#MemóriasJornalismoEmiliano – Jary Cardoso: Do comunismo ao desbunde e ao jornalismo careta

  

(Entrevistando Jorge Mautner pro Bondinho, na casa de Gilberto Gil, em  1972. Foto: Domingos Cop Jr)

O personagem chegou quase por acaso (nada é por acaso, isso confirma a regra) à série que o jornalista e escritor Emiliano José vem tecendo há quase três anos, diariamente, na sua página do Facebook, garimpando as memórias do jornalismo baiano. Provocado por colegas, decidiu reservar “dois a três capítulos” a Jary Cardoso, com quem dividiu redação raríssimas vezes. Chegou perto de seis meses. Por aí já dá para imaginar o surpreendente protagonista da vez, até para o autor. Ou principalmente pra ele. E bote surpreendente nisso. 

Filho de pai comunista, Antonio Campos, com quem se encontrou pela primeira vez aos 9 anos, Jary foi da aversão ao comunismo a militante revolucionário da Polop; de adepto do “desbunde criativo” e do "transbunde baiano” e amigo íntimo de artistas descolados a funcionário por longos 22 anos em jornal careta de Salvador; atualmente ajuda o filho Tom Cardoso, que seguiu seus passos no jornalismo, na literatura e na paixão pela área cultural. 

Entre as recordações, ele assume que foi per-di-da-men-te apaixonado pela psicóloga Iara Iavelberg, a última companheira do guerrilheiro e ex-capitão Carlos Lamarca (ambos torturados e assassinados pela ditadura militar). Jary era aluno dela e parceiro de célula na Polop. Imaginem quanta adrenalina nessa convivência. Autor de “Lamarca o capitão da guerrilha”, junto com o também jornalista Oldack Miranda, Emiliano enriquece ainda mais a narrativa dedicando alguns capítulos à trajetória de Iara e Lamarca, em paralelo à paixão do jovem Jary.

Como fica claro na série, “revisitar o passado é sempre uma forma de entender o presente, e descortinar o futuro”. Reflexão importante quando se vive sob a ameaça de novos golpes, quando se respira retrocesso. 

#MemóriasJornalismoEmiliano acompanha desde os primeiros passos de Jary até a chegada em Salvador, em 1987. Aqui trabalhou na Secretaria de Comunicação da Prefeitura; no Jornal da Bahia; em 1994 tornou-se repórter de Geral de A Tarde, copidesque, redator, subeditor e editor de Internacional e editor de Opinião.

Curtia a capital baiana, sentia-se em casa. Aqui apaixonou-se pela cantora mineira Vilma Nascimento, prima de Milton Nascimento, após a separação da primeira esposa, Aninha, mãe dos gêmeos Denis e Tom. Estão juntos até hoje. 

Apesar de ter sido pau pra toda obra no jornalismo, não esconde que sua grande paixão sempre foi a área cultural. E ela rendeu a Jary matérias inesquecíveis, com ídolos como Elis Regina, Mutantes, Chico Buarque, Caetano Veloso, Jorge Mautner, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat.....e outros nomes da contracultura.  “Aí sentia-se como peixe n'água”, define Emiliano. O autor complementa: Era sua forma de combater o reacionarismo, o sectarismo, difundir a mais ampla liberdade, dar sentido à ideia de democracia. 

Isso explica o entusiasmo com que relembra experiências ricas como as do "Bondinho", revista independente dirigida por Hamilton Almeida Filho, o HAF, e do "Folhetim", suplemento dominical da Folha de São Paulo.

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(Repórter em ação na Igreja do Bonfim)

Emiliano José

7 de setembro de 2021

Jary Cardoso: perdidamente apaixonado

 

Abro despedindo-me de mim..

Tenham calma: faço-o serenamente.

E logo possa, volto.

São as artes do acaso.

Há quem diga ser o acaso uma invenção.

Não existiria.

Coisas da filosofia.

Certeza tenho não.

Estava posto em sossego nessa série tentando desincumbir-me de mim, depois de ter passado sete meses escrevendo sobre o grande Navarrinho.

Nessa série também tenho a pretensão de falar de minha trajetória, a que menos me atrai.

Pois é, eu havia retomado o esforço para acompanhar os meus próprios passos, e nesses dias me vi envolto principalmente em matéria do início de julho de 1975, feita por mim, publicada no "Jornal da Bahia", com o grande Othon Bastos.

De repente, o acaso.

Jary Cardoso salta à minha frente, sem quê nem pra quê.

E por isso vou gastar uns dois ou três capítulos dessa série com ele.

Dessa vez, verdade - não será nada extenso.

Navarrinho nasceu de sete meses.

Ele, nascerá em poucos dias.

Nossa aproximação deu-se principalmente quando ele editava Opinião, em "A Tarde".

Como se sabe, há mais de 20 anos colaboro com o centenário jornal.

Surge no zap dizendo-se apaixonado por Iara Iavelberg - outro.

Claro, não surgiu assim à toa.

Uma historiadora quis ouvi-lo.

Nome da moça é Juliana Marques do Nascimento.

Mestra e doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense.

Como doutoranda, desenvolve pesquisa sobre Iara Iavelberg.

Teve conhecimento de militância dele na Polop e no POC.

Depois, falamos um pouco dessas duas organizações revolucionárias.

Resolveu compartilhar comigo, o Jary.

Largo tudo, e busco um lead na fala dele:

_ Sobre a Iarinha mulher, confesso: no início fui perdidamente apaixonado por ela.

Per-di-da-men-te.

Não era pouca coisa, não.

Sofreu um bocado com essa paixão.

Do que sei, disputava com muitos.

Iara era mulher encantadora.

Ele, tímido, devia pensar ser muita areia pro caminhão dele.

Conheceu-a como professora no cursinho pré-vestibular do Grêmio da USP.

Ficava sempre no gargarejo, na primeira fila.

Um dia...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Alberto Freitas: Se Jary estiver por aí, me confirma se em meados dos anos 1970 fez matérias para a revista POP.

Jary Cardoso: Sim, fiz matérias quando a revista era editada por meu grande amigo, o gaúcho Valdir Zwetsch.

Alberto Freitas: Tenho uma delas. Se não me engano, uma com Rosa Passos.

Joaquim Lisboa Neto: Como canta Paulinho da Viola "ela não é flor pro seu jardim / você só sabe tocar tamborim", abraços camarada!

Raquel Nery: Os revolucionários também amam. Contar a história por esse viés pode, também, ser muito revelador.

Adilson Borges: Grande Jary. Me passou esta bela recordação e eu sugeri e pedi licença para passar a Emiliano. "Já passei", respondeu. Sensível como sempre, Emiliano divide com a gente este emocionante registro de uma época. 

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(Carteirinha do Grêmio da Filosofia-USP com informação errada, não era da Economia e sim da Psicologia)

Emiliano José

8 de setembro de 2021

Jary Cardoso: mesma célula de Iara

 

Iara Iavelberg.

Assassinada faz 50 anos.

Falamos dela em nosso livro, eu e Oldack, "Lamarca, o Capitão da Guerrilha".

Da vida e da morte.

"Entre quatro e cinco horas da manhã do dia 20 de agosto de 1971, os moradores da rua Minas Gerais, particularmente os do edifício Santa Terezinha, na Pituba, bairro de classe média de Salvador, acordaram sobressaltados pelo barulho de tiros, gritos e bombas."

É da Iara jovem, linda, revolucionária sempre, a recordação saudosa de Jary Cardoso.

Quando a conheceu, ela era companheira de célula dele.

Célula da Polop, organização revolucionária nascida em 1961, incomodada com o que considerava reformismo do PCB, inspirada teoricamente nos textos de August Thalheimer, da Oposição Comunista Alemã.

Ele, aluno no cursinho pré-vestibular do Grêmio da USP, ela professora, meados dos anos 1960.

Deslumbrado com a beleza dela, com a desenvoltura, com sua presença no palco - é, uma professora, um professor, estão sempre em cena, e sabem disso - ele sentava-se sempre na primeira fila, ali, no gargarejo.

Não, não tirava os olhos dela.

A ele não escapava nenhum de seus movimentos.

Não se sabe se apreendia todos os ensinamentos, tal a fixação na mulher, na linda, formosa mulher.

Por quem se apaixonou, sem nunca ter se declarado.

Onde achar coragem?

"O quarteirão inteiro tomado, desde a avenida Otávio Mangabeira, que margeia a praia, até a Minas Gerais, uma rua paralela. Bombas de gás eram lançadas, uma atrás da outra, contra o apartamento 201 do edifício Santa Terezinha."

Numa das aulas, Iara vai pra lá, vem prá cá, desenvolta sempre, a sala atenta, e de repente se aproxima da cadeira de Jary, e senta-se na parte da cadeira dele onde fazia as anotações, sem interromper a aula, falando e falando, fluentemente.

Prá quê?

Jary Cardoso viu-se em apuros - tesão quase insuportável ao senti-la tão próxima.

A mulher pela qual era per-di-da-men-te apaixonado, ali, encostadinha nele, e ele, quase sem ar.

Sabia: ela não estava nem aí.

Mas ele, coitado...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Devanier Lopes: Endurecer sempre, perder a ternura jamais....

Jose Jesus Barreto: esse lado humano das pessoas... o mais íntimo. Isso é o mais bonito. o depoimento de Jary é belo.

Joaquim Lisboa Neto: Es fuego hermano...

Isabel Santos: Ufa, né, Jary? Emocionante. Iara, fibra e garra. 

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Emiliano José

9 de setembro de 2021

Jary Cardoso: Apocalipse Now e mão amiga

 

Foi um cerco de terror, o da rua Minas Gerais, na madrugada de 20 de agosto de 1971.

O coronel Luiz Arthur de Carvalho, o mesmo que pouco menos de um ano antes havia ordenado a minha tortura, comandava a operação aos gritos.

Prenderam um bocado de gente, está tudo lá, no livro sobre Lamarca, escrito por mim e Oldack Miranda.

Agora na 18a. edição.

Querendo, é editado pela Global Editora.

A primeira edição lançamos em meados de 1980, na Literarte, de Getúlio Santana e Nildão.

Depois daquele Apocalipse Now, parecia reinar a paz, se é possível paz depois daquele terror.

Não, não havia acabado.

Um jovem entre 12 e 14 anos morador de apartamento contíguo ao 201, pede para voltar e pegar livros escolares.

"Dirigiu-se ao quarto, aquele normalmente destinado à empregada e, ao abrir a porta, viu uma mulher apontando-lhe dois revólveres. Assustado, recuou, bateu a porta que, trancada por fora, não se abria por dentro".

A mulher, Iara.

Jary Cardoso participou da célula da Polop, integrada por alunos matriculados no Instituto de Psicologia, parte da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

A Polop é uma das poucas organizações revolucionárias a não nascer do tronco PCB.

E já surge defendendo a revolução socialista - não aceitava a noção, vinda da tradição comunista, da revolução em duas etapas: primeiro, revolução democrático-burguesa, em seguida revolução socialista.

Nas rememorações, passados já mais de 45 anos, ele se recorda com ternura de Iarinha, uma das principais figuras da célula.

Ternura e admiração:

- Era personalidade forte, carismática, liderança inconteste na Psicologia, muito dedicada às lutas do movimento estudantil.

Deve a ela a entrada na Universidade.

A nota obtida no vestibular não lhe permitia o ingresso.

Estava entre os excedentes.

Houve luta, manifestações na famosa rua Maria Antônia, na porta da Faculdade de Filosofia, para inclusão dos excedentes.

Recuo da USP.

Se não todos, alguns seriam aproveitados.

Seriam examinados.

Iarinha, conhecendo-o, companheiro, resolve estender-lhe a mão.

- Fique tranquilo - disse-lhe.

Não entendeu...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Carlos Roriz Silva: Parabéns amigo Emiliano pelo esforço em manter viva a memória do terror!

Emiliano José: Abração, querido companheiro. Dê um beijo em Zefa.

Isabel Santos: Sempre gritos 

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(Jary Cardoso)

Emiliano José

10 de setembro de 2021

Jary Cardoso: um lobby eficaz, e a entrada na Universidade.

 

O menino desceu correndo.

Disse da moça com dois revólveres no quarto de empregada.

O coronel Luiz Arthur já havia mandado os presos numa caminhonete, entre eles um bebê de menos de um mês de idade, Antoine Freitas.

Ordenou a retomada da violência.

Entraram desabaladamente no prédio novamente, e bombas começaram a explodir.

"Através dos basculantes, cinco delas foram lançadas para dentro do minúsculo quarto de empregada. Tantas bombas de gás, tanta fumaça, que assemelhava a um incêndio. E, em meio às bombas, tiros."

Iara, lá dentro.

Contávamos, vocês se recordam: aconteceu a luta dos excedentes da USP.

Jary Cardoso entre eles.

A USP, diante de tanta balbúrdia, resolveu então fazer nova seleção.

Iara, compadecida da situação do aluno e companheiro de Organização, resolve ir à luta.

Combinando jeito e ousadia, vai aos professores simpatizantes da causa estudantil, participantes da banca examinadora.

Conhecia-os um a um.

Fala das qualidades do aluno e do quadro político promissor - com aqueles professores podia se abrir.

Como deixá-lo fora da Universidade?

Seria um reforço importante para a vida acadêmica e, também, para a militância em favor das liberdades e da luta contra a ditadura.

Ele podia contribuir muito com a "Universidade Crítica", proposta da Polop para o ensino superior, para a luta contra o Acordo MEC-Usaid, e naturalmente, insistia, para o combate à ditadura.

Não bastasse tudo isso, somaria forças na luta da Organização para o enfrentamento do "reformismo" do Partidão, a favor de uma transformação radical da sociedade, do socialismo e do comunismo.

Cardoso foi aprovado.

Agora, colega de Iarinha no curso de Psicologia da USP.

De curso e de célula.

Recorda-se da admiração dela pelos formuladores da linha política da Polop, especialmente pelo sociólogo Eder Simão Sader, e pelo irmão, filósofo Emir Sader.

Sente um certo orgulho ao lembrar de alguma admiração dela também por ele, por sua rápida ascensão como militante. depois de 1965, dezembro, quando incorporou-se oficialmente à Organização - recrutado, como dizíamos.

Não demorou muito para sua ascensão como quadro dirigente da Polop...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Artur Carmel: E eu, colega do cara no extinto e glorioso JBa - fase última - , sabia lá que o homi tinha esse passado todo...Soubesse e teríamos armado uma revolução!!

Isabel Santos: E eu aqui, mais uma vez, indignada com tanta violência. Aff! 

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(Lamarca o capitão da guerrilha, livro de Emiliano José e Oldack Miranda)

Emiliano José

11 de setembro de 2021

Jary Cardoso: estudante profissional

 

Iara acordou assim sonolenta, estranhando.

Alguma coisa acontece.

Estava sempre pronta, como se em guerra.

E porque em guerra.

Jogou-se no chão.

Arrastou-se até a janela, e viu: cerco.

Coração acelera.

Ainda no chão, juntou o 22 e o 38, enfiou-os de qualquer jeito na bolsa.

Explosão de uma bomba.

De outra.

De outra.

Arrasta-se, desviando-se das explosões.

Ouve os gritos:

- Pessoal do 201, entregue-se!

Gritos e sussurros, atmosfera de terror, ouve crianças em desespero, chorando.

Arrastando-se, sobe na mureta, e num salto estava no apartamento vizinho, entra no quarto de empregada, deu-se com cama, livros...

Descrevo isso, livremente, a partir do belo livro de Judith Lieblich Patarra: "Iara : reportagem biográfica", está la na parte final das mais de 500 páginas.

Preciso impor-me, e voltar a Jary Cardoso, meu protagonista.

Acontece: ele apareceu assim de inopino, e apaixonado por uma mulher fascinante, deslumbrante, e ainda por cima revolucionária, capaz de enredar o autor, levá-lo pelos belos e trágicos caminhos trilhados por ela, e justo ele, esse autor, enredado desde antes nos trajetos dela e do Capitão Carlos Lamarca.

Mas, me imponho, e volto a ele, também grande personagem.

Conseguiu.

Chegou ao curso de Psicologia da USP, pelas mãos de Iara Iavelberg.

Acontece: Cardoso era um estudante profissional.

Estava voltado mais para a militância revolucionária, menos para os estudos curriculares.

Mais Marx, menos Freud.

Mais Lênin, menos Jung.

Mais Trotsky, menos Lacan.

Não era um rapaz disposto a pegar o canudo.

Até tentou: fez os primeiros seis meses de Psicologia.

E a primeira disciplina, devia ser obrigatória: Estatística.

Parou aí.

Aguentou, não.

Nunca mais aventurou-se a buscar um diploma universitário.

Estudioso, sempre foi, avesso no entanto à rotina acadêmica.

Jornalista, tornou-se por acaso:

- Quando deixei a Polop, tive que arrumar um emprego, e aí virei jornalista.

O Brasil perdeu um revolucionário de tempo integral, e ganhou um grande jornalista...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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(Antonio Campos fixa medalha de formatura do filho Jary Cardoso no primário, primeiro encontro dos dois)

Emiliano José

12 de setembro de 2021

Jary Cardoso: pai comunista, inveterado sedutor

 

Iara sentou-se na cama, lençóis ainda em desalinho.

Respirou fundo.

Tentava retomar-se.

Ganhar algum equilíbrio.

A vida, um filme, passando ligeiro.

Só pensava nele.

Lamarca.

Quantos homens passaram por su vida, quantos amores, todos fugidios.

Fosse talvez medo de compromissos, quem sabe.

Um olhar, um toque, e cama.

Assim seguia.

E quando ele apareceu, paixão.

Como se o mundo ganhasse outras cores.

O barulho lá fora cessou.

E como estará Lamarca, embrenhado por sertões?

Estará ouvindo canto dos pássaros enquanto limpa as armas?

Naquele momento da vida, duas certezas: a da Revolução e Lamarca.

Nunca pensou dizer homem da minha vida, e agora diz, convicta.

Encontrara o amor de su vida.

Refletiu: como escapar dessa?

Cercada, sozinha... como escapar?

Iria sair dessa...

Jary Cardoso não tinha qualquer consciência política de esquerda quando eclode o golpe de 1964.

Um reacionário?

Raiva do pai, é, tinha raiva do pai.

Antonio Campos, cirurgião-dentista, tenente do Exército, prestista de quatro costados, preso na Insurreição de 1935, conhecida como Intentona, ostentava grande cicatriz nas costas - chicotadas da repressão, no dizer da mãe de Cardoso, Luiza.

Comunista, o velho.

Chega a desenvolver militância ao lado de Marighella, em São Paulo.

Depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde integra direção estadual do PCB.

A mãe, formada professora na Escola Normal Caetano de Campos, na Praça da República, encontra primeiro emprego na sede do PCB, no Brás, no curto período de legalidade do partido nos anos 1940.

Datilógrafa.

Aconteceu: Antonio era casado, mas paixão não escolhe estado civil.

Deixara esposa e filhos no Rio, e aconteceu.

Os dois juntaram os panos.

Quando Luiza Cardoso ficou grávida do hoje jornalista, Campos sumiu no mundo.

Escafedeu-se.

Os camaradas, partido já na ilegalidade novamente, explicaram, com jeito: está escondido, clima esquentou.

Luiza, esperta, acaba descobrindo: já tinha outra amante.

Era daqueles comunistas de uma mulher em cada porto, daqueles homens cantados por Chico Buarque, lembram? uma mulher em cada porto?

Jary Cardoso, entre a infância e a adolescência, pegou abuso dos comunistas - tinha-os todos como o pai, devassos e irresponsáveis.

Raiva, é, tinha raiva do pai.

A mãe, ele não sabe por que, deixou a entender sempre jamais ter deixado de ser apaixonada pelo velho comunista.

Comunista, às vezes, é sedutor...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Graça Azevedo: E haja romance no meio de tanta luta. Sigamos.

Joaquim Lisboa Neto: Essa é lapidar, comunista às vezes é sedutor...

Sônia Maria Haas: Que otimo relato.

Lucia Correia Lima: Vou ler tudo no Pilha Pura

Mônica Bichara: Sim, toda a série está publicada por personagens no https://pilhapuradejoaninha.blogspot.com/

Isabel Santos: Mais uma história/trajetória de tirar o fôlego, relatada pela pena poética do querido Emiliano. 

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Emiliano José

13 de setembro de 2021

Jary Cardoso: admirador do golpe

 

Cercada, sozinha.

Só contava com si própria.

Um 22 e um 38.

Às vezes, não se dava conta das fragilidades.

Queria sempre rompê-las, afrontá-las.

E às vezes, impossível.

Bateu pé.

Quis ir para o treinamento guerrilheiro do Vale do Ribeira.

E Lamarca, contra a opinião dos demais companheiros, resolve bancar a ida dela.

Pensa: era o amor invadindo a Revolução, desconhecendo regras.

Não porque mulher.

Mas, porque frágil, de saúde frágil.

Não demorou a retornar.

Não dava.

O pensamento volta àquela situação, dramática situação.

Àquele quartinho.

Duas hipóteses.

A primeira, fugir.

A outra, encarar a morte.

Prisão, em nenhuma hipótese.

Lembrou-se de Espinosa, breve amor, a lhe ensinar lidar com armas.

Generoso, triste, sem nada revelar da paixão por ela, incentivou Lamarca a seguir em frente quando ouviu a confidência angustiada do amor dele por ela.

O pensamento voa, e Iara passa a imaginar como fugir dali.

Quem sabe os donos do apartamento a ajudassem, num rompante de solidariedade e ousadia?

Saindo na noite, no carro deles...

O golpe de 1964 encontra Jary Cardoso entusiasmado: a favor do golpe.

Ele o chamava Revolução.

Ressentimento com pai dá nisso.

Trabalhava perto de casa, em Pinheiros no escritório central da rede das Lojas Duton, moda masculina.

Auxiliar de contabilidade.

Entre os auxiliares do escritório, o respeitado estudante de Economia da USP, Duilio Sandano.

Militante da UDN Jovem, convida Cardoso a ingressar no partido.

Recusa.

Cedo ainda.

Registra: sujeito de direita, porém letrado, e com alguma honestidade intelectual.

Orientou leituras, indicou-lhe ótimos livros sobre história econômica do Brasil, não necessariamente na esteira do pensamento dele.

Um dia, é surpreendido com um presente do amigo.

Abre: eram dois livros, clássicos: "Formação Econômica do Brasil", de Celso Furtado, e "História Econômica do Brasil", de Caio Prado.

Não os leu, à época, com a atenção devida.

Mais tarde, valeu-se deles, com gosto.

Guarda-os até hoje, bem conservados, preciosidades.

Sandano, sujeito convincente, levou-o a ficar fã de Carlos Lacerda, sobretudo dele.

Mas, no panteão de Cardoso, estavam ainda Roberto Campos e Castelo Branco, o chefe da Revolução, presidente-ditador, naturalmente não assim considerado por ele.

Numa autoironia, e sem condescendência consigo próprio, proclama:

- O passado me condena!

Trabalhava meio período na Duton e cursava o Científico à noite, no Instituto de Educação Fernão Dias Pais, à rua Pedroso de Morais, também em Pinheiros. 

E houve umas férias, no início de 1965...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Solange Souza Lima Moraes: Já tomou a segunda dose da vacina?! Eu já.

Vamos marcar para nossa primeira entrevista com o devido distanciamento?! Que achas Carla França e Emiliano José

Emiliano José: Podemos

Lucia Correia Lima: Vou ler tudo no Pilha Pura

Mônica Bichara: Com certeza

Lucia Correia Lima: Mônica, estou procurando uma foto dele. Importante

Mônica Bichara: Claro, Lúcia, estou contando com os amigos fotógrafos

Mônica Bichara: Manda foto pra mim, Jary Cardoso. Para editar a série no https://pilhapuradejoaninha.blogspot.com/ e depois no e-book de Emiliano com essas memórias maravilhosas   

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(Em Andaraí)

Emiliano José

14 de setembro de 2021

Jary Cardoso: Carmem, lua e início de conversão

 

Saindo na noite.

Ganhando o mundo novamente.

Sempre a esperança de rever Lamarca.

É - pensava escapar.

Estranhava aquele silêncio.

De repente, passos.

Revólveres nas mãos.

Engatilhados.

Espera.

Um menino.

Doze, treze anos.

Não ia atirar.

Ainda leva o indicador aos lábios.

Quase suplica silêncio, cumplicidade.

O menino assustado recua, e bate a porta.

Num gesto quase automático, tenta abri-la.

Está presa ali, só abria por fora.

Inevitável: o menino a entregaria.

Olha para os revólveres.

Senta-se novamente na cama, quase em desalento.

Sabe: está chegando a hora e a vez de Iara Iavelberg.

Lembra-se: A hora e a vez de Augusto Matraga.

Eles viriam, com tudo.

Inevitável.

Curioso ainda pensasse na casa da Vila Mariana, onde viveu momentos maravilhosos com Lamarca.

Casa de Joaquim Alencar Seixas, da companheira dele, Fanny, de Ivan, já revolucionário aos 15 anos, quem sai aos seus não degenera.

Revolucionário, o casal egresso do velho Partidão.

Sofreu quando soube, em abril daquele ano, do assassinato do velho Seixas pela repressão.

Foi um período sem sobressaltos, a estadia na casa, não obstante intenso, discussões com muitos dirigentes das organizações voltadas à luta armada...

Em 1965, início do ano, Jary Cardoso passa as férias na fazenda de um tio, Cornélio, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo.

