brasil, não será por incompetência,
mas por não ter prestígio, por ser inteiramente desconhecido como homem
público.
Vai
e volta, o mestre, na entrevista.
A
vida numa sociedade de classes implica uma discussão constante.
O
que é o trabalho? - ele pergunta, e responde:
-
É força de trabalho que um está vendendo pro outro. E da mesma forma que se
discute o preço de mercadoria, a gente discute também o preço dessa mercadoria,
que é a força de trabalho. Então é uma discussão constante de todo dia. Eu já
dirigi empresa e senti os problemas que surgem.
Conta.
Os
problemas não surgem devido à maldade de um, à bondade do outro.
Não
é isso.
Não
podem ser encarados com esse romantismo.
Devem
ser olhados como são, a vida como ela é, concreta.
Vence
o mais forte, e não há outro modo de resolver:
-
Eu me lembro de um problema muito comum que surgia na indústria: chegava um
operário atrasado, a indústria pra funcionar tem de chegar todo mundo no mesmo
horário, bateu o relógio, acabou, não deixa mais entrar, aí o sujeito chega
atrasado e diz assim: "ah, não sei o que, imagine que minha mulher ficou
doente, se sentiu mal, não sei o que, tive que chamar médico, foi uma luta
tremenda".
Aí,
o encarregado fica com pena, deixa entrar, porque senão o sujeito perde o dia:
-
No dia seguinte, todo mundo chega atrasado, um é o filho, outro "porque o
pai, porque a mãe..." O patrão não pode ser detetive, acompanhando a vida
de cada um, e ver o que ele está fazendo, se ele está sendo sincero ou não.
Então tem que estabelecer certas normas rígidas. É maldade? Não. O mal não está
nas pessoas, mas no regime que leva cada um a se indispor com o outro.
Poderíamos
parafrasear James Carville, assessor de Clinton, e dizer:
"É
o capitalismo, estúpido!"
Mais ou menos o que quis dizer nosso Caio
Prado.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
lições de mestre
Compreendo
quando Cardoso fala dos momentos felizes no jornalismo.
Aqueles
de longas, memoráveis entrevistas, quando foi possível perguntar e aprender.
Estar
cara a cara com um sujeito-referência, aquele Caio Prado.
No
passado, sei lá quando, para elogiá-lo, nós o chamaríamos um traidor - traidor
da classe dele.
Comunista
desde jovem.
Cardoso
ainda tem na memória a chegada à casa dele.
Mansão
nos Jardins.
Rua
Maestro Elias Lobo, no Jardim Paulista.
Casa
centenária, da família Prado.
Com
porteiro, mordomo, tudo no melhor estilo burguês, ou aristocrático, se
quiserem.
E
como foi rica aquela convivência, por rápida fosse.
Aprendeu
muito.
Lições
de Brasil.
Lições
de mundo.
1978
foi ano importante.
A
chamada abertura, acelerada.
Não
por boa vontade da ditadura.
Porque
a luta crescia feito fogo de monturo desde meados da década, ia empurrando o
regime para abrir.
Ano
seguinte, viria a anistia - momento marcante, não obstante as limitações.
O
mestre, naquele maio de 1978, falava assim: como mestre.
Dizia
de suas preferências como aluno aplicado.
Gostava
de História e Geografia.
Didático,
dizia ao repórter:
-
Geografia não é dizer que tem um rio de tantos quilômetros de comprimento.
Geografia é compreender as condições naturais da vida, as relações, a
distribuição, a maneira de viver.
Caio
Prado estudou Geografia e História.
Pra
valer.
Por
isso, quis conhecer o Brasil.
E
conheceu.
De
cabo a rabo.
A
Geografia ajudou muito.
Abriu
perspectivas.
E
graças a Defontaine, o professor da disciplina:
-
O maior professor que conheci na vida.
Não
pela erudição - não era a dele.
E
sim pela capacidade de viver o assunto.
De
um entusiasmo único - assistir a uma aula dele era alegria, divertimento:
-
Professor não é o sujeito que sabe muito. Ensinar tem toda uma comunicação,
não?...
Defontaine
sabia das coisas, conversar, entusiasmar os alunos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: ir
aos fatos para compreender a realidade
É,
o mestre dava aulas sobre como ser professor.
Não
depende da erudição.
É
preciso criar empatia, relacionar-se com as alunas, alunos.
Saber
comunicar-se.
O
quanto cada um de nós sabe disso.
Quem
foi aluno, quem deu aula.
E
a gente tem sempre um professor, uma professora, pra chamar de seu.
Ou
mais de um.
Lembro
da professora de História do ginásio - notável.
E
do professor de Português, também do ginásio.
Inesquecíveis.
Caio
Prado, na conversa com Jary, na entrevista, perguntava:
-
Como é que você vai conhecer um país se
você não conhece os meios e as condições de vida?
Tem
de saber essas duas coisas: tem que saber Geografia, que é o lugar, e tem que
saber História, que é a evolução - assim falava o mestre, com pertinência.
Constatava:
há no Brasil um grande número de estudiosos de Geografia.
Eles,
como grupo, são os que melhor conhecem o Brasil.
No
entanto, na avaliação dele, não eram levados em consideração.
Ninguém
sabe sequer da existência deles:
-
Então, fazem aí estradas e o diabo, mas não consultam os geógrafos. É preciso
criar a mentalidade do geógrafo, que não tem aqui.
Em
História, dirá Caio Prado, é relacionar.
História
é ver as relações.
O
mais importante da História é a vida das pessoas, como se vive:
-
Por exemplo, eu compreendi grande parte da História lendo os anais da Câmara de
São Paulo. Li aquilo página por página, inteirinho.
Ensina:
não basta ler uma vez.
Porque
você só percebe a importância depois de ter lido.
Daí,
tem de voltar pra rever.
Só
então você compreende a vida, como é que se vivia.
Lições
de um sábio.
Bom
anotar.
E
por fim, na conversa, filosofa um pouco.
Estamos
acostumados, desenvolve o professor, com esse resto de aristotelismo metafísico
existente no Brasil, a discutir os conceitos, não os fatos:
-
Hoje em dia tá todo mundo discutindo democracia. Agora, ninguém vai aos fatos,
à significação prática da democracia, o que ela tem de positivo e de negativo
nos fatos, não é? Fica-se discutindo qual é o conceito. Não procuram ver as
coisas como elas são, mesmo que sejam contra a gente. Quando eu vejo essas
falhas que têm no Brasil, eu vejo em função da maneira de corrigir isso, e
dediquei minha vida a isso. A crítica é o reconhecimento de uma situação que
necessita de uma correção. Olho pro Brasil assim.
Um
olhar generoso - eu diria.
Ácido,
às vezes - por necessário.
O
olhar de um intelectual orgânico, tal e qual pensado por Gramsci.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joana D'arck: Ricardo Lipe
me marcou. Ele era cênico, crítico, irônico e sabia contar história em várias
versões.
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(Reprodução da entrevista com Chico Buarque no Folhetim, em 1978)
Emiliano José
11
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
pra ver a banda passar...
Chico
Buarque é desses personagens a marcar época.
A
perpassar a existência de inúmeras gerações.
Eu
cantarolei Chico sem perceber, primeiro "A Banda", creio, me corrijam
havendo erro, ali por 1966, andando pelas ruas e becos do Jaçanã, em São Paulo.
Não
era não?
Festival
da Record, não?
Mais
de meio século.
No
festival, houve disputa com Vandré, a memorável "Disparada",
murmurava até mais, pelo lado nitidamente político dela, eu mal iniciando
minhas inclinações de esquerda, logo depois consolidadas.
Ganhou
"A Banda" mas, do que se conta, Chico não aceitou ganhar sozinho, e
acabaram jogando as duas pro primeiro lugar - agradou as torcidas: é, não
estranhem, havia torcidas.
Não
há torcidas hoje pela sofrência?
Pelo
sertanejo, sertanejo moderno?
Havia
torcidas de Vandré e de Chico, mais barulhenta a de Vandré.
Desde
lá vem o Chico, e ele nunca mais abandonou a estrada - estrada criativa,
imensamente criativa, e com um norte claro.
Nunca
abandonou o caminho da esquerda.
Teve
de se exilar por conta disso.
Foi
censurado, em limites extremos, pela ditadura.
E
o seu verbo, sua poesia, sua banda nunca deixaram de emocionar, envolver
multidões, e mesmo aqueles cujas posições políticas estavam a léguas de
distância dele, admiravam-no, compartilhavam o trabalho poético dele:
"Você
não gosta de mim, mas sua filha gosta" - vocês se recordam disso, né?
Fui
admirá-lo mais e mais ao longo da caminhada.
Na
fase inicial, era da torcida de Vandré.
Fui
vendo, olhando, fruindo a poesia, a musicalidade, e sendo tomado por ele.
Já
ocupou dois séculos, e segue.
Influenciou
o XX, prossegue XXI agora.
Ainda
escutamos, não?:
Estava
à toa na vida
O
meu amor me chamou
Pra
ver a banda passar
Cantando
coisas de amor...
Não
é linda?
A
minha gente sofrida
despediu-se
da dor
Pra
ver a banda passar
Cantando
coisas de amor...
E
segue,
Até
o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no
terraço e dançou..
Pois
é: é esse insuperável poeta, cantor, romancista, teatrólogo, contista, o
próximo personagem nosso, entrevistado por Jary Cardoso - Jary tem ipsolone,
nunca olvidar.
No
mesmo ano de 1978, tal e qual Caio Prado, ele comparece no
"Folhetim".
Nosso
Jary Cardoso começou a entrevista com ele numa sala de gravadora.
Continuou
em sala da casa dele, no alto da Gávea, no Rio de Janeiro.
E
o começo, propôs Cardoso: fosse fala do Chico como criador, "não apenas
como cidadão".
Gravador
ligado, aquele tijolão, e nosso Chico começa a soltar o verbo:
-
Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para
se misturar as duas coisas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Parodiando
Chico Julinho da Adelaide Buarque, "você não gosta de mim mas sua neta
gosta", relembrando caso que tive com Cristina mineirinha de Beagá neta do
tenente-delegado em Santa Maria nos anos 70s, chegada que só numa marijuana
Emiliano José: conta...
Joaquim Lisboa Neto: Então lá
vai...
Ana Vieira: Essa gera
inveja branca.Ai,como eu gostaria de ter tido chance de entrevistar o genial
Chico Buarque.
Benilson Ataide: Randolfe
chamaria de inveja Cristã. Rsrs
Grande
menino Randolfe!
Solange Souza Lima Moraes: Inveja boa.
Branca parece que o que é preto é ruim e não é
Ana Vieira: Nunca ouvi
ninguém falar a expressão inveja preta. Isso cheira a policiamento linguístico.
Se a pessoa fala preto de alma branca, aí há clara conotação racista .
Solange Souza Lima Moraes: Muito bom.
Benilson Ataide: Assisti ontem na netflix: Chico, um Artista Brasileiro. Confirmei a genialidade do filho de seu SÉRGIO. Imperdível.
Joaquim Lisboa Neto: Uma noite em
67 o documentário
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Emiliano José
12
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico, 1978, cultura e política
Não,
Chico não considerava fosse hora de misturar política e arte, cidadão e
cultura.
Naquele
momento, naquele ano de 1978, naquela conjuntura, Chico Buarque não achava
oportuno ficar cobrando posturas dos artistas - postura como cidadão.
De
1968 a 1974, aconteceu muito isso:
-
Havia um vazio político profundo no País inteiro.
As
opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar à juventude.
Esta
gostaria de estar participando de alguma forma da vida política:
-
Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna.
Mesmo
não querendo, o artista estava lá assumindo uma posição.
O
tempo todo, a cada momento, a cada canção, a cada entrevista.
Situação
havia mudado:
-
Acho que chegou um pouco a hora do artista.
Na
entrevista, enfatiza uma obviedade: falava em nome pessoal.
Já
era tempo, naquela conjuntura, de passar um pouco a função da crítica num
sentido mais político:
-
Num momento em que transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal
para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição mais clara que eu
posso assumir.
Em
1972, por exemplo, não existia isso.
Muita
gente votava nulo:
-
Eu andava pelo interior fazendo shows com estudantes e a grande maioria deles,
a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era melhor do
que a do Maranhão.
Chico,
então, cantava "Construção", "Deus lhe pague", e aquilo
tinha uma função política efetiva, "tenho consciência que tinha".
Depois
de certo tempo, no entanto, esse papel já não o agradava:
-
Parecia que estava jogando com baralho falso.
Continuava
a fazer do palco uma tribuna quando os problemas nacionais já podiam ser
discutidos.
Isso
aconteceu principalmente a partir do momento em que a imprensa "começou a
ser menos censurada".
-
A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição... Mas esse governo
abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou
tudo no País.
Cardoso
comenta com Chico: um dos jeitos mais fáceis de chamar a atenção das pessoas
para o Fernando Henrique Cardoso foi dizer que ele apoiava a candidatura dele
ao Senado.
-
É, isso ainda é o resto dessa deficiência que está aí. Se existisse liberdade
pra valer não precisava usar o nome dos artistas para promover fulano.
Ele
diz saber de casos...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
implacável garrote da censura
Muitas
pessoas iam pra urna votar no sujeito indicado pelo cantor, pela artista, não
propriamente pensando no candidato:
-
O ideal seria que elas soubessem porque fulano é candidato de fulano. Não
simplesmente uma credibilidade que você tenha. Sem Lei Falcão, sem cacete a
quatro, o povo realmente estaria votando nesses candidatos e saberia por quê.
Cardoso
provoca Chico: falando de censura, ainda então presente:
-
Censuraram a música que você fez para as Frenéticas, ao mesmo tempo em que
liberaram outras, antigas. Acabou a marcação?
-
É, "Mambordel" - responde Chico.
-
É claro que a libertação dessas três que estão no último disco foi uma coisa
muito pensada.
Foi
uma jogada, explica Chico:
-
E muito bem bolada, porque eu não podia reclamar, porque liberaram as músicas.
O máximo que eu podia fazer era não gravar em sinal de protesto.
Soube
da liberação pelos jornais:
-
Isso é muito maior do que o rancor de um ou outro censor. Isso existiu em
tempos, não só com relação a mim, mas a outros compositores e gente de teatro,
Plínio Marcos, por exemplo.
Constata:
há, ainda, centenas de peças de teatro proibidas:
-
É claro que a liberação de uma peça de teatro tem menos repercussão que a
liberação de uma música de um compositor popular.
Cardoso
pergunta se ele sabe a causa da censura de "Mambordel":
-
Digo sinceramente: nunca tive muita ideia porque estavam censurando. Às vezes
liberam música que a gente pensa que vai ser proibida.
"Mambordel"
devia parecer à ditadura como atentatória à moral e aos bons costumes.
Chico
havia feito a música para um filme, afinal não realizado.
Entrava
numa situação no filme, quando as prostitutas conseguem enxotar o dono do
bordel, o poderoso gigolô delas,
Elas,
então, expulso o gigolô, decidem:
-
Fica proclamada a república nesse bordel.
E
termina assim:
-
Ao povo, nossas carícias, ao povo, nossas carências, as nossas delícias e as
nossas doenças.
Chico
faz um balanço da luta dele contra a censura. Acentua: não era uma luta
pessoal, mas em alguns momentos assumiu aspectos pessoais:
-
Eu era pessoalmente incomodado, quase semanalmente. Em cada lugar que eu ia,
era obrigado a comparecer ao Deops. É claro que isso foi me afetando
pessoalmente e eu reagia às vezes até de uma maneira menos racional. No aspecto
geral, essa picuinha não pesa nada. Aí, a discussão é outra, é a gente fazer um
balanço do prejuízo que a censura representou para a nossa cultura esse tempo
todo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
14
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico, censura, e cultura esmagada
Chico
Buarque sempre contextualiza os problemas.
Evita
trazê-los para o âmbito pessoal.
Agiu
assim o tempo todo durante a entrevista.
Ao
falar da liberação das músicas pela ditadura do disco lançado por ele, dizia
não significar "absolutamente nada":
-
O prejuízo [causado pela censura] não foi maior pra mim nem pra ninguém, foi
para a arte nesse País mesmo.
O
público que assiste a uma peça de teatro que tenha alguma ousadia, alguma
contribuição, saía desse mesmo espetáculo enriquecido, "é um dado a mais
para a cabeça desse público":
-
No mês seguinte, quando voltar ao teatro, ele vai querer um acréscimo a essa
sua informação ou emoção.
-
Então o autor é obrigado e desafiado a estar sempre criando mais e melhor. Isso
durante um ano representa um salto cultural de todo o País. Durante dez anos é
o que se chama desenvolvimento cultural de um País.
Segue:
o público que não viu "Rasga Coração", do Vianinha (Oduvaldo Vianna
Filho), perdeu com isso, os autores dramaturgos também perderam porque não são
obrigados a fazer uma coisa melhor que aquilo. E vão ficando parados no mesmo
lugar, "emburrecendo com as moscas em volta":
-
Aí chega um cara qualquer e diz assim: em Portugal, depois de 50 anos, abriram
as gavetas e não tinha nada... É evidente, depois de um certo tempo ninguém
fica escrevendo coisas maravilhosas pra botar na gaveta. Ele tem necessidade de
exibir seu trabalho, de ter o reconhecimento ou o repúdio do público, ele
precisa desse diálogo e o público também. Se não houver esse diálogo, morre.
-
Isso vale para o teatro, para cinema, para música, para todas as áreas. Tenho
certeza que se não tivesse havido essa censura toda, a música brasileira
estaria muito melhor, eu estaria um compositor melhor do que sou, haveria muita
gente nova, muito mais do que há hoje.
Juventude,
como é que é?:
-
A gente, pelo menos, tinha a ilusão ou a certeza de estar de certa forma
participando da Nação. E o jovem participava, através de sua atividade
estudantil ou de outra, tinha consciência de que estava participando. Hoje o
máximo que ele pode almejar é um bom emprego quando sair da faculdade.
-
A coisa foi colocada toda em termos de competição e nada mais. Estou falando de
classe média, da minha classe. Se você for olhar em volta, as opções são
trágicas.
E
a abertura?
-
Ninguém garante nada: essa pequena abertura que houve pode ser retirada amanhã
de manhã. A única vantagem que tem é eu estar falando essas coisas e saber que
elas vão ser publicadas no jornal.