Curioso, dana-se a bisbilhotar a estante repleta de livros.

Dois títulos o atraem: "Análise do homem" e "A República".

Autores, Erich Fromm e Platão.

Erich Fromm foi uma iluminação: misturava Marx, Freud e Cristo.

A miscelânea, quem sabe, tenha valido por muitas sessões de psicanálise, fosse ele adepto - passa a ver o marxismo sem ressentimento, sem o espectro do pai.

Cursava inglês na União Cultural Brasil-Estados Unidos.

Roqueiro raiz: fã de Elvis Presley, Little Richard, Ronnie Self, Gene Vincent and his Blue Caps.

Americanófilo típico.

Deixou-se atrair por uns americanos e aceitou convite para um encontro do movimento Moral Re-Armament, na Universidade Rural do Rio de Janeiro.

Numa das palestras, exatamente a de Alceu de Amoroso Lima, bem mais conhecido como Tristão de Athayde, ele vê irromper no auditório um grupo de estudantes ruidosos, gritando palavras de ordem contra o imperialismo norte-americano.

Intrigado e atento, concentra a atenção na ousada e bela oradora à frente da manifestação, discursando em tom revolucionário.

Beleza erótica, morena de pele escura, na definição dele.

Não perdeu tempo, ousadia não lhe faltava.

Terminada a agitação, aproximou-se da moça.

Ela não recusou conversa, ao contrário.

Era do Move - Movimento de Educação, fundado no método Paulo Freire.

Falou muito no grande educador, e ele pouco interessado, voltado mais a ela mesma, envolto pela beleza e sensualidade dela, ainda mais bela com aquela desenvoltura discursiva.

Não demorou muito, e na noite enluarada, em meio às árvores do campus, desdobraram-se em ardentes carícias.

Carmem não era brinquedo, não.

A capacidade de sedução dela - Carmem Zilda - era muito ampla.

Ela se impôs a tarefa de trazer Cardoso para a esquerda, tirá-lo daquele antro de direitistas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Sérgio Buarque de Gusmão: Estou esperando a parte do Bondinho e do HAF, Rua Lauro Muller, os dois na praia, catando pedrinhas..

Emiliano José: Ele há de responder...

Jary Cardoso: Meu caro, a narrativa de Emiliano deverá chegar nessa parte do Bondinho porque em meus depoimentos a ele já disse que no meu currículo de mais de 40 anos como jornalista destaco apenas três atividades: foram as que atuei sob a liderança de Marcos Faerman (meu 1º mestre, quem me levou pra profissão), Tarso de Castro (jornalismo de combate com fortes doses de ironia e deboche) e Hamilton Almeida Filho, o HAF. Este último foi o maior líder de trabalho em equipe que encontrei depois de deixar a militância comunista. Como repórter sob seu comando no Bondinho, o HAF nos conduzia como o chefe supremo de um partido político em luta por uma revolução cultural no jornalismo e nos costumes. Acima dele, na hierarquia da editora Arte & Comunicação, havia o grande Sérgio de Souza, mas os repórteres, redatores, diagramadores e ilustradores éramos chefiados diretamente pelo HAF. Morei com ele e mais alguns "guerrilheiros" meio hippies do Bondinho numa "comunidade": um apartamento amplo que ocupava um andar inteiro na Avenida Rio Branco, apelidado de "HAF Palace Hotel" porque não era uma comunidade tipicamente hippie, só de paz e amor, mas, sim, um grupo de combatentes anarquistas, adeptos do amor, da paz e também da briga e da provocação, pautados e dirigidos por um líder forte, beirando o autoritário. Já a 2ª parte do seu comentário, "Rua Lauro Muller, os dois na praia, catando pedrinhas...", não entendi. Pode ser que vc tenha misturado alhos com bugalhos, o que acontece comigo também quando me volto pro passado e os fatos se embaralham. Mudei pro Rio e morei no final de 1972 e início de 73 na Lauro Müller, num prédio situado entre o Canecão e o Morro da Babilônia, quando o Bondinho já tinha deixado de existir uns 6 meses antes. E quem são esses "dois na praia (qual praia?) catando pedrinhas"?

Emiliano José: Mistérios...

Sérgio Buarque de Gusmão: Também passei uns dias no apartamento da Rio Branco quando mudei de Belém, onde conheci o Haf na produção da Realidade especial sobre a Amazônia. Uma festa. Tinha uma cama d´água para fascinar as meninas...Uma dia recebemos o recém-chegado pessoal do Ceará, Fagner desconhecido cantando Mucuripe. Um dia fui com alguém ao ap da Lauro Muller, mas você não estava. Sua mulher, uma menina novinha de que não lembro o nome, disse que vocês estavam catando pedrinhas na praia. Bons tempos, que a memória seleciona e reescreve no pretérito perfeito. . Grande abraço.

Lucia Correia Lima: Sérgio Buarque de Gusmão oxe

Maurício Brasil: Que riqueza, mestre!

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Emiliano José

15 de setembro de 2021

Jary Cardoso: a francesa

 

O velho comunista, cheio de manias.

Machismo.

Não gostava sequer fosse organizar crianças da rua em brincadeiras pedagógicas.

Até vê-la quieta, lendo, incomodava-se.

Quando ouvia Félix Escobar reclamar às vezes reagia: - eu me esforço, quando vocês se levantam já varri a sala, o terreiro, faço de tudo, e não adianta?

Não, não adiantava.

Nunca enfrentara machismo tão entranhado, nem com os militares com quem conviveu na militância.

João Lopes Salgado, dele não se esquecia, dirigente do MR-8, não a deixava muito tempo sem contato.

Atendeu pedido dela, e um dia seguiu para Serrinha, a 60 quilômetros de Feira de Santana.

Queria encontrar-se com o médico Hamilton Safira Andrade.

Lembra-se: apresentou-se como Maria Lúcia Ribeiro.

Hamilton Safira, ginecologista, atendeu-a muito atenciosamente.

Disse-lhe: - eu e meu marido queremos muito ter um filho.

Ainda se recorda do estranhamento do médico: uma militante da luta armada pretender fazer tratamento para ficar grávida?

Mas, se queria, era médico, atendeu: pediu exames sofisticados, a serem feitos em centros mais adiantados, quem sabe em Feira de Santana mesmo.

Pensava, lembrava, e de quando em vez, volta à sua realidade, naquele quartinho exíguo, esperando a hora do ataque, porque impossível não acontecer.

O menino certamente avisou os homens, e eles viriam...

O pai de Marie Christine Laznik migrou para o Brasil.

Família morava numa mansão no Alto de Pinheiros.

Com a morte do pai, a menina teve de sair da escola particular, e embarcar na pública.

E o Fernão Dias, onde Jary Cardoso estudava, era uma das melhores.

Chris, no intervalo de uma aula para outra, aparece na frente, sobe no tablado, começa a escrever coisas na lousa, dançando e cantando Chico na letra de João Cabral de Melo Neto:

- É a parte que te cabe neste latifúndio, não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida...

Ela o impressionou.

De verdade.

Chegou chegando.

Culta, inteligente, linda, lindíssima. 

Ao pensar nela, nas últimas horas, foi ao quarto de despejo: não encontrou o disco, o presente dela, espécie de celebração da amizade iniciada quase de pronto: The Sheriff, do The Modern Jazz Quartet.

Foi à Internet, reencontrou-o, e o ouviu, extasiado, emocionado, viajando no tempo, com ela ao lado novamente, a imaginação correndo solta, em busca do tempo perdido.

Ouve, numa das faixas, As Bachianas Brasileiras, Villa-Lobos, cujo encanto vivera em pleno movimento estudantil, na voz da insuperável Joan Baez.

Na contracapa do The Sheriff, a dedicatória da Chris - como é duro perder, ver sumir um presente assim, com esse simbolismo.

Ah, era encantadora, a Chris.

É encantadora.

Viva, cheia de vitalidade.

Deu-lhe de presente ainda edição brasileira de bolso de "As mãos sujas", de Sartre.

Ao ler o livro, sentiu-se tocado, e danou-se a comprar livros dele.

Culpa dela.

Lidou com a densidade teórica de Chris: política e filosoficamente definia-se como marxista e existencialista, mistura aparentemente inconciliável, não para ela...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Jary Cardoso)

Emiliano José

17 de setembro de 2021

Jary Cardoso: liberdades e Revolução

 

A convivência com Félix Escobar tornou-se insuportável.

Um dia, toma coragem bate à porta de Hamilton Safira, o médico de Serrinha.

Uma consulta, e ganhara confiança.

Pediu refúgio.

Abriu-se com ele.

Hamilton Safira vinha da tradição do PCB.

Mas, como tantos do partido, acolheu Iara com imenso carinho, solidariedade.

Ela ainda, cultivando ilusões, tentou recrutá-lo, chamá-lo às suas ideias.

Besteira.

De política, o médico conhecia, e considerava a luta armada, naquelas condições, um suicídio.

Inviável.

Gostava de teatro, ela também, e naqueles dias cultivaram leituras comuns.

Agradáveis discussões.

Iara vivia um momento difícil.

Não apenas pela conjuntura de perseguida.

Atormentada sobretudo pelo fato da impossibilidade da gravidez.

A paixão a tomara por inteiro: sabe-se lá por que, mas acreditava - o filho manteria Lamarca ao seu lado para sempre.

É, dada sempre a amores intensos mas ligeiros, nele parou, amor e paixão se juntaram e o queria como nunca quis ninguém na vida, e um filho solidificaria aquele amor, selaria aquela paixão.

Não, não lhe assaltavam dúvidas sobre o amor dele.

Mas, um filho...

Como desejava.

Sofria.

Ainda o silêncio.

Os revólveres nas mãos.

A espera angustiante.

Jary Cardoso foi provocado.

Por mim.

Ao falar da relação entre marxismo e existencialismo.

Chamei, sem querer,  o velho espírito militante de volta.

A veia teórica, volta ao passado povoado de intensas discussões sobre os rumos da vida e da luta política.

Tomei o cuidado de dizer: marxismo e existencialismo eram aparentemente inconciliáveis.

Ainda bem: está lá o "aparentemente".

Mas, ele tomou da lança, e qual Quixote, veio pra arena.

A defender, com muita propriedade, o quanto marxismo e existencialismo podiam conviver e dialogar.

O quanto são sagradas as liberdades.

As coletivas e as individuais.

O quanto de erro houve não apenas no estalinismo, mas no próprio leninismo quanto a isso.

O quanto de razão havia em Rosa Luxemburgo, aí já sou eu lembrando, alertando o revolucionário bolchevique, no comecinho da Revolução, para a ausência das liberdades.

- Não vai dar certo - ela profetizou.

Retomou discussão sobre a própria história da Polop.

Da organização, conhecia pouco - passei por ela escrevendo livro sobre Victor Meyer, com a colaboração preciosa de Orlando Miranda, prefácio de Nilmário Miranda, os dois ex-dirigentes da Polop.

Me brindou com escritos preciosos do grande Moniz Bandeira sobre a organização revolucionária.

Não vou mergulhar nesse território.

Implicaria digressão longa.

Apenas registrar minha concordância geral com o pensamento dele, com o raciocínio teórico, com a necessidade do esforço de sempre, na luta política, conciliar a luta pelo poder revolucionário com as liberdades, o que não é tarefa simples, a reclamar sempre a análise concreta da situação concreta.

Volto a Marie Christine Laznik, a figura a instigar toda essa discussão.

O Marx adulto, não o jovem Marx, começou a ser conhecido por Cardoso pelas mãos da Polop, depois de Chris apresentá-lo a um dirigente da Organização.

Cardoso, como estamos vendo, foi iniciado pelas mulheres.

Ao menos nas artes da Revolução.

Chris mostrava muito empenho na formação dele...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Sartre, presente da amiga Chris, com dedicatória)

Emiliano José

18 de setembro de 2021

Jary Cardoso: materialismo, existencialismo, psicanálise.

 

Não.

O filho, impossível.

Desmoronou, aquele sonho.

Iara, acolhida pelo médico Hamilton Safira de Andrade em Serrinha, no território do Sisal, passou a cobrir pontos em Feira de Santana, encontrando-se com militantes do MR-8, discutindo a difícil situação política, e sempre querendo saber de Lamarca, e sabendo pouco por razões de segurança.

Apesar de mútua antipatia, era obrigada, quando de passagem por Feira, a hospedar-se na casa de Félix Escobar.

Dia 6 de agosto daquele 1971, ponto com João Lopes Salgado, a quem estimava muito, e de quem sempre ouvia avaliações esperançosas sobre a luta revolucionária.

O dirigente do MR-8 não apareceu, e a deixou tensa.

Na volta a Serrinha, Hamilton Safira a percebe preocupada, apreensiva, insegura.

Ele se aproxima, cuidadoso:

- O que houve?

Alguns segundos de silêncio, mas ela arrisca compartilhar o problema com o médico:

- Meus contatos caíram.

- Me ajude chegar a Salvador.

Acolhedor, carinhoso, ele aponta outra saída:

- Por que você não pensa em dar uma parada?

Fala na fazenda de um amigo, onde podia recolher-se em segurança.

Experiente, e passo a passo, discorre sobre a gravidade da situação do País, não devia cometer imprudências, sair andando por aí, a repressão nas ruas, pronta para prender e matar, e o importante é a sua vida, você se preservar, até para a luta....

Jogada de volta à realidade: os revólveres nas mãos, o 22  e o 38, pronta para o que desse e viesse, e sabia que a repressão viria, já passava das sete da manhã...

Jary Cardoso, às vezes esqueço-me do y do nome dele, e ele não gosta, com razão, ando mais atento, meteu as caras, conheceu melhor o Marx adulto, sabendo ter de passar a vida inteira conhecendo-o, pela grandeza da obra.

De Chris, a danada da Chris, a insistência em formá-lo, em dar-lhe subsídios teóricos, e ele, por tudo, feliz com isso.

O olhar dela voltou-se, nas indicações de leitura, para Sartre, Freud e Reich.

De alguma forma, parecia querer temperar o materialismo histórico e dialético, mola mestra da formação dos comunistas, com o existencialismo e a psicanálise

Ele gostou desse tempero.

Dos três, um preferido: Sartre, a quem somente conhecerá mais profundamente quando no desbunde com Luiz Carlos Maciel, um especialista no filósofo francês.

Naqueles anos tão intensos, conturbados, entre o final de 1965 e o final de 1968, viu-se dividido no meio da luta e de tantas leituras.

Confortável, não podia negar, a certeza contida na concepção de mundo contida no materialismo histórico e dialético.

Era bom, muito bom, sentir a história caminhar a favor do proletariado, da Revolução, a ideologia do progresso, o desenvolvimento incessante das forças produtivas entrando em contradição com relações sociais obsoletas, levando o proletariado a sublevar-se e abrir os horizontes da Revolução socialista, primeira etapa da chegada ao comunismo.

Ah, como era bom.

Mas, era o diabo: as leituras da Chris, perturbadoras.

Causavam-lhe insegurança.

Via-se diante do drama da existência, da finitude sem Deus, e quando se punha solitário a pensar nessa realidade, tão cruel, tão próxima, sentia o chão se abrir, faltavam-lhe nessas ocasiões parâmetros éticos a lhe dar confiança...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

19 de setembro de 2021

Jary Cardoso: paixão platônica

 

Iara apreensiva, naquele quartinho de empregada.

Certa da vinda da repressão.

O menino a entregaria.

Volta a Serrinha, o pensamento parece uma coisa à toa...

Hamilton Safira ainda ainda insiste: vamos para a fazenda de meu amigo, você passa um tempo lá, se cuida, sai do meio do fogo, deixa as coisas acalmarem, e então volta para a batalha.

Ela, nada - insistia, era a luta, a necessidade de seguir adiante.

Um pouco do espírito da época, e talvez a cabeça em Lamarca, em algum lugar do Brasil, dirigindo a luta.

Na casa do sem jeito, assim sentiu-se o médico.

Deu-lhe dinheiro, e ela seguiu para Feira de Santana, para a casa de Félix Escobar.

Reencontra-se com César Benjamin e sabe da queda de José Carlos de Souza.

Tinha noção dos riscos decorrentes da queda - fora Zé Carlos a conduzir o Capitão para a área onde ele se encontrava.

Falasse, e tudo desmoronaria.

Os dois, no entanto, tinham convicção: Zé Carlos suportaria as torturas durante uma semana, o prazo-limite fixado pelo MR-8 para o militante abrir o que sabia.

Lamarca seguramente seria alertado da queda e sairia da área onde estivesse.

Os dois saíram da casa de Félix Escobar para um ponto.

Esperava-os Nilda Alves Cunha.

Dali, Iara Iavelberg segue para Salvador, para o apartamento da Pituba...

Jary Cardoso reconhece, tantos anos passados: Chris apresentou-lhe um mundo completamente novo, um admirável mundo novo.

Sob muitos ângulos.

Paixão e tesão muito mais intensos do que aqueles sentidos por Carmem Zilda.

Desde o início da adolescência, ecoava nele o refrão de uma romântica canção norte-americana: "our day will come...".

Aparecia à sua frente, quem sabe, o grande amor da vida dele.

Tão procurado, sonhado desde criança.

Passou a frequentar a casa dela, logo depois de conhecê-la.

Ele, atônito, vendo-a conversar freneticamente com a mãe, discutir, brigar - só em francês.

Levava-o pelas mãos em visitação aos livros da vasta biblioteca da casa.

Destaque para os livros de Wilhelm Reich.

Especialmente, "A função do orgasmo".

Momentos inebriantes, o jazz na vitrola - é, na vitrola: os tempos eram outros.

Uma atenção e um carinho jamais recebidos.

Ele, incomodado: e cadê espaço pra declarar a paixão?

E como resolver outro impasse: ela namorava firme com Rony.

Ronaldo Marcos dos Santos tornou-se um dos melhores amigos dele, amizade a perdurar até os dias atuais.

Rony tornou-se professor de História Econômica na Unicamp.

A tese de Mestrado dele: "Resistência e Superação do Escravismo na Província de São Paulo, 1885-1888).

Passou a frequentar o bairro dos ricos, o alto de Pinheiros - o Rony também morava por lá.

O pai, médico, dava palestras pros amigos do filho sobre arte moderna, projetando filmes, ao fundo música experimental.

Chris o fez compartilhar um mundo sofisticado.

Não obstante, não passou de uma paixão platônica.

Nunca se declarou.

Noutro terreno: vivia em dúvida sobre o curso superior, e confidenciou tais dúvidas a Chris.

Ela, então...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

20 de setembro de 2021

Jary Cardoso: opção pela Psicologia

 

Olhava para os revólveres, um em cada mão.

Tensa.

As lembranças a salvavam.

Como se tivessem o condão de afastá-la daquele momento, vivendo a angústia da espera e a quase certeza da morte.

Nilda Alves Cunha, menina, menina, 17 anos, havia trazido-a para o apartamento da Pituba.

Na chegada, começando a conhecer as pessoas com quem iria conviver.

Lúcia Bernadete Cunha, irmã de Nilda, a inquilina.

O filho dela, Antoine, menos de um mês.

Jaileno Sampaio da Silva, como Nilda, militante do MR-8.

A empregada Benedita e a filha Gracinha, de 15 anos.

Agora, olhando para os dois revólveres, o 22 e o 38, imagina-os todos presos, levados pela repressão naquela madrugada.

O pensamento vai e volta.

Lembra-se das conversas com Lúcia Alverga, no Rio de Janeiro, ainda na VPR, antes de seguir  para a Bahia.

Com ela conseguia desabafar.

Gozado, Lúcia, com 18 anos, era, num aparelho tenso, a pessoa mais serena, a conciliação.

Era o ombro acolhedor tanto para um Lamarca irritadiço, de saco cheio com a rotina da vida em aparelhos, quanto para ela.

Não gosta de pensar, nem balbuciar sobre o quanto estava certa.

Ficassem no Brasil, ela e Lamarca seriam mortos - tinha essa convicção.

Conversava tudo isso com Lúcia, dissera tudo a Lamarca, irredutível.

De fato, os principais companheiros deviam sair do Brasil, concordava, ele não. 

Iara dizia a Lúcia de seu amor pela vida, do quanto queria viver.

Na real, na real não via qualquer perspectiva para a esquerda armada naquela conjuntura.

Era fácil perceber isso, mesmo sem dispor de grandes referenciais teóricos, e ela dispunha.

Quando Lamarca fincou pé para a permanência no Brasil, ela decidiu também ficar, e correr todos os riscos...

Vivia em dúvida sobre o curso superior a seguir.

Jary Cardoso revela as dúvidas a Chris, cada vez mais amizade, levado a recolher a paixão, imersa no silêncio.

Avaliava os vários ramos da Engenharia.

Pensava em Medicina.

Confessa: pensou até na Escola de Cadetes das Agulhas Negras.

Chegou a viajar, visitar a escola em Resende.

Curioso: tinha atração pela carreira militar.

Desde pequeno, gostava de andar marchando em passo rápido pelo Viaduto do Chá, simulando marcha militar.

Mas, a influência da Chris...

Acabou convencendo-o a prestar vestibular para Psicologia na USP, como ela.

Chris não era brinquedo, não: passou em primeiro lugar.

No cursinho pré-vestibular do Grêmio da Filosofia da USP, teve como professores pelo menos três militantes da Polop: Iara Iavelberg, Carlos Alberto Sardenberg (ele mesmo, o hoje anticomunista da Rede Globo) e Emir Sader, dirigente da Organização.

A Sader, Chris, já enturmada com a Polop, apresentou-o como uma promessa de bom militante.

Sader, presente até hoje nas discussões teóricas e na militância política do PT, não perdeu tempo: entregou a Cardoso uma apostila de bom tamanho com as linhas básicas do programa da Polop.

Não demorou, e Cardoso passou a participar das reuniões da célula da Psicologia.

Ela, a Chris, seguia fazendo a cabeça dele.

Exaltava, quase mitificava alguns militantes.

Entre os quais, Ladislas Dowbor, hoje renomado intelectual.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Joaquim Lisboa Neto: Dowbor, genro de Paulo Freire assim como o recentemente falecido Chico Weffort 

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Emiliano José

21 de setembro de 2021

Jary Cardoso: amores

 

A existência, feita de encruzilhadas.

Iara, diante de uma.

Amava a vida, como poucas pessoas.

Lamarca, generoso, pretendia ver tantos fora do País, em segurança.

Ele, não.

Acreditava ter responsabilidades com a Revolução a impedi-lo de seguir para o exílio.

Repetia Marighella.

O revolucionário, assassinado pela ditadura no final de 1969, tomara providências para tirar muita gente do Brasil.

Nunca admitia a possibilidade de ele próprio exilar-se.

Assim, Lamarca.

Iara amava profundamente a vida, mas encontrara o amor sempre buscado.

Lamarca era o amor de sua vida, disso tinha certeza.

Se ele estava disposto a correr todos os riscos, ela o seguiria.

Sabia: os problemas de saúde acabariam por afastá-la dele.

Teve de abandonar o treinamento guerrilheiro do Vale do Ribeira por conta de tais problemas.

Quando disse "eu também fico", sabia ser uma opção suicida.

A repressão havia eliminado Marighella.

Agora, o alvo principal da ditadura era inegavelmente Lamarca.

E ela iria de roldão, tinha certeza.

Escolhas diante de encruzilhadas.

Fez a escolha - pensava nisso enquanto olhava para o 22 e o 38, certa da chegada dos homens...

Jary Cardoso, para e pensa: houve Chris, paixão platônica, amizade para sempre.

Já acontecera Carmem Zilda, serena presença, lembrança de uma noite de luar entre as árvores da Universidade Rural:

- No decorrer da militância, me apaixonei por várias companheiras, namorei com algumas e cheguei a viver junto com uma delas.

Com Marília, irmã de Flávio Koutzi, gaúcho, líder da Dissidência do PCB e depois um dos dirigentes do Partido Operário Comunista (POC), surgido em maio de 1968, continuidade da Polop.

Com Marília vive seis meses.

Uma realização:

- A companheira com quem tive o namoro que mais me realizou em todos os sentidos foi Miriam Schnaiderman, filha de Boris Schnaiderman, tradutor, professor e escritor premiado.

Alegria durou pouco, no entanto.

Trocado por outro, simples assim.

Coisas da vida - que nunca tem linha reta, não é verdade?

Miriam tornou-se cineasta e psicanalista.

Ainda da Chris, lembrávamos ontem dela enaltecendo os grandes dirigentes da Polop.

Falava muito do Ladislas Dowbor - dele, Cardoso não se recorda se em algum momento integrou a Polop.

Mesmo quando ele entrou na VPR, no entanto, ela continuava exaltando-o.

Em 1969, Chris e a mãe voltaram para a França, e ela, um luxo, passou a estudar psicanálise com Lacan.

Chegou a dizer: não tivesse voltado para a França, acabaria deixando a Polop (já POC), e seguido o mesmo caminho de Iara Iavelberg, integrado uma das organizações da esquerda armada.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Artur Carmel: O nome do tradutor, professor e 'ex-sogro' de Jary (com ypsylon) era Boris Schnaiderman. Foi marido da professora baiana Jerusa Pires, mãe do nosso saudoso amigo, o músico Keko Pires.

Jary Cardoso: Sim, nos livros de Boris na editora Perspectiva, era assim o sobrenome dele, mas no meu relato sobre Míriam, segui a forma usada por ela no Facebook, sem o "S" inicial. Porém, concordo que se use a forma consagrada. Só não aceito que se escreva o meu nome sem o "y"...