De
qualquer forma, há um salto em relação a 1973, "quando proibiram 'Calabar'
e proibiram a imprensa de falar no assunto, aí realmente era o buraco, aí não
tem saída".
É
um consolo:
-
Pelo menos a gente já está podendo falar dessas coisas, já é um progresso.
Esses anos todos da ditadura Médici é que foram uma das coisas mais pobres.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Isadora Browne Ribeiro: A clareza de
Chico é impressionante.
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Emiliano José
15
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico, Cuba, Brasil
Cardoso
vai provocando Chico:
-
Não pode ter sido pura falta de talento você, por exemplo, não ter
continuadores?
Chico
refuga:
-
Evidente que não. Não acho que faço parte de uma geração privilegiada pela
natureza, pelos astros.
E
aí vai falando, refletindo.
Que
País é este?:
-
Durante esses anos o jovem foi uma pessoa conduzida por todos os meios de
comunicação e por todo o sistema que está aí a ser uma pessoa desprovida de
ideal, de criatividade. Quero deixar muito claro que se não tem aparecido muita
gente depois da minha geração é simplesmente porque as dificuldades são muito
maiores do que eram antes. São dificuldades que inibem qualquer talento.
Tem
uma certeza:
-
Fosse dez anos mais moço, não seria um compositor, ou seria medíocre,
frustrado, desconhecido.
E
Cuba, país visitado por Chico naquele início de 1978, veio à baila, provocação
de Cardoso: "tem muita música cubana no seu último disco."
Enquanto
esteve em Cuba, Chico revela ter trabalhado demais, fez muita coisa em muito
pouco tempo, tanto a ponto de ter uma vontade danada de voltar e garante: vai
voltar logo.
Nos
20 dias cubanos, fez um show de música brasileira e música cubana, fizeram um
documento com ele, coisa pra burro.
Um
povo parecido, parecido demais, com o povo brasileiro.
Semelhanças
incríveis.
Ele
chegou a ficar chato lá: a cada pergunta sobre Cuba, danava a falar do Brasil,
tal a parecença:
-
A gente tinha até uma brincadeira: todo cubano que aparecia tinha um igual no
Brasil.
É
muita semelhança: no humor, no ritmo, na música, no calor.
E
de repente, tudo é diferente.
Chocante
mesmo: não haver consumismo:
-
Minha mulher foi comprar um creme hidratante e deram um potinho com um negócio
marrom dentro. Ela acostumada com Ponds, Helena Rubinstein, olhou aquilo sem
rótulo, sem nada, com um aspecto meio feio e perguntou: não tem outro?
A
atendente reagiu:
-
A senhora não quer creme hidratante? É isso.
Marieta
Severo usou, deu ótimo resultado:
- Mas
você está viciado por aquele apelo...
Ele
mesmo resolve parar:
-
Se eu for falar de Cuba, não paro mais. Quando cheguei lá, dei uma entrevista e
saiu uma frase assim: "Aqui em Cuba vejo o Brasil que nós sonhamos".
Depois
soube: "a mesma frase foi dita por um político brasileiro que está aí,
aliás na Arena".
De
Cuba, Chico salta para a música, ele gravando apoios sob a forma de paródias a
políticos de esquerda no período, direito autoral.
-
Você falou nisso [nas paródias] e lembrei, nesse tempo também se usava muito
músicas de carnaval: "Lata d'água na cabeça", "Chora
doutor", e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50,
lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
arte popular está comprometida
Lata
d'água na cabeça
Lá
vai Maria, lá vai Maria
Sobe
o morro e não se cansa
Pela
mão leva a criança
Lá
vai Maria...
Chico,
na entrevista, lembrava-se de música ouvida com tanta frequência na infância.
Chega
à música de protesto no Brasil:
-
É uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez
uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil
é um palavrão, compositor de protesto é um insulto terrível, é "Apesar de
Você", que é alegre, um pouco com a ideia de músicas antigas de carnaval.
Trata
de direito autoral, constata ter havido melhorias na relação com o compositor,
acabou o critério misterioso.
-
Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um
tostão e o autor da música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita
com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais.
Conta
historinha.
Toma
um táxi.
Motorista
diz:
-
Sou seu colega.
Apresentou-se:
parceiro de João do Vale em "Carcará".
Esta,
fizera sucesso.
As
demais, e ele era compositor de músicas sertanejas, nem tanto.
-
Como está agora? - Chico perguntou.
-
Muito pior - respondeu.
Compositor.
E
motorista de táxi...
-
É preciso levar em conta esse aspecto, principalmente de gente que foi roubada
durante todo esse tempo, até quando mudou o sistema, e agora deveria ser
indenizada pelo que aconteceu até então.
Cardoso
provoca:
-
Quando você diz que é um artista classe média, você está se colocando a dúvida
de como chegar ao povo?
Chico
não tergiversa: há cada vez mais um abismo entre a produção intelectual e o
povo.
O
general Geisel fala no aumento do consumo de eletrodomésticos:
-
E isso é uma coisa totalmente furada. Eu aqui em casa tenho quatro aparelhos de
televisão. Sou uma pessoa beneficiada pela má distribuição de renda.
Os
endinheirados podem ter dois, três carros. O consumismo, em alta. Cigarros são
lançados todos os dias. Filtro de ouro, filtro platinado, tudo voltado para o
pessoal de renda alta.
Mas,
como há a luta pela abertura democrática, "o que a gente quer para essa
pequena parcela de público que atingimos, que ela receba o trabalho da gente
integralmente. Mas acredito que dentro do sistema capitalista essa questão da
arte popular está comprometida".
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
17
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico e o poço de ressentimento Brasil
No
compasso dele, Chico Buarque seguia.
-
Eu aqui tenho uma ressalva porque acho que no momento o que há de mais
importante mesmo para colocar é a questão democrática.
Dizia:
à parte dessa centralidade, da questão democrática, cultivava outras convicções,
e queria ter a liberdade de expor cada uma delas a cada entrevista ou a cada
canção ou a cada peça de teatro.
Expor
essas convicções para ser ouvido, e de modo fossem julgadas:
-
Não estou querendo dizer que sou o dono da verdade, pelo contrário, estou
sempre dizendo que não sou. Agora, quero ter a liberdade de manifestar minha
opinião pessoal e, como já disse nessa entrevista, hoje existe a vantagem de
poder dizer alguma coisa na imprensa.
Define
as possibilidades da arte popular:
-
Na verdade, a arte só é popular na medida em que ela tende a estar aliada ao
governo, e o governo seja popular na medida em que esteja ligado ao povo. Eu só
acredito em arte popular num país em que o povo esteja no governo.
-
Você acredita no Estado? - pergunta Cardoso.
-
Eu defendo o povo no poder, o Estado enquanto povo no poder. Aí a arte é
popular, senão será sempre uma arte de elite, sempre foi. É claro que é muito
mais importante dar pão para o povo, mas de repente você pode através da arte
comunicar a esse povo a importância que ele tem para reivindicar o básico. Isso
aconteceu em Cuba. Tá acontecendo em Moçambique, mas é inteiramente diferente
do que está acontecendo aqui. O sistema que está aí procura desviar a arte a
seu gosto, contra os interesses populares.
Cardoso
o provoca, talvez sem pretender, ou pretendendo:
-
Você é um sujeito meio inatacável, até parece uma exceção. Você se sente assim?
-
Não, isso não é verdade. Sempre que eu leio uma coisa assim é um pretexto para
dar uma paulada e o cara ainda sair com fama de corajoso.
Diante
dos seguidos ataques, Chico adota a política de responder com trabalho, com sua
obra poético-musical-teatral:
-
Eu pessoalmente não tenho nenhuma admiração pessoal por mim, mas pelo meu
trabalho eu tenho porque quando nada eu vivo pra isso. Então as pessoas usam um
pouco isso, de chamar o Midas, como se fosse uma coisa meio mágica ou uma coisa
intocável.
Ele
insiste:
-
Não é, é resultado de muito trabalho, eu estou produzindo constantemente.
-
Se eu produzir uma coisa muito ruim, podem falar mal, é uma porcaria e vão
falar mal. Porque é isto que a gente vê, esse País tá virando um poço de
ressentimento.
Fala
de Milton Nascimento: há 80 por cento a considerá-lo maravilhoso, vinte por
cento não o veem assim mas não têm coragem de expressar a crítica porque
"vai pegar mal e tal":
-
Aí, um dia, numa apresentação no festival de jazz, essas pessoas que estavam
com esse ressentimento guardado há muito tempo botam pra fora esse negócio de
uma maneira selvagem. Isso já aconteceu comigo, com os baianos todos, com o
Milton. A crítica aqui no Brasil é uma coisa muito provinciana, funciona muito
a ligação pessoal...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Emiliano José: Jari Cardoso
talvez consiga a data exata.
Jary Cardoso: Emiliano José,
mate o homem, mas não lhe troque o nome. O meu é com ipsilone... Ah, consegui a
data exata, veja abaixo.
Paulo Dourado: Olá Emiliano,
saíram aonde, essas falas?
Jary Cardoso: Caro Paulo
Dourado, essas falas estão na entrevista que Chico Buarque concedeu a mim e à
repórter Maria Da Paz Trefaut Minouche, publicada com o título de "Arte
popular só com o povo no poder", no "Folhetim", então suplemento
dominical da "Folha de S. Paulo", no dia 31 de dezembro de 1978. A
íntegra dela está na internet (veja o link), indicando apenas o ano da
publicação, mas fui no acervo digital da "Folha" e encontrei a data
exata.
http://www.chicobuarque.com.br/.../entre_folhetim_78.htm
Folhetim - Folha de So Paulo - 1978
Folhetim - Folha de São Paulo - 1978 (chicobuarque.com.br)
Mônica Bichara: Que relíquia
maravilhosa, dessas pra se guardar pra sempre
Paulo Dourado: Muito obrigado
Jary. Para uma eventual citação esses dados são importantes. O material é
ótimo! Forte abraço.
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Emiliano José
18
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico Buarque e o processo criativo
-
Você acabou virando uma das figuras mais importantes da cultura brasileira.
Como você se vê hoje? - Cardoso pergunta.
Chico
Buarque reage, bem a seu modo:
-
Não sei não, não me vejo como figura, imagem, essa coisa toda. Acordo bem
comigo quando estou criando, quando estou trabalhando. Se na véspera fiz uma linda música eu acordo
cheio, orgulhoso, contente, me achando muito bom. Mas isso passa com o tempo.
Fala
daquele momento, já se desligara do último disco - logo depois da gravação
ouvia muito e ficava muito contente.
Dá
outro exemplo:
-
Minha peça de teatro, passei um mês indo lá diariamente. Já não vou há quase
dois meses.
Chega
um momento, não quer mais comer comida requentada, e para.
Sente
então vontade de fazer coisa nova, e aí sente-se um pouco angustiado e
impotente.
Certamente,
a angústia e a impotência passam quando consegue elaborar coisa nova.
Surge
a pergunta: como compõe?
-
Eu só componho com violão e só componho sozinho. Aliás, a maioria das minhas
músicas faço sozinho.
Revela:
a ideia de uma canção pode acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar, no
banho já surgiram várias ideias:
-
Aí, você se enxuga depressa, põe o calção, corre, pega o violão pra ver se
continua a ideia com a música.
Não,
ele não escreve uma letra antes. Uma música pode pintar debaixo d'água, uma
ideia qualquer, "uma transação que depois de pegar o instrumento vai
mudar, vai ser inteiramente alterada":
-
No fim, o que deu início a tudo vai sumir, muitas vezes some.
-
A bebida ajuda? - pergunta provocativa, leve.
-
Uisquinho, essas coisas assim são um pouco vagabundagem.
Confessa:
se estiver um pouco alto, não faz nada bem.
O
álcool está mais ligado à apresentações em público - aí, indispensável.
Houve
ideias surgidas em sonhos, semelhança com alucinações, e no fim resultando em
coisas boas.
Trabalho
criativo, insiste, em estado sóbrio, sério, disciplinado.
Já passara bom tempo, a permitir reflexão em torno do impacto da criação sobre o estado de espírito.
Durante
muito tempo, muita amargura, e razões havia para tanto.
Vieram
"Construção", "Calabar" "Chico Canta" - "são
discos muito pesados, amargurados".
Aquele
ano, 1978, descontou um pouquinho, e fez um disco alegre, "Chico
Buarque", e estava assim, alegre e otimista.
Tem
uma convicção: mesmo nos momentos mais duros, não perdeu o bom humor.
Orgulha-se
da presença das mulheres nas músicas dele:
-
Muitas vezes, as mulheres me dizem que eu interpretei o pensamento delas, o
sentimento delas, o sentimento principalmente.
Puxando
o fio, liga tais situações, dos carinhos das mulheres, com outro episódio.
Chamaram-no
um dia no Sindicato da Construção Civil de Minas Gerais, em Belo Horizonte:
-
E me deram um prêmio, essa pá que está ali, por causa de
"Construção".
Ele
se comove com isso, com tais manifestações.
Não
se incomoda com a crítica burguesa, reacionária - "ele não tem direito de
falar em nome do povo, falar do operário".
Frustrado
ficaria se algum dia uma pessoa do povo o desautorizasse, dissesse não ter o
direito de falar em nome dela:
-
Aí vou me sentir frustrado, vou ser obrigado a dar a mão à palmatória.
Carinho
especial pelas mulheres:
-
Enquanto as mulheres disserem que eu interpreto bem o sentimento delas,
inclusive cantando no feminino, compondo no feminino, vou me sentir nesse
direito.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Chico sempre
maravilhoso
Maria Luiza Mota Miranda: Muito bom! Vou
aproveitar! Sobre a criação, a ideia, a alucinação! Veio a calhar! As
representações, as ideias, um corpo, as alucinações! Valeu querido escritor!
Emiliano José: Maria Luiza, aproveite...
Sônia Maria Haas: Muito bom!!!
Jôh Castro Lima Castro Lima: Muito bom.
Chico me assina. Assina minha alma , meu sagrado, meu feminino mais doce e
forte. Além de me arrancar suspiros infindos. O Buarque, ah ... risos. Obrigada
, Emiliano. Bjo
Graça Azevedo: Como não amar?
Zeca Peixoto: Aula! E que
aula! Amei!
Artur Carmel: Houve um tempo
no qual as substâncias não permitidas pela carta.magna eram de excelente
qualidade....
Solange Galvão: Grande
entrevista. Jari brocou!
Jary Cardoso: Poxa, Solange
Galvão, obrigado!
Lucia Correia Lima: Solange Galvão
tenho uma linda imagem de vc uma pessoa delicada, como o mundo necessita. Mas
creio que "brocou" é uma gíria criada na violência que hoje está no
poder graças ao ego de .... Deixa. Desculpa.
Lia Robatto: Obrigado Lucia
Maria Luzia Sánchez: quando eu ouvi
"brocou" pela primeira, da boca de um adolescente, me assustei,
achando uma expressão pesada. Mas foi por um breve momento, até ver a expressão
facial de admiração de quem falou, e entendi que essa gíria juvenil significa
um grande elogio.
Lucia Correia Lima: As expressões
são criadas também para dominar mentes. Comentaristas esportivos chamavam o
jogador que botavam bolas nas redes de "matador". O inconsciente
coletivo é manipulado.
Lucia Correia Lima: Sabemos dos
equívocos da adolescência! Brocar é dar um tiro...
Lucia Correia Lima: Lia Robatto
né?
Isadora Browne Ribeiro: Tem direito
mesmo. Incrível como consegue escrever letras com alma feminina.
Raquel Nery: Uma aula de
processo criativo. Adorei. Obrigada, Emiliano!
Emiliano José: Raquel Nery
sempre honrado por sua leitura
Eliana Noronha: Esse gênio
humano não precisa da "caquetica" Academia Brasileira de Letras, do
obtuso Merval Pereira, para nada! Chico é genial!
Maria Luzia Sánchez: Chico,
maravilhoso no que cria e como cria, e na sua empatia, humanidade, no seu
"olhar para baixo, para as pequenezas tão grandes" (lembrei de Manoel
de Barros). Como não amar?
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Emiliano José
19
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico, feminismo, com açúcar com afeto
Foi
demorada a conversa.
Chico
deu corda pros dois, Cardoso e Maria da Paz, os dois repórteres do
"Folhetim".
Puxaram
pro feminismo:
-
Nenhuma feminista te chamou de machão?
Não
relutou:
-
Isso eu acho uma bobagem.
Fala
da amiga feminista, Rose Marie Muraro, para quem ele está de acordo com as
teses do movimento feminista.
Não
recusa a controvérsia:
-
Não sou contra o feminismo, mas acho que de vez em quando elas falam um montão
de bobagens.
-
Tipo o quê, por exemplo?
Chico
lembra: houve quem tivesse feito pregações nos bares da moda em São Paulo
contra "Com açúcar, com afeto", afirmando ele colocasse a mulher como
sendo submissa.
-
Eu respondo: realmente a mulher é submissa, é isso tudo, o machismo existe e se
eu disser que não existe estou sendo machista, porque estou querendo escamotear
uma realidade.
Explica:
-
Eu estou colocando uma situação, não estou de acordo com ela, a mesma situação
estou colocando pelo canto de "Pedro pedreiro".
O
homem é pobre, se eu disser que ele é rico aí vou estar sendo fascista.
Conta
caso ocorrido com a ditadura.
Com
a música "Partido Alto".
Nela,
dizia "Deus me fez um cara pobre, desdentado e feio pele e osso
simplesmente, quase sem recheio".
Censura
foi pra cima dele: a música era uma ofensa ao povo brasileiro.
Não
é.
-
Se disser que o pobre é bonito e rico um coitadinho, é a mesma coisa que dizer
que a mulher é forte e o homem um pobre coitado.
Outra
crítica apareceu: girava em torno de "Mulheres de Atenas".
Reage
duro - "aí eu fico preocupado com a capacidade crítica das pessoas".
Era
música feita para uma peça:
-
Achei que era bastante claro que estava dizendo uma coisa com um refrão que era
contraditado o tempo todo pela letra da música, tipo outra música que está
proibida e que fiz pro Calabar, "vence na vida quem diz sim", e o
tempo todo repete o refrão.
Recusa
liminarmente a ideia de símbolo sexual.
Ao
contrário, acredita-se uma pessoa desajeitada, um pouco inábil com as mãos,
"que funcionam de um jeito esquisito".
Nunca
gostou de desmentir coisas.
Há
casos incríveis.
Uma
repórter do jornal "O Dia" foi entrevistá-lo, e ela se mostrava um
pouco acanhada.
Conversa
vai, conversa vem, ela disse saber que ele era muito agressivo, a ponto de um
dia ter batido numa jornalista:
-
As coisas vão se cristalizando: que eu seja agressivo, o que não sou, e que eu
tenha batido numa mulher, o que também é um pouco demais. Sou uma pessoa com
uma série de defeitos e vulnerabilidades, mas mentira me irrita muito.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isadora Browne Ribeiro: Que
interessante! Sempre considerei "Com açúcar e com afeto" um hino anti
machista. Minha leitura é a mesma de Chico, no sentido de explicitar uma
realidade, quem sabe provocar mesmo esta controvérsia que leva à reflexão. Não
é um gênio este rapaz?
Joaquim Lisboa Neto: No romance
Maria de todos os rios, do paraense Benedicto Monteiro, a personagem central dá
um show em defesa de Chico no concernente a mulher
Jonathan Fonsêca: Valeu! E o outro
responde: É niuma!
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Emiliano José
20
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Você não gosta de mim, mas sua filha gosta
De
paz.
Chico
se revela assim.
Nem
precisava: a existência dele tem dito isso.
Críticas,
costuma receber de amigos, a considerá-lo excessivamente indulgente, do tipo de
fechar os olhos para as sacanagens:
-
Tem horas que vem a explosão, mas sempre na defesa.
-
Você não joga no ataque? - perguntam.
-
Só no futebol. No resto, tô aqui: na defesa. Por isso tudo tô falando: uma
pessoa muito exposta, com uma posição bastante clara diante de tudo - eu sou
odiado por muita gente.
Tem
uma hora que o ódio dessa gente explode:
-
Se vem com mentira e se me encontra na rua, aí tem briga.
Mas
reafirma: não é briguento.
É
paciente.
-
Eu odeio os fascistas. Odeio de uma maneira abstrata.
Garante:
se vir um fascista na frente dele, não vai falar com ele, vai virar a cara.
Agora,
caso o sujeito fale com ele delicadamente, responderá qualquer coisa.
Acrescenta,
a falar talvez mais para os tempos atuais:
-
Se você for brigar com todo fascista que tem por aqui, vai ficar louco.
Uma
dúvida inquieta Maria e Cardoso: cantou "Cálice" antes da liberação?
-
Em alguns casos, circuitos universitários, Nordeste, Rio, São Paulo.
Conta
como era.
A
vida era dura sob a ditadura: era obrigado a mandar o título das músicas pra
censura antes de qualquer show.
Não
ia mandar o título "Cálice", né?
Mandasse,
tesoura certa.
Então
o cálice era servido aos censores com o nome "Pai".
Nem
desconfiavam.
Aí,
"Pai" aprovado, ele contrabandeava "Cálice", e começava,
baixinho:
-
Pai, afasta de mim esse cálice..."
Tempos
sombrios são assim, a requerer sempre muita criatividade, saber dar o drible,
cair pelas pontas, não confrontar diretamente, ser eficiente no combate de modo
a afastar o cálice amargo, quando puder.
Quando
na casa do sem-jeito, beber - sentir o gosto amargo do fel.
Há
períodos, em épocas de ditadura, onde a criatividade está mais voltada para
esses estratagemas do que para a própria criação poético-artística-literária.
Diz
ter até algum receio de estar contando tudo isso - de repente há um revertério,
tudo muda, censura volta, e o pegam no contrapé.
Pseudônimo,
não dava mais pra usar - depois de
Julinho de Adelaide, com que assinou tantas músicas, o recurso esgotara-se.
Envolto
numa conjuntura tão repressiva, sabendo de tantas torturas e tantas mortes,
vendo amigos morrendo assim, tinha uma convicção: a popularidade dele era o seu
real guarda-costas.
Nunca
seria um Vlado.
Não
teriam força pra isso.
Chegou
até a cutucar o leão com vara curta, com aquela música do Julinho de Adelaide:
- Você não gosta de mim, mas sua filha gosta...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Isadora Browne Ribeiro: De censura, temos repertório. Com Chico mesmo. Aquela letra maravilhosa da trilha de Bye, bye Brasil, a censura substituiu horrores. MAS DEIXOU VAZAR!!! A Tribuna da Bahia publicou original e substituição. Teatro Castro Alves lotado, Chico começa a versão autorizada. A plateia TODA canta o original. Fazer o quê? Rs
Arthur Dazzani: Querido Emiliano José, sou um rato de YouTube. Como bem disse Ruy Castro, quero viver muito para rever o passado, através de qualquer tipo de arte salvadora, libertadora. Acho que você vai gostar dessa apresentação de Gil e Chico, de 1973, cantando "Cálice", com os censores e a polícia de prontidão. No meio da música ele manda uma "arroz a grega". Em verdade, Cálice já estava e a censura não tinha como evitar. Li seu último post sobre Chico. Estou a refletir para comentar. Segue a apresentação... https://youtu.be/ZiT_YHvUThw
Mônica Bichara: Fantástico, o
"arroz a grega" foi um primor
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Emiliano José
21
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico Buarque e a luta cultural
Você
não gosta de mim mas sua filha gosta dizia-se filha de Geisel ouvia as músicas
dele e se deliciava.
Ninguém
se iludisse: barra sob Geisel, diferente fosse, e era se tomada a comparação
com Médici, continuava pesada, muito pesada.
Tão
a ponto dele sem meios-termos ter dito da necessidade de continuar a matar os
adversários: significava matar, como matou, os jovens e velhos revolucionários
dispostos a enfrentar o regime.
Sorte
dele, ou mérito, a fama o salvava.
Ela,
no entanto, não viera à toa.
Não
caíra do céu.
Fruto
de muito trabalho, dedicação, amor à cultura.
Um
dia, vai preso - é, nenhuma fama impedia de ser arrastado pelas forças de
segurança.
Está
subindo o elevador, devidamente escoltado, aquele clima.
Um
dos policiais não resiste, e lhe estende um pedacinho de papel:
-
Será que dá pra o senhor me dar um autógrafo?
Chico
se surpreende, pega o papel e a caneta, esta também já à mão do agente e ouve a
explicação:
-
É pra minha filha!
-
Claro - disse, e tascou a assinatura.
O
policial certamente levou o troféu pra casa, feliz da vida.
Era
assim: a fama se espalhava, chegava aos policiais - senão ao delegado, aos
escalões abaixo, doidos por alguma atenção, algum rabisco de autógrafo.
Enfrentou
grosseria, era de lei naqueles tempos, "mas sempre tive a garantia de que
não iam me tocar".
Quando
preso, ia com essa certeza.
A
fama era a retaguarda, escudo.
Ia
com essa certeza e com uma obrigação: tinha de ir mais longe, ousar:
-
Se tenho essa cobertura, e não for mais longe, sou um fraco, covarde, canalha.
Equilibrava-se
no fio da navalha: tentava descobrir a medida certa, até onde podia ousar, e
ousava, sempre ousou.
Não,
nele não havia qualquer sentimento de heroísmo:
-
Seria até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que
até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais consequente e mais concreta e
mais séria.
Os
repórteres reagem:
-
Mais séria por quê?
Ele
pensa e responde: entra um pouco aquela sensação de que ficar fazendo música
não é suficientemente sério:
-
Eu tenho um pouco essa tendência. O que me consola é que eu tenho consciência
da importância da música e da cultura de maneira geral.
Atormentava-se
com tais dilemas.
Lia
um Niemeyer dizer: a arquitetura não vale nada diante da imensidão dos
problemas deste País:
-
Então, o que vou achar de minha música?
De
outro lado, não comunga do pensamento daqueles acostumados a viajar na ideia de
que cinema é frescura, música, cultura, tudo, frescura:
-
A gente vê grande parte da população desse mundo inteiro que não tem sequer
noção do que seja a dignidade humana e do que seja a possibilidade de
satisfazer suas necessidades básicas, e então a arte pode ser um veículo.
Volta
a Cuba:
-
Lá, eu vi o povo participando, se sentir participando. Isso vi com estes olhos
que a terra um dia há de comer.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
22
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Chico Buarque: eterno
Repressão,
mil e uma facetas.
Devia
levar em conta a linhagem, sujeito procedente de família tradicional, pai de
renome intelectual raro.
Por
isso, talvez alguma preservação.
Chico
sabia disso.
Tinha
um escudo em torno de si.
Desses
invisíveis, mas escudo.
Os
repórteres comparam com os baianos, Gil e Caetano, "dois baianos do
interior da Bahia".
-
No caso de Gil, então, existe um componente racial muito forte... aquele mulato
que chama de mulato pernóstico, com aquela ousadia do Gil, já falei pra ele,
tem aquelas narinas que são agressivas e tal, que pesa muito.
Reflete:
esse pessoal que fica pichando os baianos o tempo todo e se esquece disso.
Quando
ele foi detido em 1968, logo após o AI-5, vieram pra cima dele com gosto de
gás:
-
Que é que você estava fazendo na passeata dos 100 mil ao lado daquele crioulo
sujo chamado Gilberto Gil?
Pensa
alto, bate da madeira: se houver outro 68, outro AI-5, talvez eu vou estar mais
protegido do que Gil, mais que Caetano, porque os trejeitos dele agridem um
certo tipo de cabeça, mais protegido que Ney Matogrosso:
-
Não estou muito no fim da lista, não. Eles se incomodam comigo.
Identifica
no pensamento da ditadura estranhos sentimentos:
-
Eles se incomodam comigo, mas com certo respeito, onde pinta o ódio e mais um
ressentimento paternalista, como quem tá falando com uma pessoa que traiu a sua
classe.
Como
se dissessem, penso em Paulinho da Viola, tá legal, eu aceito o argumento mas
não me altere o samba tanto assim: que seja, né, aquele crioulo, aquela bicha,
vá lá estejam do outro lado, mas esse
sujeito, de nome e sobrenome de responsa, sujeito da elite, olhos verdes,
torcedor do Fluminense, como é que pode bandear-se pro outro lado?
Não,
não e não.
E
assim segue Chico.
Personagem
a dar ânimo à ideia de eternidade.
Pessoas
como ele não deviam perecer.
A
gente o ouve no final de dezembro de 1978, e sente a sensibilidade, a voz do
poeta atravessando décadas, faca amolada, é Milton, mas vale, cortando,
mergulhando na conjuntura, desenhando cenários, sempre querendo colocar-se de
modo retraído, como fosse possível, pretendendo um pequeno papel na história,
como fosse possível.
Nele,
qualquer um de nós, cidadãos comuns, identificamos a força da cultura, dela em
si mesma, e da cultura como arma política - quem há de negar o papel da cultura
naqueles anos sombrios de ditadura?
Quem
há de negar a doçura e a firmeza da voz de Chico atravessando desertos, sendo a
voz de Clarices e de todos nós, ouvidos nas grades, de lá lutando por um novo
tempo?
Ele,
o novo tempo, veio.
O
manto sombrio volta e meia aparece, de várias formas, como agora.
E
ele, presente.
Agora,
na morte de Elza Soares, possível testemunhar, lembrar um Chico amparando-a nos
momentos difíceis, perseguição da ditadura na Itália.
Essa
entrevista nos recorda esse Chico, Dom Quixote.
Rocinante,
ele não deixa descansar.
Segue
na estrada.
Retiro
o dito: Chico não perecerá.
É
eterno.
Obrigado,
Jary Cardoso.
Obrigado,
Maria da Paz.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o Mestre entrevistado por Jary Cardoso)
Emiliano José
23
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Sérgio Buarque de Holanda e o pecado...
Tempo
de aventuras.
Foi
assim aquele ano de 1978.
Para
tanta gente.
Ano
da antessala da anistia.
Começava
o País a respirar uma aragem nova, não obstante sob ditadura, cujo término só
se daria em 1985.
Cardoso
viveu aquele ano intensamente.
Foi
seu momento maior no jornalismo.
Quando
foi colocado frente a frente com alguns dos grandes mestres da Nação.
Da
cultura.
Da
história.
Disso,
pode se orgulhar.
Não
ouviu Chico Buarque, tão demoradamente no final daquele ano?
Antes,
vejam só, ouvira o Pai.
E
o Pai não era qualquer um: um dos pilares da História do Brasil, autor de
"Raízes do Brasil", um dos clássicos indispensáveis a quem queira
entender o País, jornalista, invadiu outras fronteiras, tal a grandeza
acumulada de saber.
Naquele
abril de 1978, também para o "Folhetim", da "Folha de S.
Paulo", foi cumprir a nobilíssima tarefa de entrevistar o Mestre - tudo,
nesse caso, merece maiúscula, perdoem as leitoras, os leitores.
Imagino
Cardoso se preparando para a entrevista, relendo, procurando saber quem iria
encontrar.
Sabia
por leituras, precisou revê-las: era um momento de glória.
Podia
dar errado, se o treinamento não fosse dos bons.
De
chofre:
-
Professor Sérgio Buarque de Holanda, que país é este? - notem a cerimônia, o
respeito aos mais velhos, à autoridade.
Bebam
as palavras, o verbo do Mestre:
-
É um país que pode se dar ao luxo, em pleno século XX, de restaurar o
absolutismo, as capitanias, a inquisição e o banimento político dos cidadãos.
Antes dessa revolução, que se diz redentora, houve outra redentora, que não
baniu ninguém. Ela mesma acabou banida, chamava-se Princesa Isabel.
O
repórter ouve extasiado.
Vai
ouvindo o Mestre falar dos personagens da História, dos tempos da Colônia, dos
anos 1500, passado passado, assim como fossem "amigos, parentes,
vizinhos", pessoas com quem bate papo ancorado na cerca a separar os
quintais.
À
pergunta desafiadora "Que país é este", o Mestre dana-se a contar
casos de família ocorridos em 1500 e pouco ou no século XVIII ou na semana
passada, "tudo entrelaçado por análises profundas e simples", e com
um bom humor permanente.
A
História ganhava vida.
Sentia-se
um privilegiado - ah, como era diferente daquela "chatice fantasiosa dos
compêndios escolares".
Enquanto
o ouve, enquanto lembra de "Raízes do Brasil" divaga.
Como
o Mestre foi importante na formação do filho.
Você
está lendo "Raízes", e a memória é assaltada por um samba de Chico.
Lembra
de uma nota de rodapé:
"Corria
na Europa, durante o século XVII. a crença de que aquém da linha do Equador não
existe nenhum pecado: "ultra aequinoxialem non peccari". Barleus, que
menciona o ditado, comenta-o dizendo: 'Como se a linha que divide o mundo em
dois hemisférios também separasse a virtude do vício'".
Lembram
de "Calabar":
"Não
existe pecado do lado de baixo do Equador./Vamos fazer um pecado safado debaixo
do meu cobertor..."
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: !!! ouro
Ana Vieira: O colega Jary
Cardoso tem muito mais que "café no bule". É dono de um grande
cafezal, daqueles bem produtivos nos tempos áureos da cafeicultura em São
Paulo. Experiências históricas!
Lucia Correia Lima: Jary é
modesto. Somente um velho marinheiro para mostrar a pescaria de reservado
timoneiro
Ana Vieira: Muito bom! Pescaria
em águas profundas
Lucia Correia Lima: sim sim tipo
forte homega
Ana Vieira: Jary Cardoso
carrega a virtude que considero a mais linda e mais importante: simplicidade. Por
sinal, não muito comum nos jornalistas
Lucia Correia Lima: exato. O quarto poder... Homega 3
Alvaro Figueiredo: compartilho-um
abraço
Antonio Nahas: Lindo.
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Emiliano José
24
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Ibrahim Sued da esquerda festiva...
O
livro de Sérgio Buarque de Holanda ficou para a história.
É
indispensável a quem queira conhecer o Brasil.
Antonio
Cândido, outro Mestre, a também merecer maiúscula, aconselhava em 1967 a quem
quisesse conhecer o Brasil: ler "Casa Grande & Senzala", de
Gilberto Freyre; "Raízes do Brasil" e "Formação do Brasil
Contemporâneo", de Caio Prado Júnior, intelectual a também requerer
maiúscula, outro dos entrevistados de Cardoso.
"Raízes
do Brasil" surge às vésperas do Estado Novo.
Visão
anticonvencional, inédita até então na historiografia brasileira, como registra
Cardoso, obedecia a postulado definido por Antonio Cândido: "o
conhecimento do passado deve estar vinculado aos problemas do
presente".
Quando
Cardoso falou da atualidade do livro com o Mestre, ele discordou.
Uma
fonte como ele dá trabalho: discordava de toda fala do repórter.
Pensamento
dialético: negava afirmando, afirmava negando.
Não,
não renegava o livro.
Mas
não o escreveria do mesmo jeito, pensando-se naquele 1978.
Dá
exemplo: fosse escrevê-lo naquele final de década de 70, não se deteria muito
na análise e interpretação das raízes ibéricas do Brasil, já tão distantes.
Cardoso
foi entrevistá-lo com uma lista infindável de perguntas.
Ia
engatilhar uma pergunta atrás da outra - o Mestre ia ter trabalho com ele.
Ele
o ouvia, e o magnetismo, a sabedoria dele só aumentavam o número de questões.
Percebeu
o método do Mestre: intrigar as pessoas, levá-las elas próprias a fazer as
perguntas a partir da fala dele.
O
interlocutor ia enxergando com mais clareza a história, perguntando-se mais e
mais, e caso pudesse encontrasse então as próprias respostas.
Foi
lembrado: até o ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, valeu-se
de "Raízes do Brasil" em livro lançado havia pouco tempo.
O
Mestre reagiu, bem humorado, que zagueiro bom não perde viagem:
-
Só vou comprar o livro dele se fala mal do meu, se fala bem não interessa.
Cheio
de compromissos, aceitou receber o jovem repórter, sobraçando um "Raízes
do Brasil", lido e relido.
Cardoso
preocupou-se diante de agenda tão cheia.
Temeu
pelo tempo.
Besteira:
conversa durou generosas três horas.
Não
passou desapercebida a caixinha de plástico transparente nas mãos dele, com
cigarros Gauloise, e nem o quanto ele fumava.
O
Mestre vai contando histórias, sem parar.