Artur Carmel: Jary Cardoso Erro crasso ! Associ-o ao 'alemão', já que ouvi, hoje mesmo, Mil falar desse seu descontentamento qdo se troca o seu y pelo i. Corrigirei agora !!! Mil perdões !!

Jary Cardoso: Tá perdoado!

Adilson Borges: Dá-lhe, Carmel!

Artur Carmel: Apenas contribuindo, amigo.

Adilson Borges: Claro, car(i)doso 😘

Adilson Borges: Muito legal ver a história de Jary ser resgatada.

Adilson Borges: Parabéns, Jary; parabéns, Emiliano.

Artur Carmel: E Jary caladinho, no extinto JBa, com essa bagagem toda...

Marise Caribé: A vida... que nunca tem linha reta! ♥️ 

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Emiliano José

22 de setembro de 2021

Jary Cardoso: curso superior completo na Polop

 

Nas conversas com Lúcia Alverga, Iara Iavelberg confidenciava o desejo de ter um filho.

Um filho dela e de Lamarca.

Sonho distante.

As condições de saúde eram um obstáculo quase intransponível.

Nos últimos dias, fizera exames, atenciosamente atendida por Hamilton Safira Andrade, o médico de Serrinha, e o obstáculo se confirmara.

E além disso, havia a discordância dos companheiros de Organização, ao menos quando estava na VPR.

Na conversa com Lúcia Alverga, ainda batia pé, acreditava na possibilidade de superação dos problemas de saúde:

- Vou ficar grávida, vou ter um filho.

Tudo junto e misturado, a decisão de ficar no Brasil, o cerco da repressão, o desejo de ter um filho, desabafava com Lúcia, emoções à solta, arrebentada, chorava.

Uma revolucionária chora.

Quem disse que não?

Onde andará Lamarca?

Quanta saudade.

Abriu o tambor do 38, olhou as balas, fechou-o.

Como estarão Lúcia Bernadete, o pequeno Antoine, Nilda, Jaileno, Benedita, Gracinha, vivendo o terror, levados presos naquela madrugada?

A que horas a repressão baterá à porta daquele quartinho onde se encontra encerrada, sem possibilidade de sair?

Que viria, viria - disso não tinha dúvida.

E virá com toda violência...

Jary Cardoso tenta avaliar, tanto tempo passado, os três anos de Polop.

Corresponderam a um curso superior completo.

Teoria - Filosofia e Ciências Humanas.

E prática - reuniões restritas e de massas, manifestações, assembleias, congressos, viagens pelo Brasil afora.

Aprendeu até a confeccionar coquetéis molotov - um perigo, o Cardoso.

O aprendizado Molotov aconteceu em aulas práticas ministradas por ex-militares brizolistas, militantes da Polop antes do racha interno.

Aprendeu ainda a fugir em alta velocidade: num fusca da Polop, normalmente nas mãos dele, treina saídas rápidas, a mil por hora, ziguezagueando no tumultuado trânsito de São Paulo sem causar acidentes.

Não me disse não, mas era quase um curso completo de guerrilheiro urbano.

Marighella, logo depois, vai sistematizar essas práticas no "Minimanual do Guerrilheiro Urbano", sucesso no mundo inteiro.

Penso, e Cardoso não tem qualquer responsabilidade com essa formulação, o quanto a esquerda era atraída pelo pensamento foquista, pela ideologia debraysta, pelo livrinho de Regis Debray, A Revolução na Revolução.

Uma febre à época.

A Polop, e novamente é formulação minha, nascida com inspiração voltada à classe operária, com horizonte fixado na revolução socialista, começava a ser atraída ao voluntarismo foquista.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Daniel de Andrade: Parte desse momento vivido, encontra-se no QSF-Quem Samba Fica do Rui Patterson, página 48.

Rui Patterson:  pensei que era na página 20.

Rui Patterson: Daniel de Andrade integra um divertido grupo do RS, RJ e... deixa ver, não tem mais estados com a letra R, que são capazes de despejar as cinzas da própria mãe de um deles na praia, e no sentido do vento, passando o grupo a ser chamado, também, de Acinzentados. Esse grupo determinou que todo prefácio literário tinha obrigatoriamente que se referir à página 20 do livro prefaciado, fosse que merda que estivesse lá! No caso do QSF-MEG, a página 20 é um elogio a Daniel, dentro de uma autobiografia, também chamada de O Pequeno Livro de Princípios e Horrores. Na página 48, trato adequadamente de Habermas, o Jurgen, mas juro que não lembro muito bem de quem se trata.

Saudades, Acinzentados! Nos reveremos no pós pandemia pra continuar as loucuras!

Daniel de Andrade: GRANDE merveille. Assim escreveu Rui De La Mancha. O lanceiro do exército de Branca Leone, isso sim, página 21 do QSF. 

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Emiliano José

23 de setembro de 2021

Jary Cardoso: curso intensivo de comunismo

 

Iara pensa: a vida revolucionária faz a pessoa amadurecer cedo.

Está com 27 anos.

Sente-se com muito mais, tal o acúmulo de experiências.

Não imagina as relativas à vida amorosa, tão intensas, e variadas.

Não se reprimiu.

Viveu.

Intensamente.

Reflete é sobre sua caminhada política.

A alegria da descoberta da Polop, o mundo novo se abrindo, luminoso.

O alcance teórico dos dirigentes, a sacudir a cabeça.

Um aprendizado pra jamais esquecer.

E depois a impaciência com o teoricismo.

A angústia diante da violência da ditadura.

Sinal fechado.

A sedução de abrir o caminho à bala.

VPR, depois seus esforços para atrair o Comando de Libertação Nacional (Colina).

A junção das duas organizações, o Congresso de Teresópolis, oficialização da VAR-Palmares.

O Capitão não concordou com os rumos do encontro, e rachou.

Ela junto.

Refundação da VPR.

Guerrilha do Ribeira.

Aproximação e entrada no MR-8.

E agora, sozinha, naquele quartinho de empregada.

Sitiada.

Lamarca, em lugar não sabido.

Ela, transbordando de amor.

Tristeza da separação - sabe: contingências da Revolução.

Mas, isso não afasta, não diminui a tristeza.

Olha para os dois revólveres, um em cada mão.

Tensão.

Eles chegarão, e com toda violência...

Jary Cardoso, ao se aproximar da Polop, sob a forte influência de Iara, foi tomado logo por um fascínio: a parte teórica.

Ao chegar à Organização e receber extensa lista de livros considerados imprescindíveis à formação do militante, foi à luta, numa disciplina até para ele surpreendente.

Na biblioteca do grupo, nas bibliotecas das escolas da Faculdade de Filosofia, tentou encontrar a bibliografia indicada, e ler tudo, atentamente.

Houve alguns livros emprestados por amigos.

Outros, comprados em sebos e livrarias.

Recorreu também à enorme quantidade de apostilas mimeografadas de textos de dirigentes da Polop e de autores estrangeiros.

Um intensivão.

Formação comunista acelerada.

Não obstante, profunda.

A Polop, percebendo o interesse, a dedicação do jovem militante com os estudos teóricos, resolveu confiar-lhe por algum tempo a organização do arquivo clandestino dela, tão precioso.

Mina, a encantar o recém-chegado.

Documentos internos, apostilas com teses e debates, revistas, jornais clandestinos e da grande imprensa.

O acervo cobria coisas recentes, mas conservava ricos materiais, raridades históricas desde a fundação da Polop, em 1961:

- Folheando essa papelada, e me detendo em muita coisa, tive uma noção da história recente do comunismo no Brasil.

Lembra de uma primeira página de jornal, não sabe se de março ou abril de 1964, creio seja abril, a impressioná-lo vivamente:

"PRESIDENTE DA UNE FOGE DO PAÍS".

Era José Serra...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Graça Azevedo: Serra sendo serra.

Rogério Duarte: meu pai ficou, era o baiano que fazia os impressos, foi torturado. Antes disso, ao ser convidado para representar o Brasil em um congresso de artistas em Moscou, teve o nome vetado pelos dirigentes do partido, um dos quais, sabia através de uma amante, usava dinheiro da união soviética para presentear com joias moças deslumbradas da elite carioca.. Hoje meu pai é morto, e o líder de vocês, Lula da Silva, um amigão do Romeu Tuma, chefe do DOI-CODI... o motorista do Marighela, Aloysio Nunes, seguiu o caminho do Serra.. talvez eu entenda pq, como julgá-lo? José Dirceu, depois de entregar todo mundo em Ibiúna, foi pra Cuba, um por um dos seus parceiros da MOLIPO foram mortos, sobrou ele, que fez cirurgia plástica e esconde dinheiro no Panamá, antes se reunia com corruptos em seu hotel secreto, o St. Peter, em Brasília, onde aliás iria se empregar para progredir a regime semi-aberto. Esculhambação total, mas meu pai eu conheci de perto, fui também uma vítima tardia da tortura que ele sofreu, em abril de 68, na semana santa. Podem ficar com Lula e Dirceu, vão com eles para o inferno que quiserem!

Jose Jesus Barreto: Rogério Duarte abraço

Rogério Duarte: espero que não de afogado!

Jose Jesus Barreto: de compreensão e respeito pelo dito.

Daniel de Andrade: Faces da nossa história recente, relata Rogério Duarte e Jary Cardoso. 

........................................................ 

Emiliano José

24 de setembro de 2021

Jary Cardoso: aprendendo na Maria Antônia

 

Aproximação e entrada no MR-8.

Ela sentiu o entusiasmo do Capitão.

No 8, abria-se a possibilidade tão almejada: ir para o campo, trabalhar junto aos camponeses, desbravar caminho para a guerrilha rural.

Durou pouco a alegria.

Nuvens sombrias voltaram.

A repressão, implacável.

Ditadura não dava sossego.

Cercava o MR-8 no Rio de Janeiro, onde ela e o Capitão se encontravam.

Maio de 1971, os dois têm notícia da queda de Stuart Angel, direção da Organização.

Logo depois, sabem da morte dele sob tortura, terríveis torturas.

Morreu sem dar uma palavra aos torturadores.

Ditadura considerava: a partir dele pegaria o Capitão.

Cerco incessante da ditadura.

Iara Iavelberg e Lamarca são informados da prisão do companheiro de aparelho, José Gomes.

Saem às pressas do local, e passam a noite inteira rodando de táxi e ônibus.

Ficassem no Rio de Janeiro, e a queda seria questão de horas.

Final de junho partem em direção à Bahia...

Jary Cardoso se impressionara com aquela manchete sobre a saída de José Serra do País porque entrara na diretoria da UNE justamente para completar clandestinamente a gestão dele, substituído na presidência por Altino Dantas.

A UNE, apesar de considerada ilegal pela ditadura, persistiu graças à insistência, à luta dos estudantes.

Cardoso assumiu durante a gestão de Altino Dantas, 1965-1966.

Seguiria ainda na diretoria, sempre indicado pela Polop, nas gestões de José Luiz Guedes e de Luís Travassos, ambos da Ação Popular, organização a sustentar larga hegemonia no movimento estudantil, entre o início dos anos 1960 até os primeiros anos da década de 1970.

Antes de sair pelo Brasil afora como diretor da UNE, Cardoso vivia na tradicional, famosa Maria Antônia.

A rua era o epicentro do movimento estudantil em São Paulo.

Nosso protagonista vivia ali, entre um gole e outro nos bares, no saguão da Filosofia, no porão da faculdade onde se situava o Grêmio.

Conversava, aprendia mais e mais sobre os rumos da Revolução.

De quando em vez, subia para assistir a alguma aula.

Às vezes, de um filósofo mais ou menos ligado à esquerda, como José Arthur Gianotti.

Mas, também de outros, não necessariamente vinculados ao pensamento de esquerda, ao menos na avaliação de Cardoso, como Oswaldo Porchat e Bento Prado Jr.

Ele se recorda de uma aula de  Prado Jr., onde declarou preferir o jovem Marx ao velho Marx pela simples razão de o primeiro lhe agradar mais esteticamente.

O filósofo teve de aguentar risos debochados de intelectuais da Polop.

A impressioná-lo mesmo, a deslumbrante oratória de Gianotti nas aulas de Lógica...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Latitude Soluções Empresariais: Bom Dia Camarada Emiliano. Graças ao nobre companheiro podemos *AFIRMA* que, ao contrário do que disse um certo porta, NOSSOS HERÓIS NÃO MORRERAM DE OVERDOSES. Parabéns abraço fraternal.

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Emiliano José

25 de setembro de 2021

Jary Cardoso: Vá ser filósofo na vida...

 

Volta no tempo

Iara Iavelberg pensa no mês de abril de 1969.

Quando tudo começou.

Não esperava a paixão.

Aconteceu.

Sabia dos temores de Lamarca: mulher e filhos em Cuba, a moral da organização, bastante conservadora.

Os adversários, a ditadura, a mídia, podiam começar a dizer, proclamar: Lamarca tem amante.

Além de "traidor da pátria", dado a cultivar amantes.

E lá em Cuba, soubessem, poderia não cair bem.

Mas, a paixão levou tudo de arrasto.

Passaram a viver juntos, a se encontrar quando havia chance, nem sempre havia.

Ela sentia a diferença quando comparava Lamarca e os muitos amores anteriores, estudantes e intelectuais: mais de 30 anos de idade, mais maturidade, e uma formação diversa, rica experiência de vida.

Estranhava aquele silêncio.

Fora aquele ataque brutal, e agora o silêncio.

Presa ali naquele quartinho de empregada.

Acariciando os dois revólveres.

Pensa na viagem do Rio para a Bahia, iniciada no final de junho.

Sentiu Lamarca mais descontraído, mais próximo, os dois cheios de carinho um com o outro.

De Vitória de Conquista em diante, apenas a Kombi.

O outro carro, um Volks, voltou para o Rio de Janeiro.

Seguiram para Jequié ela, o Capitão, Sérgio Furtado, José Carlos de Souza dirigindo.

Em Jequié, noite de descanso

Dia seguinte, separação.

Ela seguiria para Salvador com Sérgio Furtado.

Ele, para destino desconhecido, Zé Carlos dirigindo.

Coisas da Revolução.

Gostar, ela não gostou.

Jeito, não tinha.

Não obstante, compreendia...

Gostava de Giannotti, gostava muito.

Na verdade, naquele momento apaixonou-se por Filosofia.

Jary Cardoso chega a participar como ouvinte de um seminário de pós-graduação em filosofia pura, orientado por Ruy Fausto, intelectual muito respeitado por ele, considerado um dos principais teóricos marxistas brasileiros.

O tema do seminário era a leitura de "O Capital", de Karl Marx, no qual se debatia o ponto de vista do filósofo francês Louis Althusser, um dos criadores do estruturalismo.

Foi um momento rico, quando Cardoso mergulhou no estudo de "O Capital" e dos livros de Althusser traduzidos para o português.

Chegou também a beber na fonte Delfim Netto.

A Faculdade de Ciências Econômicas era quase contígua à Faculdade de Filosofia e ele de vez em quando assistia aulas do mais badalado professor da escola - registra: ele ainda não se tornara o todo-poderoso ministro da ditadura.

Nos três anos de militância, se não deu sequência ao curso de Psicologia, encontrou tempo para a teoria, para filosofar.

Frequentou, sem muitas faltas, o curso de Teoria de Conhecimento, primeiro ano de Filosofia Pura, ministrado pela jovem professora Marilena Chauí.

E um outro de Teoria Literária.

Envolveu-se profundamente com o de Teoria de Conhecimento.

O trabalho final do curso deveria se basear no livro "As palavras e as coisas", de Michel Foucault.

Cardoso mergulhou neste livro e nos demais indicados pela professora.

A dissertação mereceu nota 9,5, considerada a melhor da sala.

E comentário de Marilena: não costumava dar notas altas, só o fizera porque o trabalho estava impecável:

- Vá ser filósofo na vida, você leva jeito - aconselhou.

Terminou jornalista.

A Filosofia ficou a um canto.

O curso de Teoria Literária fez como ouvinte no Instituto de Letras.

Teve o privilégio, no primeiro semestre, de reaprender a ler literatura com o grande mestre Antônio Cândido...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

26 de setembro de 2021

Jary Cardoso: a morte e a morte de Iara Iavelberg.

 

Quando se encara a morte.

Os homens demoraram mais do que imaginara.

Sabia: iria defrontar-se com eles.

Com a morte.

Sabia: dali não sairia viva.

O coração, acelerado.

Mas, inevitabilidade, e alguma serenidade.

Vem, a serenidade vem quando diante do inelutável.

Ouviu os gritos, novamente.

Agora, só com ela.

Barulho de bombas.

De repente, pelo basculante, uma delas cai dentro do quartinho.

E mais outra.

E mais outra.

E mais outra.

E mais outra.

Fumaça, um fumacê dos diabos.

Sufocamento.

Ainda gritou, não obstante soubesse tentativa vã:

- Eu me entrego!

Ao primeiro impacto da primeira bala ainda mergulhou em lembranças Lamarca o amor Ribeira os encontros tanto amor a sonhada guerrilha o mundo em vermelho aurora apalpou o corpo... e a rajada persistiu, a vida se esvaindo...

Melhor morta, assim raciocinava o coronel Luiz Arthur de Carvalho, comandante da operação.

Matar - rotina da ditadura.

Depois de Iara, Nilda, depois a mãe Esmeraldina.

Em seguida no Buriti Cristalino Otoniel e Santa Bárbara, Olderico sobreviveu a tiros na cara e nas mãos.

Pouco mais tarde, o sangue de Lamarca e Zequinha tingiu o sertão de Brotas de Macaúbas onde mataram Corisco e feriram Dadá.

Lamarca e Iara, contam os mais velhos lá daqueles sertões e os mais novos que ouviram histórias, os sertões têm histórias inacreditáveis, é, contam: às vezes os dois são vistos de mãos dadas, catando flores na caatinga, ouvindo encantados o canto de um bacurau-da-telha, de um alegrinho, um tucão, um beija-flor-de-gravata-vermelha, um batuqueiro, um pitiguari..., e juram: viram-na sorrindo, feliz, diante do amor da vida dela, sempre um tanto austero, mas inebriado por aquele amor...

Sei: os incréus desdenham, mas e vocês

homens e mulheres de bom coração?

Curioso estar escrevendo em setembro, cinquenta anos passados sobre a morte do Capitão Carlos Lamarca.

Da morte de Iara.

Curioso tenha Jary Cardoso lido ontem o capítulo "A morte e a morte de Iara Iavelberg" na décima sétima edição de "Lamarca, o Capitão da Guerrilha".

E se emocionado, ela uma de suas paixões, paixão guardada no infinito território do silêncio,  uma de suas maravilhosas utopias.

Emoção só possível de ser contada por ele próprio.

O acaso sempre nos surpreende.

Dizem até, e volta e meia retorno a essa discussão, inconclusiva para mim,  dizem: o acaso não existe.

A pessoa, seus desejos, suas necessidades levariam-na ao chamado acaso.

Sei não.

Mistérios.

Verdade: da ditadura temos nojo.

Assim lembramos dela.

Deles dois, de Lamarca e Iara, lembramos com imensa ternura, reconhecimento por terem dado suas vidas em nome das melhores causas da humanidade. 

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

27 de setembro de 2021

Jary Cardoso: Antonio Candido, um mestre pra chamar de seu

 

Reaprendeu literatura com o mestre Antonio Candido.

Dele, guardo terna lembrança.

Peço licença para duas, três palavras.

Fui à casa dele, em São Paulo, ousado, pedir-lhe prefaciasse o livro sobre Carlos Marighella.

Creio 1997.

Elegância sutil.

A voz, baixa e serena.

Educado ao extremo.

Deixando-me à vontade.

Aceitando a incumbência.

Eu, quase sem acreditar, tal a honraria.

Podem ter certeza: o prefácio é uma preciosidade.

Engrandeceu o livro.

Lição de história.

De como os homens e mulheres devem ser olhados ao longo do tempo.

De como a esquerda contribuiu para melhorar o mundo.

Viveu quase 100 anos, e durante a existência iluminou o mundo, com a obra dele, com claras opções políticas, sereno e firme  defensor do socialismo.

Foi com ele o primeiro semestre do Curso de Teoria Literária, o reaprendizado de Jary Cardoso sobre literatura.

Você sabe o que é ler palavra por palavra poemas de Manuel Bandeira da antologia "Estrela da vida inteira"?

Ou contos de Machado de Assis, como "O Espelho"?

Ouvir extasiado o mestre revelando sentidos ocultos, confrontando frases e conceitos formulados pelos autores, e sempre trabalhando contextualizações?

Mais do que aulas.

Shows de inteligência, sabedoria, refinamento intelectual, nenhuma afetação.

Quem sabe não faz alarde.

Transmite, dialoga, aprende junto com os alunos.

No segundo semestre, Antonio Candido foi sucedido por um discípulo dele, João Alexandre Barbosa, de vasto legado deixado à literatura brasileira.

Um curso pra jamais esquecer.

Diria: o jornalista ia sendo preparado, soubesse Cardoso ou não.

Mais tarde, recolheria os frutos...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Ponciano de Carvalho Jr.: Participei em Berlim de um Mesa em homenagem ao seu jubileu. Dois ex alunos dele, Lígia Chiappini e Flavio Wolf de Aguiar. Eles o amavam, falavam do seu mestre como se falassem de um pai próximo precioso. Quanta sofisticação, simplicidade e humanidade Na verdade a sofisticação é isso. Um abraço Emiliano. 

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(Jary - década de 70)

Emiliano José

28 de setembro de 2021

Jary Cardoso: presença judia

 

Leu o capítulo "A morte e a morte de Iara Iavelberg".

Muitas, as sensações.

Impressionou-o a luta da família para tirá-la da ala dos suicidas.

Família judia, não se conformava com isso.

Os judeus consideram o suicídio indigno - os suicidas são enterrados de costas para os demais defuntos, com os pés voltados para o muro, de modo a não ter condições de ver os outros mortos.

Os familiares fizeram essa luta não propriamente por razões religiosas, mas porque tinham convicção de que ela não havia se matado.

Iara após a exumação, confirmado o fuzilamento pela ditadura, foi retirada da ala dos suicidas no dia 11 de junho de 2006.

A leitura evocou em Cardoso a rememoração sobre o quanto judias e judeus foram onipresentes na vida dele.

Principalmente durante a militância comunista e nas transições da direita para a esquerda.

E da esquerda para a contracultura.

Volta, volta, chega a um colega do Fernão Dias.

No colégio, Sérgio Sister lhe dá de presente o "Manual do Kibutz".

Sister o impressionou logo de cara: fala mansa, calorosa, tão afetuoso.

E pela crítica aguçada sobre a vida e a política.

O livrinho sobre a experiência do Kibutz o marcou.

A prática da fraternidade, auxílio mútuo, a igualdade e a generosidade entre as pessoas, a construção da vida em conjunto mediante diálogos constantes nas reuniões, a busca do entendimento de maneira democrática, o colocar-se no lugar do outro para todos se darem bem.

Um belo ideal - pena hoje tão distante, tão esquecido pela natureza do Estado israelense, a massacrar impiedosamente os palestinos: e aí é comentário meu.

É, Erich Fromm, autor tão importante na vida dele, foi descobrir agora: judeu.

E os mestres eleitos por ele, Marx e Freud, também judeus.

Cercado por judeus e judias.

Ora, e não custa lembrar de Marie Christine Laznik, a primeira judia a encantá-lo, a apresentar-lhe marxismo, existencialismo, psicanálise e artes modernas.

Forte, a influência de judias e judeus, Iara Iavelberg entre elas.

Não esquecer de Marcos Faerman, companheiro de Polop e de jornalismo, sobre quem ainda falaremos.

De vários outros, já lembrados, como Boris Schnaiderman, a filha Míriam...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Bondinho - entrevista com Jorge Mautner, o "Filho do Holocausto", em janeiro de 1972)

Emiliano José

29 de setembro de 2021

Jary Cardoso: um judeu comunista

 

Sei: os leitores cobram, às vezes, narrativa linear, mas não tem jeito.

O mando de campo é do protagonista.

Adianto-me e depois volto.

Tenham paciência.

Ando devagar porque já tive pressa.

Nosso protagonista ainda nem contou direito sua presença na Universidade, fugaz tenha sido, não obstante intensa, e já se adianta falando de pessoas tão decisivas nas suas etapas posteriores da vida.

Como Marcos Faerman - seu companheiro de Polop, dirigente da Organização, e depois célebre jornalista, repórter especial do "Jornal da Tarde", editor de "Versus", professor de Jornalismo na Faculdade Casper Líbero, em São Paulo.

Foi Marcão, outro judeu na vida de Jary Cardoso, a conduzi-lo ao jornalismo, na fase pós-militância comunista.

Apresentou-o a Tarso de Castro, e convidou-o a trabalhar com ele e com o futuro escritor Fernando Morais na revista "Bondinho".

Vou me antecipando e revelando o maior feito de Cardoso na profissão: a entrevista com o "Filho do Holocausto", em janeiro de 1972 para a própria "Bondinho".

Filho do Holocausto é o escritor, compositor e cantor Jorge Mautner, fundador do Partido do Kaos.

Ao entrevistá-lo, surpreendeu-se com a multiplicidade de seres ocultos em Mautner.

O cantor de rock e de samba, além de tudo, conhecia de cor e salteado toda a literatura comunista estudada por ele nos tempos de Polop.

Quer dizer: sabia de Marx, de Lênin, de Trotsky, da porra toda.