Falou
da segunda edição japonesa de "Raízes do Brasil", nem sabia da
primeira lançada em 1971, e achou maravilhoso o feito japonês: a capa do livro era
lavável.
Demorou
pra entrar no assunto - Cardoso queria saber onde estava o "brasileiro
cordial" nesses últimos 14 anos - pós-golpe.
Duro
chegar aí.
Ele
conta as peripécias das várias edições de "Raízes", então na décima
primeira edição, com 12 mil exemplares, coisa rara para um livro de História.
Carlos
Guilherme Mota aparece - o livro dele, "Ideologia da cultura
brasileira", iniciara a série sobre história e cultura brasileiras do
"Folhetim", e o Mestre aproveita a brecha:
-
"Carlos Guilherme Mota, o Ibrahim Sued da esquerda festiva". Foi o
Fernando Henrique Cardoso que falou isso uma vez aqui em casa, mas no Rio
disseram que fui eu que inventei. Encontrei o Darcy Ribeiro lá no Rio e ele:
"Me disseram que você inventou uma formidável sobre o Mota..." Mas
não fui eu! Foi Fernando Henrique que espalhou que fui eu.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Poxa! Vontade
de ler reler tudo aqui citado. Pessoas profissionais amigos como Emiliano e
Jary Cardoso, estendendo as suas esposas, me fazem ter manter a chama da
ESPERANÇA na humanidade, no Brasil. Claro, palavras com a força e dignidade do
sertão onde estou hoje
Joaquim Lisboa Neto: Engraçado. Tava
pensando em duas palavras que Ibrahim Sued usava frequentemente. Sorry
periferia
Joaquim Lisboa Neto: Naquela
indefectível coluna n'O Globo
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Emiliano José
25
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
"jeitinho brasileiro" é mundial...
Será?
O
leitor fica a duvidar se um, se outro, a rotular Carlos Guilherme Mota -
precioso e apropriado rótulo: Ibrahim Sued da esquerda festiva.
Melhor
tomar como palavra de fé, a do Mestre, e deixar a maldade com Fernando Henrique
Cardoso.
O
Mestre, no entanto, não é condescendente com Mota - e aí as dúvidas aumentam.
Intriga
de narrador, relevem.
Sérgio
Buarque de Holanda considerou o livro de Mota - "Ideologia da cultura
brasileira" - "todo desigual, muito cheio de coisas, parece que uma
está encaixada na outra".
Não
deixa barato.
Conta:
um dia escreveu artigo sobre Mota no extinto "Suplemento Literário"
do "Estadão", e tascou-lhe título: "A doença infantil da
historiografia" - a falar por si, recorrência ao velho Lênin, "A
doença infantil do esquerdismo no comunismo".
Pode
ser, deve de ter sido o Fernando Henrique dos bons tempos a pespegar a pecha no
pobre do Mota, mas é inegável o espírito crítico do Mestre com relação ao
cidadão, má vontade expressa.
Viajado,
o Mestre correu mundo.
Essas
viagens serviram para encompridar conversa.
Falar
da famosa expressão: "Você sabe com quem está falando?"
Tal
dito, maldito, é próprio, típico mesmo do brasileiro - encontrou vestígios dele
apenas em Espanha.
Agora,
o chamado "jeitinho brasileiro", não tão maldito, já é mais
universal.
Varia
na forma, mas "jeitinho", encontradiço em muitos países pelos quais
passou.
Americano
tem "jeitinho" - conta o Mestre.
Só
que "jeitinho" americano é um pouco mais sofisticado, diferente.
Primeiro,
ele nega.
Diz:
-
Ah, não é possível, absolutamente não se pode fazer isso.
Aí,
o sujeito insiste, lasca um "veja bem...".
Aí,
o funcionário ou quem quer seja a autoridade, "pensa melhor":
-
Bom, mas se fizer isso assim..."
E
as coisas se ajeitam, "jeitinho" americano.
Cardoso
encontra uma brecha na caudalosa fala do Mestre, e encaixa preocupações
trazidas na algibeira:
-
Já é possível definir alguns traços característicos do brasileiro
contemporâneo?
-
Já nos livramos das raízes ibéricas e adquirimos personalidade própria?
Difícil
definir isso, adianta o Mestre: "os traços mudam com o desenrolar da
História em cada região".
Segue
com os exemplos, com a aula:
-
Um irlandês que morou em São Paulo no início do século dizia que preferia morar
aqui [em São Paulo] e não no Rio.
E
sabem por que: em São Paulo, no olhar daquele irlandês, havia muitos poetas,
enquanto no Rio "se trabalhava muito" - exatamente "o contrário
do que se diz hoje numa comparação entre os dois Estados."
É
preciso observar os traços de cada momento histórico.
Cardoso
pergunta mais:
-
A industrialização paulista estaria provocando uma mudança semelhante nos
traços ibéricos do comportamento brasileiro?
O
professor pensa um pouco.
-
Pode ser, mas é uma coisa local porque é uma parte pequena do Brasil.
O
Norte, ele diz, está fora disso:
-
E eu não sei se todos os países têm uma revolução correspondente. Podemos ter
uma revolução industrial sem os mesmos requisitos que tiveram na Inglaterra. As
estruturas sociais são diferentes...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
26
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: o
Mestre e as mudanças de cima para baixo
Foi
uma aula, a entrevista - insista-se.
Para
Cardoso, uma revisitação ao "Raízes do Brasil".
Agora
ao vivo.
Vai
alertando o repórter para equívocos.
Lembra:
os traços apontados em "Raízes" são mais de caráter rural.
Como
a tendência para o emprego de diminutivos.
A
terminação "inho" aposta às palavras, tão comuns para nosotros, serve
para nos familiarizar com as pessoas ou objetos, e também para lhes dar relevo.
Lembrei-me
agora: na família, sou Naninho ou Emilianinho.
Vim
do campo.
O
traço persiste apesar da urbanização.
A
cidade ainda é plasmada pelo ambiente rural e patriarcal:
-
Pode-se dizer que é um traço nítido da atitude "cordial", indiferente
ou, de algum modo, aposta às regras chamadas, e, não por acaso, de civilidade e
urbanóide - como ele diz no próprio livro.
Cardoso,
enquanto ouve o Mestre, deixa a memória voltar-se ao "Raízes", livro
de inúmeras leituras quando de seu esforço clandestino para entender o Brasil -
quase conseguiu, tenta até hoje.
O
português foi se transformando em brasileiro durante a Colônia e o Império, e
nessa época poderia oferecer ao mundo seu traço mais característico, o
"homem cordial", termo a sempre cobrar explicações.
Trata-se,
explica o Mestre, da cordialidade entre familiares, a paixão que pode ser
afetuosa ou arbitrária - diferente, por exemplo, da polidez típica do japonês.
O
homem cordial é individualista e atua através das relações de simpatia, o que é
incompatível com as relações impessoais do Estado moderno e com as necessidades
de organização da vida urbana.
Uma
das consequências desse comportamento familiar e rural é que "a democracia
no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido".
No
século passado [fala do século XIX] os intelectuais brasileiros exibiam um
liberalismo de fachada e mesmo as reformas, como a Independência e a República,
"partiram quase sempre de cima para baixo".
Disso
é "documento flagrante" a carta de Aristides Lobo sobre o 15 de
novembro, citado no livro:
"Por
ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles,
deles só, porque a colaboração de elemento civil foi quase nula. O povo
assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que
significava".
A
tradição da mudança por cima vai aparecer também em novos pensadores, como
Carlos Nelson Coutinho, de inspiração gramsciana.
-
Ainda sobrevive a nossa tradicional "repulsa à hierarquia", outro
traço decorrente das condições de nossa formação nacional? - pergunta o
repórter.
-
Esse traço eu acho que subsiste, mas aí o que nós temos hoje é governo militar.
E o militarismo tem por força uma base de hierarquia. O Exército vive disso, de
modo que a hierarquia se implantou no Brasil em 1964.
Explica:
a classe que domina no Brasil é uma classe muito estreita, pequena - são
elementos muito ligados entre si. Trabalha como se fosse uma família só, a
solução tem que ser o conchavo, resolve-se tudo de comum acordo.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Jose Jesus Barreto: a democracia
no Brasil continua um incorrigível mal entendido.
Isadora Browne Ribeiro: Isto que é
denominado "relações de simpatia" é, de fato, a relação de favores
que vem da Casa Grande e persiste, no mínimo dificultando as relações
profissionais e sempre colocando alguém "devedor" de outrem. Nada
democrático nem republicano. Aliás, faceta esta promiscuidade público/privado
que vemos diariamente.
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Emiliano José
27
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Exército recruta ralé no laço
Um
oficial-militar era quase um nobre.
Caxias
era cadete desde os cinco anos de idade.
Luis
Alves de Lima e Silva era de "quatro costados" - quer dizer, até os
avós não podiam ter sangue judeu.
Tinha
de ter linhagem para ser militar, não era brinquedo não.
Sérgio
Buarque de Holanda segue a conversa sobre o Brasil, agora os militares, de
presença tão fundamental na história da Nação, indesejável seja, mas presença.
Essa
linhagem de "quatro costados" vai se modificar.
Meados
do século XIX começam a pagar mal os oficiais.
Aí,
ninguém queria mais saber de ser oficial.
E
a massa de soldados, caçada a laço.
Recrutas,
nunca iam por vontade própria.
-
Dizer que militar vem do povo... Não, porque isso não é povo. Povo não é caçado
assim. As pessoas fugiam do Exército.
Ele
detalha: havia a camada de oficiais, quase nobre de ascendência, e a camada
baixa de recrutas, a ralé da sociedade, caçados à força para serem soldados.
O
Mestre vai desmontando a história, trazendo-a para a realidade.
Dom
Pedro II até quis acabar com a "pranchada" - castigo aplicados aos
soldados com espada de prancha.
Mas
o Duque não deixou - castigos deviam seguir, de modo a garantir disciplina.
-
Essa gente é a ralé da sociedade - dizia Caxias, o Duque.
Insistia:
essa ralé só tratando a pranchadas, pauladas mesmo.
Só
aprende assim.
Foi
um baiano, senador João José de Oliveira Junqueira, a determinar o fim desse
tipo de castigo, quando na titularidade do Ministério da Guerra, de 1871 a
1875.
Mais
tarde, o Visconde de Pelotas, José Antônio Correia da Câmara, um dos heróis da
Guerra do Paraguai, lamentou, em discurso do Senado, houvessem extinguido
aquelas punições:
-
Esse foi o pior serviço que já se prestou ao Exército porque sem a pranchada há
indisciplina, essa indisciplina que nós temos aí dos soldados é a falta da
pranchada.
Não
é uma história exemplar, a do Exército brasileiro: isso o Mestre
demonstra.
Volta
ao presente: os militares têm que arranjar um jeito para justificar o governo
duro. Aí veio "essa profissionalização do anticomunismo".
A
hierarquia agora existe de modo geral em todos os exércitos.
De
particular no caso brasileiro, era o fato de o Exército ser uma justificativa
da nobreza:
-
O nobre era o militar, o nobre tinha que ir para a guerra, enquanto a função da
burguesia era o comércio.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Isadora Browne Ribeiro: Há
controvérsia. A marinha é que era a força aristocrata. Tanto que até a década
de 70, pelo menos, não havia oficiais negros na marinha.
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Emiliano José
28
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
Mestre desanca Figueiredo
Não
é fácil acompanhar as palavras de um Mestre.
Até
porque, numa entrevista, nem tudo pode ser explicado como se exigiria, assim
fosse um artigo acadêmico.
Isadora
Browne, querida amiga, respeitada professora de História, registra, em
comentário no capítulo anterior, a natureza aristocrática da Marinha, não
propriamente do Exército, e creio tenha razão.
Mas,
Mestre é Mestre.
Logo
à frente, ele fala: quando acaba a nobreza, o militar herda os atributos dela,
"e então não tem mais limites a ambição de subir".;
E
aí, vem o esclarecimento:
-
No Brasil, a não ser no começo e com algumas exceções, como Caxias e Barbacena,
o militar não vem de casta nobre, aí por isso mesmo ele exagera esses
atributos.
Como
se vestisse uma roupa estranha, às vezes mais larga, outras, mais apertada.
Já
passava da meia-noite.
Mestre
quando Mestre não economiza prosa.
Deu
de prosear sobre história das eleições no Brasil:
-
O Brasil criou várias singularidades: a democracia relativa, o senador biônico,
o Pacote de Abril...
Dessas
criações, destaca a democracia relativa:
-
A lei não pode ser relativa. Na prática, a democracia é relativa mesmo nos
países mais democráticos, como na Suíça, mas isso é um vício. "Todo poder
emana do povo" é uma verdade absoluta, se não é cumprida trata-se de um
vício do sistema. Não se pode transformar um vício em lei.
Aí,
Cardoso mete o Pacote de Abril nos peitos do Mestre.
Ele
não refuga:
-
Já houve outro pacote de abril, no dia 7 de abril de 1831 (abdicação do
imperador D. Pedro I), mas bem diferente desse último (reforma política
decretada em 14 de abril de 1977). O primeiro foi feito pelo povo para expulsar
o soberano. E esse pacote de agora foi feito pelos atuais soberanos para
expulsar o povo e manterem-se donos da situação.
-
E os senadores biônicos? - emendam os repórteres.
-
Hoje os governadores e os senadores biônicos são escolhidos por uma cabala, não
se pode nem dizer que seja uma minoria. A decisão do presidente é que
prevalece.
Ironia,
brinca um pouco, respeitosamente, com o general Figueiredo, presidente da
República.
Dissera
Figueiredo, numa entrevista, revelando-se intelectual, conhecer bem matemática.
Como
sempre digo, zagueiro bom não perde viagem:
-
O general Figueiredo deve conhecer bem a geometria euclidiana, mas o mundo de
hoje não é mais euclidiano. Depois de Euclides outras geometrias foram criadas.
O mundo de hoje é "o mundo do não", como disse muito bem o professor
Antonio Candido em palestra recente.
Faz
ressalva ao pai do presidente, general Euclides Figueiredo, com quem chegou a
manter boas relações.
O pai, registra, era coronel na revolução
constitucionalista:
-
E esse Figueiredo (o João Baptista) já tem quatro estrelas antes mesmo de ser
presidente da República. Acho que nisso ele não seguiu muito o pai.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
29
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: ao
fim - Que país é este?
E
aí, na longa prosa, o Mestre danou a falar da história dos sistemas eleitorais
brasileiros.
Sérgio
Buarque ia considerando: nos tempos da Colônia o eleitorado era relativamente
grande.
Foi
diminuindo proporcionalmente ao
crescimento da população.
Isso
foi corrigido depois da Revolução de 1930.
E
novamente agravado com o golpe de 1964.
Dá
lições, fundamentais:
-
O voto do analfabeto tinha desde a Colônia, nas eleições municipais.
Como
é que se dava?:
-
O analfabeto assinalava com uma cruz o livro de presença e pedia para um amigo
votar por ele.
O
amigo escrevia o nome do votado numa bolinha chamada "pelota".
-
Na hora da apuração era sempre uma criança que tirava as pelotas do saco - a
urna de então.
No
Império, a Constituição de 1824 garantia o voto para toda a população ativa,
inclusive ex-escravos.
Quem
não votava?
-
Escravos e frades, porque era o critério da independência pessoal que
prevalecia para definir o eleitor: o escravo dependia do senhor, e o frade, da
Igreja.
Aquela
Constituição exigia do eleitor uma renda mínima de 100 mil réis por ano,
"o que era pouco, só o mendigo indigente não tinha essa renda":
-
Era praticamente um sufrágio universal.
(Não
exageraria o Mestre, considerando que os escravos não votavam?)
Eleições
eram chamadas de "paroquiais" - realizadas dentro de igrejas:
-
E eram indiretas, mas no primeiro turno votava toda a massa da população ativa:
o votante escolhia o eleitor e este o senador.
Os
três senadores mais votados eram indicados ao imperador que, de modo geral, escolhia
o primeiro da lista ou de acordo com o partido que estivesse no poder - Partido
Liberal ou Conservador.
O
eleitorado começou a diminuir relativamente. com a Lei Saraiva, de 1880:
-
Nessa época votavam um milhão e meio dos 12 milhões de habitantes. Com a Lei
Saraiva, que elevou o nível de renda mínima exigido e que ainda passou a exigir
prova de renda - o que era difícil de ser obtido -, o eleitorado baixou para
1,5% do total da população e, na prática, votava menos de 1%.
Em
1889, ano da República, o Brasil era considerado um dos países de menor
eleitorado do mundo.
Em
1881, a Constituição republicana extinguiu o voto do analfabeto.
Foi
assim até 1930, daí começa a aumentar o número de eleitores:
-
O voto feminino dobra o eleitorado, uma medida propriamente progressista, mas
de iniciativa da Liga Católica, que achou que as mulheres eram mais devotas que
os homens. Depois o voto secreto trouxe uma massa que antes não votava. Aí veio
o freio, através de várias tentativas, e a mais forte foi em 1964, por causa
desse aumento de eleitorado.
Que
país é este?
Exclamação
feita de alguma forma muito antes por Herbert Smith, um dos viajantes citados
em "Raízes do Brasil", advertência do século XIX:
"Lembrai-vos
de que os brasileiros estão hoje expiando os erros de seu país, tanto quanto os
próprios erros. A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas
raízes".
Lá
atrás, estão as raízes do Brasil.
Que
país é este?
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
30
de janeiro de 2022
Jary Cardoso:
começa a olhar para Salvador
1986
era ano de voltar a respirar.
No
ano anterior, a ditadura havia sido sepultada.
Exagero,
talvez.
Como
nossas transições sempre foram feitas por cima, sobraram marcas dela.
Os
torturadores restaram impunes.
Por
azares do destino, Tancredo Neves morreu antes de assumir.
E
Sarney, por artes da sorte, torna-se presidente da República.
E
assim estávamos: a democracia de volta, com Sarney no comando da Nação.
Melhor
assim - ditadura seria bem pior.
Bahia
convivia com João Durval Carneiro governador, eleito pela força de Antonio
Carlos Magalhães que à pergunta de um repórter sobre ser o candidato dele um
desconhecido, respondeu ser capaz de eleger até um poste, e elegeu João Durval,
derrotando Roberto Santos.