Dominava Nietzsche e Heidegger.

Esbanjava noções de física quântica e de teoria da relatividade.

Seria uma humilhação, não tivesse autoestima em perfeito estado. 

E lá vem judeu: Mário Schenberg, apresentado pelo filho do Holocausto.

Schenberg era conhecido, destacado militante do PCB.

E físico de renome mundial, considerado o maior físico teórico do Brasil, pernambucano da gota serena, perseguido sempre por sua condição de comunista.

Era também crítico de arte.

Cardoso entrevistou-o para a revista "Planeta", cujo editor era Edenilton Lampião, considerado um dos maiores filósofos da contracultura no Brasil.  Com Schenberg, fez ainda outra entrevista, para o "Folhetim", da Folha de S. Paulo, dirigido por Tarso de Castro.

Fonte preciosa, Cardoso sabia disso, procurou extrair dele confluências entre a física quântica e o pensamento oriental - ao menos para a "Planeta".

Sabendo-o comunista...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

30 de setembro de 2021

Jary Cardoso: Cabo Anselmo, agente infiltrado.

 

Sabia: Mário Schenberg era comunista de carteirinha.

Revelou então ser filho do dirigente comunista Antônio Campos, contemporâneo dos baianos Carlos Marighella e Mário Alves.

Lembrou, falou do pai.

Soube: Schenberg, um pouco antes de falecer solicitara conversa com ele.

Pediu a um amigo para encontrá-lo, dar esse recado.

Não estava em casa quando procurado.

O cientista morreu logo depois.

Nunca soube as razões da pretendida conversa.

Jorge Mautner era muito próximo de Schenberg.

Cardoso ouviu histórias curiosas sobre o velho Partidão, fruto da relação dos dois.

O cientista, antes de 1964, teria convidado Mautner e o artista plástico José Roberto Aguilar, companheiro dele no Partido do Kaos, a integrarem o Comitê Central do PCB, na intenção de levar novos ares ao vetusto Partidão, constituir uma célula cultural.

Os dois teriam aceitado.

Mautner tornou-se íntimo do partido devido à relação com Schenberg.

Chega ao apartamento do cientista em São Paulo nas proximidades do Golpe de 1964, mesmo momento da rebelião dos marinheiros.

E testemunha telefonema dele para Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil de Jango:

- São ordens de Moscou. Vocês têm que prender os cabos e sargentos revoltosos, incluindo o cabo Anselmo. Mas, mais importante: libertem os oficiais pedindo perdão de joelhos.

Jary Cardoso contextualiza:

- Essa história, que ouvi de Jorge Mautner quando no final da década de 1970 atuei por algum tempo como assessor dele, me fez lembrar que ao entrar na Polop encontrei os dirigentes fazendo autocrítica em relação a esse movimento, conduzido por militantes e simpatizantes do grupo, um deles o próprio cabo Anselmo. Anos depois, o cabo Anselmo se revelaria agente da repressão infiltrado na esquerda revolucionária.

Cabo Anselmo é um dos mais trágicos casos de agente infiltrado na esquerda, capaz de orientar a repressão ao cerco do aparelho onde estava sua companheira, a militante paraguaia Soledad Barret Viedma, grávida de um filho dele, morta naquela ofensiva ao lado de mais cinco companheiros, em 1973,  Pernambuco, na chamada Chacina da Chácara São Bento.

Anselmo atuava desde o Golpe de 1964 para destruir a esquerda, sem que fosse dada qualquer atenção aos serviços de inteligência do próprio governo Jango, cujas investigações já o apontavam como agente infiltrado...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

Carlos Pereira Neto Siuffo: Hoje sabe-se também do caso de Severino Teodóro de Mello, militante desde de 1934, e responsável principal pelas quedas e assassinatos dos membros do CC do PCB. 

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Emiliano José

1º de outubro de 2021

Jary Cardoso: voltando a Iara Iavelberg

 

Quis ir longe nessa história dos judeus.

Atrás de sua própria história, quem sabe.

O historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, de quem Jary Cardoso tornou-se amigo a partir do momento em que ocupou a Editoria Internacional de "A Tarde", e continuou amigo até a morte dele, num dos muitos telefonemas da Alemanha, observou: o sobrenome Cardoso indica descendência judia.

Era um dos nomes mais utilizados por judeus em Portugal, modo a escapar da Inquisição - os chamados cristãos novos.

Concluiu:

- Então sou descendente de judeus por parte de mãe, Luiza Cardoso, bisneta de imigrante português que constituiu no Brasil a família Cardoso de Almeida.

Mais além:

- E também por parte de pai, Antônio Campos, nascido no sul de Minas Gerais e que, apesar da aparência de um típico mestiço brasileiro com pele um pouco escura - indicando a mistura de europeu, negro e índio -, era filho de um judeu baiano, Moisés Campos.

Voltando aos bancos escolares, ao curso de Teoria do Conhecimento com Marilena Chauí, e ao conselho dela fosse Cardoso ser filósofo na vida, recolho reflexão dele sobre o assunto.

Confessa ter passado a vida adulta considerando fosse o magistério como filósofo o mais adequado para o jeito de ser dele - como repórter, sempre seguiu uma linha filosófica na abordagem das questões em pauta.

Mas, no meio do caminho tinha uma pedra: olhou, olhou, e constatou: os bons alunos de Filosofia eram os empenhados em gastar seis a oito horas diárias de estudo, debruçados sobre livros, procedimento só possível a filhos de famílias ricas ou a gênios capazes de apreender tudo rapidamente.

Então, jornalismo. 

Antes de chegar à longa trajetória jornalística de Cardoso, é o caso de voltarmos à militância política dele, de 1965 ao final de 1968.

Já revelamos alguns momentos, mas não custa rememorar para não confundir o leitor ou obrigá-lo a voltar a capítulos anteriores.

Na primeira fase, e disso já falamos, Iara Iavelberg teve presença marcante na vida política dele.

No início de setembro de 2021, respondeu a algumas perguntas da historiadora Juliana Marques, empenhada na história da companheira de Lamarca. 

Inevitável voltar à trajetória de Iara, até porque a iniciação dele na Polop tem a ver, também, com ela.

Lembra: ela não ocupou cargos de direção na Organização.

Razões?

Primeira: o machismo - organizações revolucionárias não estavam livres dessa marca.

Segunda: ela não se destacava, na Polop, como intelectual teórica, como dirigente apta à análise da conjuntura nacional e internacional, capaz de desenvolver os conceitos do materialismo histórico e dialético. 

Ela se destacava, isso sim, como uma militante carismática, cuja qualidade principal era se comunicar bem com a massa...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

2 de outubro de 2021

Jary Cardoso: as qualidades de Iara

 

Iara Iavelberg era mestra na comunicação com as massas.

Carisma.

Capacidade de seduzir as pessoas.

Encantá-las.

E sabia unir teoria e prática.

Era firme na condução das lutas da faculdade.

E pragmática.

Sonhar, mas com os pés no chão.

Cardoso recorda das reuniões da célula da Psicologia: apresentava as ideias, discutia não apenas a estratégia, a visão geral, mas a tática da luta concreta, do dia a dia, as reivindicações pontuais.

Avaliava as disputas com os adversários.

Os da Ação Popular, por exemplo.

Adversária do Partidão, AP, muitas vezes organização aliada, mas em outras momentos, adversária.

As alianças, no movimento estudantil, deslocavam-se com facilidade.

Ora a Polop estava com AP, onde as grandes lideranças eram Luís Travassos e Catarina Meloni, isso pra falar de São Paulo, e me reporto a eles por convivência de militância de AP em 1968.

Ora, com a Dissidência do PCB, onde despontou cedo um Zé Dirceu.

Entre as organizações defensoras da luta armada contra a ditadura, ou à esquerda do Partidão, existia um ponto de unidade: ser contra o PCB - o comentário é meu.

A Polop, uma das poucas organizações revolucionárias cujo nascimento não dependeu de dissidência com o PCB como a maioria, era avessa a qualquer aliança com o PCB. AP também não nasceu daquele tronco.

Volto: nas reuniões da célula, Iara relatava os contatos com as demais organizações, os conchavos, revelava os bastidores, conhecidos por ela como ninguém.

Dava opinião sobre as palavras de ordem e as bandeiras a serem defendidas nas campanhas eleitorais pro centro acadêmico, pro grêmio da Filosofia, para a União Estadual dos Estudantes.

Quando se tratava do debate sobre algum documento teórico da direção da Polop, recolhia-se: tornava-se uma ouvinte atenta, disciplinada.

Talvez por tais características não tenha ocupado qualquer cargo de direção na Polop.

Cardoso ascendeu rapidamente na Polop como decorrência do interesse  e dedicação na leitura da extensa bibliografia apresentada pelos dirigentes e, também, dos documentos destinados, os livros e documentos, à "formação de quadros"...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: Ler textos de Emiliano José é ter aulas de jornalismo fora dos muros da escola

Mônica Bichara: Verdade, cada capítulo é uma aula. Essa série, além de reavivar a memória sobre nossas trajetórias e de colegas que vieram antes, mostra a importância de veículos de imprensa comprometidos com o social, abertos a acolher até ex-presos políticos...e isso não era pouca coisa não 

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Emiliano José

3 de outubro de 2021

Jary Cardoso: militante estudioso

 

Bom aluno.

Disciplinado.

Disposto a ser bom militante.

Cardoso ainda lembra: enchia o saco do Emir Sader, professor de Filosofia.

Queria por queria entender a dialética materialista.

Emir Sader está vivo e atuante, militante, continua intelectual respeitado, pode testemunhar.

Ia atrás de Hegel.

Corria atrás de Heráclito.

Já se disse: percorreu aulas de Filosofia dos melhores mestres: Giannotti, Ruy Fausto, Bento Prado Júnior.

Giannotti e Bento Prado foram aposentados compulsoriamente pela ditadura em 1969.

Queria também, Cardoso queria entender direitinho a Revolução Russa.

Leu muito Lênin, mas também Isaac Deutscher, e aí entendia também Trotsky.

Mergulhava na história do Brasil: Caio Prado, Celso Furtado, e inúmeros outros autores.

Estivesse fazendo Doutorado, e não leria tanto.

Intensivão da militância, sob a inspiração da Polop.

De passagem, Cardoso lembra: Carlos Alberto Sardenberg foi professor dele no Cursinho do Grêmio, ao lado de Iara Iavelberg.

Militava na Polop - não, não é equívoco, era militante da Polop.

Jovem, culto, grande capacidade didática, showman - será depois esse sofrível comentarista da Rede Globo: coisas da vida.

Voltando: participa intensamente das discussões internas sobre as teses apresentadas para o Congresso da Polop, de 1967.

Se não me engano, me contou ter se recolhido durante uma semana na litoral paulista de modo a se preparar para o encontro.

Levou uma renca de livros, mal olhou pra praia.

Escreveu longos textos defendendo a posição original da Organização, terçando lanças contra os defensores de uma aliança nacionalista - revolução, só a socialista.

A Polop, desde o nascedouro, era dirigida por intelectuais respeitados, e Cardoso, aplicado.

Esse esforço, esse aprimoramento intelectual, o levou cedo à direção.

Falar em público, ah, um terror...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

 

COMENTÁRIO 

Mônica Bichara: "De passagem, Cardoso lembra: Carlos Alberto Sardenberg foi professor dele no Cursinho do Grêmio, ao lado de Iara Iavelberg. Militava na Polop - não, não é equívoco, era militante da Polop". Vá entender.....tô dizendo que isso aqui é uma aula

Zeca Peixoto: Conheço vários que hoje são direitistas de carteirinha.

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Emiliano José

4 de outubro de 2021

Jary Cardoso: lado a lado com Iara

 

Pensa em Iara.

Como falava bem.

Como encantava.

Ele não.

Cardoso, quando havia a exigência de falar em público, era um deus-nos-acuda.

Dava branco.

Agora, redigir, com ele mesmo.

Era sua vingança: tudo muito certo, não falava, não sabia falar em público, ao menos na primeira fase da militância, mas em compensação era muito bom na elaboração de textos voltados à luta interna, à discussão sobre os rumos da Revolução Brasileira.

De uma forma ou de outra, entre ele e Iara às vezes acontecia alguma divisão de tarefas.

Ela distribuía entre militantes e simpatizantes o "Informe Nacional", preparado pela direção executiva da Polop contendo análises da situação internacional e nacional, além de relatos e posições face a lutas localizadas.

Cardoso, um dos redatores do tal informe.

Juntos, buscavam recrutar novos militantes e fontes de recursos financeiros.

Juntos, participavam de assembleias e tantas outras reuniões estudantis.

Programavam e executavam pichações pela cidade durante as madrugadas, com palavras de ordem contra a ditadura e pela união da classe trabalhadora.

Iam para portas de fábrica, faziam comícios relâmpagos e distribuíam panfletos.

Participavam de passeatas e manifestações variadas, sempre precedidas de discussões sobre os esquemas de segurança e álibis para a possibilidade de prisão.

Todas essas tarefas exigiam muita discussão e planejamento, e ocupavam grande parte das reuniões semanais das células.

Essa militância comum com Iara, no entanto, não foi superior a um ano, talvez menos.

Deu-se de dezembro de 1965 a logo depois de meados de 1966, nas contas de Cardoso.

Foi destacado para compor diretoria da UNE, e ganhou estrada.

Correu o País - de ônibus.

De Porto Alegre a Natal, incursões por Belo Horizonte e Goiânia, além de cidades de porte médio.

Rico momento de militância, e além de tudo, conhecendo o Brasil...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Livro História da UNE, incluindo página onde Jary é citado e o texto de conclusão do 29º Congresso da UNE, que foi escrito por ele durante as madrugadas)

Emiliano José

5 de outubro de 2021

Jary Cardoso: mentalidade colonizada

 

Em 1967, passa a morar no Rio de Janeiro.

Dividia aparelho com Pery Falcón e Marcos Wilson Spyer Rezende, ambos da Polop e da diretoria da UNE como ele.

Falcón, da Direção Nacional da Organização, como Cardoso.

O Rio de Janeiro continuava lindo, e era a sede política da UNE: ali os diretores se reuniam antes e na volta das viagens pelo País.

Falcón, baiano.

Esteve preso comigo na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, início dos anos 1970.

Somos amigos até hoje.

Quadro político consistente, respeitado, dado ao estudo.

Spyer, mineiro.

Muito amigo de Nilmário Miranda, também militante da Polop.

Santa Clara clareou, parece lembrar a batalha de Santa Clara comandada por Che, em dezembro de 1958: a rua onde moravam em Copacabana chamava-se Santa Clara.

Pequena casa, numa vila.

Dormiam em beliches.

Tudo bem - naquele tempo, ninguém buscava conforto.

Vida revolucionária.

Vai e volta, e Marie Christine Laznik assalta a memória dele.

Chris, presença inesquecível.

Andavam muito de ônibus na fase inicial da Polop.

Ao lado, quase sempre, uma amiga muito próxima dela, Bia Forjaz.

A amiga, ouvindo as conversas dos dois, deixava escapar comentários que mal disfarçavam a ironia - dizia a respeito de Chris: mais parece uma tutora, cuidando de ensinar o beabá de uma consciência revolucionária.

Tinha alguma razão.

E a Bia não era brinquedo não.

Num desses encontros, Cardoso manifestou o entusiasmo dele pelos Beatles.

A propósito de uma das músicas deles, Cardoso disse ser composição de John Lennon e Paul McCartney, e pronunciou o nome da dupla em inglês escorreito, sem sotaque - fora aluno aplicado da União Cultural Brasil-Estados Unidos (UCBEU).

Ah, pra que foi se meter a besta.

É, porque ela não se conformou com aquele comportamento colonizado, inteiramente submisso à ideologia do imperialismo norte-americano

Deu um esbrega nele - ela era daquelas avessas até a beber coca-cola

Ele, que fazer?

Cristão novo, enfiou a viola no saco, assustado com tanto sectarismo, tão comum na esquerda, ao menos numa boa parte dela, à época. 

Manhã cedo,  reunião da Direção Nacional da Polop, e ele teve um bate-boca com Marcos Faerman...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

6 de outubro de 2021

Jary Cardoso: cachimbo caindo, Caetano e Gil, presos.

 

Foram intensos três anos.

Pra jamais esquecer.

No nevoeiro da memória, a última atividade na Polop.

Reunião da Direção Nacional.

Estava tenso.

Era final do ano de 1968.

AI-5 havia caído sobre a Nação em 13 de dezembro.

Tudo parecia desabar.

Ambiente pesado, sombrio.

Marcos Faerman cochilava, e o cachimbo volta e meia caía.

Cardoso não gostou do procedimento.

Cobrou seriedade revolucionária de Marcão.

Que porra aquela de cochilar no meio de uma reunião?

Talvez tenha feito tal cobrança mais pelo espírito transtornado dele naquele momento do que por qualquer leninismo.

Lembra, lembra bem, dos momentos anteriores.

Ele e Pery Falcón caminhavam pela Rua das Palmeiras em direção à Alameda Nothman, ali por perto da Avenida São João, onde seria realizada a reunião.

Ele por uma calçada.

Falcón, por outra.

Norma de segurança - nada de caminhar juntos.

Logo à frente, Cardoso nota uma perua da repressão parada em frente à sede dos estúdios da TV Globo.

Olhou atentamente, e percebeu, sem padecer de dúvida: dentro da perua, o Tropicalismo, preso.

Caetano e Gil, com seus inconfundíveis cabelões, presos pela ditadura - dali serão levados para o Rio de Janeiro.

Ele os viu: sentados no banco de trás da  C-14.

Ao tentar explicar a razão da perua parada em frente à TV Globo, desconfia fosse a ditadura tentando descobrir paradeiro de Geraldo Vandré.

Era manhã do dia 27 de dezembro de 1968.

Chegou transtornado à reunião da Direção Nacional.

Por isso, o incômodo com o cachimbo caindo;

A todo momento, o cochilo do Marcão.

E o cachimbo, caindo.

Teve bate-boca entre os dois.

Bate-boca do cachimbo.

Cardoso, uma pilha.

À beira de um ataque de nervos.

Sem pensar muito, levantou-se, foi à estante de discos, escolheu um LP dos Beatles, e botou-o pra tocar a todo volume...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: a vida como ela é

Aécio Pamponet Sampaio: Fim de ano tenebroso !…😉😉😉

Lucilia Duarte: Nem fale! O ano que não acabou…! 

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Emiliano José

7 de outubro de 2021

Jary Cardoso: um transe, cerimônia do adeus.

 

Um transe.

Ou uma cerimônia do adeus.

Quem sabe.

Olhou pra estante, viu aquela fileira de discos.

Levantou-se, com os dedos procurou um Beatles.

Havia.

Manuseou a agulha, suavemente desceu com ela, o som a todo volume e...

A música inebriante o envolveu.

Por inteiro.

Os dirigentes da Polop, ainda sem entender nada.

Que deu nele?

Primeiro o cachimbo, a explosão com Marcão.

E agora, aquilo.

Esperassem...

Cardoso, ao ouvir os Beatles, entrou em transe.

Não via seus companheiros.

A nenhum deles.

E...

Passou a dançar freneticamente.

Sabia-se bom dançarino, aquele frenesi tinha ciência, conhecimento.

O corpo respondia a vozes de passado recente, a movimentos aprendidos havia pouco tempo. 

Havia conhecido era coisa com uma vizinha mais velha fluente em inglês, mais a dança, ou as danças.

Dançou Chubby Checker e seu Let's Twist Again.

Dançou Elvis e seu rock selvagem.

Tornou-se um excelente dançarino - mais de rock, sua paixão.

Seguia sem perceber os companheiros - todos revoltados diante daquele espetáculo, para eles fora da ordem.

Como faz aquilo numa solene reunião da Direção Nacional da Polop?

O que é isso, companheiro?

Atônitos e revoltados.

Ele, nem aí - dançava dançava dançava.

Não os via.

Transe é transe.

Fazia um mix endiabrado, misturava todas as danças conhecidas.

O corpo, seu próprio laboratório.

Dele, saíam movimentos frenéticos, surgidos ali, sem sentir, e sentindo.

E suando naquela manhã paulistana quando Gil e Caetano sumiram num rabo de foguete.

No ano seguinte, viu todos aqueles movimentos, aquelas danças ensandecidas, nas imagens de Woodstock, mais tarde no cinema.

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

8 de outubro de 2021

Jary Cardoso: o desbunde e o mestre

 

Não, não pense de simplificar.

Caso não é pra isso.

Aquele momento não era de simplificação.

Rompimento.

Virada na vida.

A marcar a existência toda.

Ainda veria alguns dos companheiros da Direção Nacional da Polop.

Zé Paulo, engenheiro do metrô, procurou-o.

Nome dele, não o de guerra: Ceici Kameyama.

Queria razões.

Vinha de paz.

Cardoso explicou.

De boa.

Na santa paz.

Foi conversa amena.

Um Ceici sorridente, acolhedor, amigo, jeito japonês de ser.

Pensa em Eder Simão Sader.

Sociólogo, dos maiores intelectuais da Polop.

Pensou em Caetano falando sobre Roberto Carlos, a gente sabe a quem chama de Rei, e parafraseou: a gente sabe a quem chama de mestre.

Eder Sader, mestre principal.

Régua e compasso.

Após aquela manhã de rockenroll, ainda o encontrou.

Recebeu-o sem maus modos, ao contrário.

Como se o abraçasse, como um amigo.

Não foi a reação do irmão.

Contou, Eder Sader contou a reação irada de Emir Sader.

Dava aula na Université Paris Nanterre, ao saber do desbunde de Cardoso:

"Filho da puta".

Assim disse, numa carta, sintético.

Doeu um pouco - Emir Sader o admitira como militante da Polop, subscrevera a chegada dele.

Desbunde, desbundado.

Termos utilizados para pessoas decididas a se afastarem da luta revolucionária, não mais dispostas à luta frontal contra a ditadura.

Termos desqualificadores, próprios da época, marcada pela violência da ditadura, e também pelo sectarismo de uma parcela ponderável da esquerda, às vezes incapaz de assimilar a complexidade dos seres humanos, seus medos, demônios, escolhas.

Leitura insuficiente de Freud, e mesmo de Marx.

Ou de Sartre.

Erich Fromm.

Tanta gente.

Cardoso carregava a marca do desbunde.

Voltou a pensar em Eder Sader com carinho.

Um curso feito durante a militância.

Fora do campus, Paul Singer, o professor: economia política, história econômica do Brasil.

Pouco mais de um mês.

Ao final de cada aula, sempre conversava com ele.

Um dia, a pergunta:

- Você é irmão de Eder Sader? Ou tem algum parentesco com ele?

- Não - respondeu...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

9 de outubro de 2021

Jary Cardoso: empatia com o mestre

 

Não.

Não tinha qualquer parentesco com Eder Sader.

O professor dissera:

- Você se parece muito com ele.

Revelou no entanto a Paul Singer: era muito próximo de Sader.

Nas reuniões da Polop, ele o ouvia com redobrada atenção.

Cada palavra, um sentido.

Sabia manusear os conceitos.

E o fazia sem pretensão, sem arrotar superioridade.

E de modo pudessem todos entender.

Mestre - não se cansa de dizer: ontem e hoje.

Naquele dia, diante da pergunta do professor Paul Singer, da afirmação da parecença, deu de refletir, e de concluir: a semelhança só podia ser resultado da total empatia com o mestre.

É, empatia: impregnado dele.

Desenvolveu gestos e expressões com o mesmo jeito de corpo.

Parecia incrível a identificação - era real, no entanto.

Costas um pouco arqueadas, fazia acompanhar os argumentos com uma jogada de mãos, juntando os dedos, e olhando de baixo pra cima, arregalando os olhos -  Cardoso, assim, nas reuniões, nas conversas, tal e qual Eder Sader, igualzinho, igualzinho.

Paul Singer, nas aulas, certamente, conhecendo bem Eder Sader, adivinhou parentesco ao perceber movimentos, trejeitos tão assemelhados.

Não tinha parentesco, e tinha, não de sangue - apenas, e era muito, identificação.

Carisma é carisma.

Eder Sader tinha de sobra.

Ainda das lembranças dos tempos da Polop, dos tempos do pré-transe, ele mexe no baú, como um contraponto, e surge outro importante personagem: Erich Sachs.

E fala-se contraponto porque, não obstante figura de proa da Polop, das maiores, não tinha qualquer carisma, não fazia qualquer esforço para ser didático, e na real, falava pouco, economizava palavras.

O militante abaixo dos capas pretas sempre observava-os com olhar percrustador, quase invasivo, no silencioso.

Desse olhar, podia resultar admiração ou crítica, sempre no silencioso - capa preta era capa preta, e sempre havia uma espécie de respeito reverencial.

Gozado, do que ouvi, do que li, e Cardoso nesse caso leu mais, o Velho era quase venerado pela maioria da Polop.

Escrevia muito, Eric Sachs - assinava Ernesto Martins.

Cardoso conheceu a Polop por dentro, e sua visão é mais ácida, ou mais  verdadeira, sei  lá.

Ouvia os comentários sobre o Velho - maliciosos: fora das reuniões fazia-se acompanhar sempre de um copo de uísque.

Não sei, sou eu me intrometendo: não havia aí algum preconceito, má vontade com o Velho?

E era uísque do bom, importado, diziam - numa Polop carente de recursos.

Clandestinidade gera incompreensões, exigências descabidas.

A Polop se virava nos trinta para angariar recursos.