O
prefeito era Mário Kertész, desta vez eleito pela via direta. Havia sido
prefeito biônico entre 1979 e 1981, nomeado por ACM, com quem brigará ao final
do mandato, filiando-se em seguida ao PMDB, partido pelo qual se elege em 1985.
Foi
ano de alegrias e tristezas, como qualquer outro.
O
carlismo foi derrotado: Waldir Pires obteve estrondosa vitória sobre o
candidato de ACM, Josaphat Marinho.
Bahia
em festa.
Mãe
Menininha e Dom Avelar Brandão Vilela morreram.
Bahia
em lágrimas.
Nosso
Jary Cardoso vivia na Paulicéia, não tão desvairada.
Ao
menos pra ele.
Entediante
a existência, naquela quadra.
Seguia
a monotonia diária de melhorar a embalagem da mercadoria.
A
mercadoria-notícia chegada às suas mãos no mesão da Editoria Geral do Estadão.
As
mercadorias eram provenientes da reportagem local e das numerosas sucursais do
Estadão - o jornal já foi grande um dia.
O
nome mesão reclama duas ou três palavras: as escrivaninhas dos redatores da
Editoria Geral eram dispostas de modo a formar um círculo.
O
chefe ocupava a mesa maior, com caixas de entrada e saída de matérias.
Verdadeira
linha de produção - o proletariado, na finalização da mercadoria.
Sei:
jornalista não gosta de se ver assim, mas é assim: um proletário.
Cardoso
revela: só despertava do tédio quando caía nas mãos dele alguma matéria
proveniente de Salvador.
Meio
sem jeito porque não era copy dado a crueldades, confessa: algumas das matérias
"eram muito mal escritas".
Pareciam
ter sido feitas às pressas, sem muito cuidado.
Navarrinho,
ainda chefe então, vai ler e poder comentar.
Ainda
bem - disse "algumas".
Para
compensar, o diagnóstico positivo: quase todas apresentavam conteúdo
interessantíssimo.
Ponto
pra Navarrinho, dos melhores jornalistas da Bahia, um de meus mestres, hoje
escritor dos melhores.
Nas
matérias coisas da Bahia, peripécias, estrepolias de ACM, e também ações da
Prefeitura de Salvador, a entusiasmar Cardoso.
Passou
a acompanhar a gestão de Mário Kertész.
Notou:
ele se cercara de gente boa, competente, digna de admiração.
Como
João Santana, secretário de Comunicação Social...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
31
de janeiro de 2022
Jary Cardoso: a
Bahia é o meu lugar...
Conheceu
João Santana no decorrer da militância comum na imprensa alternativa.
Ele
no "Bondinho", João Santana no "Verbo Encantado".
Patinhas
- à época, todos conheciam Santana assim.
Creio
já ter falado do "Verbo Encantado".
Apareceu
pela primeira vez nas bancas de Salvador em outubro de 1971.
Plena
vigência do AI-5, pau comendo.
Eu
próprio, preso, e naquele momento recambiado pra São Paulo pra responder a um
de meus processos.
Estava
preso desde novembro do ano anterior.
Gustavo
Falcón, no livro "Os baianos que rugem", afirma que
"aparentemente, toda essa conjuntura era driblada pelas matérias do
jornal, predominantemente de caráter cultural, com uma linguagem coloquial,
mesclada de gírias ou expressões ligadas à chamada cultura underground ou
contracultura".
Rica
experiência.
Resistiu
até junho de 1972.
Foi
esse verbo encantado, onde Patinhas transitava, e brilhava, a ponte para a
relação dos dois.
E
amizade cresceu a partir das idas anuais de Cardoso a Salvador.
Passou
a curtir a cidade.
As
festas de largo e o carnaval.
Isso
foi facilitado porque Patinhas casou-se com Lúcia Correia Lima, fotógrafa e
amiga dos tempos do "Bondinho".
João
Santana, e é bom chamá-lo assim agora, nesse meados dos anos 1980, quando já
secretário de Comunicação do prefeito Mário Kertész, satisfazia todas as
curiosidades de Cardoso sobre a Bahia.
Cedia-lhe
as gravações mais interessantes das canções do carnaval baiano.
Derramava-se
em explicações e conceitos sobre o riquíssimo candomblé baiano.
Não
era pouca coisa saber de Mãe Menininha, do Gantois.
Ou
de Mãe Stella, do Ilê Axé Opô Afonjá.
Em
1986, além de João Santana na Secretaria de Comunicação, o governo Mário
Kertész exibia Gilberto Gil na Secretaria de Cultura.
De
Gil, Cardoso andou próximo quando do "Bondinho".
E
quando trabalhou com o empresário dele, Guilherme Araújo.
A
Secretaria de Planejamento da Prefeitura era ocupada por Roberto Pinho,
definido por ele como "figura mítica da Tropicália".
Entrevistou-o
quando ainda estava como copidesque da Editoria Geral do "Estadão".
O
jornal dava oportunidade aos redatores de saírem às ruas pra fazer matéria.
Entrevistou
Roberto Pinho num encontro de prefeitos de capitais, realizado em Salvador.
Dessa
reunião, nasceu nele uma nova compreensão do urbanismo.
Conheceu
as teorias e projetos revolucionários de Jaime Lerner.
E
rendeu-se a Roberto Pinho, à sua visão do urbanismo inserido na história.
Estava
ele posto em sossego um dia na sempre entediante tarefa de copidesque, quando
cai nas mãos dele texto e fotos da sucursal de Salvador, dando conta de uma
iniciativa de Mário Kertész: toda a frota de carros da Prefeitura estacionada
na Praça Municipal exibia uma pintura - reproduzia um mesmo padrão de desenhos geométricos e
coloridos.
O
autor: Rogério Duarte.
Na
opinião de Cardoso, a cabeça mais influente na concepção do Tropicalismo em
Caetano Veloso.
Tal
matéria foi decisiva para uma decisão: a Bahia era seu lugar no mundo..
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Delícia d. Tx
Jose Jesus Barreto: João Santana,
o Patinhas, começou repórter da Tribuna da Bahia, dos bons. Foi repórter e
depois chefe da sucursal O Globo em Salvador. ótimo texto. isso antes de MK...
Lucia Correia Lima: Creio q João
iniciou no JBa. " Deu gorgulho na estrada do feijão" fez na
Barroquinha. Acho
Jose Jesus Barreto: Entrou comigo
na TB em 1971. lembro.
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(João Santana e Jary)
Emiliano José
1
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
desembarcando na terra dos orixás...
Parecia
um chamado.
Talvez
fosse.
Quem
sabe os orixás o quisessem naquela terra.
Houve
uma espécie de encantamento.
Um
encanto chamado Bahia.
Você
já foi à Bahia, nego?
Já
fora, sentira.
E
houve o deslumbramento.
Antes
do episódio dos desenhos geométricos de Rogério Duarte, João Santana, numa das
passagens de Cardoso pela Bahia, estimulou a vinda dele para a terra do
Gantois, da Casa Branca, do Oxumaré, do Bate-Folha, do Ilê Axé Opô Afonjá, do
Bogum.
Ouvindo
o desejo dele, disse mais ou menos o seguinte:
-
A sua vinda fará muito bem ao jornalismo baiano. Estamos precisando de
profissionais com experiência cosmopolita para superarmos o provincianismo.
Logo
depois de ler a matéria e observar as fotos da frota de carros desenhada por
Rogério Duarte, ligou pra João Santana e comunicou, apenas comunicou:
-
Vou para a Bahia.
João
Santana parecia já esperar a notícia.:
-
Venha trabalhar como assessor de Gilberto Gil na Fundação Gregório de Mattos -
a fundação corresponde a uma Secretaria de Cultura.
Prudente,
pediu licença de seis meses no "Estadão".
Acertou
com a mulher, a primeira delas: iria primeiro fazer uma pesquisa de modo a
encontrar o melhor bairro para a moradia do casal e, também, um colégio
adequado para os filhos gêmeos, já com 14 anos.
No
pouco tempo transcorrido entre a decisão de partir e a chegada à Cidade da
Bahia, o cenário havia mudado.
Gil
não estava mais na Fundação Gregório de Mattos.
João
Santana, no entanto, não roeu a corda.
E
encontrou lugar para Cardoso na Secretaria de Comunicação Social da prefeitura.
Salário
era muito baixo.
João
Santana, muito bem relacionado, consegue para ele uma vaga de redator da
Editoria de Economia do "Jornal da Bahia", já funcionando na Djalma
Dutra, em dependências alugadas no prédio onde funcionava também a
"Tribuna da Bahia", à rua Djalma Dutra.
Cardoso
percebeu: vida na Bahia não seria fácil, não.
Os
dois salários somados não chegavam a representar o montante ganho no
"Estadão".
Não
era problema.
A
escola da Polop o treinara bem no quesito viver com poucos recursos e situação
precária.
Nessa
primeira fase, sozinho, foi morar numa pensão no centro da cidade.
Dividia
o quarto com quatro ou cinco pessoas, agrupadas em três beliches - o leitor não
há de ser indiscreto e perguntar como cabiam cinco pessoas ali, em três camas:
escassez faz milagres.
Almoçava
nos restaurantes das redondezas.
Populares,
mas guardavam sofisticação, apuro na comida, e fizeram parte da tradição do
Centro Histórico de Salvador: "Porto do Moreira",
"Mini-Cacique", "Cantina da Lua".
"Mini
Cacique" fechou recentemente devido à pandemia, depois de funcionar desde
1974 e ser frequentado por Caribé e Pierre Verger entre tantos artistas e
intelectuais. Ficava na rua Ruy Barbosa, paralela à rua da Ajuda, pertinho da
rua Chile.
"Porto
do Moreira" acumula mais de 80 anos de História.
Situado
no Largo do Mocambinho, parelho com a rua Carlos Gomes...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
2
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
vida não tem linha reta
O
"Porto do Moreira" era ancoradouro dos jornalistas.
Ninguém não devia de ir à
busca de pratos leves.
Fosse,
havia de encarar moqueca de carne, rabada com pirão, mocotó, moqueca de arraia,
língua ensopada, malassado, a notável galinha ao molho pardo, tudo com
condimentado tempero, sem quaisquer tentações gourmet.
Jornalistas
e toda a intelectualidade baiana fizeram dali ponto de encontro.
Se
fazem ainda, não sei.
Pertinho
de casa, Cardoso o frequentava sempre.
Tive
a satisfação, honra de propor e conseguir aprovação da Comenda e Medalha Tomé
de Souza a Antônio Moreira, o principal responsável pelo restaurante naquele
ano de 2002 - era vereador pelo PT.
Quem
me animou a isso foi um assíduo frequentador do "Porto do Moreira", e
amigo de Antônio Moreira, Ricardo Melo, um notável memorialista da Bahia sem
nada escrito, hoje morando lá pelas bandas de Goiás.
A
memorável "Cantina da Lua" persiste.
Vivo,
inteiro, atuante, o querido Clarindo Silva, criador, fundador daquele centro
cultural.
Seria
pecado chamar a "Cantina" de restaurante tão somente.
Clarindo
soube torná-la ponto de encontro da boemia e intelectualidade de Salvador.
Era
pisar no Terreiro de Jesus, e lá estava, lá está, Clarindo Silva, de braços e
sorrisos abertos, invariavelmente vestido de branco.
Cardoso,
freguês contumaz.
Mereceu
livro já, de autoria do conterrâneo Vander Prata.
Chegou,
sentou praça, conheceu pessoas, ia se ambientando nosso protagonista.
A
vida, insisto, não tem linha reta.
Cardoso
estava pesquisando os melhores colégios particulares, as mensalidades, métodos
de ensino para os dois filhos, gêmeos, com 14 anos, como revelamos.
Ana
Lúcia Cardoso, mulher dele, e os filhos o aguardavam em São Paulo.
Era
mandar o aviso, e viriam.
Ele
seguia dando duro nos dois empregos.
A
vida não para.
Ele
chegara em Salvador no início de 1987.
No
início de 1988, e é sempre bom lembrar: nada será como antes - é surpreendido.
Ana
passara a viver com outro.
Apaixonou-se.
A
correnteza da paixão a levou - deixou-se levar pelas águas.
Por
que não?
Paixão
é sempre assim.
Não
nega: foi um inferno.
Inferno
astral.
A
notícia veio em pleno carnaval...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Pra mim ir a Salvador e não marcar presença no Porto do Moreira era viagem incompleta. Cheguei até a passar cheque sem fundo –informando ao dono- num dos almoços antecedidos de uma dose de Abaíra, Seleta... Já tive lá umas vezes com o poeta Carlos Anísio Melhor. Cantina da Lua, outro templo prazerosamente obrigatório. E o Quintal do Raso da Catarina? Centenas de chops com cachaça. De forma que essa santíssima diabólica trindade consistia na minha andarilhagem pela velha São Salvador, além das livrarias e lojas de discos evidentemente.
Emiliano José: Boêmio de
Santa Maria da Vitória não nega 🔥 em nenhum lugar..
Joaquim Lisboa Neto: As igrejas
não, mas os bares me perseguem, exatamente no térreo abaixo da kitnete onde me
entoco tem um chamado AltaZoras, dizem as más ou melhor boas línguas que é meu
escritório extraoficial
Artur Carmel: E quando vai a
Santa Maria não dispensa uma passada nos botecos da Praça do Jacaré..rss
Joaquim Lisboa Neto: Falou! E
disse!
Emiliano José: Vive lá,
Arthur, de bar em bar. Já lasquei nele o apelido de Quincas Berro D'ÁGUA...
Artur Carmel: Kkkkkk Gostei
!
Joaquim Lisboa Neto: Onde moro na
entrada da Sambaíba, têm quatro terreiros que frequento diariamente,
noturnamente também é claro
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Emiliano José
3
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
Você sabe o que é ter um amor, meu senhor...
Quem
é do mar não enjoa
Chuva
fininha é garoa
Homem
que é homem não chora, não, não, não chora
Quando
a mulher vai embora...
Bom
ouvir Martinho da Vila.
Mas
ele se dividia.
Você
sabe o que é ter um amor, meu senhor
Ter
loucura por uma mulher
E
depois encontrar esse amor, meu senhor
Nos
braços de um outro qualquer...
Lupicínio,
na voz dele mesmo, ou na suave toada de Paulinho da Viola.
Corriam
os dias de carnaval.
Fevereiro
de 1988.
Notícia
veio como tempestade súbita.
Raio
caído num dia de céu azul.
Sujeito
aí sente tormentos do inferno.
Já
havia, todo alegre e faceiro, todo disposto à folia, comprado a multicolorida
fantasia do Olodum.
Certo,
dúvida nenhuma: sairia no bloco.
Perderia
nenhum dia.
Quando
a mulher foi embora, a alegria se dissipou.
Ainda
pensou em Martinho da Vila.
Na
primeira saída, primeiro dia, embalado pela Banda Olodum, cantarolou baixinho,
tirando do fundo do poço forças de resistência, macho: homem que é homem não
chora, não, não, não chora quando a mulher...
Parou
a meio caminho.
Lupicínio,
mais forte: você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma
mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um outro
qualquer...
Um
outro qualquer.
Lupicínio
enterrava a faca, e girava.
Desabou.
Na
Praça Castro Alves.
Deixou
o Olodum seguir.
Restou
sentado na calçada, inteira desolação.
Aos
prantos.
Já
viu homem chorando?
É
coisa forte, convulsiva.
Retirou-se
do carnaval.
Homem
que é homem chora.
Precisasse
aprender, aprendeu.
Ana
Lúcia se fora.
Com
um outro qualquer.
No
quarto de pensão, abraçado ao travesseiro, pensava: a vida é dura.
Sem
linha reta.
Pensou
no desbunde.
Rompimento
com a militância clandestina.
Na
inesquecível fase do jornalismo alternativo.
Alegria,
alegria.
Depois,
o rebunde - voltar a ser uma simples peça do "sistemão".
"Estadão"
foi o rebunde.
Bahia,
outro desbunde.
E
de repente, Ana partiu com um outro qualquer.
Os
filhos, com ela, em São Paulo...
#MemoriasJornalismoEmiliano
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(No restaurante Vital, no Pelourinho, final da década de 80, com a nova companheira, Vilma Nascimento, paixão desde 1988)
Emiliano José
4
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
escapando das garras da depressão...
É
curioso: quer escrever sobre trajetória jornalística do protagonista, e se mete
de repente na vida privada dele.
É
a mania do todo.
Nada
é separado.
Tudo
junto e misturado.
Pois
é, Cardoso havia feito uma escolha.
Arriscada,
e consciente.
Olhava
o entorno, agora.
A
moradia precária naquele quarto de pensão compartilhado com vários homens,
nenhum deles conhecido, e a súbita separação, a perda do grande amor, davam-lhe
a real dimensão dos riscos admitidos quando renunciou às mordomias familiares.
Tinha
uma vida relativamente estável em São Paulo.
E
a estabilidade, pudesse ser chamada assim, era dada pela confortável situação
financeira do sogro desembargador, cuja generosidade teve a ver até com o
emprego no Estadão, conseguido graças a uma palavra dele.
Expandia-se
em generosidades - era o amor pela filha, disso Cardoso tinha consciência.
Generosidade
estendida aos netos, naturalmente.
Era
uma estabilidade modorrenta, no entanto.
E
a rigor, como verá com a separação, não era estabilidade.
A
Bahia ofereceu-se, naquela escolha, como um outro mundo.
Começaria
tudo outra vez, embora soubesse das disposições do sogro de continuar ajudando
a filha e os netos.
Tudo
por água abaixo com a nova paixão de Ana Lúcia.
Agora,
era ele e ele.
Mais
ninguém.
Dois
trabalhos, suor derramado para garantir o pão de cada dia.
Levantou-se,
começou a dar a volta por cima.
Chorei,
não procurei esconder
Todos
viram, fingiram
Pena
de mim, não precisava
Ali
onde eu chorei
Qualquer
um chorava
Dar
a volta por cima que eu dei
Quero
ver quem dava...
Tantos
cantaram a música de Paulo Vanzolini: Noite Ilustrada, Bethânia, Elza Sores, um
mundo de gente boa.
Era
como um eco na memória.
Um
homem de moral não fica no chão
Nem
quer que mulher
Lhe
venha dar a mão
Reconhece
a queda e não desanima
Levanta,
sacode a poeira
Dá
a volta por cima.
Dor
de cotovelo - doía muito, nega não.
Saudade
- muito grande.
Mas
em meio às lágrimas, travesseiro ensopado, alguma alegria: estar vivendo na
Cidade da Bahia.
Não
era qualquer coisa.
Fazer
matérias entre casarões seculares, conhecendo melhor a História do Brasil,
fruindo a diversa, impressionante cultura do povo baiano, sentir-se mais uma
vez testemunha ocular da história.
Não,
não era qualquer coisa.
E
a depressão não durou tanto assim.
Essa
história de "nem quer que mulher lhe venha dar a mão" às vezes é
conversa mole pra boi dormir.
Quando
aparece, ah, como é bom.
Apareceu
Vilma Nascimento.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Charles Fonseca Coutinho: Muito Bom!
Emiliano José: Obrigado
Daniel Thame: lindo texto
Emiliano José: Daniel Thame
obrigado, amigo
Artur Carmel: "Na Bahia
ninguém fica em pé..." ! Mas Cardoso conseguiu dar a volta por cima.
Joaquim Lisboa Neto: Começaria tudo... Gonzaguinha. Volta por cima com Bethânia pra mim definitiva no vinil Anjo exterminado Drama
Pedro Rocha: Tô lendo e
gostando...
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(Vilma Nascimento por Uli Burtin em 1980)
Emiliano José
5
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: as
artes do acaso, manhas do destino
Desde
muito pequeno, Cardoso sonhava com um grande amor.
Quem
não?
Na
adolescência e início da vida adulta, viveu paixões intensas.
Verdade:
efêmeras.
E
não correspondidas.
Grandes
desilusões.
Quem
não?
Vilma
Nascimento surgiu quando aportava na maturidade.
Ela,
também, às vésperas dos 40 anos.
Os
dois, sem arrebatamentos.
O
encontro tem história.
As
coisas não surgem assim, de inopino.
Era
copidesque do Estadão em 1983.
Contígua,
no mesmo andar, funcionava a redação do Jornal da Tarde.
Na
Editoria de Variedades, havia uma excelente repórter, Maria Amélia Rocha Lopes.
Especializada
em música.
Cardoso
trocava ideias com ela frequentemente.
Pessoa
amiga.
Nunca
deixava de ler as matérias dela.
Chega
um dia, Maria Amélia publica nota sobre a apresentação de um novo grupo de
rock, estilo new wave, constituído apenas por meninas.
Garotas
do Centro - o nome.
-
E quem havia subido até a redação para dar tais informações era uma linda
negona - explica Cardoso.
Justo
ela: Vilma Nascimento.
Prima
de Milton Nascimento.
Até
ali, desconhecida dele.
Dele,
mas não do restante do mundo musical.
Em
1977, Vilma Nascimento fora backing vocal no show Refavela, de Gilberto Gil.
Em
1980, gravou LP próprio, de nome Conquistado.
Leu
atentamente a matéria de Maria Amélia.
Ouviu
dela mais detalhes sobre a banda, constituída em parte por namoradas de
integrantes de um grupo de rock que
começava a despontar, os Titãs.
E
aí teve o interesse despertado: por Vilma.
Um
dia, há destino?, ainda 1983, ele a encontra por acaso, e há acaso?
Fechada
a edição do Estadão, quando você sai em busca de outros ares, saco cheio dos
bares da moda, não quer mais saber dos recantos da Vila Madalena, Cardoso cai
na região central de São Paulo, próximo ao Minhocão, rua Marquês de Itu.
Point
dos punks.
Teatro,
bares,. boates.
Estava
entre os seus: roqueiro desde menino, sentiu-se como peixe n'agua - como era
bom ver aqueles jovens com piercing no nariz,.na boca, nas orelhas, sabe-se lá
onde mais, roupas rasgadas, esburacadas.
Aquilo
o encantava, o seduzia.
Entrou
na Napalm, nome da casa noturna.
E
depara com Vilma Nascimento.
Garçonete.
Naquela
noite, naquela primeira noite, Vilma olhou carinhosamente para ele.
Que
olhar lindo!
Que
deslumbramento!
Mas
ele, timidez em figura de gente: nem nada.
Só
muito depois, uma separação e um divórcio depois, um rio de lágrimas depois,
vai reencontrá-la em Salvador.
Passava
de carro pelo Pelourinho e a viu.
Majestosa,
caminhando, desfilando junto aos antigos casarões.
Foi
um relance.
Inesquecível.
Sumiu
na poeira.
Mas,
o acaso existe?, outro dia ele a vê na fila do elevador de um prédio na rua
Chile.
Não
é possível perdê-la de novo, pensou, e aí já estava documentado, com papel de
divórcio e tudo, dor de cotovelo se esvaindo...
Ela
iria subir a um andar do mesmo prédio onde Cardoso trabalhava para dar
entrevistas sobre duas apresentações dela no Restaurante Cheiro de Mar, no Rio
Vermelho.
Escaparia
novamente?
Aceitou
o convite para o show, besta não era.
A
chance - pensou.
Era...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(Jary e Vilma)
Emiliano José
6
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: 34
anos de um grande amor
Se
preparou todo alegre para a apresentação de Vilma.
Os
olhos brilhavam.
Alguma
coisa nova nascia no coração.
Ainda
lembrou do amor perdido.
Veio-lhe
Clara Nunes.
Quis
você pra meu amor
E
você não entendeu
Quis
fazer você a flor
De
um jardim somente meu
Quis
lhe dar toda ternura
Que
havia dentro de mim
Você
foi a criatura
Que
me fez tão triste assim.
Voltava,
a dor.
Ainda.
Mas
ia sumindo.
E
como era bom a chegada de Vilma.
Enquanto
vestia a melhor camisa, voltava a Clara Nunes, já em outro astral.
Ah!
E agora você passa
Eu
acho graça
Nessa
vida tudo passa.
Entre
as flores, você era a mais bela
Minha
rosa amarela
Que
desfolhou, perdeu a cor.
Era
Vilma a despertá-lo, sentir-se outro homem.
Se
ia dar certo ou não, quem sabia?
Ele,
depois de vê-la cantando, sentir tanta beleza, agora também a voz, presença de
palco, ganhou coragem, e convidou-a para a festa de inauguração da nova casa
dele, alugada no bairro do Barbalho.
Dele
e de Lago Júnior, colega de Jornal da Bahia.
Bendita
festa.
Uma
dança, outra, uma palavra, uma declaração, e o namoro começou.
Um
mês depois, Vilma deixou a residência no Pelourinho onde morava com a fotógrafa
Célia Aguiar.
Foram
viver juntos numa casa antiga no alto da Ladeira da Palma, no bairro da
Mouraria.
Já
lá se vão 34 anos de um grande amor.
Ambos
nasceram em 1948, Cardoso um mês mais velho.
Ele,
nascido em São Paulo, 17 de abril.
Ela,
em Juiz de Fora, 16 de maio.
Aos
poucos, foi se dando conta do privilégio de ter Vilma como companheira.
Bom
entender.
Além
da idade, os dois têm pouca coisa em comum.
A
independência talvez tenha sido o fator de mantê-los unidos durante todo esse
tempo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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(A tia Ercília, Milton e Vilma)
Emiliano José
7
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
Vilma e o Clube da Esquina...
Aos
21 anos, Vilma caiu no mundo.
Deixou
Juiz de Fora, cidade natal.
Destino:
Rio de Janeiro.
-
Não é metida a intelectual, como eu, e se guia pela intuição - revela Cardoso.
Tem
faróis a iluminar o caminho: a própria experiência adquirida ao longo da vida,
e a rígida educação recebida dos pais.
Logo
percebeu: não era tão roqueira quanto ele.
O
rock é um dos gêneros musicais curtidos por ela.
Gosta
mais de cantar bolero e samba-canção, gêneros predominantes em seu LP
"Conquistado".
Nele,
encontra-se apenas um country rock, "Big Black Mania", composto por
Luciana de Moraes, filha de Vinicius de Moraes - homenagem a Luiz Melodia, a
quem o LP é dedicado.
Canta
desde criança, a menina.
Venceu
concurso infantil em Juiz de Fora.
Em
casa, ouvia sempre os programas de auditório da Rádio Nacional.
Chegada
à adolescência, passa a viajar aos fins de semana pro Rio de Janeiro.
Fica
perto de Juiz de Fora, e no Rio havia a casa de uma irmã, onde se hospedava.
Gostou
da Cidade Maravilhosa.
Aos
21 anos, juntou mala e cuia e mandou-se.
No
Rio, vive por 23 anos - uma existência.
Estreita
amizade com o primo Bituca e os demais músicos do Clube da Esquina.
Lembra:
Wagner Tiso foi um dos arranjadores de seu disco e dele participa tocando piano
e sanfona.
Torna-se
também muito amiga de Luiz Melodia, com quem divide o palco algumas vezes.
Casa
com o arquiteto Paulo Rocha e tem uma vida muito intensa na cidade.
Canta
na noite.
Assiste
a muitos shows.
Especialmente,
as rodas de samba do Teatro Opinião, e espetáculos como "Maria, Maria"
encenado pelo Grupo Corpo, com música de Milton Nascimento, textos de Fernando
Brandt - encantou-se: o espetáculo trazia para o palco a saga mineira da
família dela, negromestiça.
Entre
tantos amigos e amigas dos anos 1970/80, queridos até hoje, lembra de modo
especial da turma ligada ao movimento de poesia marginal "Nuvem
Cigana", tão bom, tão bom, a ponto de fazer a cabeça de Milton Nascimento.
No
final de 1986, estressada com a vida na cidade grande, manda-se do Rio de
Janeiro.
Foi
parar no Arraial d'Ajuda, Porto Seguro.
Passa
a viver entre artistas, artesãos e caiçaras.
Cantava
na noite.
Ela,
como Cardoso, era, é, apaixonada pela Bahia.
Esteve,
como ele, muitas vezes em Salvador, antes do início do namoro, especialmente
nos períodos das festas de largo e carnaval...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lucia Correia Lima: Vilma grande
linda positiva mulher
Joaquim Lisboa Neto: Lembrei de 26
poetas hoje organizado por Heloísa Buarque de Holanda
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Emiliano José
8
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
viver e não ter vergonha de ser feliz...
Vilma
andou pelo Nordeste, um show dela com João do Vale.
O
show, em Salvador, inaugurou o teatro do Instituto Cultural Brasil-Alemanha
(ICBA).
Dirigido
por Roland Schafner, o ICBA foi um importante centro cultural durante os anos
de ditadura, em Salvador.
Quando
ela e Cardoso já moravam juntos, cantou muito em bares da orla.
Participou
de showmício de Gilberto Gil como candidato a prefeito.
Foi
indo, indo, e cansou-se da carreira solo.
Passou
a participar de corais, valendo-se dos estudos de canto lírico, feitos no Rio
de Janeiro.
Em
Salvador, começou cantando no coral de Keiler Rêgo.
Seguiu
com o maestro, quando ele passou a reger o Coral Bibiano Cupim, do Terreiro do
Gantois.
Ecumênica,
integrou por mais tempo o Coral do Mosteiro de São Bento.
Cardoso
rememora a importância das meninas, das moças, das mulheres adultas e das
idosas na vida dele, tomando como gancho, pra usar a expressão jornalística, a
relação com Vilma.
Filho
único de mãe solteira, do berço aos 17 anos foi cuidado por três mulheres.
A
supermãe, professora Luiza Cardoso.
A
avó de criação Mercedes Maria da Conceição.
Luiza,
a mãe, chamava Mercedes de "Preta Velha".
Ele,
menino, corrigia: - "Não é preta, é marrom!".
E
uma babá, quando ainda bebê.
Um
mulherio.
Teve
mais: sucessão de empregadas domésticas.
De
duas destas, guarda recordações impagáveis: já na puberdade, usufruiu de
deliciosas brincadeiras sexuais.
Agora,
Cardoso acentua: Vilma personificou todas essas mulheres.
Sem
os extremos da superproteção maternal.
Sem
qualquer paixão possessiva e ciumenta.
Para
ele, um norte.
Deu-lhe
exemplo de independência e determinação.
E
sempre com gestos e atitudes de carinho e amor.
Deu-lhe
segurança emocional.
Ele,
aprendiz, eterno aprendiz.
Pode
cantar com Gonzaguinha:
Eu
só sei que confio na moça
E
na moça eu ponho a força da fé
Somos
nós que fazemos a vida
Como
der ou puder ou quiser.
Com
ela, tinha a tranquilidade de ir fruindo a sabedoria da mineira do interior,
mineira capaz de driblar as turbulências da vida de artista na cidade grande,
tornar-se, ser uma saudável sobrevivente.
Com
ela, pode cantar, soltar a voz com o mesmo Gonzaguinha:
Viver
e não ter vergonha de ser feliz
Cantar
(E cantar e cantar...) A beleza de ser um eterno aprendiz
Ah
meu Deus!
Eu
sei... (Eu sei...) Que a vida devia ser bem melhor e será.
Mas
isso não impede que eu repita
É
bonita, é bonita e é bonita.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
9
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
paixão pelos livros
Cardoso
tem sido para mim uma agradável surpresa.
Amizade
construída a partir das interlocuções durante essa caminhada, jornada de mais
de cinco meses já.
Como
em vários outros casos, imaginei ser coisa de poucos capítulos.
O
personagem era muito rico, e eu não sabia.
Eu
o conhecia de longe, contatos esporádicos, especialmente quando ele chefiava a
Editoria de Opinião de A Tarde.
Quando
ele chegou ao Jornal da Bahia, eu já havia saído.
Nós
o acompanhamos, nessa série, desde os primeiros passos até a chegada em
Salvador, em 1987.
Trabalho
na Secretaria de Comunicação da Prefeitura e no Jornal da Bahia;
Ficou
três anos na Comunicação da Prefeitura e chegou à chefia da Redação quando
Fernando José se elegeu prefeito.
No
Jornal da Bahia, foi editor de várias editorias, e no final, secretário de
Redação:
-
Apaguei as luzes do jornal depois de sete anos lá.
Em
1994, torna-se repórter de Geral de A Tarde.
Logo,
copidesque da mesma Geral.
E
aí foi num crescendo: redator, subeditor e editor de Internacional.
Ao
final, editor de Opinião.
Foram
22 anos no jornal A Tarde, a mais longa permanência durante a trajetória
profissional dele.
Saiu
quando já estava aposentado.
Sempre
gosto de ir em busca das origens.
Como
um jornalista se forma.
Claro,
tem escola, as primeiras leituras.
É
aconselhável, no entanto, no caso dele, buscar uma das origens na relação dele
com os livros.
Já
falamos um pouco da militância e das muitas leituras decorrentes dela.
Não
se esquece de um inesquecível amante de livros: Luiz Pilla Vares.
Ele
o conheceu quando ainda era militante da Polop, no ano de 1967, quando esteve
em Porto Alegre em dupla missão: como vice-presidente da UNE e como dirigente
da Polop.
Então,
deparou com Pilla Vares, tido como um ex-quadro rebelde da Polop, naquele
momento um simpatizante simpático à ideia da formação de uma Frente de Esquerda
Revolucionária, no que Cardoso estava empenhado, seguindo orientações da Polop.
Nesse
primeiro contato, Pilla Vares o impressionou.
Como
intelectual e pela capacidade de exposição das ideias.
Dois
anos depois, já afastado da militância revolucionária direta, Cardoso, de volta
a Porto Alegre, foca, o reencontra.
Cardoso
observava o colega, copidesque do mesmo Zero Hora, onde ambos trabalhavam:
Pilla Vares raramente levantava da mesa, a máquina de datilografia de um lado,
um livro de outro.
Despachava
rapidamente os textos chegados à mão para dar um trato, e no intervalo entre
matérias, abria o livro - era de lei.
Podia
ser um romance, antologia poética, tratado de sociologia, economia ou
filosofia.
Mergulhava
na leitura sem levantar a cabeça.
Nem
estava aí para a barulheira da redação, das máquinas, da gritaria dos colegas,
tão comuns.
Leitura
era como um ato sagrado.
Entrasse
numa lanchonete, num restaurante, num bar, trazia um livro à mão e mergulhava
enquanto esperava o garçom ou a conta.
Quando
havia muitos colegas à mesa, se a conversa não lhe interessasse, não se
continha: danava-se a ler.
Obsessivo.
Não
se importava parecesse pedantismo intelectual.
Deu-se
de admirá-lo por esse amor.
Se
já era apaixonado por livros, a paixão aumentou.
Nunca
conseguiu, é verdade, ler com as pessoas ao lado, na mesma mesa.
Tinha
inveja da capacidade dele de não se incomodar com o mundo ao redor...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
10
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
Deus está morto
Aqui
vamos meter a mãe no meio.
Luiza
Cardoso foi a primeira a introduzi-lo no amor pelos livros.
Tão
importante ela foi para Cardoso, tão, a ponto de ele ter mandado despachar
desde São Paulo a estante onde ela perfilava os livros destinados à leitura.
Está
na casa dele em Salvador, como lembrança, presença da mãe - apenas a estante,
não os livros.
A
coleção completa e encadernada de Monteiro Lobato.
A
maior parte dos livros para crianças - "As reinações de Narizinho e sua
turma no Sítio do Picapau Amarelo" - e os demais para adultos, como
"Urupês".
A
coleção também completa e encadernada do "Tesouro da Juventude".
E
livros de Luiza, da mãe.
Como
"Iniciação Sexual", com gravuras.
Diabo
daquelas gravuras, ele olhava e se excitava: o livro explicava tintim por
tintim como um ser humano era produzido.
Lia
e relia esses livros, revezando com outras maravilhas.
Tarzan,
de Edgar Rice Burroughs.
As
aventuras de Sherlock Holmes - quanto a estas, a mãe guardava especial
interesse fossem acompanhadas, lidas.
Conan
Doyle era espírita kardecista, como ela.
Aos
14/15 anos, leituras mais sérias.
Erich
Fromm e Platão o introduziram no mundo intelectual.
Aos
14 anos, começa a pensar por conta própria.
Liga-se
numa frase de Nietzsche, encontrada não sabe onde, e rompe com a religião da
mãe.
Deixa
de frequentar a Federação Espírita do Estado de São Paulo, à rua Maria Paula.
Fazia
isso com a mãe todos os domingos, religiosamente.
Assistiu
ali incontáveis aulas sobre o Evangelho segundo o Espiritismo.
"Deus
está morto" - a frase de Nietzsche.
E
rompe com Deus.