Vendia até livros malditos, aqueles duramente criticados pela direção...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

10 de outubro de 2021

Jary Cardoso: avesso ao debraysmo

 

Vendia.

A Polop vendia livros, amaldiçoados fossem pela direção.

Como "Revolução na Revolução", de Régis Debray, de cujo já falei, se memória não me trair, e não é incomum fazê-lo.

"Revolução na Revolução", desculpem, foi uma revolução: mexeu com corações e mentes dos revolucionários mundo afora, especialmente dos caminhantes da América Latina.

Como se sabe, o livrinho era defensor extremado do foquismo, doença a tomar conta de boa parte da esquerda brasileira e latino-americana.

E digo livrinho, não por desqualificação, mas pelas poucas páginas.

Muitos exemplares haviam sido impressos, no tempo de militância de Cardoso, na gráfica do Cursinho do Grêmio da Filosofia da USP controlado por gente da própria Polop.

Samuel Iavelberg, irmão de Iara Iavelberg, era um dos diretores.

Então, a Polop o vendia, e encontrava mercado - muita gente queria ler Debray.

Desse mal, da doença do foquismo, Cardoso não padeceu.

Construíra consciência teórica sólida durante a convivência na Polop capaz de resistir ao canto da sereia das serras e matas e àquele punhado de homens e mulheres corajosos desvinculados da classe operária com a doce ilusão de conquistar as massas para a Revolução com o abnegado exemplo deles.

Cardoso seguia o pensamento dos dirigentes antigos, como Eder Sader.

Revolução era algo muito mais complicado - se a coragem era essencial, não era o único elemento, nem o principal.

O principal, nas circunstâncias de então, e de acordo com a formulação desenvolvida até ali, era garantir a condução pela classe operária, e envolver outras classes, à exceção da burguesia, para então chegar à insurreição armada.

Mas, a doença chegou também à Polop e houve dissidências a se bandearem para o foquismo, e não se pode esquecer, nessa movimentação, a doce figura de Iara Iavelberg.

Cardoso, nos três anos passados na militância revolucionária, jamais vacilou quanto a isso - o debraysmo não o tocou...

Da música, nunca se apartou.

Essa sempre o tocou.

Andava lado a lado com a Revolução.

Amante inseparável...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: Na Campesina tem, de Debray, A guerrilha do Che [edições populares]

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Emiliano José

11 de outubro de 2021

Jary Cardoso: música e Revolução.

 

Música.

Amada amante.

Dela, Cardoso se nutria quando imerso na Revolução.

Talvez por ela, se animasse mais ainda a prosseguir na senda revolucionária.

Até o Dia do Transe.

Daí, largaria a outra amante, passageira Revolução, ao menos aquela, e seguiria, cada vez mais apaixonado com a mais amada amante, cujo embalo e som sempre o levaram vida afora.

Os Beatles, presença constante, deles não se separava.

Especialmente "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band".

E muita "Louvação", álbum de estreia de Gilberto Gil.

Um banho de Vandré: até hoje sabe de cor as músicas dele, e até hoje o emocionam.

Como não se emocionar com "Disparada"?

Como não lacrimejar com "Pra não dizer que não falei das flores"?

Mistura tudo, Iarinha e as músicas, Iara Iavelberg e os festivais da Record, os dois acompanhando com vivo interesse as competições, desfile de talentos, compositores e cantores e cantoras maravilhosos, um luxo assistir Gil, Caetano, Chico, Vandré, Edu Lobo, Nara Leão, privilégio difícil de recuperar em palavras.

Diz: Chico era o líder supremo - será?:

- A Faculdade de Arquitetura, onde Chico fingia estudar, ficava pertinho da Maria Antônia, umas duas quadras subindo a Angélica.

É, não sei se Chico era o líder supremo - talento, talvez - e é duro dizer mesmo isso, há Caetano, há Gil, há Edu Lobo, esse timaço chegara pra fazer uma revolução cultural, e fizeram, e alguns continuam, e todos eternos.

No embate de massas nos festivais, Vandré era maior.

A razão: suas canções eram mais à esquerda.

Caetano, com razão, irá esbravejar contra o esquerdismo nos festivais: vocês não estão entendendo nada.

Estava lá, em São Paulo, acompanhei.

Cada um, no entanto, um olhar.

Tudo junto e misturado: recorda-se de Iarinha ter namorado Antonio Benetazzo, carismática liderança de Arquitetura, preso e assassinado na tortura em 1972.

Uma vez, estivera no apartamento dele, no edifício Copan, concebido por Niemeyer, recém-inaugurado.

Música e revolução sob a ditadura...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Marise Caribé: "Música e revolução sob a ditadura..."️🎶

Adilson Borges: Sei que apressado come cru e que as informações vão pingando. Mas me apresso a dizer que Jari é casado com cantora, a querida Vilma Nascimento, prima de Milton idem.

Alberto Freitas: Colé, camarada revolucionário? Spoiler não vale.

Adilson Borges: Foi mal, mas qué qué isso, camarada? Não chega a ser spoiler hehehe

Emiliano José: tudo vale a pena...

Mônica Bichara: Música e revolução, sempre juntas   

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Emiliano José

12 de outubro de 2021

Jary Cardoso: o mar, Sinatra e Jobim

 

A música o persegue.

Ou o contrário.

Diretor da UNE, viajava feito o cão.

Estava em Natal, cumprindo tarefa estudantil pela entidade.

Num apartamento de um simpatizante da Polop.

As pessoas não têm ideia de como os simpatizantes eram importantes.

Decisivos.

Eram nosso anteparo.

Nossa retaguarda.

Muitas vezes, contato com o mundo dos cidadãos comuns.

É, porque clandestinidade joga você no isolamento, e num perigoso, alienante mundo próprio.

Bom quando você encontra quem esteja levando a vida rotineira, aquela bem comum, de ir à padaria todo dia, ao açougue, armazém, jornada de trabalho de oito horas, essas coisas.

Você se defronta com a realidade, tão necessária para as elaborações teóricas, de modo a fazê-las grudadas à vida real, tarefa nem sempre bem cumprida.

Pois é, ele ficou sozinho um tempo no belo apartamento com vista para o mar, foi pra lá, foi pra cá, olhava aquele mar azul, verde, cores, cores, o barulho suave das ondas inebriando-o, e de repente deu de cara com o LP de Sinatra & Jobim.

Botou o disco.

Do sofá, podia olhar o mar.

As águas do mar agora pareciam se multiplicar em cores.

Deslumbrado, deslumbradíssimo, como ele mesmo enfatiza -  jamais se esquecerá daquele Sinatra, daquele Jobim, daquele mar de Natal...

A UNE pra ele foi uma escola, lado a lado com a Polop.

Já se disse: ele cumpria com rigor as tarefas políticas, pero não topava de jeito nenhum ir ao palco, falar para o público - era de uma timidez visceral.

Falava nas reuniões menores e, já se disse também, escrevia muito - era uma espécie de escriba da UNE, e não raramente elaborava documentos internos na Polop...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Programa UNE - Carta Política do XXIX Congresso Nacional de Estudantes, realizado em julho de 1967 num convento beneditino em Vinhedo, São Paulo.1 a 7)

Emiliano José

13 de outubro de 2021

Jary Cardoso: a UNE somos nós...

 

Vamos cuidar um pouco da UNE?

Do tempo de Cardoso na UNE?

A rigor, ele permaneceu extremamente ativo na entidade durante três gestões.

A de Altino Dantas, gestão já em andamento, ele chegando no início de 1966.

Vamos lembrar, não custa, fosse aquele ano uma espécie de marco na retomada das lutas, retomada cuja participação do movimento estudantil fora essencial.

Retomada de lutas contra a ditadura iniciada com o Golpe de 1964.

Ousados, combativos, os estudantes saíram na frente.

Tanto universitários quanto secundaristas.

Viria 1967, mais quente, e a explosão de 1968.

Altino Dantas sucedera José Serra, levado a se exilar devido à quartelada.

Em seguida, Cardoso atua durante toda a gestão de José Luís Guedes, 1966/1967.

Viria Luís Travassos, com quem convivi no movimento estudantil de São Paulo, eleito ali pelos meados de 1967.

Tornou-se celebridade nacional.

Os mais velhos se lembrarão de capa da revista "Realidade": casaco ao ombro segurado pela mão direita, perna direita dobrada, pé direito plantado no muro onde ele está encostado, braço esquerdo ocupado por um jornal, sapato preto, calça marrom claro ou cor de burro quando foge, o olhar firme, ousado, esperançoso, jovem, aparentando até menos de 23 anos, nascido em fevereiro de 1945. E a manchete:

"Este moço comanda a agitação".

Eram esses os nossos líderes naqueles tempos, todos muito jovens: Travassos, Zé Dirceu, Vladimir Palmeira, as principais lideranças de massas do País em 1968 - nomes de repercussão nacional.

Em janeiro de 1968, Cardoso é obrigado a se afastar por razões de saúde - assim, na gestão de Travassos atuou por seis meses.

Já se disse, mas o leitor não é obrigado a voltar aos capítulos anteriores: nas reuniões da diretoria da UNE eram definidas as ações seguintes da entidade, distribuídas tarefas e viagens entre os diretores.

Nos estados, Cardoso se recorda, havia reuniões com as principais lideranças estudantis, em geral dirigentes das organizações de esquerda.

Também tinha contato com a massa estudantil, participando de assembleias, fazendo rápidos pronunciamentos em salas de aula, nos quais se reafirmava a luta contra a ditadura e se defendiam as principais bandeiras estudantis daquele momento.

Ele, sempre, falava pouco e tão somente o da ponta da língua, o já decorado de tanto ouvir durante as reuniões da entidade.

Incapaz, incapaz mesmo, de falar de improviso...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

14 de outubro de 2021

Jary Cardoso: dançarino comunista

 

As pessoas pensam: é fácil falar em público.

Não é não.

Tem gente com pavor.

Nem pensar.

Assim, nosso Jary Cardoso.

Rio de Janeiro.

1967.

Pequeno palanque armado na Praia do Flamengo.

Cardoso ao lado de Daniel Aarão Reis, hoje notório historiador, e então presidente da União Metropolitana de Estudantes (UME), e de várias outras lideranças.

Aarão Reis deitou falação para aquela multidão ululante, agitada, palavras de ordem a plenos pulmões a cada pequena parada do orador.

Cardoso, tenso.

Ia chegar o momento.

E então...

- E agora com vocês o vice-presidente da UNE, Jary Cardoso.

Não tinha jeito.

Tinha de atravessar o Rubicão.

A massa explodiu:

- U-NÊ, U-NÊ, U-NÊ - ávida por ouvir o dirigente. O coro não parava.

Ele, tenso.

A massa queria a voz da UNE - A UNE somos nós, nossa força, nossa voz.

E Cardoso, vá lá se saber por que, congelou.

Deu branco total.

Nada à mente.

Nem repetir as palavras de Aarão Reis.

Nada.

Então engrossou o coro:

- U-NÊ, U-NÊ, U-NÊ...

Balançava os braços, no ritmo, que nisso ele era bom, e batia os pés, sentia-se dançando, nisso era bom...

E gritava o mais alto que pudesse.

Batia os pés com muita força, quem sabe do nervosismo, tanta que numa das batidas rachou uma das madeiras de sustentação do palanque, quase cai, alguém o segura pelos braços, e compreensivelmente não houve discurso da UNE.

Salvo pelo gongo.

Um freudiano diria: na real, na real, ele deu um jeito de não usar a palavra - ou um lacaniano?

Mas, saiu até com alguma glória do episódio: um dos estudantes presos naquele dia foi interrogado por um agente:

- Quem era aquele cara da UNE com jeito de comunista?

Jeito, tinha.

Só não gostava de falar em público...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

15 de outubro de 2021

Jary Cardoso: o Sol nas bancas de revista...

 

Estranha e divertida de alguma forma nossa vida de clandestinos.

Eu tinha um nome frio em Ação Popular - era Edmundo.

Tratado assim nas nossas reuniões.

E nos documentos internos, também.

Portava uma carteira de identidade, falsa por obviedade.

Aí era então Pedro Luiz Vian.

Mas, o fato, fato mesmo: quase todo mundo sabia meu nome verdadeiro.

Nem sei como permaneci em liberdade entre janeiro e novembro, mês de minha prisão.

Sorte.

Afinal, não era difícil me encontrar.

Cardoso, como diretor da UNE, não fugia a essa hábito: carregava nome frio, ou nome de guerra, como se queira - João Campos.

Houve até entrevista dele para "O Sol". 

Do João Campos.

Pouco se sabe d'O Sol'.

Provável maioria desconheça: o Sol nas bancas de revista, em "Alegria, Alegria", é ele, o próprio.

Duração efêmera: de setembro de 1967 a janeiro de 1968.

Comando de Reynaldo Jardim, os editores eram Zuenir Ventura e Ana Arruda Callado.

De alguma forma, vinculado à contracultura, teria inspirado o mais longevo "O Pasquim".

Pois é, João Campos brilhou n'O Sol' - fácil achá-lo nas bancas de revista.

Cardoso, vocês sabem, é casado com a cultura, apaixonado por ela - um dia, conto melhor.

Outro caso.

Um dia, estava em Porto Alegre, diretor da UNE.

Cumprindo duas tarefas - a da entidade e a da Polop.

Leu na banca de revista: Gilberto Gil estava na cidade, dera entrevista.

Comprou o jornal.

Gil falava de "Lunik-9", mais recente composição dele, renovação de estilo, prévia de composições tropicalistas a brotar meses depois.

"Poetas seresteiros namorados correi é chegada a hora de escrever e cantar talvez as derradeiras noites de luar"...

Cardoso então lendo no jornal o hotel onde Gil estava hospedado...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

16 de outubro de 2021

Jary Cardoso: o bode, a cabra, a galinha.

 

Viu, soube: Gil estava em Porto Alegre.

Deu o estalo, a lembrança: uma das mais importantes decisões da última reunião da diretoria da UNE, realizada no Rio de Janeiro, era para cada um dos diretores buscar apoio de cantores de esquerda.

Deviam sugerir fizessem shows de arrecadação de fundos para o movimento estudantil.

Apresentou-se no hotel:

- Diga ao Gil: um representante da UNE quer falar com ele.

O astro, já era um, atendeu-o prontamente.

No próprio quarto.

Aí, Cardoso tinha o verbo fácil: relatou as discussões na diretoria da UNE, contextualizou-as, falou dos shows para arrecadar fundos para a luta;

Gil dispôs-se, favoravelmente.

Mas na correria daquela conjuntura, o show não aconteceu.

Mais de quatro anos passados, Cardoso repórter da revista "Bondinho", surpreendeu-se: Gil dizia lembrar-se daquela conversa de Porto Alegre.

São inesquecíveis lembranças de sua passagem pela UNE.

Outra.

Chega ao Recife, depois de uma viagem de ônibus, longa, longa, quase eterna, daquelas com muitas paradas por cidadezinhas do sertão nordestino.

Em cada parada, cenas surpreendentes para um paulista da capital: passageiros com roupas, aparência e linguajar de personagens do Cinema Novo.

Um, carregava uma gaiola com aves.

Outro, segurava uma galinha pelos pés.

Outro, verdade, puxava um bode e uma cabra com cordas.

Os animais no corredor, com os donos de pé.

Ele, deslumbrado.

Chegou estropiado na Estação Rodoviária do Recife. Cansaço da desgraça.

O cansaço logo se dissipou.

Estudantes o receberam em festa, e acompanharam-no durante os trajetos pelas faculdades - um séquito seguia o líder.

Depois de incontáveis reuniões, assembleias, passagens em salas de aula, recebe um aviso: repressão tomara conhecimento da presença dele no Recife.

Desse bandeira, o prenderiam...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: chá de Nordeste faz bem

Luciana Mandelli: UNE - União Nacional dos Estudantes a matéria do que somos feito. 

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Emiliano José

17 de outubro de 2021

Jary Cardoso: braço de soldado

 

Todos os santos protetores, as meninas, os meninos, estudantada toda, o séquito, o aconselhavam: melhor sair logo da cidade.

Logo, não.

Urgentemente.

Mais rápido pudesse, senão meganhagem chega.

Destino próximo dele, João Pessoa.

Melhor mesmo, ideal, seria seguir de avião.

Desaparecer rapidamente pelo ar.

Mas, e dinheiro?

Moçada não contou conversa: passaram sacola, cada um deu o que pôde, antiga vaquinha, hoje crowdfunding não é?, e problema resolvido.

Cristina, inesquecível, linda, simpática, a acompanhá-lo o tempo todo, veio com as duas mãos cheias de notas amassadas:

- Pegue. Aqui há o suficiente para um lanche e passagem de avião para a Paraíba.

Meteram Cardoso num carro, levaram-no para o aeroporto.

Um emocionante, comovente bota-fora.

Tão comovente, tão, a ponto de conter-se para sufocar as lágrimas.

Estão gostando?

Tem mais.

Cardoso não é homem de pouca aventura, não.

Ele e Pery Falcón arrumaram as malas e tomaram o rumo das Minas Gerais, Beagá.

Encontro estudantil.

Foram para a casa de um simpatizante da Polop.

Casa à disposição, dono viajando.

De repente, batem à porta.

Susto.

Preocupados, não esperavam ninguém.

Falcón abriu a janelinha da porta para ver quem era.

Um braço fardado irrompeu bruscamente, alcançou a chave na fechadura da porta, e trancou os dois pelo lado de fora:

- O que vocês estão fazendo aí? - perguntou o soldado com inconfundível voz de comando.

Tão rapidamente como apareceu, deu meia-volta, com clara disposição de tomar providências, chamar reforços.

Receberam a galinha pulando.

Cardoso, em momentos de extrema tensão, age friamente e com presteza.

Primeiro, olhar os bolsos.

Encontrou duas coisas comprometedoras: um papel com anotações e uma carteirinha falsa de estudante da Faculdade Nacional de Direito, do Rio de Janeiro....

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joao Coutinho: Pery conta que estava escondido atrás de uma cortina, mas teve os pés vistos pelos meganhas. 

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Emiliano José

18 de outubro de 2021

Jary Cardoso: fogo purificador

 

Que fazer com provas de crime tão comprometedoras?

A carteira falsa de estudante usava para garantir refeição gratuita no tempo de moradia comum com Falcón e Marcos Wilson, os dois companheiros de UNE e de Polop.

Moravam numa vilinha da Rua Santa Clara, aparelho da Organização, em Copacabana.

Lembrei agora, tudo junto e misturado: morei em vila semelhante, e de lá tenho ternas lembranças, mas longe de Copacabana.

Penha, nas cercanias da Igreja, tão alta, quase alcançando o céu para a imaginação de menino, morando arranchado naquela casinha de tia Zezé e Tio Tatiu.

Devia correr o ano de 1957.

Como cabíamos todos na casinha, nem imagino.

Só nós éramos seis - mamãe e cinco filhos, e mais um tanto do lado da tia, e ali, se tivesse dois quartos, muito.

Pobre se vira nos trinta.

As anotações, mais perigosas ainda, deu um jeito: seguiu orientações da Polop.

Militares da Organização haviam ensinado: nesses casos, dobre o papel formando uma sanfoninha, coloque-o de pé no chão, acenda o fósforo, toque fogo nas duas pontas superiores.

Teve prazer:  bonito, o fogo consumindo o papel na direção horizontal e vertical.

Pegou as cinzas sobrantes, um quase nada, jogou na privada, puxou a descarga.

Prova do crime, desaparecida.

Quanto à carteirinha de estudante, com foto e nome falso, despediu-se com alguma tristeza, sem consumi-la com o fogo purificador: escolheu um livro na estante do quarto, guardou-a cuidadosamente entre as páginas, devolveu o livro para o mesmo lugar.

Era um risco, mas não teve disposição de queimá-la.

Não acreditava fossem revirar a casa de cabeça pra baixo.

Uma dúvida sempre o acompanhou: quem tenha pegado aquele livro, vendo a carteirinha cair, se assustou?

Ou se perguntou de onde teria vindo aquele estranho personagem?

Como de se esperar, o soldado voltou...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

19 de outubro de 2021

Jary Cardoso: um pouco mais de adrenalina

 

Diabo quando carece vem acompanhado.

Soldado voltou.

Acompanhado de um policial.

Direto para a delegacia.

Cardoso, não sabe onde foi buscar essa calmaria de espírito, mantinha-se tranquilo.

Como fosse ali, a passeio, turistar.

Era a primeira prisão dele, mas não se assustou.

Enfrentará uma segunda - conto mais tarde.

O delegado interrogou os dois, ele e Pery Falcón, ao mesmo tempo.

Foi logo perguntando:

- Que é que vocês estavam fazendo no local?

Os dois contaram historinha combinada: estavam na casa do amigo porque iriam assistir a aulas na universidade.

Cardoso, sempre no espírito zen budista - todo calmo, explicando sílaba por sílaba.

Falcón, no normal, é muito tímido - ou parece ser.

Nunca teve receio de falar em público, mas é tímido.

Fala baixo.

Me recordo bem dele durante intervenções do Coletivo da Galeria F da Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.

Dada a palavra a ele, ainda demorava alguns segundos, olhando pra baixo, e depois iniciava: firme, sempre intervenção densa, contextualizada, à Polop.

No olhar de Cardoso, ao relembrar o momento da delegacia, o vê nervoso, levemente trêmulo, gaguejando um pouco.

Delegado, sempre pronto a atazanar preso, foi pra cima dele:

- Por que você está todo nervoso enquanto seu colega está aí, todo tranquilo?

Falcón, provocado, refez-se, e seguiu adiante com a mesma história.

Acabou sendo um demorado lero-lero, conversa mole pra boi dormir, delegado querendo justificar a presença deles ali.

Deu nada.

Não havia provas de crime, e delegado não era do ramo - do aparelho repressivo da ditadura.

Mas de qualquer forma fez a advertência dele:

- Prestenção: se forem encontrados fazendo subversão por aí, a coisa vai ficar feia pro lado de vocês.

Lero-lero.

E foram soltos.

De Beagá, esta lembrança.

Não tão comovente como a do Recife.

Mas, com um pouco mais de adrenalina...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

20 de outubro de 2021

Jary Cardoso: XXIX Congresso da UNE, 1967

 

Foi uma breve passagem.

Três anos breves.

Mas valendo por uma vida.

Por várias universidades.

Aprendizado para nunca mais esquecer.

Passagens pela Polop e pela UNE, as duas entrelaçadas.

Tive tentação hoje de me jogar à frente.

Contar história da prisão de Cardoso na OBAN, mas resisto.

Sei, aguço curiosidade das pessoas, mas não posso enveredar por estradas vicinais.

Imponho-me continuar na via principal.

Por enquanto, UNE e Polop, entrelaçadas.

Atuava na entidade de massa, mas sob a orientação da Organização.

Cardoso, o autor da longa Carta Política do XXIX Congresso Nacional dos Estudantes, realizado em julho de 1967, no Convento Beneditino de Vinhedo, em São Paulo.

Esse congresso foi uma façanha do movimento estudantil.

Antes de chegar à reunião do convento, com 400 delegados de 18 estados, houve muitos encontros preparatórios, a reunir milhares de estudantes por todo o País.

Eu dava os primeiros passos no movimento estudantil secundarista, no Jaçanã, e tinha como parceiro Pedro de Oliveira, mais tarde diretor de arte da revista "Veja", militante comigo em Ação Popular, depois do PCdoB, onde está até hoje.

Uma parte preparatória do XXIX Congresso, com uma centena de estudantes, foi realizada na casa dele, à rua Dr. Zuquim, em Santana.

Como fosse uma festa.

Maneiras de driblar a repressão.

Não era tarefa simples dar forma final à Carta Política.

De alguma forma, sou eu a dizer, era uma espécie de treino jornalístico, servindo de base para se tornar mais tarde um grande jornalista.

Tinha de fazer mediações, compreender a diversidade de forças presentes no encontro, perceber a força hegemônica, não desprezar as demais - exigia talento e muita sabedoria política.

Demonstrou capacidade para tanto...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

21 de outubro de 2021

Jary Cardoso: a complexidade das forças políticas do XXIX Congresso

 

Talvez hoje à distância não seja fácil analisar a correlação de forças naquele XXIX Congresso da UNE.

Decorreram já mais de cinco décadas, quase cinco décadas e meia.

Então, necessário dar uns dois dedos de prosa.

Até pra compreender a proeza de Cardoso, ao elaborar a Carta Política daquele encontro.

Já se disse: 400 delegados.

Os principais líderes da esquerda do movimento estudantil, presentes.

Ação Popular, a força hegemônica.

Existia, ainda, as Dissidências do Rio de Janeiro, de São Paulo e do Rio Grande do Sul.

Quando falamos Dissidências, estamos nos referindo a forças egressas do velho Partidão, a romperem com o "pacifismo" do velho partido.

Da costela do PCB, saiu a maioria das organizações da esquerda armada, a se configurarem entre o ano anterior e aquele 1967.

Afinal, o PCB fora o grande partido da esquerda, desde 1922, crescendo muito sobretudo após 1945, não obstante depois a volta à clandestinidade sob Dutra, minimizada durante os anos 1950 e 1960, até a chegada do Golpe de 1964, quando então veio a porra.

Natural, com as dissidências, oferecesse oxigênio à esquerda armada, e mais ainda no movimento estudantil, onde o PCB, por isso, perdia terreno aceleradamente.

O XXIX Congresso foi vencido, então, por AP, Dissidências e pela Polop.

Talvez fosse o caso de dizer os nomes dos diretores eleitos no encontro.

Presidente: Luís Travassos. 

José Carlos  da Mata Machado, de Minas Gerais, assassinado pela ditadura em 1973, como dirigente de AP.

De Pernambuco, José Carlos Moreira.

Luiz Raul Machado, do Rio de Janeiro.

Esses quatro, da tendência hegemônica, AP.

José Roberto Arantes, de São Paulo.

Nilton Santos, do Rio Grande do Sul

Jaques Zajdsznajder, do Rio de Janeiro.

Os três, das Dissidências.

Uma parte disso, registrada no livro sobre a UNE, coleção História Presente, edição de 1980.

E por fim...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Jary Cardoso: Emiliano desperta minhas lembranças. É um grande prazer recordar nomes como o de Luiz Raul – era um amigão de verdade, tínhamos ótima sintonia, demonstrava gostar muito de mim e vice-versa. Lamento ter perdido contato com ele completamente. Outro que me marcou: Mata Machado – assim o chamávamos – era um gigante pra mim, sentia profunda admiração por ele. Tinha carisma, era um cara pra gente ficar amigo à primeira vista, incrível capacidade de expor ideias, jeito de estadista. Nos meus tempos de militância, aponto pelo menos três que me pareciam ter nascido pra ser presidente do país: Mata Machado, Altino Dantas e Marco Aurélio Garcia. 

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Emiliano José

22 de outubro de 2021

Jary Cardoso: Polop e o cerco do foquismo

 

Por fim, na constituição da diretoria da UNE, os integrantes da Polop.

Pery Falcón, da Bahia.

Marcos Wilson Spyer Rezende, das Minas Gerais.

Jary Cardoso, São Paulo.

A Polop, contanto fosse a organização menos poderosa das três em termos de representatividade de massas, era, de outro lado, a mais articulada intelectualmente.

Era a organização de menor número de centros acadêmicos presente no XXIX Congresso.

O estofo intelectual, a capacidade de unir o pensamento acadêmico com a política, a formulação ampla, capaz de juntar os aspectos nacionais e internacionais, deram a ela a condição de ocupar esses três lugares na direção da UNE.

Creio já ter dado algumas palavras sobre a Polop.

Penso, no entanto: o que abunda não prejudica.

E carece - afinal foi ali a vida de Cardoso naqueles três breves longos anos.

Nasce fora da costela do Partidão, caso raro.

Pensa a Revolução como socialista.

Vem 1964, e logo sofre o assédio do pensamento debraysta, do foquismo, assédio a afetar maior parte da esquerda.

Enfrenta dissidências, entusiasmadas com a luta armada.

Animada pelas greves de Osasco e Contagem em 1968, superestimadas por ela, resolve tirar a roupa de Polop e vestir a do Partido Operário Comunista (POC), anunciado simbolicamente no dia Primeiro de Maio de 1968.

Grande parte do POC, no entanto, anima-se também com a luta armada - a onda debraysta não era brinquedo, não.

Lênin havia se debatido com a doença infantil do esquerdismo - ela vai e volta.

O núcleo tradicional da Polop resiste, e reorganiza-se sob o nome Organização de Combate Marxista Leninista (Política Operária).

Encerra existência quando do surgimento do PT, como várias outras organizações revolucionárias nascidas durante a ditadura.

No XXIX Congresso, as propostas da Polop foram defendidas em plenário por Pery Falcón, com brilho.

Cardoso relembra:

- Meu papel foi semelhante ao de um repórter, anotando as melhores formulações ouvidas em plenário e nas reuniões de cúpula de que participei.

A experiência anterior como aluno ouvinte de Filosofia, redator do Informe Nacional e de textos para o debate interno da Polop, foi essencial.

Deram-lhe condições para sistematizar as conclusões de cada comissão e dos debates em plenário.

Seguiu, ao escrever a longa Carta Política do XXIX Congresso, a ordem tradicional dos textos da Polop: análise da situação internacional, seguida de apreciação mais longa do quadro nacional, e por fim definição do papel do movimento estudantil naquele cenário, até chegar ao programa final de 11 pontos. 

Essa Carta...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Zacarias: Memórias muito importantes e necessárias.

Emiliano José: obrigado, meu velho 

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Emiliano José

23 de outubro de 2021

Jary Cardoso: um programa democrático para o ensino

 

O programa de 11 pontos, da lavra de Cardoso, foi levado à discussão nas bases estudantis de todo o País.

Colaborou decisivamente para as intensas mobilizações em vários estados, a desaguar sobretudo em 1968, cujo momento culminante foi a Passeata dos 100 mil, no Rio de Janeiro.

Denunciava o imperialismo, a ditadura,  propunha a luta contra o acordo MEC-USAID, contra a reforma universitária, a privatização das universidades,  a entrega do ensino ao controle dos capitais estrangeiros, contra as medidas de adequação da Universidade aos interesses do imperialismo e a extinção da gratuidade do ensino, e defendia o ensino gratuito em todos os níveis.

Exigia aumento de verbas para a educação e a entrada na Universidade de todos os que concluíssem o curso secundário.

Chamava a população à luta antiimperialista, e contra as tentativas de esmagar o movimento estudantil, além de insistir na luta contra a militarização do ensino.

Havia ali, naqueles 11 pontos, um chamado à luta e um tom quase profético.

A rigor, o projeto MEC-USAID, grosso modo, tornou-se vitorioso, lamentavelmente.

Se olharmos com atenção, os 11 pontos constituíam-se  num programa profundamente democrático para a educação brasileira, olhos abertos para o processo de privatização já em andamento, a nos levar, nos dias de hoje, à presença hegemônica do capital privado no ensino - a luta do povo brasileiro não foi capaz de evitar isso.

Chegamos hoje ao dramático quadro de uma hegemonia avassaladora do ensino superior privado, hoje abocanhando 85% das matrículas contra apenas 15% do ensino público.

Sem contar o até agora inexorável avanço da presença do capital estrangeiro, em proporções assustadoras, a ameaçar a soberania do País.

Poderíamos dizer: a UNE avisou!

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

24 de outubro de 2021

Jary Cardoso: documento histórico contra o imperialismo

 

Revisitar o passado é sempre uma forma de entender o presente, e descortinar o futuro.

A Carta Política do XXIX Congresso da UNE é um documento histórico essencial.

Já se falou da conclusão, sintetizada nos 11 pontos.

Olhar para a análise da situação internacional nos remete ao imperialismo, de um jeito ou de outro tão presente nos dias atuais.

Império não termina de um dia para o outro.

Cardoso caprichou, numa análise sintética.

O traço característico do panorama do mundo naquela quadra histórica era a luta dos povos oprimidos da Ásia, África e América Latina pela libertação de seus países.

"E a reação violenta e sistemática oposta pelo imperialismo norte-americano."

Tão recente, não?

Império contra-ataca.

Os EUA, por quase todo o século XX, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, jamais deixou de massacrar povos, impiedosamente, e muita vezes enfrentar improváveis e retumbantes derrotas, vide Vietnã, e mais recentemente, a vergonha do Afeganistão - vergonha lá deles.

Império em decadência, mas ainda império.

Ainda violento.

Ainda disposto a dominar o mundo.

Dando de cara agora com um rival, poderoso, a China.

Esses comunistas...

Cardoso escrevia, descrevia: os golpes de estado em Ghana, Indonésia, Brasil, invasão da República Dominicana, a guerra contra o heróico povo vietnamita,  "tentativas extremas de manter, pela força, um sistema econômico que promove o lucro  de alguns às custas da exploração de muitos".

A Carta defendia: ao movimento estudantil cabia organizar-se em entidades nacionais e internacionais, engajar-se nas fileiras das lutas dos povos oprimidos contra a penetração e dominação imperialista.

"Fazemos nossa a luta do heróico povo do Vietnã, da Bolívia, e de todos os que hoje enfrentam - inclusive com armas - a penetração imperialista."

Quando inicia a análise da situação nacional, Cardoso arrisca interpretação polopiana: o imperialismo não é uma força externa a atuar na realidade brasileira...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

25 de outubro de 2021

Jary Cardoso: crítica das armas, crítica teórica

 

Disse: Cardoso arriscava uma interpretação polopiana ao falar sobre o imperialismo na Carta Política do XXIX Congresso da UNE.

Arriscou mesmo.

Duas ou três palavras sobre isso. 

As outras organizações não estavam tão seguras da afirmação feita constar por ele na Carta: o imperialismo não se constituía numa força externa a atuar na realidade brasileira.

A esquerda ainda se debatia com esse debate, fortemente marcada pelo viés teórico do PCB.

O imperialismo, nele, era visto como agente externo.

E as demais forças de esquerda ainda não haviam resolvido inteiramente essa questão.

Muitas ainda tinham o imperialismo como força externa, e não como intimamente vinculado às classes dominantes locais, vinculação ainda mais acentuada com o Golpe de 1964, como diz Cardoso.

As demais forças, à exceção da Polop, ainda depositavam alguma esperança na chamada burguesia nacional.

E daí decorria a visão da Revolução em duas etapas.

Primeira, democrático-burguesa, na qual a burguesia local teria protagonismo.

Segunda, socialista, aí sob completa direção do proletariado.

A Polop, desde o nascedouro, em 1961, defendia a revolução socialista, sem passar pela etapa democrático-burguesa, lastreada, no plano histórico e teórico, mais num Caio Prado Júnior do que num Nelson Werneck Sodré.

Cardoso resolveu arriscar e deu certo.

Ou não se percebeu, ou então as demais forças decidiram relevar.

Mais importante eram as conclusões - provavelmente raciocinaram assim.

A Polop, tendo o relator, podemos dar a Cardoso essa condição, conseguiu influenciar bastante o XXIX Congresso.

Curioso registrar: mesmo algumas organizações da esquerda armada não conseguiram superar a proposta da revolução em duas etapas.

A radicalização chegava à forma, não ao conteúdo, em matéria de estratégia revolucionária.

A crítica das armas não fora alcançada pela crítica teórica - a Polop, ao menos seu núcleo tradicional, poderia dizer isso até se dissolver, quando surge o PT...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

26 de outubro de 2021

Jary Cardoso: democracia e reformismo

 

Na esteira da análise do imperialismo, Cardoso seguia.

A etapa do imperialismo, naquele momento histórico, exigia a readequação da estrutura econômica, política, militar e cultural dos países da periferia do mundo aos interesses do capital internacional.

É esse o ponto de partida para entender o Golpe de 1964.

A Carta do XXIX Congresso explicava: a crise econômica, marcada pela inflação, ameaçava os lucros dos que exploravam o trabalho do povo.

Seguindo o pensamento de então, da esquerda, chamava a situação anterior ao golpe de "pretensa democracia".

"A pretensa democracia de antes de 1964 foi substituída por uma ditadura militar".

A não resistência ao golpe é jogada nas costas da ilusão reformista das lideranças.

Aqui, embora não explicitamente, deve se dirigir especialmente ao PCB.

Aquelas lideranças defendiam o caminho de reformas parciais na estrutura econômica pelas quais podia ser conseguida uma parcela do poder - essa a leitura da Carta do XXIX Congresso.

Claro: era mais complexa a formulação do PCB, advinda especialmente da Declaração de Março de 1958, quando o PCB faz uma virada democrática, documento elaborado pelos melhores quadros do partido.

Na visão de grande parte da esquerda, especialmente no pós-1964, era um documento "revisionista", ápice do reformismo - não vamos, no entanto, nos estender sobre isso.

Na visão da Carta da UNE, lavra do relator Cardoso, aquelas lideranças reformistas "não compreendiam a necessidade de organizar independentemente o povo".

Sem nível de organização e consciência necessária, "esse povo seria colocado a reboque das classes dominantes".

O erro das lideranças de então se agravava, na visão do texto da Carta da UNE, ao propor uma frente com a burguesia brasileira.

Era só um pensamento desejoso, pois a burguesia, chamada nacional, não queria nada com a esquerda, mas sim com o capital internacional e com os golpistas.

E o golpe se deu, aconteceu, e a ditadura durou 21 anos...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

27 de outubro de 2021

Jary Cardoso: Freud explica.

 

Foram três anos intensos.

Três longos breves anos.

Cardoso sabe disso.

São parte de sua vida.

Inesquecíveis.

Para o bem e para o mal.

A UNE, depois dele, seguirá.

Aos trancos e barrancos.

A ditadura tentará por todos os meios calar aquela voz.

Matou, não teve dúvida, matou alguns dos dirigentes da entidade depois da saída de Cardoso da linha direta de atuação.

Passaram por ela Honestino Guimarães, Humberto Câmara, José Carlos Novaes da Mata Machado, Helenira Rezende - todos ex-diretores da entidade, todos assassinados impiedosamente pela ditadura, em variadas circunstâncias, na esteira sangrenta do pós-AI-5, sob o tacão do ditador Garrastazu Médici.

Os três primeiros, de Ação Popular.

Dois deles, Câmara e Mata Machado, tragados numa operação a envolver um cachorro, ex-militante passado pro lado da repressão, entre outubro de 1973 e fevereiro de 1974 - Nilmário Miranda anuncia livro próximo sobre os sete dirigentes de AP mortos nessa ofensiva violenta.

Helenira foi morta no Araguaia, desaparecida, entre tantos em meio àquele massacre.

Vai demorar algum tempo até a entidade voltar a mostrar abertamente a cara.

Somente no ano de 1979, em Salvador, Congresso de Reconstrução, baiano Ruy Cesar eleito presidente.

História a ser contada por mim, talvez, havendo brecha, em outro momento.

Com o AI-5, logo depois dele, Cardoso saltou da barca da militância direta.

Já falamos do transe - não foi uma fala, foi um transe, uma dança enlouquecida, a levá-lo a outros territórios em seguida - à fruição da cultura, ao jornalismo.

Nada de uma decisão consciente.

O inconsciente às vezes fala mais alto.

Falou quando o AI-5 desabou sobre o País.

E sobre cada pessoa, sobretudo àquelas com alguma consciência.

O grito veio sob a forma de um transe.

O inconsciente dizia, seu corpo falava dançando belamente descontrolado: acabou a brincadeira, não há mais espaço para amadorismos pueris.

A prisão de Gil e Caetano, estopim.

Não, nada vinha do pensamento articulado.

Revolta das vísceras - lembro de um livro de Mariluce Moura com esse título, final dos anos 70, início dos 80, forte romance-testemunho, um grito de dor.

O transe vinha do interior, das vísceras, do inconsciente, cuja força nem sempre a razão controla - era o mal-estar de que fala Freud.

Mal-estar na civilização,  mal-estar na cultura, ou na anticivilização, na anticultura, encarnada na ditadura...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

28 de outubro de 2021

Jary Cardoso: longo transe, e Sartre, e Marx.

 

Após aquela dança, aquele frenesi, transe, Cardoso saiu da reunião livre, leve e solto.

Como se resgatasse a sensação de liberdade cultivada desde criança, a sensação lentamente perdida no curso da militância.

Sentia novamente aquela gostosa sensação de liberdade.

Dali, da reunião, foi pro apartamento de Christine, rua dr. Cesário Mota Júnior.

Vila Buarque, em frente à Santa Casa.

Lá, o transe voltou: dançou novamente, freneticamente.

Ao som dos discos de jazz dela.

O transe durou três dias.

Dançava, dançava, dançava.

Intervalos apenas para jogar conversa fora, dar risadas, gargalhar, fazer refeições.

E dormir sem hora pra acordar.

Acolhido pela Chris, sem ser cobrado de nada.

Liberdade, liberdade.

O País estava mergulhado numa escuridão de assombrar.

Tinha noção.

Mas, sentia-se livre.

Mesmo quando saiu do transe, a sensação era de liberdade.

Começou a tomar consciência, em meio à liberdade: tinha uma vida a ser usufruída.

Quatro meses depois daquela ruptura drástica, completaria 21 anos.

Ainda em janeiro de 1969, caiu em si.

A realidade o visitava.

O mundo seguia em frente, precisava trabalhar, arrumar dinheiro pra pagar os boletos, como diz a moçada hoje.

E procurou Marcos Faerman - logo, logo contaremos o início da trajetória jornalística dele.

Ele volta a refletir: a ruptura com a militância comunista, não foi, como diria Marx, um raio caído num dia de céu azul, de repente.

Quando amigos íntimos o provocavam a explicar a ruptura, saía com uma tirada espirituosa - definida por ele como uma boutade sem muita consistência:

- Sartre e a Tropicália salvaram minha vida.

Meia verdade ou mentira inteira.

O mundo era mais complicado.

Tá legal - Sartre havia mexido com sua cabeça...

#MemóriasJornalismoEmiliano     

 

COMENTÁRIO

 

Artur Carmel: "Sartre fora !", pensou Jari....  

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Emiliano José

29 de outubro de 2021

Jary Cardoso: à beira do abismo, e livre.

 

Sartre é um mundo.

Um dos maiores do século XX.

Pensador capaz de mexer com a cabeça de qualquer um.

Mexeu com a de Cardoso.

Desde os primeiros momentos da militância, conviveu com Sartre.

Quis casar Marx e Sartre - arrisco.

Quis um Marx humanista, talvez - e para mim, Marx foi radicalmente humanista, no sentido de pretender a libertação do gênero humano das garras desumanas do capitalismo.

Chris o apresentara a Sartre já nos primeiros dias da atividade revolucionária.

Foi sendo tomado pela visão sartreana, fosse por sua vulgata, fosse por instigantes peças de teatro, mas tomado, invadido.

Na mente, "o existencialismo é um humanismo" - ele refletindo sobre o estar no mundo, sobre a individualidade, ele e seu mundo.

"O que vem antes é a existência, não a essência" - reflexão angustiante para quem vivia a defrontar-se com a noção do homem submetido, determinado pelas condições materiais do mundo, aquelas verdades advindas do marxismo, tão reais.

O existencialismo era sedutor, confortável.

Cardoso, sem aprofundar Sartre como deveria, enfronhado sempre com os estudos marxistas-polopianos, atraído, seduzido pelo existencialismo, fixava uma posição no meio do turbilhão revolucionário: a cada momento, diante de cada situação, deveria assumir a existência.

E assim seguiu, e assim rompeu com o mundo da militância direta.

Nenhuma essência mais como parâmetro.

Estranha sensação, a daquele momento.

Sem chão.

Sem onde pisar.

À beira do abismo.

Estranho: envolvido por todos os lados  pelo universo misterioso, anos-luz além da atmosfera terrestre e outros infinitos anos-luz pra dentro de moléculas e átomos - transe, embalado pelo transe.

Superamedrontado - não, nada era simples.

E ainda assim, sentindo-se absolutamente livre.

Situação nova, muito diferente do vivido até ali no dia a dia da militância...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Vânia Cairo: Maravilhaaa !!!

Jary Cardoso: O escritor Emiliano vai se saindo com maestria. Bravo, amigo! Especialmente num aspecto, Emiliano José está me ajudando muito: abandonei a militância comunista, "desbundei" (atitude que significava covardia pra uns e coragem pra outros), mas jamais cuspi no prato polopiano que alimentou minha mente e me educou pra vida. Vejo com satisfação que Emiliano deixa isso claro.

Lucia Correia Lima: exato.

Daniel de Andrade: VIVA MARX, ENGELS, LENIN...viva o comunismo, abaixo o desbunde.

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Emiliano José

30 de outubro de 2021

Jary Cardoso: Panis et Circensis

 

Livre.

Outro mundo.

Entender o porquê daquela virada talvez leve uma vida.

Pistas, já foram dadas.

A vida, dado aquele salto, dava-se em território diverso do experimentado no dia a dia da militância.

Naquele tempo, e quando pensava "naquele tempo" já sentia ter passado muito tempo, tudo parecia explicado,

Previamente explicado pelo devir histórico.

Bastava apurar a capacidade de pensar dialeticamente, com base no materialismo histórico, e os acontecimentos eram enquadrados, compreendidos.

De alguma forma, o mundo era mais simples.

Complexo e simples simultaneamente.

Previsível.

Confortável a vida quando protegida pela concepção marxista-leninista do mundo, e confortável também porque compartilhada pelas pessoas do entorno, companheiras e companheiros.

Volta e meia, surgia Sartre, a incomodá-lo, desequilibrá-lo por instantes, a lembrar do indivíduo, da existência singular.

Logo, no entanto, o incômodo se dissipava: conversas, reuniões, os debates, a história a caminhar inexoravelmente em direção à Revolução, as leituras indicadas pra boa formação dos quadros políticos, recuperavam o chão, a militância prosseguia, Sartre recolhido a algum canto da alma, o coração batia forte, lágrimas corriam soltas a cada vitória da Revolução, vitórias sempre aparecendo de forma muito mais grandiosas do que verdadeiramente eram - afinal, no caso brasileiro, vivia-se sob uma ditadura, a durar ainda durante muito tempo, como se sabe. 

As fortalezas daquele mundo seguro foram sendo minadas, no espírito de Cardoso, por Sartre, já lembrado, e pelo Tropicalismo.

Na explicação dele, passado tanto tempo, abriram a cabeça, arejaram o espírito.

Foram abrindo, nada será como antes.

E chegou o momento do rompimento.

No processo, veio Gil, com seu "Louvação", em 1967.

Ah, quem suporta tanta beleza?

"Procissão", "Ensaio Geral", "Viramundo", esta com Capinan, todas as demais canções da preciosidade daquele LP.

"Louvação" viria antes da explosão do Tropicalismo, com "Panis et Circensis", em 1968.

Caetano já o havia impressionado, ele e Gal: "Domingo", lançado no início de 1967.

Não foi, insisto, um raio caído num dia de céu azul, como os leitores estão percebendo.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Vânia Cairo: Profundo.. .

Joaquim Lisboa Neto: Louvando quem bem merece

Deixando o ruim de lado

Torquato Neto se não me trai a memória musical  

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Emiliano José

31 de outubro de 2021

Jary Cardoso: caminhando contra o vento...

 

A Revolução seguia.

A grande Revolução, sonhada pelos revolucionários.

E o tomava.

Havia a outra, insidiosa, a não pedir licença: a revolução musical, cultural.

Em 1967, quando Cardoso estava tão entusiasmado com a luta revolucionária, ocorre o lançamento de "Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band", maio de 1967.

Foi um marco daquela geração.

Da contracultura contemporânea.

Um disco revolucionário.

Se prêmios valem, conquistou quatro Grammy.

E mexeu muito com a cabeça de Cardoso, não obstante ele prosseguisse impávido em direção ao horizonte revolucionário, certo do devir histórico.

Andava pelo Brasil, diretor da UNE e dirigente da Polop, embalado pela música.

Acompanhado também por Vandré, mais afinado então com a perspectiva do combate à ditadura.

Gostava da trilha sonora de "Arena conta Zumbi", de Edu Lobo e Ruy Guerra.

Ah, não deixava de lado a música barroca de Vivaldi.

Nem o jazz de Wes Montgomery ou o do The Modern Jazz Quartet.

Houve o impacto da entrevista de Caetano ao poeta Augusto de Campos, dada à Revista Civilização Brasileira, defendendo a retomada da linha evolutiva da música brasileira.

O livro do próprio Augusto de Campos: "Balanço da Bossa".

Campos tornou-se um mestre para Cardoso.

Marxista radical, o poeta concretista queria ir às raízes do marxismo, muito diferente, na visão de Cardoso hoje, do "fundamentalismo marxista-leninista que eu seguia e pregava na Polop".

Campos apresentou-lhe a arte revolucionária.

Recorda-se do lema de Maiakóvski: "não existe arte revolucionária sem forma revolucionária".

Quando Caetano surgiu cantando "Caminhando contra o vento sem lenço sem documento" já estava conquistado por essa nova forma de arte, de cultura, pensamento, muito embora seguisse na senda revolucionária, dirigido e dirigente da Polop...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: Sgt Pepper's, o disco lisérgico; A day in the life interpretada por Wes Montgomery e Jeff Beck, na minha modesta opinião, foi além da versão original.

Alberto Freitas: A própria Sgt Peppers, com a Jimi Hendrix Experience, e With a little help from my friends, com Joe Cocker, são melhores que as versões originais.

Artur Carmel: Fundamental, tb, para o aperfeiçoamento do revolucionário Jari foi sua passagem pelo lendário JBa, no Bauxo-Dutra....  

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Emiliano José

1º de novembro de 2021

Jary Cardoso: a discussão do desbunde.

 

Vou caminhando, e conhecendo Cardoso.

Muitos de nós.

Poucos sabiam da história de militância dele.

Tampouco do desbunde.

E repare: ele tem é tempo de Bahia, de jornalismo - vocês ainda vão conhecer, tenham paciência, ando devagar porque já tive pressa.

O desbunde era quase uma instituição à época porque muito frequente no tempo em que o filho chorava e a mãe não via.

O desbundado não era bem visto pelos persistentes.

Assim conhecido o militante revolucionário a saltar do barco.

Muita gente não quis encarar, depois de experimentar a dureza da travessia, e muitos dos combatentes não a completaram: ficaram a meio caminho, mortos pela ditadura.

Lembro de caso comigo: fora recrutado por Adura, nome inteiro dele pode ser encontrado n'O cão morde a noite', lembro agora não, e ele 1969 resolve se picar pro Canadá, e eu fiquei puto - um desbundado.

Me chamara pra luta e agora fugia.

Hoje, encaro de modo diverso. 

O tempo é senhor da razão.

Natural a avaliação de tantos, a compreender: o sinal está fechado pra nós.