O
sentido profundo da frase do filósofo alemão só foi captado melhor em anos
recentes.
Escreveu
em alemão, a caneta, numa das madeiras de sustentação da estante de livros da
estante: "Gott ist tot".
A
mãe deve ter torcido o nariz.
Se
meteu a mãe no meio, por que não meter o pai?
Antonio
Campos, o velho comunista, deixou a mãe quando ainda grávida dele.
Tinha
nove anos de idade quando o conheceu.
A
mãe o convidara para a formatura dele, no primário.
Veio
e deixou dois livros de presente.
O
primeiro volume d'O negro brasileiro', de Arthur Ramos, antropólogo alagoano
formado médico na Bahia, segunda edição, de 1940.
Outra:
"Os mestres da música - 50 pequenas biografias de grandes
compositores".
Neste,
para não deixar dúvidas, lascou carinhosa dedicatória:
"Ao
meu querido filho, esta pequena recordação do teu pai que te ama. Rio de
Janeiro, 7 de dezembro de 1957. Antonio Campos".
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
11
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
filho de peixe, peixinho é.
Relação
com o pai, no mínimo conturbada.
Acidentada.
Depois
da formatura do primário, em 1957, vai encontrá-lo dez anos depois.
Deu
um jeito de buscar o encontro.
Fez
o pedido do contato a Antonio Lousada, vice-presidente como Cardoso da UNE,
único indicado pelo "Partidão" na diretoria.
Lousada
se virou, e conseguiu.
Era
a terceira vez a vê-lo.
A
primeira, quando acompanhou a mãe para o convite da formatura do ginásio,
quando ela também pediu fosse Cardoso reconhecido como filho, reconhecimento
feito logo depois.
Aconteceu
no consultório dentário dele no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
No
encontro de 1967, o pai o elogia: sentia-se orgulhoso de vê-lo lutando contra a
ditadura, e na clandestinidade.
Para
um comunista, um orgulho ver o filho nesse caminho.
Como
se a si mesmo dissesse: filho de peixe, peixinho é.
Ou
quem sai aos seus não degenera.
Fez
questão de lhe entregar um presente: a coleção das obras completas de Josep
Stálin, impressas em Moscou em português.
Provável,
muito provável, tivesse segundas intenções.
Quem
sabe, a leitura pudesse fazer o filho voltar às ideias do "Partidão",
tirá-lo do leito antiestalinista, tão próprio da Polop, nascida já contra o
ideário dogmático do estalinismo.
Os
livros tornaram-se um problema de segurança.
Não
era simples sair viajando com eles por aí.
Dois
anos depois, Pery Falcón é preso, barbaramente torturado.
A
casa da mãe de Cardoso era a casa de Pery quando vinha a São Paulo para
reuniões da Polop ou da UNE.
Rapidamente,
iniciou-se uma operação limpeza, retirando-se tudo assemelhado à subversão,
considerado como tal, inclusive o precioso presente do pai.
Para
onde foi, ninguém sabe, e não devia de ninguém saber mesmo.
Operação
dirigida pela amiga Marie Christine.
Sabia:
Cardoso estava em Porto Alegre dando os primeiros passos no jornalismo, e já
distante da militância revolucionária direta.
Repressão
fosse à casa da mãe, e ele voltaria a ser preso, e num momento de barra pra lá
de pesada.
Anjo
salvador, sempre, Marie Christine.
Por
justiça, não pode ignorar ter sido ela a aliciá-lo para o mundo.
Apresentou-lhe
imensa quantidade de livros a serem lidos e esmiuçados.
Esboço
de um curso de formação.
Curso
continuado ao ingressar na Polop.
Não
pode também esquecer Marcos Faerman.
O
fascínio pelo jornalismo nasceu das leituras indicadas por Marcão.
Conhece
Ernest Hemingway, Norman Mailer, Truman Capote e John dos Passos graças a ele.
E
John Reed.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
12
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
John Reed, jornalista e revolucionário
Uma
reportagem exemplar.
Era
como Marcos Faerman referia-se ao "Dez dias que abalaram o mundo".
Lançado
em 1919, o livro revelou a Revolução Russa para o mundo.
De
forma diferente da proclamada pela imprensa mundial.
John
Reed cobria a Primeira Guerra Mundial, 1917, soube da Revolução acontecendo, se
mandou pra lá, testemunhou e escreveu uma das melhores reportagens da história.
Jornalistas
liberais podem até criticá-lo.
Por
ter escrito de modo verdadeiro, e apaixonado.
Por
se identificar com os ideais da Revolução.
Jornalistas
liberais consideram ser correto se identificar e defender o liberalismo,
neoliberalismo, propriedade privada, todo o ideário capitalista.
É
pecado mortal, heterodoxia inaceitável, ser adepto do socialismo.
E
John Reed era.
O
livro foi lançado em 1919.
Reed
morreu logo depois, curta existência, em 19 de outubro de 1920, aos 32 anos de
idade.
De
tifo.
Começou
cedo sua atividade jornalística.
Sempre
teve lado.
Andou
lado a lado com trabalhadores em greve, cobriu a Revolução Mexicana, tornou-se
próximo de Pancho Villa, entre tantas coberturas.
Não
era, não queria ser, o chamado jornalista imparcial - sempre teve lado.
Antes
de seguir para cobrir a guerra, quando vai deparar com a Revolução Russa, dirá:
-
A guerra significa histeria coletiva, crucificando os defensores da verdade,
sufocando os artistas. Esta não é a nossa guerra.
Na
Rússia, acompanhou a trepidante marcha dos acontecimentos revolucionários,
tomava notas sem parar, reunia cada panfleto, jornaizinhos, o que lhe caísse à
mão.
Militou
nos EUA contra o recrutamento para a guerra, chegou a ser preso por isso.
No
início de 1918, volta aos EUA, doido pra escrever a história.
É,
mas a democracia americana não é tão democracia assim: na chegada, todas as
anotações dele foram confiscadas.
Depois
de muita luta, conseguiu tomá-las de volta e em dois furiosos meses, escreveu o
"Dez dias que abalaram o mundo", eternizando-se.
O
livro foi uma das paixões de minha juventude.
Como
era do Marcão.
E
de Cardoso.
A
leitura desse livro devia ser obrigatória nas escolas de jornalismo.
Aos
de pensamento liberal, calma: apenas para aprender como escrever uma grande
reportagem.
Não
precisa concordar com nada do escrito.
Além
de Reed, Hemingway, "O velho e o mar": outra das paixões de Marcão...
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
13
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
santa vaidade e loucura de Trumam Capote
Um
dia estavam os três, num sarau literário, certamente estimulados por bom
uísque.
Falavam
dos livros deles.
Eram
já famosos: Truman Capote, Gore Vidal e Norman Mailer.
Capote,
o mais baixinho, o mais frágil deles, assuntava.
De
longe, era o mais venenoso dos três.
Virou-se,
e disse, interrompendo fala dos outros dois:
-
Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é
que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não.
Vaidade
pouca é bobagem.
Ivan
Lessa conta isso na apresentação de "A sangue frio", a obra-prima.
Tenho
à mão edição de 2003, da Companhia das Letras.
Capote
era outro dos ídolos de Marcão.
Tornou-se
também de Cardoso.
Devia
de ser também leitura obrigatória das escolas de Jornalismo.
Ajudaria
os estudantes a se livrarem das amarras do fato, a não se transformarem em
idiotas da objetividade, como diria nosso Nelson Rodrigues.
Capote
é coisa de cinema.
O
livro provocou filme com o mesmo nome, de 1967.
Tem
histórias que até Deus duvida, o Diabo também.
Não
serão contadas aqui.
Em
1959, lê notinha sobre o assassinato de um casal, mais filho e filha.
Em
Holcomb, Kansas.
Os
quatro, brutalmente assassinados.
Tomou
da mala, e partiu para Holcomb.
Conversou
com Deus e o Diabo na pequena povoação, conquistou a todos.
Holcomb
deve ter hoje em torno de 2 mil almas.
Presos
os dois assassinos, tornou-se íntimo deles.
Passou
um ano e meio no Kansas, tornando parte daquele ambiente.
Não
usa gravador, não anota nada.
Devia
de achar isso tudo tirasse intimidade.
Rumina
o livro por seis anos, e por fim no início de 1966, livro todo na cabeça,
coloca o "romance sem ficção" nas ruas - a qualificação é dele
próprio.
Jornalismo
pra ele era apenas uma fotografia literária.
Ele
não costumava economizar sobre si mesmo, como Norman Mailer e Gore Vidal haviam
percebido.
Se
gostava de seu autoelogiar, não deixava de ser cáustico consigo mesmo.
-
Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentara por toda a vida a um
senhor nobre porém implacável. Quando Deus lhe dá um dom, ele também lhe dá um
chicote; e o chicote se destina apenas à autoflagelação... Estou aqui sozinho
na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho - e, é claro, o chicote
que Deus me deu.
Santa
loucura, a nos legar romances, filmes, e jornalismo literário.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Rui Patterson: Também vou de
Capote e não estou com frio. Gore foi aquele intelectual refinadíssimo traçando
paralelos sobre a Roma Antiga e os USA, Mailer um senhor criador do Novo
Jornalismo, bipremiado, mas a mão e o pão da criação estavam com Capote.
Emiliano José: É vero
Raquel Nery: Tudo ficou
mais interessante desde que Capote, Didion e outros borraram os limites entre o
jornalismo e a literatura.
Emiliano José: Tudo
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Emiliano José
14
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: o
velho, o mar, sonho com leões
O
best-seller "O velho e o mar", transformado por Marcos Faerman
"na mais refinada reportagem existente".
Lembrança
de Cardoso.
É
livro de 1952.
Jamais
alguém ousaria classificá-lo como reportagem.
Marcão
ousou.
É
uma bela e singela e rica história.
Ernest
Hemingway é romancista mundial.
Correspondente
de guerra na Espanha, extraiu daquela experiência o imortal "Por quem os
sinos dobram".
Ao
fim da Segunda Guerra Mundial, instalou-se em Cuba, país por quem foi
apaixonado até o fim da vida.
Até
hoje, as ruas de Cuba, sobretudo as do Centro Histórico de Havana, respiram
Hemingway: falam de suas histórias, de noitadas, e de seus amores, e de sua
lealdade amorosa com a Ilha.
La
Bodeguita del Medio e El Floridita eram os santuários dele, onde passava as
noites.
No
Floridita, há escultura dele no balcão, a quem os turistas abraçam e
fotografam.
Ali,
ele emborrachou-se tantas vezes com daiquiris.
Há,
ainda, o hotel "Ambos Mundos, no coração da belíssima Havana.
Conserva-se
o quarto 511, onde ele escreveu "Por quem os sinos dobram".
Andei
por esses caminhos, recentemente, com Carla, entre final de 2018 e fim de 2019
- andei entusiasmado com os dizeres "Vá pra Cuba", e nesse intervalo
estive por lá três vezes.
Daiquiris,
mojitos, e andanças por Havana - não tem muita coisa melhor no mundo.
Marcão,
quando leu "O velho e o mar", certamente impressionou-se com a
riqueza da construção dos personagens, os detalhes - "o velho pescador era
magro e seco e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas
rugas".
É
a história de um velho homem na solidão do alto mar, a debater-se e a derrotar
um grande peixe.
Do
mar, Hemingway conhecia.
Volta
e meia, punha-se ao largo de Cuba, em épicas jornadas de pescaria a bordo do
seu iate Pilar.
Deparou
com Fidel, em maio de 1959, durante um concurso de pesca, vencido pelo
revolucionário.
Hemingway
entregou o troféu a Fidel, cuja mesinha de cabeceira guardava sempre "Por
quem os sinos dobram", fonte de ensinamentos para a guerra de guerrilhas,
segundo o próprio comandante de Sierra Maestra.
A
leitura de "O velho e o mar" é emocionante.
Lição
de superação.
De
como um homem, cuja vida o ensinara humildade, não se entrega diante das
dificuldades.
Humildade
a não dispensar a coragem.
Um
homem cuja fé em si mesmo, não obstante a idade, ensina a viver.
Como
acreditar pudesse o velho Santiago, já havia 84 dias sem pescar um único peixe,
pudesse, numa jornada inacreditável, ele só pele e osso, travar uma batalha
memorável em alto mar, derrotar tubarões?
Chegou
morto de cansado.
Foi
para casa.
Um
dos pescadores perguntou por ele.
-
Dorme, respondeu o rapaz amigo dele, da mais profunda amizade, sempre a
acreditar nele.
-
Mede cinco metros e cinquenta da cabeça à cauda, disse o pescador que estivera
medindo o peixe.
Como
havia conseguido?
"Lá
em cima, na cabana, o velho estava dormindo de novo. Continuava dormindo com o
rosto escondido no monte de jornais que lhe servia de almofada e o rapaz estava
sentado a seu lado a observá-lo".
A
última frase:
"O
velho sonhava com leões".
Marcão,
outra vez, tinha razão.
A
mais refinada reportagem existente.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Doida que me mandem
pra Cuba novamente, vou correndo
Valter Xéu: Mônica Bichara
vou em maio
Solange Souza Lima: duas
Emiliano José: três
Juvenal Payayá: Preciso
atingir a maioridade e ir em Cuba.
Emiliano José: Juvenal Payayá
Só ir...
Jose Jesus Barreto: O Velho e o
Mar ! fantástico.
Alberto Freitas: Saudade de
andar pela Obispo.
Joaquim Lisboa Neto
Gil
O
velho
O
mar
I
o Lago
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Emiliano José
15
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
mestre John Dos Passos
Outro
dos autores preferidos de Marcos Faerman, John Dos Passos.
Amigo
de Hemingway, desentenderam-se em 1937 na Espanha: Hemingway era adepto
ardoroso da causa antifascista, Dos Passos, sujeito desconfiado do comunismo e
da esquerda em geral.
A
admiração de Marcão por ele, enorme.
Por
conta dela, e querendo influenciar o discípulo, deu a Cardoso a trilogia
"USA", edição portuguesa, até hoje à disposição de visitantes na
estante principal dele, na casa do Pernambués:
"Paralelo
42", "1919" e "Dinheiro graúdo" - este vendido
atualmente nas edições em português no
Brasil sob o título "O grande capital".
A
série constitui um painel político e social dos EUA no começo do século XX,
publicada nos anos 30.
Trajetória
dele iniciou-se cheia de esperança, com forte caráter social, passa por uma
fase de profundo ceticismo político, e termina a vida como um ultradireitista.
A
gente conhece alguns com essa história.
Voluntário
na I Guerra Mundial em 1917, dá ácido testemunho sobre a II Guerra Mundial, na
revista Life, em 7 de janeiro de 1946, afirmando: "o estupro brutal e
álcool é o salário de um soldado".
No
texto, qualifica o exército de Aliados na Alemanha como "exército de
assassinos e estupradores".
Em
"1919", faz desfilar uma profusão de atores - eles revelam a
repercussão da Primeira Guerra e da Revolução Russa na vida norte-americana.
Lembrei
de "1919" porque é um ano a me marcar, sobretudo pelo assassinato da
grande Rosa Luxemburgo.
E
porque o querido amigo e reitor João Carlos Salles cometeu a heresia de dizer
ter livro recente meu, "O cão morde a noite", lembrado a ele "a
narrativa de um John Dos Passos, em 1919 - febril, entre consciente e
inconsciente, ao ritmo dos acontecimentos, como é costumeiro quando nos
sentimos colhidos pela história".
É
autor do generoso prefácio do livro, cuja segunda edição está no forno, pela
EDUFBA.
Parar
por aqui para não me dizerem com razão: quem gaba o toco é a coruja.
Obra
vasta, admirável, e ousada na inovação, a de Dos Passos, e certamente essa
característica foi a principal motivação de Marcão ao presentear o discípulo
com a famosa trilogia do autor.
Marcão
não queria jornalistas - queria escritores.
Melhor,
queria jornalistas, sim.
Contanto,
capazes de colocar alma nos textos.
Por
isso, entupia os discípulos com livros de autores acostumados a penetrar o
coração das gentes.
John
Dos Passos, um deles.
Cardoso
nunca se esqueceu disso.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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Emiliano José
16
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
Norman Mailer, outro mestre
Norman
Mailer, a última indicação de Marcos Faerman.
Última
na minha escrevinhação.
Poderia
ser o primeiro.
Há
controvérsias, mas Mailer é considerado o pai do chamado Novo Jornalismo, da
não-ficção criativa, do jornalismo literário, como se queira.
Claro:
ao lado dele, para alguns superando-o, estaria um Truman Capote, um John Dos
Passos, um John Reed.
Ele,
como Reed, ativista contra a guerra, empenhando-se de modo especial na luta
contra a Guerra do Vietnã, a lhe valer prisão uma vez.
Expoente
da contracultura nos EUA nos anos 1960, fundou o The Village Voice, influente
publicação alternativa.
Na
biografia sobre Marilyn Monroe, escrita por ele e publicada em 1973, notável
sucesso editorial, escancara: a morte dela teria sido causada pelo FBI e pela
CIA, cujos protocolos não admitiam o romance com o senador Robert Kennedy.
À
minha frente, presente do amigo já ausente do nosso convívio, Fernando Schmidt,
num de meus aniversários: "O fantasma da prostituta - Um romance da
CIA".
Duvidosa
a afirmação da capa face aos tantos livros premiados de Mailer: "A
obra-prima do maior escritor americano da atualidade".
Na
contracapa, definição do livro: "Um romance sobre homens e mulheres
treinados para mentir e enganar em nome da Pátria".
Apropriada
- a CIA segue assim, sem tirar nem pôr.
Marcão
indicava de modo especial um dos livros de Mailer: "Miami e o cerco de
Chicago".
Num
esforço jornalístico a seu estilo, mergulha nas convenções presidenciais de
1968, ano a marcar o mundo e os EUA.
Guerra
do Vietnã numa escalada, assassinados Martin Luther King e Robert Kennedy, e o
Partido Republicano escolhe Nixon como candidato.
Chicago
tornou-se quase uma cidade da insurreição: manifestantes encheram as ruas, e a
polícia desceu o cacete, tudo em meio à Convenção do Partido Democrata.
Os
autores indicados por Marcão, Mailer entre eles, ajudam os novos jornalistas, e
os velhos também, a repensarem o jornalismo.