Melhor jogar corpo ao chão, esperar tempo bom, escapar da morte.

A maioria dos desbundados não se tornou reacionária.

Só não queria, não tinha condições subjetivas de enfrentar a luta direta num tempo em que o inimigo havia decidido usar o martelo-pilão para esmagar a formiga - a frase foi usada pelo general Adyr Fiuza de Castro, a formiga éramos nós.

Alguns dos desbundados podem ter sepultado os ídolos revolucionários de outrora, e talvez também as antigas lições.

Outros, guardaram no espírito muitos dos valores da velha militância, a acompanhá-los vida afora, naturalmente transformados, o rio nunca é mais o mesmo.

Cardoso é dos últimos.

Não jogou fora o bebê com a água do banho.

Guarda respeito com seus velhos companheiros e companheiras.

Não esquece Eder Sader.

Não deixa Rosa Luxemburgo fora de seu horizonte.

Nem Trotsky.

Nem Marx.

Tantos outros, cujas antigas lições ainda calam fundo no espírito.

Naquele momento, no entanto, saltou.

E sentiu-se livre.

Resgatou o  passado roqueiro...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Isadora Browne Ribeiro: Compreender que ali era o limite e que insistir era se expor ao martírio foi tão sábio quanto doloroso. Buscar outra militância, uma expiação também.

Jose Jesus Barreto: até porque há várias formas e linguagens em uma grande revolução. há quem escolha o caminho da arte, do belo... também transformador.

Ruy Espinheira Filho: Faz pouco escrevi mensagem aqui, Mariluce, mas não a estou encontrando. Há quanto tempo não nos vemos... Parabéns, pelo aniversário, desejo-lhe todas as felicidades e vida longa. Fique com o abraço maior do Ruy Espinheira Filho.

Adelia Andrade: Felicidades

Murilo Ribeiro: Parabéns . Felicidades, tudo de mais maravilhoso em sua vida. Tenha um ótimo e abençoado ano. Saúde. Abraço.

A BANDINHA HOJE TOCA PARA VOCÊ!

Luiz Cláudio Santana Brito: Feliz Aniversário!

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Emiliano José

2 de novembro de 2021

Jary Cardoso: como 2 e 2 são 5.

 

O passado roqueiro gritava naquele momento, naquelas horas do transe.

Como 2 e 2 são 5.

Como libertar-se da vida certinha, e muito perigosa, do militante.

Tudo junto e misturado: Gal berrava - é preciso estar atento e forte, não temer a morte.

E aí a militância ganhava força, tornava-se colorida, a mente alargava-se, tal e qual o efeito do "Sargent Pepper" dos Beatles.

Chegar àquele momento, o do transe, para ele libertação, não foi fácil, não.

Nem um pouco.

Certamente, e sou eu a dizer, Cardoso, além de tudo, sentia o bafo da presença dos torturadores, o pesadelo cercando-o numa São Paulo povoada de tiras por todos os lados.

Ambiente pesado, o AI-5 com toda sua promessa de terror. 

Sartre e a Tropicália apresentando um contraponto radical à visão quase religiosa de mundo sugerida pelos manuais do "marxismo-leninismo" ajudaram-no muito no rompimento.

Penso estar nítido que "marxismo-leninismo" não é sinônimo de marxismo, mas de uma visão linear e autoritária da história, onde Lênin, na visão de Cardoso, não obstante suas qualidades de intrépido líder revolucionário, tem grande responsabilidade.

Marxismo, outra coisa.

Sartre e a Tropicália, no entanto, não foram os responsáveis para salvar a vida de Cardoso.

Temos de voltar um pouco.

Início de 1968.

A UNE havia decidido: Cardoso iria representar o movimento estudantil brasileiro num congresso da União Internacional de Estudantes, sob hegemonia soviética, a ser realizado em Cuba.

Receberia documentos falsos, tomaria um avião pra Bulgária, e de lá seguiria para Havana.

Cuba vivia o ápice do entusiasmo guerrilheiro, a idéia de fomentar guerrilhas na América Latina.

Revelou o projeto à mãe...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

3 de novembro de 2021

Jary Cardoso: salvo pelo gongo

 

Mãe, cês sabem: filho nenhum arrenega.

Tá lá no coração respeitoso.

Guardadinha.

Sempre.

Pode ser o pior sujeito.

Mãe é mãe.

Cardoso, então, amor sem fim.

Luiza Cardoso ouvia com atenção o filho.

Anunciava a viagem pelo mundo.

Ia desembarcar em Cuba.

Ela tinha noção do comunismo.

Sabia das grandezas e dos riscos.

Ouvia.

A notícia a enchia de orgulho.

Ver o filho, ainda tão jovem, cheio de determinação, de horizontes, querendo mudar o mundo, parecença com o pai.

Quem sai aos seus não degenera.

Comunista é coisa do bem, soubera ainda jovem, mesmo não entendesse tudo.

De orgulho e de medo, sentimentos contraditórios na alma.

Medo de perder o fruto do grande amor da vida dela.

Antônio Campos, comunista, e dos tradicionais, linha prestista, fora o grande amor, não importa tivesse um dia partido, dado, era dado a um rabo de saia.

Medo de perder o filho depois de partir naquele rabo de foguete - é, parecia um rabo de foguete.

O filho ia partir - pra muito longe.

Trapaças do destino, e Cardoso vê aparecer um inchaço na cintura, lado direito.

Médico sentencia: hepatite.

Mãe correu pra lá e pra cá, mãe é pra essas coisas.

Internou o filho como dependente no Hospital do Servidor - servidora estadual, não foi difícil.

Colocado num quarto.

Determinação médica de repouso absoluto por 30 dias.

A hepatite e a mãe o livraram da viagem a Cuba.

Onde, talvez, se entusiasmasse ainda mais com a Revolução.

Com a guerra de guerrilhas, difícil, porque sua formação consistente não permitiria.

As portas para o transe seguiam abertas.

Salvo pelo gongo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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(A mãe Luiza Cardoso)

Emiliano José

4 de novembro de 2021

Jary Cardoso: mãe abriu as asas, protegeu a cria

 

Hepatite, e foi colocado num quarto onde ouvia radinho de pilha dia todo.

Ao menos.

Parecia prisão.

Sabia não fosse, porém.

Lembra nitidamente e com emoção do grande sucesso "San Francisco", hino dos hippies da Califórnia.

Ouvia-o na voz de Scott McKenzie.

Verdade, verdade, ainda sabia pouco sobre os hippies.

Um ano depois, já bem mais íntimo deles, empolgariam o desbunde dele.

Um companheiro da Polop o substituiu na viagem a Cuba.

Só mais tarde vai saber das artes e manhas de mãe.

Mãe está sempre pronta a proteger a cria.

Tenha qualquer idade, e ela a coloca debaixo da asa caso acreditem na proximidade de algum risco, perigo.

Mãe deu um jeito de se aproximar de um médico dirigente do hospital.

Evocou sentimentos maternos, protetores, e pediu-lhe pequeno favor, coisinha de nada: falseasse um pouco o diagnóstico.

O médico relutou, sorriu, olhou para a mãe de coração na mão.

Afinal ele ia para terra comunista, e isso era grande risco.

Ela dissera: com essa viagem, meu filho corre risco de vida.

Voltar ao Brasil vindo de lá, se os homens descobrem, morte certa.

- O senhor sabe, não sabe?

O médico sabia, nem fosse de simples ouvir falar.

Relutou, sorriu, olhou para a mãe de coração na mão.

Quem resiste?

Não era um deslize ético tão grave.

Aliás, nem era.

O rapaz, pensou o médico, é verdade: havia contraído apenas uma hepatite leve.

Custava diagnosticá-lo com uma variante grave de infecção do fígado?

Cês sabem, né?

Falou em variante, paciente logo se assusta.

Médico pensou, pensou, e resolveu atender a mãe.

Não relutou mais.

Os dilemas morais evaporaram.

Deu o diagnóstico a prendê-lo no hospital por 30 dias, e assim impedir o diabo da viagem.

E pôde testemunhar a mãe feliz, sorridente, a cria ali ao lado, protegida.

Longe de Cuba, da União Soviética.

Seria bom até.

Ficaria orgulhosa, se fosse.

Mas não naquela situação.

Tudo isso Cardoso só tomou ciência mais tarde.

A mãe contou a arte, um pouco temerosa.

Que filho vai brigar diante de uma atitude tão protetora como aquela?

Teve a companhia de Scott Mckenzie, cantou baixinho "San Francisco", seguindo a estrada do grande amor pelos Beatles...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

5 de novembro de 2021

Jary Cardoso: tsunami a caminho


Era pra ser nosso homem em Havana.

Não foi. 

Artimanhas de mãe frustraram a missão. 

A partir daí, a Polop resolve puxá-lo para o trabalho interno. 

Arrisco dizer: provavelmente a Organização percebeu nele fortes atributos de Capa Preta.

Menos de liderança de massa.

Cumpria bem suas tarefas na UNE.

No entanto, e isso já foi contado, não era de falar, de dirigir-se às massas, uma timidez dos diabos para falar para multidões, para plateias de qualquer tamanho. 

Em pequenas reuniões, tudo bem - soltava o verbo. 

Mas, nas demais, calado.

Era quadro já experimentado naquele início de 1968, era redator de tantos documentos da Organização, intervinha bem nos debates internos.

Então, Polop o substitui na direção da UNE, e o traz para as tarefas internas, o que, de alguma forma, era uma ascensão - aqui sou eu, interpretando. 

Passava, não fosse ainda, a ser um quadro político reconhecido, com densidade teórica para executar funções dirigentes - Capa Preta. 

O ano de 1968 transcorreu assim, cuidando da Polop.

Trabalho interno, modo de dizer.

Não ficava somente entre quatro paredes. 

Mantinha-se, sob orientação da Polop, articulando a relação com as demais organizações revolucionárias. 

Acompanhando, como quadro dirigente, as movimentações, inclusive estudantis. 

Recorda-se de ter ido à rua Maria Antônia, onde ficava a Filosofia da USP, centro nervoso do movimento estudantil, um pouco antes da batalha campal de 3 de outubro de 1968.

Envolveu o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), aquartelado no Mackenzie, e os estudantes da USP, à frente dos quais estavam Luís Travassos e Zé Dirceu.  

Resultou na morte de um estudante, José Guimarães, e ferimentos graves em pelo menos duas estudantes - Mirtes Semeraro Alcântara Nogueira, a mais gravemente atingida pelo ácido jogado pelo CCC.

Fora tomar o pulso da luta estudantil, avaliar os próximos passos, como a Polop devia se movimentar, tentar pensar a conjuntura - complexa, difícil.

Viria Congresso da UNE, prisão de todo mundo, clima esquentando, e logo depois o AI-5, e a maior parte da esquerda não percebia o tsunami a caminho...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

6 de novembro de 2021

Jary Cardoso: Caetano - uma iluminação, estrela cintilante

 

Há iluminações na vida.

Estrelas cintilantes.

A existência segue, e elas sempre ali: brilhantes.

Caetano é para Cardoso essa estrela cintilante.

Primeiro contato, o disco Caetano e Gal.

A primeira descoberta, dessas pra valer, no entanto, foi "Alegria, Alegria".

Mexeu com coração e mente.

Identificou-se com o clima da canção, não com a letra - afinal, ele caminhava pelas ruas do Rio de Janeiro com lenço e com documento - não obstante falso, o documento.

A voz de Caetano, aquela maneira singularíssima de cantar - tão singular: a poesia dele ia ao âmago do ser de Cardoso.

Como a voz de um amigo-companheiro-amado.

Descoberta.

Arrebatamento.

Conquista para todo o sempre.

Tudo vindo dele, desde "Alegria, Alegria", era olhado, sentido com muita atenção, como filosofia, todas as músicas, bandeiras de luta, eram recados existenciais profundos, a norteá-lo sempre, sempre, uma alegria alegria.

Caetano foi um raro para sempre.

As mensagens dele, a poesia doce e forte, salvaram-lhe a vida.

Ao menos é como Cardoso interpreta o momento do desbunde.

Foi a imagem dos dois presos, Caetano e Gil, o gatilho para o desbunde.

Explicação para um transe, demora.

Só veio uns três meses depois.

Estava em Porto Alegre, já trabalhando com carteira profissional assinada, voltando ao mundo normal, se é possível falar em normalidade sob uma ditadura, e isso no trágico ano de 1969, pós-AI-5.

Jornalista, já.

Chegou à condição pelas mãos de Marcos Faerman - da trajetória jornalística, falaremos com mais vagar, tenham paciência.

Numa mesinha de bar, com o jornalista Luiz Pilla Vares, jornalista e tradicional militante de esquerda.

Queria saber o porquê.

Por que o desbunde?

- Quando Pilla perguntou sobre a minha ruptura, me vi diante do mesmo branco mental provocado por você, Emiliano.

Pilla não se importou com a ausência de uma explicação racional de Cardoso.

Adiantou-se:...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

7 de novembro de 2021

Jary Cardoso: explicação para o desbunde

 

Aí, o Pilla disse:

- A causa da sua atitude é a mesma que tanto critiquei na Polop e que me levou a sair da militância e me tornar apenas um simpatizante. Eles [os dirigentes] não respeitam a individualidade dos militantes, exigem e cobram que sejam tarefeiros e disciplinados, sem que possam cometer o mínimo ´desvio pequeno-burguês´.

A explicação vinha como um bálsamo.

Naquela mesa de bar, Cardoso respirou profundamente.

O desbunde começava a ganhar uma resposta.

E vinda de Pilla, não era pouca coisa.

Pediu mais uma.

Valia.

Comemoração.

Cês devem estar perguntando: quem era Pilla?

Nome de batismo: Luiz Pilla Vares.

Militância, começou no PCB, início dos anos 60.

Rapidamente, no entanto, seduzido por Rosa Luxemburgo e Trotsky, chegou à Polop.

Um dos fundadores do Partido Operário Comunista (POC), juntamente com Erich Sachs, Emir e Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii e Raul Pont, entre outros.

Surgido o PT, ingressa e se torna presidente do partido em Porto Alegre.

Ligado à cultura, torna-se secretário de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos prefeitos Olívio Dutra e Tarso Genro, e secretário da Cultura no governo Olívio Dutra.

Um militante - ele próprio assim se definia.

Um intelectual orgânico.

Nasceu em 5 de março de 1940, mesmo mês e dia do nascimento de Rosa Luxemburgo - ano dela, 1871.

Com a polonesa, se encontrará, através de sua extensa obra revolucionária.

Pra quem cultiva coincidências, outra: Villa morre no dia 9 de outubro de 2008, mesmo dia do assassinato de Che Guevara, em 1967.

Foi este militante a encontrar a explicação para o desbunde...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

8 de novembro de 2021

Jary Cardoso: desbundados de todo o mundo, uni-vos!

 

Repare: o desbunde não teve ensaio, nenhuma preparação prévia.

Aconteceu de repente.

Numa performance dançarina - já contamos.

Analise quem quiser:  a sensação de autêntica liberdade pessoal recuperada naquelas horas mágicas continuou acompanhando Cardoso por bom tempo.

Se desbundado era considerado pelos revolucionários como xingamento, sinônimo de covarde, ele tratou de logo se juntar a muitos outros desbundados, tanto ou mais assumidos.

O adjetivo migrou para sentido contrário.

Virou elogio.

Ao menos para aquela tribo e o entorno.

Numa ousadia iconoclasta, podiam lançar uma palavra de ordem, a parafrasear tradicional dito comunista:

Desbundados de todo o mundo, uni-vos!

Sentiu-se integrado a uma multidão jovem, aflorada desde a metade final dos anos 60.

Juventude revolucionária.

Desvinculada de partidos políticos e religiões tradicionais.

Volta no tempo, e se vê dirigente repressor policiando comportamento de militantes, como no caso de Marcos Faerman e seu cachimbo.

O cachimbo caía, já se contou, ele cochilava por conta de suas extenuantes jornadas como jornalista do "Jornal da Tarde".

Brilhante jornalista.

Cardoso, então um stalinista, ao menos na prática, não podia admitir tivesse Marcão o privilégio de sobrepor a criatividade intelectual aos deveres da Revolução.

Em reflexão atual, Cardoso identifica, no militante stalinista de então, uma inveja enrustida face ao bem sucedido, brilhante Marcão, bem superior ao parafuso graduado de uma engrenagem rígida - ele próprio.

Marcão, amigo solidário, fraterno, a levá-lo para o mundo do jornalismo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: Num cantinho, num barzinho, lendo deliciosos relatos do compa Emiliano 

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Emiliano José

9 de novembro de 1021

Jary Cardoso: jornalista começa a surgir

 

Não era pra menos.

Ter algum ciúme do Marcão, natural.

Sujeito não era pouca coisa, não.

Naqueles tempos, militando na Polop, já era grande jornalista.

Talvez já tenha falado nele, mas o que abunda não prejudica.

Grandes jornalistas há e havia muitos.

Ele, um tipo singular.

Coube como uma luva no Jornal da Tarde, surgido ali por 1966, disposto a inovar, a abrir fotos, e a soltar o texto dos repórteres, tivessem texto para tanto.

Ele tinha.

Não se continha - ia adiante na criatividade, tal e qual desejava o jornal, outro lado bem pensado do Estadão, tão conservador em tudo.

Empresariado tem é arte, sabe das coisas: apresenta mercadorias a gosto do freguês.

Ao falar em jornalismo literário, Marcão aparece com destaque, ou deve aparecer porque pode acontecer esquecimento.

Sacudia as estruturas do jornalismo tradicional, arrebentava com o lead - quem quisesse encontrá-lo lesse o texto inteiro.

Buscava a subjetividade dos personagens, a humanidade deles.

Era uma espécie de Truman Capote, autor do insuperável "A sangue frio".

Tinha parecença com Hamilton Almeida Filho, o HAF, outro furacão do jornalismo brasileiro.

Nasceu no Rio Grande do Sul

Do que sei, jovem, ingressa no PCB, trabalha no jornal Última Hora, de Porto Alegre, onde publica o Caderno de Cultura, lado a lado com Luís Fernando Veríssimo.

No Jornal da Tarde, ficou entre 1968 e 1992.

Trabalhou em O Pasquim, na revista Ex, fundou Versus - simultaneamente à grande imprensa, fazia guerrilha na imprensa alternativa.

Ele, bom observador, jornalista, já colocara os olhos nos textos de Cardoso, nos documentos escritos por ele para a Polop, e gostara do estilo.

E especialmente das tiradas irônicas dele durante as reuniões.

Ironia, bem utilizada, é arma eficiente para jornalista.

Reparem: resolveu testá-lo.

Ainda em 1968, propõe a Cardoso escrever matérias para o jornal Ultima Hora, de São Paulo.

O jornal entregara a Marcão a tarefa de escrever matérias para a edição de domingo.

Ele vinha fazendo sob o pseudônimo de Marc Ferrer para não enfrentar problemas com o JT.

Marcão passa a encomendar frilas para Cardoso sobre movimentos guerrilheiros na América Latina, luta dos negros nos EUA, tantos assuntos - enchia-o de livros  e revistas estrangeiras para cada um dos temas, e ele tocava o pau.

O novo Marc Ferrer, muito elogiado por Marcão...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

10 de novembro de 2021

Jary Cardoso: pequeno-burguês...

 

Vida é assim.

Num dia você se altera, briga com o sujeito, zanga com o cachimbo dele, e no outro corre a pedir ajuda.

Diriam os muitos sábios do sertão: mundo dá é volta.

Vida requer cuidado.

Bom não destruir pontes.

Menos ainda, arruinar amizades.

Veio o transe, e aquela sensação delirante de liberdade, o mundo se ofertando de outro modo.

Mas, logo, uma espécie de cair em si.

A emoção da liberdade persistia.

Mas a vida continuava, e não havia mais sequer aquela pequena ajuda dada pela Polop.

Precisava dar conta de si.

E dar conta de si custa.

Foi atrás de quem?

Do Marcão.

Nunca deixara de ser amigo dele, não obstante o destempero com o cachimbo.

E ele nem zangado ficara com a história do cachimbo.

Amigo de verdade.

A meio caminho da conversa com Marcão, pensou nos muitos momentos de angústia sob a clandestinidade.

Era estar vivo para morrer.

Vivia sempre olhando pros lados e pra trás, ressabiado, impressão de sempre estar sendo seguido, preparado para enfrentar a repressão a qualquer momento.

Cuidando de não deixar rastros, nem dar bobeira - qualquer descuido podia comprometê-lo, e aos companheiros.

Recorda: num ônibus com Eric Sachs, o Velho, principal dirigente da Polop, confidencia suas dúvidas existenciais, ser ou não ser militante comunista. Secamente, o Velho responde:

- Isso ocorre muito entre a pequena burguesia.

O pano desce.

Ele emudece.

No caminho, para a conversa com Marcão.

Pedir: ser jornalista pra conseguir o pão de cada dia.

Marcão não se fez de rogado.

Deu um jeito.

Era fevereiro de 1969.

Cardoso gozara o mês sabático.

Agora, trabalhar...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Jary fotografado por Vilma Nascimento em 2017)

Emiliano José

11 de novembro de 2021

Jary Cardoso: vida de copidesque

 

Mudar-se.

Partiu Porto Alegre.

Fevereiro de 1969, e Cardoso teve a carteira profissional assinada como jornalista profissional pela primeira vez.

Sei o significado de uma carteira profissional.

No meu caso, em outubro de 1960, aos 14 anos, experimentei a sensação.

Tornei-me bancário, em São Paulo.

Como se me tornasse adulto precocemente, contribuindo para o sustento da família.

Cardoso iniciara vida de trabalhador, também aos 14 anos, nas Lojas Duton, na capital paulista.

Agora, dando jeito de se sustentar, depois de ter chutado o balde.

Ter saído da militância clandestina na Polop.

Marcos Faerman chamou-o, atendendo pedido dele, para trabalhar na Zero Hora, na capital gaúcha.

O dono, lembra-se, era Ary de Carvalho.

Jornalista, agora de verdade.

Primeiro, repórter.

Um mês depois, editor do Caderno D, suplemento cultural, criado por Faerman, de curta duração.

Vida breve, tal caderno, mas publicação de grande qualidade, a ponto de merecer elogios de Samuel Wainer, o celebrado dirigente de Última Hora, já numa fase outonal face às perseguições da direita brasileira, capitaneada por Carlos Lacerda, e pela ditadura militar.

Terminada a fase cultural, paixão de Cardoso, teve de se conformar com o trabalho de copidesque - nisso, era bom, mesmo não o fazendo com tanto entusiasmo.

Desde o secundário, considerado o rei dos verbos - era portanto sujeito a dominar o português, e podia assim corrigir os pobres repórteres, ao menos aqueles cujo domínio da língua não fosse dos melhores.

Copidesque, leitor comum tem de saber, sempre foi o terror dos repórteres.

Alguns deles, mais tolerantes, cuidadosos - chama o repórter, conversa, explica.

Outros, arrogantes, metem a caneta, não querem nem saber

Repórter só saberá dia seguinte, matéria publicada, o efeito da guilhotina.

Não sei o estilo de Cardoso.

Gostando ou não, a tarefa de copidesque o ocupou durante a maior parte da trajetória jornalística de quarenta anos.

Jornalista, é preciso esclarecer, tem de se virar nos trinta.

É trabalhador, como outro qualquer.

Dificilmente, vive de um só emprego.

Ainda em 1969...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Jary Cardoso: Fui copy do primeiro tipo. Sempre respeitando os repórteres, geralmente injustiçados em termos de salário e de consideração pelos chefes, embora cumpram as tarefas fundamentais do jornalismo: garimpar as informações, saber interpretá-las e conseguir transmiti-las. Cabia ao copy a redação final de acordo com o tamanho disponibilizado pelo editor, com as regras gramaticais e de clareza e fluência do texto. Para isso, é claro, o diálogo com o repórter é imprescindível.

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Emiliano José

12 de novembro de 2021

Jary Cardoso: um dia, Brigitte Bardot

 

Copidesque, cês lembram?

Falei nele.

E no rei dos verbos, nosso Cardoso.

Penso em Guimarães Rosa, agora.

Sujeito quando entra no rio, e Cardoso é homem das águas, nadador experiente, pensa chegar num ponto, e terminada a jornada, se vê noutro, completamente distinto.

Eu pensava começar a falar da caminhada dele como jornalista, e tenho de voltar.

Nosso rei dos verbos viu o Estadão irromper na sua vida um dia.

Estava o rei no primeiro ou segundo Científico, ali pelos 15, 16 anos.

Segurem a ansiedade, vamos devagar porque já tive pressa.

Teve experiência traumática.

A professora de português entra sala adentro e informou: a partir daquele dia, uma vez por semana, os alunos deveriam escrever uma dissertação na sala a ser entregue no final da aula.

O tema, anunciado a cada vez.

No primeiro dia, mandou ver: Brigitte Bardot.

Dona Ruth Prado, com Bardot, entusiasmou a sala, menos a Cardoso.

A professora Ruth foi pra sua mesa, sentou-se e exigiu concentração e silêncio absoluto.

Nosso rei dos verbos olhava para a professora, para a folha em branco, pro teto, pro título, e não sabia começar, não imaginava como.

Paralisado.

Tá legal: sabia dela, de ouvir falar, mas não assistira a um único filme envolvendo-a, todos proibidos para menores de 18 anos.

Sabia bastante, fosse suficiente, pelas fotografias - lindas, sensuais, deslumbrantes.