Subverteram
a noção de um jornalismo bem comportado, nascido no final do século XIX, início
dos anos XX, fundado nos fatos, como se os fatos falassem por si, como não
tivessem a intervenção da subjetividade humana.
Valessem
os fatos.
Mas
envoltos em sangue, em paixões, em amores, insurreições, suor e lágrimas,
mulheres e homens em movimento - nada de frieza, nada de "idiotas da objetividade", insistindo na crítica
de Nelson Rodrigues.
Quem
faz jornalismo, quem viveu a vida das velhas redações, sabe o quanto é difícil
livrar-se da chamada ditadura dos fatos.
Era
essa a pedagogia de Marcão: olhe para os fatos, mas compreenda tais fatos sob o
olhar das paixões humanas.
E
para tanto enchia os repórteres sob sua direção de indicações de autores, às
vezes até presenteando alguns com livros escolhidos por ele, Cardoso um dos
beneficiados.
Dele
amigo, companheiro de Polop, e admirador, Cardoso foi beneficiado por especial
atenção quando iniciou jornada jornalística.
Marcão
não só lhe arrumou o primeiro emprego como acompanhou os passos iniciais dele,
como eficiente tutor.
Bom
aluno, Cardoso aprendeu.
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Joaquim Lisboa Neto: Com Fernando
Schmidt tive o privilégio de participar em várias reuniões do Comitê Conjunto
no Politeama, liderado, que me lembre, por Leonelli e Luiz Umberto. A última
vez que vi Fernando foi num encontro na casa de Jehová de Carvalho, Matatu de
Brotas, recepção a Clodomir Morais, inícios dos 80s. Lá estavam também Leonelli
e Capinan. Tarde/noite muito agradável. Abraços camarada, sempre me deleitando
com suas MJ aqui e lá na kitnete com o Balança mas não cai...
Emiliano
José: tá chique... De Kiti e Nete...
Joaquim Lisboa Neto: Espero que a
praga pegue
Se
Kite pintar Nete que espere
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Emiliano José
17
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: mico
de circo nas ruas da Bahia
Cardoso
estava em Salvador no início de 1979.
Havia
se apaixonado pela cidade.
Pelo
clima cultural.
Pelas
festas de largo.
Pelo
carnaval.
Ele
e a primeira mulher, Aninha.
Desde
fevereiro de 1972, a paixão.
Daquela
estadia, não se esquece.
Sobretudo
pelo "Mico de Circo", nome de disco lançado por Luiz Melodia.
Fora
destacado pela "Folha de S. Paulo"
para cobrir esse lançamento.
O
cantor, costumeiramente iconoclasta, abre o disco com "A voz do
Morro", de Zé Keti.
Abriu
assim por sugestão de Waly Salomão.
Quiseram
os dois com isso confrontar os racistas inconformados com o negro descendo o
morro pra cantar:
"Eu
sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor" - Melodia abria o
disco todo debochado, com sua voz do morro, e em formato de gafieira.
Queria
também, com o disco, homenagear os amigos marginais marginalizados do Morro de
São Carlos, do Rio de Janeiro.
Fosse
simples lançamento, seria pouco.
Melodia
queria mais.
Ele
e Waly Salomão queriam mais.
Resolveram
lançar o disco numa espécie de apoteose popular.
À
maneira das festas de largo de Salvador.
Dia
24 de janeiro de 1979.
Tomaram
de um burro, de uma carroça.
Ornamentaram
o veículo - na parte de trás, imenso cartaz, com o título: "Mico de
Circo".
Os
dois, ele e Waly, de branco.
Waly,
vestido como árabe, bem a caráter, em cima da carroça.
Melodia,
de branco, camisa de mangas compridas, arregaçadas, de boné, ia à frente,
montado no burro - o pobre puxava a carroça e aguentava o peso do cantor.
Hoje,
talvez não fosse permitido: os animais, mais protegidos.
A
aglomeração começou na rua Djalma Dutra, num posto de gasolina, ao lado do
jornal "Tribuna da Bahia".
Cardoso
e Aninha, ali, no gargarejo.
-
Só na Bahia - murmuram os dois.
Na porta da "Tribuna", olhares
atentos, Nelson Motta e a psicanalista Betty Milan.
Melodia
cutucou o burro com os calcanhares, como tivesse esporas.
O
burro obedeceu, lentamente, sem pressa.
Até
porque o peso não era pequeno.
Nem
os rojões disparados à saída o fizeram apertar o passo.
Destino:
Mercado das Sete Portas.
Não
é trajeto tão longo: se der um quilômetro, muito.
E
juntando gente.
Na
Bahia, juntar gente é a coisa mais fácil do mundo.
Cardoso
e Aninha, passo a passo, iam seguindo atrás da carroça lentamente, até porque o
burro não tinha pressa.
Se
é fácil, facinho, juntar gente em qualquer festa na Bahia, imagine se houvesse a promessa de um
caruru quando se chegasse ao destino?
Havia
a promessa...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Quem vai
querer comprar...
Presente
cotidiano
Textos
de Emiliano
Desculpem
a rima fácil
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Emiliano José
18
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: 24
de janeiro de 1979 e a festa de arromba
Cardoso
caprichou na abertura da matéria sobre o lançamento do "Mico de
Circo".
"Folha
de São Paulo", 29 de janeiro de 1979.
Ocupou
página inteira, prestígio danado.
De
Melodia e do repórter.
"O
24 de janeiro não é dia de festa na Bahia, embora as festas de largo se
estendam por todo o verão. Mas este ano, nesse dia, o lançamento nacional do
novo disco de Luiz Melodia, comandando pelo poeta baiano Waly Salomão, motivou
uma verdadeira festa popular em Salvador, com desfile e rojão, confete e
serpentina, samba e carnaval, culminando com um caruru de 7 mil quiabos,
servido de graça, junto com batidas, no mercado das Sete Portas. "Uma
coisa de preto, nesta terra de preto que é a Bahia" - como disse Caetano
Veloso.
Fácil
imaginar o furdunço causado pelo caruru de sete mil quiabos, a multidão reunida
nas Sete Portas, tudo de grátis, e de graça até injeção na testa, ninguém
recusa, quanto mais caruru de gente famosa.
No
sublead, assim chamado o segundo parágrafo de qualquer matéria, invenção
brasileira, Cardoso fala de Waly e de Melodia.
O
poeta baiano descobriu Melodia no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro.
Impressionou-se
com o canto dele, encantou-se com ""Pérola Negra", e levou a
canção para Gal Costa gravar em 1971 - tornou-se hino dos hippies e de toda a
moçada barato legal.
Conhecido
mesmo, pra valer, Melodia tornou-se com "Juventude Transviada", tema
da novela "Pecado Capital".
Conheceu
a Bahia, trocou olhares com uma baiana, e não escapou: casou-se.
Ao
gravar o terceiro long-play, o "Mico de Circo", resolveu presentear o
amigo Waly: incluiu no disco "A Voz do Morro", de Zé Keti - era
antigo pedido do poeta, gravasse a música, tão bela.
E
Waly então propôs lançar o disco numa festa de largo produzida por eles.
Além
das milhares de pessoas, havia os famosos.
Cardoso
conta tudo isso.
Caetano,
no pedaço.
Só
não gostava quando qualquer sujeito tomava de um rojão, aquele suspense até
estourar, ele com as mãos nos ouvidos.
Entrou
logo pro saguão da "Tribuna da Bahia", convidado por João Ubaldo
Ribeiro, e os dois riam à vontade, falavam muito do furacão Glauber Rocha.
Betty
Milan, recém-chegada de Paris, famosa por ex-assistente e tradutora de Lacan,
deixou momentaneamente o repórter da "Tribuna", para quem fora dar
uma entrevista, e se deliciava com toda aquela ferveção.
Se
a leitora quiser, ou o leitor, não é tão difícil recuperar a matéria completa.
Vá
lá no acervo digital da "Folha".
Vale
a pena.
Mas
não foi tudo maravilha para Cardoso.
A
estadia na Bahia rendeu-lhe bom contratempo...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Joaquim Lisboa Neto: Depois de
Maravilhas contemporâneas e Pérola negra... Mico de mico! E lá vai Melô!
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Emiliano José
19
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: um
barato de demissão
Parece
brincadeira, mas não é.
Cardoso
foi para Salvador bancado pela "Folha de S. Paulo".
Dialogou
com os botões, perguntou:
-
Algum problema de Aninha ir comigo?
-
Nenhum - responderam.
Ele
e a mulher adoravam a Bahia - já se disse.
Ele,
cioso dos protocolos financeiros do jornal, tomou cuidado: notas fiscais de
restaurantes e hotel deveriam constar apenas e tão somente as despesas dele.
Aninha
não existia.
É,
mas nem tudo foi perfeito: os prestimosos serviçais do financeiro da
"Folha" fuçaram, fuçaram, e acharam um descuido, transformado num
bafafá.
O
financeiro usou lupa, e localizou, entre as tantas notas, uma do hotel onde
surgia o nome de Aninha, uma despesazinha de nada.
Foi
o bastante.
Surgira
o pretexto para Boris Casoy, redator-chefe, ordenar a demissão de Cardoso.
Muitos
jornalistas incômodos já haviam sido defenestrados pela "Folha"
naquela quadra.
Incômodos
- chamados à boca pequena de subversivos, logo logo não mais à boca pequena.
Cardoso
imaginava, quem sabe, seguir ali, quietinho, fazendo o trabalho dele, apenas
isto.
"Apenas"
às vezes incomoda muito.
Ele
já era demais ali, numa redação em transformação acelerada, para pior.
Cardoso
chega a imaginar, penetrar os pensamentos de Casoy:
-
Vê se pode, o cara entrou na onda do doidão do Waly e se meteu com a
marginalidade e a negrada e ainda escreveu matéria exaltando essa loucura
baiana, especialmente os negros.
Ele
o imagina vociferando:
-
Isto é uma vergonha!
-
Não, não dá mais para esse repórter continuar entre nós.
Ao
mandá-lo embora, Casoy disse dos protocolos do financeiro, a cobrar dele,
Cardoso, a restituição do valor atribuído à despesa de Aninha.
Iria
demiti-lo, informou.
Generoso,
Casoy não queria de Cardoso o desembolso do dinheiro.
-
Eu pago do meu bolso.
Cardoso
não é capaz de atualizar qual o valor das despesas de Aninha.
Não
deveria, no entanto, ser superior a dois cruzeiros.
Um
barato.
Um
pretexto muito barato.
Não
se iludam, no entanto: atrás desse mato tem coelho, dos grandes...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIOS
Lia Robatto: Que figura
execrável esse Casoy
Joaquim Lisboa Neto: Boris, o
dedoduro de sempre
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Emiliano José
20
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso: no
olho do furacão..
Cardoso,
demitido no meio de uma tempestade.
Dois
anos antes, a "Folha de S. Paulo" afastara Cláudio Abramo da chefia
da Redação.
Por
detrás disso, uma conjuntura nacional explosiva.
Corria
o ano de 1977.
Três
anos de abertura lenta e gradual de Geisel.
Conjuntura
de "continuar a matar", como dissera o próprio Geisel.
E
continuou.
Conjuntura
nervosa também na imprensa.
Golbery, bruxo daquela abertura, considerava
necessário estabelecer alguma convivência com a imprensa - com os donos dos
meios de comunicação.
Ditadura
precisava aparar arestas sobretudo nos meios impressos.
Tinham
nas mãos a "Rede Globo".
Desde
o início, porta-voz da ditadura, inclusive a fazer eco dos assassinatos dos
adversários sob tortura, dados sempre por ela como acidentados, mortos pelos
companheiros - divulgava os releases da Oban, dos DOI-Codi.
Assim,
a Globo - e nunca desviou desse caminho.
Quem
quiser, se iluda.
Mas,
ditadura precisava mais.
Alguns
veículos ligeiramente rebeldes precisavam ser amansados.
E
foram.
-
No projeto de abertura, houve um acordo tácito entre os militares e os donos
dos jornais. Creio que eles não chegaram a falar no assunto, mas deve ter
havido um entendimento implícito de tirar os chefes de redação que eram
"trouble-makers". Subitamente num prazo de dois ou três anos, fomos
quase todos eliminados. Janio de Freitas já estava fora da direção, mas em
sucessão saímos Alberto Dines, Mino Carta, eu.
É
depoimento do próprio Cláudio Abramo, a ser encontrado no livro "A regra
do jogo", construído a partir de depoimentos prestados por ele.
O
pretexto para demiti-lo foi uma crônica de Lourenço Diaféria, julgada ofensiva
à memória de Duque de Caxias.
A
demissão ocorreu em 17 de setembro de 1977.
Continuou
como editorialista e membro do Conselho Editorial.
Saiu
do Conselho na greve dos jornalistas, de 1979, por decisão própria - ele conta
o papel dele como mediador, malsucedido.
Trabalhou
no "Jornal da República", fundado por Mino Carta, experiência a
resistir por efêmeros cinco meses.
Não
achava emprego.
Boris
Casoy o visita numa madrugada - mediador.
Frias
o convida para seguir para Londres, como correspondente.
Aceitou
- e revela ter sido um erro.
Faz
um balanço num dos depoimentos:
-
Quem mudou a história da imprensa no Brasil fomos eu, no "Estado" e
na "Folha", Janio de Freitas, no "Jornal do Brasil", e Mino
Carta, no "Jornal da Tarde" e na revista "Veja".
A
ditadura conseguia, naquela quadra, fazer uma limpa geral nas redações.
Expurgar
os inconvenientes.
Afastar
os subversivos.
Por
interpostas pessoas...
#MemóriasJornalismoEmiliano
COMENTÁRIO
Artur Carmel: "Essa
abertura é um furo" Rô. 78
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(Com Florisvaldo Mattos, editor-chefe em A Tarde, onde trabalhou por 22 anos, comemorando o aniversário dele no Bar do Edinho, Mercado do Rio Vermelho, em 2-8-2018)
Emiliano José
21
de fevereiro de 2022
Jary Cardoso:
celebração no altar da amizade
Boris
Casoy era o homem certo para a conjuntura vivida pelo jornalismo brasileiro.
E
pela "Folha" de modo especial.
Era,
e é, um jornalista de direita.
Considera-se
isento, coisa difícil de se provar face à sua atuação.
Assumiu
no calor da crise Sílvio Frota, em confronto aberto com Geisel - o presidente
conseguiu defenestrá-lo.
A
"Folha" precisava dar recados apaziguadores - e tirar Cláudio Abramo
foi um.
Melhor
ainda, para os militares, colocar Casoy no lugar dele.
Ficou
à frente da redação até 1984, quando Otávio Frias Filho assumiu a direção do
jornal.
Arrisco
dizer, sobre aquela conjuntura: para o jornalismo brasileiro, findava a aura do
grande jornalista, "daquele sujeito capaz de produzir uma coisa única e
irrepetível, cheia de inovação e criatividade".
Digo
isso no meu livro "Jornalismo de campanha e a Constituição de 1988".
Completo:
é o desencantamento do mundo do jornalismo.
Tratava-se
de expulsar o "político-partidário" do espaço jornalístico, expulsar
o que se considerava "engajamento".
Desmascaro
essa operação: expulsa o político-partidário em sentido estrito, mas o retém em
sentido ampliado, na medida em que os jornais têm partido, adotam posições,
fazem política.
Foi
nesse clima, nesse quadro político-cultural, que Cardoso caiu.
Casoy
usou o pretexto de dois vinténs para demiti-lo.
Em
1979, Cardoso volta então ao "Estadão".
E
em 1987, desembarca na Bahia.
Já
contamos um pouco da passagem dele pela imprensa baiana.
Terminou
a trajetória em "A Tarde", onde passou 22 anos, a mais longa
permanência num jornal.
Num
artigo, Jorge Portugal, relembra quando foi convidado por Cardoso para escrever
em "A Tarde".
Mote
para comentar a saída dele do jornal.
"Demitiram
sua erudição incomum e sua capacidade de iluminar as páginas do jornal com
presenças intelectuais invulgares. Demitiram sua presença física sem afetação,
de paulista que virou baiano e se tornou um grande filho d'Oxum. A ausência de
Jary se converte em pobreza cultural, em um momento em que ´imbecis perdem a
modéstia´, e as redes sociais tornam-se pastos de idiotas."
Hoje,
orgulha-se de ajudar o filho Tom Cardoso, autor de tantos livros, nos projetos
tocados por ele.
Nessa
minha escrevinhação, às vezes dizia não poder me atender porque "o
patrão" era rigoroso, e cobrava o cumprimento das tarefas, com deadlines
apertados.
Conhecê-lo
de perto, acompanhar uma vida de aventuras, militância na Polop, desbunde
criativo, saber mais de seu talento como "rei dos verbos", usufruir
de sua capacidade como copidesque, de sua erudição, saber de Vilma, amor
sereno, dos filhos talentosos, tem sido experiência pra lá de agradável, privilégio.
Poderia
comemorar com Neruda o quanto viveu, um bem-viver.
Cedo:
muito ainda por desfrutar da vida.
Pode,
isso pode, celebrar com Violeta Parra e Mercedes Sosa, e dar gracias a la vida,
que lhe ha dado tanto.
Falta
comemorar isso, quase seis meses de convívio diário, com um bom vinho.
Logo,
logo o faremos.
No
lugar escolhido por ele e por Vilma.
Deixemos
a peste dar uma trégua.
Então,
brindaremos.
Contaremos
casos.
No
altar da amizade, o mais belo dos sentimentos.
#MemóriasJornalismoEmiliano
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COMENTÁRIOS
Mônica Bichara: Verdade, foram
quase 6 meses de doses diárias de uma rica trajetória. Gracias a la vida......
Jaciara Santos: Que maravilha
de texto. Emocionante como a história do protagonista. Gracias a la vida!
Meu ego está aqui quase explodindo do inchaço...
ResponderExcluirMuito agradecido à dupla do barulho, Emiliano & Mônica!
Que bom que gostou, foi um prazer. Parabéns pela rica trajetória, com pessoas tão empolgantes. E viva o desbunde hehehe
ExcluirFoi um desbunde de experiência. Obrigado, Jary. E outra vez, obrigado à minha querida editora, a querida Mônica.
ResponderExcluirSempre um prazer essa parceria. Doida pra ver essa verdadeira biografia virar livro. Mais um grande personagem
ExcluirO comentário saiu anônimo, mas é do mestre Emiliano
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