O que escrever?

Sensações solitárias, fotos à sua frente, movimentos frenéticos, tão linda, supersexy, o mundo, aquele vasto mundo, em suas mãos?

Não, não podia.

Cadê coragem, cadê clima?

Levou zero em Brigitte Bardot - entregou a folha em branco, alvinha, alvinha, virgem, virgem.

Primeiro zero, e primeiro zero a gente nunca esquece.

Desde a entrada na escola, aos seis anos, jamais havia experimentado a dura sensação de um zero.

E justo zero em Brigitte Bardot, tão presente em seus sonhos - os das noites e dos dias.

Justo ele, sempre entre os primeiros da classe e quase invariavelmente o melhor em Português.

No ginásio, vence a competição de verbos promovida na classe pelo professor Nelo Lorenzoni, e é vice-campeão do ginásio inteiro na disputa entre os melhores de cada classe.

Ah, Brigitte Bardot, o que você fez comigo?

Nu, no meio da sala?...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

Joaquim Lisboa Neto: Essa despirocou -dentre milhares, milhões de marmanjos- Roger Vadim 

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(Luiza Cardoso com os netos)

Emiliano José

13 de novembro de 2021

Jary Cardoso: mãe superprotetora, menino mimado

 

Verbo era com ele mesmo.

Naquela disputa de todo o ginásio, entravam apenas verbos irregulares.

O professor sorteava o verbo e o tempo a ser conjugado pra cada competidor.

Quem errasse menos, ganhava.

Cardoso foi vice-campeão.

Pensava no zero em Brigitte Bardot.

Justo ele, tão bom em gramática.

Só tirava nota 10 nas dissertações.

Ele próprio, no entanto, faz confissão: no caso das dissertações, havia, talvez ele exagere, uma fraude.

A julgamento das leitoras, e dos leitores.

Mãe, cês sabem como são, podendo dar um empurrão, não vacilam.

A dele, Luiza Cardoso, fora formada na melhor instituição de São Paulo para o ensino de professores, famosa Escola Normal Caetano de Campos, situada na Praça da República.

Luiza era mulher de muitos predicados: especializou-se em Canto Orfeônico, disciplina criada na década de 1930 por Heitor Villa-Lobos.

E filha do jornalista, maestro e compositor Luiz Baptista Cardoso de Carvalho, Mello Dias o nome artístico.

Quem sai aos seus, não degenera.

De qualquer ângulo se olhasse, escrevia bem, muito bem: caligrafia perfeita e textos muito interessantes.

Fluência, capacidade de descrever o visto e o vivido, daquelas escritoras cuja timidez não permitiu desabrochasse.

Não publicou nenhum livro, a professora Luizinha.

Deixou herança, no entanto: cartas substanciosas para amigas, amigos, parentes, preenchia com diários as páginas da agenda anual, brochuras com memórias pessoais e da família Cardoso de Almeida, cafeicultores poderosos da região de Botucatu.

Mãe assim, tão prendada intelectualmente, no mais, superprotetora, suportaria inerte assistir ao filho único, e mimado, sempre mimado, sofrendo feito cão danado para escrever dissertações pedidas pelo professor de Português no ginásio?

Nem morta.

- Qual o tema, meu filho?

Tomava da caneta e...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

14 de novembro de 2021

Jary Cardoso: aprendendo a escrever sem mamãe

 

Quem é que essa professora pensa que é?

Luizinha, professora Luizinha, sabia de si, de seus valores.

Português, com ela mesma.

Nenhuma professora iria dificultar a vida do filho, tão inteligente.

E danava-se a escrever, com a letra arredondada.

Tempo dela, além de tudo, aprendia caligrafia.

Escrevia quase desenhando cada palavra.

Era Cardoso, o filhinho, dar o tema, e ela, com zelo, esmero, escrevia, desenhava a dissertação.

Fácil: ao filho restava copiar, com sua letra, não tão arredondada como a da mãe, entregar à professora, e correr pro abraço.

Um dez atrás do outro.

A professora olhava pro aluno com admiração.

E ele, mal acostumado.

Gostou daquela vida boa.

Era leitor dedicado, fã de tantos autores, familiaridade com os livros.

Mas, nada de praticar o escrever, nada de exercitar redação própria.

Por isso, ficou nu quando surpreendido por Brigitte Bardot - a professora pediu assim, sem quê nem pra quê, fizessem redação na própria sala de aula.

Que porra.

Olhou pros lados, e cadê mamãe?

Aquele zero, contraposto aos tantos dez tirados em outras redações, o fez cair em si, ganhar coragem.

Com todo respeito, passados alguns dias, foi pra cima da mestra, a de Bardot:

- Professora, o que faço pra me tornar capaz de escrever dissertação na sala de aula?

Na sala de aula -  fosse em casa sabia como.

Ruth Prado não parou pra pensar:

- Leia diariamente o principal editorial do Estadão, na página ´Notas e Informações´. Leia e releia, analise o texto, entenda por que começa de um jeito e não de outro, atente para o desenvolvimento de cada tese defendida pelo jornal.

Introduziu-o nos segredos do jornalismo tradicional e conservador, mas ensinou-lhe também o caminho das pedras para escrever bem.

Religiosamente, cumpriu a tarefa dada pela professora.

Em pouco tempo, já escrevia por conta própria na sala de aula.

Podia não tirar dez como nas redações anteriores, aquelas de mamãe, mas as notas não eram de envergonhar ninguém.

Aprendera a escrever.

E dez anos depois, estava no Estadão, redator da Editoria Internacional...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

15 de novembro de 2021

Jary Cardoso: dona Ruth tinha razão...

 

Na Editoria Internacional do Estadão, penteava telegramas.

Do jargão jornalístico - pentear telegramas.

Recebia material das agências internacionais de notícias, e dava forma adequada a cada uma delas.

Atento às regras do lead, sublead, titulação, diabo a quatro.

Depois de bom tempo penteando, passa a copidesque da reportagem geral.

Dez anos de Estadão, experiência a lhe dar régua e compasso,  garantir empregos posteriores, na maioria das vezes atuando como copidesque.

Volto à dona Ruth, célebre aqui por Brigitte Bardot: a dica dela orientando-o a visitar diariamente os editoriais do Estadão, alimentou a simpatia dele pela direita e pela UDN.

Por um tempo, ao menos.

No terceiro ano do Científico, depois de informar dona Ruth sobre a decisão de prestar vestibular para Psicologia da USP, ouvindo sugestão da subversiva Marie Christine Laznik,  já a meio caminho para se tornar inteiramente de esquerda, ouviu sombria advertência dela:

- Aquilo é um antro de vermelhos!

Convenhamos: ela sabia das coisas.

Era mesmo.

Cardoso, nos três anos seguintes, será vermelho roxo, discípulo de Rosa, Trotsky, Lênin, e de um certo ponto de vista até de Stálin.

Até irromper o transe.

Antes de nos perdermos, voltemos a Porto Alegre, onde Cardoso começou sua jornada jornalística.

Além da Zero Hora, lá chegado pelas mãos de Marcos Faerman, ainda em 1969 aprendeu muito jornalismo como repórter da sucursal da Abril,  orientado por Paulo Totti.

Porto Alegre foi experiência essencial para os anos seguintes, não obstante curta.

Início de 1970, volta pra São Paulo e é contratado como repórter da sucursal de O Cruzeiro.

Ele nunca se esquecerá: estava na revista, famosa O Cruzeiro, e de repente no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.

A pedra: segunda prisão.

O passado me condena...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

16 de novembro de 2021

Jary Cardoso: redator de Internacional

 

Ia contar a segunda prisão de Cardoso, mas devo abrir um parênteses.

Necessário.

De modo a fazer justiça ao nosso protagonista, corrigir-me.

Apressei-me, nadei na superficialidade, e fiz dele penteador de telegramas.

Baseado num breve relato dele, dizendo-se "redator da Editoria Internacional do Estadão, trabalhando em cima de telegramas, atento às regras do lead, sublead e tal".

Nada mais errado.

Trabalhar na Editoria Internacional do Estadão cobrava qualidades de redator, bom texto, conhecimento, qualidades de pesquisador.

Não se penteavam telegramas.

A partir deles, eram feitas matérias, muitas aprofundadas pelas pesquisas dos redatores.

Estadão sempre deu muita importância à conjuntura mundial.

Assim, Cardoso esteve longe de apenas pentear telegramas - isso sequer se fazia no Estadão, ao contrário da prática de muitos jornais brasileiros.

Chegadas as notícias das variadas agências internacionais, botava mãos à obra - não se tratava de reescrever apenas, mas de produzir matérias.

Isso o tornou ainda mais experiente como redator e como pesquisador.

Quando sentia insuficiências nos telegramas, mandava buscar livros na biblioteca do jornal para dar substância à matéria.

Teve o mundo nas mãos nesses anos de Estadão.

Às vezes, para algumas matérias especiais, levava pilhas de livros pra casa - estudar, e depois redigir.

Teve momento de especialização dele em África, na sequência dos movimentos de independência no Continente, especialmente os das ex-colônias portuguesas.

Não obstante jornal conservador, o Estadão ia sempre buscar pessoal de esquerda, de modo especial para a Editoria Internacional.

No caso de Cardoso, quem o indicou foi Marcos Wilson Spyer, de quem já se falou nessa série - ele o conhecia da Polop, sabia dos dotes de redator dele, desenvolvidos a partir dos documentos elaborados por ele para a Organização, e tinha certeza da potencialidade do ex-companheiro comunista, sobretudo quanto ao conhecimento do quadro internacional.

Fecho o parênteses.

Cardoso é rigoroso, bom jornalista: estava errado quando falava em ter trabalhado uma década no Estadão: foram oito anos - rapidamente, a primeira vez, de 1º de junho de 1976 a 7 de junho de 1977; e depois, de 13 de fevereiro de 1980 a 16 de junho de 1987.

Penso ter me redimido, parcialmente ao menos.

Agora, posso pensar na segunda prisão dele.

No próximo capítulo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

17 de novembro de 2021  

Jary Cardoso: na sucursal do inferno

 

Fazia ano e meio já.

Estava noutra, não mais na militância clandestina.

Repórter da sucursal de O Cruzeiro em São Paulo.

Assentado na profissão, Cardoso era já jornalista reconhecido.

A vida surpreende, às vezes, nem sempre para o lado bom.

Há aqueles momentos de estar na hora errada, no lugar errado.

Foi a uma festinha de recepção a um casal de amigos, Jô e Tina.

Conhecera o casal nos meados dos 60, no Rio de Janeiro, apresentado por Marie Christine.

Cardoso não se parecia mais com o militante clandestino.

Cabelão comprido, colar de argolas grossas de metal no pescoço com um crucifixo na ponta à altura do peito.

Eventualmente, valia-se da maconha.

Meio hippie.

Não, não ia imaginar fosse a casa um aparelho de organização guerrilheira.

Escondia o Felipe.

Militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Conhecia o Felipe - do círculo de amigos da Chris.

Em plena festa, todo mundo alegre e feliz, repressão chegou chegando naquela noite de maio de 1970.

Levou em torno de 40 pessoas.

Todas para a sucursal do inferno - como propriamente era chamada a Operação Bandeirante, nascida menos de um ano antes, a servir de modelo para a criação dos DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), estrutura central da repressão em todo o País.

Cardoso, nessa barca.

Seguiu na mesma barca de Felipe - uma C-14.

Algemado, Felipe já era objeto, no caminho, do sadismo dos torturadores - era o principal alvo deles.

Não tinha ideia exata de quem era o Felipe, não mesmo.

Saberá depois tratar-se de Henri Philippe Reichstul, nascido em Paris em 1949, e militante então da VPR.

Vai se tornar celebrado economista.

No governo Fernando Henrique Cardoso, será presidente da Petrobrás.

Felipe sempre evitou falar do assunto.

Tem fortes razões.

A família foi duramente atingida pela ditadura - matou sua irmã, Pauline Reichstul, no ano de 1973, dia 8 de janeiro, no chamado "Massacre da Chácara São Bento", em Pernambuco.

Cardoso passou a primeira noite dormindo sentado num banco de madeira.

Ao lado de Cláudia Hollander, de quem fora namorado - os dois à espera do interrogatório.

Cláudia será astróloga da Folha de S. Paulo...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

18 de novembro de 2021

Jary Cardoso: amor contra o terror

 

A primeira noite passou dormindo no banco de madeira, ele e Cláudia Hollander.

Felipe, o alvo principal da OBAN, rapidamente passou a ser torturado no andar de cima.

Cardoso ouvia os gritos.

Sei: é experiência horrível.

Tanto ser torturado quanto ouvir os gritos de qualquer pessoa sendo torturada.

É tortura.

Dia seguinte, o próprio comandante daquela máquina de moer gente, daquela sucursal do inferno, Carlos Alberto Brilhante Ustra, herói do atual presidente, interroga Cardoso.

Ao lado dele, uma fera selvagem.

Rapaz jovem, olhos faiscando de ódio, aprendeu cedo a odiar comunista ou quem ele pensasse ser.

O menino ia tirando de uma sacola os pertences apreendidos com Cardoso e colocando tudo em cima da mesa.

Fez cara de monstro mais terrível quando levantou o colar hippie, mostrando-o ao chefe como troféu, evidência de periculosidade.

Cardoso não se enervou.

Permanecia calmo.

Como na primeira prisão.

Talvez, quem sabe, a consciência de estar então inteiramente fora da atividade revolucionária o ajudasse, o tranquilizasse.

Ou então, uma atitude mesmo: aquela - diante do perigo o espírito sabe equilibrar-se e encarar o inimigo, se inimigo houver, e no caso havia.

Ustra falou pouco.

Poucas perguntas.

Não era peixe grande naquele momento - disso o torturador devia saber.

Cardoso tomou a iniciativa:

- Será que o senhor podia ler esse documento? - apontou-o entre os pertences dele.

Ustra pegou, passou os olhos.

Documento da sucursal de O Cruzeiro, onde ele trabalhava.

Pedia às autoridades que permitissem realizar as tarefas jornalísticas dele.

Se colar, sempre bom, senão sério risco: inventou historinha.

Estava realizando matéria sobre "terrorismo".

Dispensado, porrada nenhuma, levado a uma cela onde passou outra noite.

Muitos na cela.

Alguns, em bom estado, nenhum sinal de porrada.

Outros, estropiados pela tortura.

Ao ser liberado, depara com Tina, mulher do Jô.

Seguem juntos para uma casa - não se recorda onde nem de quem.

Ficaram num quarto.

Fizeram amor.

Amor contra o terror...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

19 de novembro de 2021

Jary Cardoso: um morde, outro assopra

 

Tempos sombrios, aqueles.

Sei: alguns dirão dos de hoje, também sombrios.

Dirão de um presidente saudoso de Ustra.

Negacionista.

Genocida.

Ainda assim, os anos da ditadura militar, bem mais sombrios.

Especialmente, os anos do governo Médici, quando a máquina de matar e torturar foi aprimorada.

Por serem tempos assim, marcados por terror e morte, difícil remontar o mosaico, organizar lembranças.

Cardoso, quando interrogado por Ustra, não sabia ser ele o Ustra, o terrível torturador, o maior assassino daquele regime.

Só vai saber bem mais tarde, quando ele começou a ser revelado, quando a campanha pela anistia ganhou fôlego.

Não se sabe como reagiria soubesse de quem se tratava.

Sei de companheiros tremendo ao deparar com ele - e não era pra menos.

Ou ao deparar com Sérgio Paranhos Fleury, outro terrível torturador e assassino do período.

Talvez, no entanto, ele, mesmo sabendo, mantivesse o mesmo padrão  - calmo, sem se apavorar diante dos monstros da ditadura.

Volta à casa, as memórias vão e voltam, à festa de recepção ao casal Jô Amado e Cristina Dubeux - a Tina.

Jô Amado será editor-chefe da edição brasileira do Le Monde Diplomatique.

Estava ele sossegado, relaxado, refestelado num sofá quando a invasão, e um meganha estúpido empunhando arma pesada aos gritos mandando-o sair daquele conforto, que porra.

Na C-14, no caminho para a OBAN, um agente se aproxima e puxa papo, assim amigavelmente, voz baixa e pausada, recomendando-lhe calma:

- Se você não deve nada, nada lhe acontecerá.

Fazia-se de protetor, enquanto outro policial dava porradas em Felipe.

Não era de se enganar - desse jogo sabia, sobre ele discutira muito nos seus tempos de Polop.

Sempre há o selvagem e o bonzinho, um morde, outro assopra - besta quem se iludisse.

Pensava: comigo não.

Do caminho, guarda outra imagem: a do motorista.

Jaqueta de couro preta e brilhante, direção arriscada, fazendo barbaridades no trânsito, tocando terror.

Era só ver moça ao volante ou como passageira, reduzia a velocidade da perua, emparelhava, e fazia gracinhas machistas.

Outro agente gritava questionando a virilidade dos rapazes dos carros, acompanhantes eventuais das moças.

Na OBAN, Cláudia Hollander, muito nervosa, chorava, lamentava.

Um agente, com pinta de torturador, gritou:

- Cala a boca!

- Comporte-se!

Apontou para Cardoso:

- Faça como ele, que está aí, quieto e relaxado...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Edgard Navarro: "Amigos presos, amigos sumindo assim, pra nunca mais... as recordações - retratos do Mal em si -, melhor é deixar pra trás..."

A sensação é de que a roda do tempo girou ao contrário e que estamos de volta nas mãos do inimigo...Sim, decerto a tortura é de outra natureza, mas não deixa de ser tortura. O país está se tornando num circo de horrores, é só ver nos noticiários...

Adilson Borges: Verdade, mas podemos dizer que o atual inferno o país escolheu; não foi imposto sob o poder das botas e dos fuzis, e dele podemos nos livrar ano que vem...  

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Emiliano José

7 de novembro de 2021

Jary Cardoso: explicação para o desbunde.

 

Aí, o Pilla disse:

- A causa da sua atitude é a mesma que tanto critiquei na Polop e que me levou a sair da militância e me tornar apenas um simpatizante. Eles [os dirigentes] não respeitam a individualidade dos militantes, exigem e cobram que sejam tarefeiros e disciplinados, sem que possam cometer o mínimo ´desvio pequeno-burguês´.

A explicação vinha como um bálsamo.

Naquela mesa de bar, Cardoso respirou profundamente.

O desbunde começava a ganhar uma resposta.

E vinda de Pilla, não era pouca coisa.

Pediu mais uma.

Valia.

Comemoração.

Cês devem estar perguntando: quem era Pilla?

Nome de batismo: Luiz Pilla Vares.

Militância, começou no PCB, início dos anos 60.

Rapidamente, no entanto, seduzido por Rosa Luxemburgo e Trotsky, chegou à Polop.

Um dos fundadores do Partido Operário Comunista (POC), juntamente com Erich Sachs, Emir e Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Flávio Koutzii e Raul Pont, entre outros.

Surgido o PT, ingressa e se torna presidente do partido em Porto Alegre.

Ligado à cultura, torna-se secretário de Cultura de Porto Alegre nas gestões dos prefeitos Olívio Dutra e Tarso Genro, e secretário da Cultura no governo Olívio Dutra.

Um militante - ele próprio assim se definia.

Um intelectual orgânico.

Nasceu em 5 de março de 1940, mesmo mês e dia do nascimento de Rosa Luxemburgo - ano dela, 1871.

Com a polonesa, se encontrará, através de sua extensa obra revolucionária.

Pra quem cultiva coincidências, outra: Villa morre no dia 9 de outubro de 2008, mesmo dia do assassinato de Che Guevara, em 1967.

Foi este militante a encontrar a explicação para o desbunde...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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(Biografia de Tarso de Castro de autoria do filho de jary, Tom Cardoso)

Emiliano José

21 de novembro de 2021

Jary Cardoso: Tarso de Castro, Amenidades, Folhetim.

 

Tarso de Castro, do lido e  sabido, foi dos grandes do jornalismo brasileiro.

Com G maiúsculo.

Dos melhores.

Dos iconoclastas - registre-se.

Um dos fundadores do jornal O Pasquim, criador do Folhetim, da Folha de S. Paulo, para lembrar alguns poucos feitos.

Reparem: a biografia dele é de autoria de Tom Cardoso - "Tarso de Castro : 75 kg de Músculos e Fúria".

Reparem mais um pouco: Tom Cardoso é filho de Jary Cardoso.

Fui saber disso somente agora.

Havia me encontrado com ele quando ao desenvolver a 17ª edição de "Lamarca, o Capitão da Guerrilha".

Com ele, vírgula - ao pesquisar n'O cofre do Dr. Rui', sobre o memorável roubo, livro de autoria dele.

Quem sai aos seus não degenera.

Cardoso, filho, é autor de vários livros. 

Então, em 1971, Cardoso é indicado por Marcos Faerman para trabalhar com a fera.

Castro, depois de sair brigado com a turma d'O Pasquim, cria nova publicação.

Sócios da empreitada: Glauber Rocha e Luiz Carlos Maciel.

Jornal de Amenidades - sede no Rio de Janeiro.

Cardoso, correspondente em São Paulo.

Durou pouco: proeza de 11 edições, término de existência no final de 1971.

Tarso de Castro não quis deixar Cardoso desamparado: foi a Cláudio Abramo, diretor de redação da Folha de S. Paulo, e pediu por ele.

Por alguns meses, redator da edição dominical.

Durou muito não.

Alguns meses, e novamente desempregado.

O amigo de sempre, padrinho principal, Marcos Faerman, chama-o para embarcar no bonde junto com ele.

- Vamos pro Bondinho.

Foi.

A revista Bondinho nascia da iniciativa...

#MemóriasJornalismoEmiliano

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(Carteirinha do JA com a intervenção de Reinaldo Kageyama, então editor de arte do Jornal da Bahia, que resolveu fazer uma brincadeira, reforçando a semelhança de Jary na foto com o Che, acrescentando a boina)

Emiliano José

22 de novembro de 2021

Jary Cardoso: amizade e fúria

 

Antes de pegar o bonde, falar em amenidades.

Jornal de Amenidades, criação do Tarso de Castro.

Admiração e carinho - o mínimo a se dizer dos sentimentos de Cardoso quando se fala nele.

Foi relação intensa, amizade sincera. 

Jornalista de posições.

Tomou de armas ao lado de Brizola no Palácio Piratini, na Campanha da Legalidade, em 1961, quando a resistência organizada pelo governador gaúcho garantiu a posse de Goulart, contra a opinião dos chefes militares, sempre golpistas, ontem e hoje, insista-se.

Muitos civis foram para o Piratini, dispostos à luta.

Tarso, um deles.

Então, em 1971 criou o JA - assim conhecido, assim aparecia na capa em letras garrafais, Jornal de Amenidades, por extenso, vinha em corpo menor.

Eram amenidades, uma atrás da outra, e serviços.

Houve entrevistas interessantes.

Uma delas, no número 7, feita por Cardoso: com o psiquiatra José Gaiarsa - título: "Psicanálise já era", três páginas.

Jornal de amenidades, mas provocativo.

Tarso de Castro não faria publicação sem sal sem gordura.

No número 11, Tarso de Castro pensou numa enquete, ouvindo personalidades: deveriam listar quem consideravam os cinco mais chatos do País.

Um dos cinco, necessariamente incluído, de acordo com orientação do editor, era Ele - e por Ele subentendia-se Médici, não nominado.

Cardoso, o repórter a entrevistar os famosos de São Paulo.

Juca Chaves sartou de banda:

- Sabe como é que é, né, os que eu considero chatos ainda têm muito poder, e eu preciso fazer meus shows para sobreviver.

Amarelou, o Juca - ácido com Juscelino, suave com a ditadura.

O JA inovava quanto a serviços - numa das edições, técnicos eram entrevistados para falar sobre os eletrodomésticos, como consertar, conservar, tempo de vida, coisas assim: tentava ser útil.

Foi um novo caminho encontrado pelo Tarso de Castro, muito diferente d'O Pasquim', de que foi editor por muito tempo, e do qual foi um dos principais idealizadores - para Cardoso, O idealizador.

N'O Pasquim', desde o início teve conflitos com os demais fundadores, como em qualquer redação.

Depois da briga final, na interpretação de Cardoso, foi apagado da história do jornal - "tal e qual Stálin fazia com os inimigos",

Cardoso teve uma ideia, e começou a tocar em frente: escrever um livro sobre a imprensa marginal.

Entrevistou Luiz Carlos Maciel, Jaguar, e propôs ouvir Tarso de Castro.

Topou.

Da seguinte maneira:...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

23 de novembro de 2021

Jary Cardoso: a tempestade, em nome do Pai

 

Cardoso começou a fazer as entrevistas, pensando no livro sobre a chamada imprensa marginal, ou alternativa, como mais conhecida.

Depois de entrevistar algumas das estrelas daquele jornalismo, parou.

E o livro não chegou às livrarias.

Falou do projeto para Tarso de Castro, e revelou a intenção de entrevistá-lo.

Era personagem intrigante, raro, pelo brilhantismo e, não se negue, boa dose de autoritarismo, dado ao mandonismo.

Estrelas, às vezes, são assim.

De lembrança de Cardoso: chegou a dar murros em Ziraldo, levado a nocaute por ele.

Um rebelde, um anarquista, não propriamente sem causa: o anticapitalismo era a causa.

Em meio a tudo isso, cultivava admiração por Brizola, vinda desde a Campanha da Legalidade.

Tinha momentos de loucura, desvario: um dia, num bar, no Rio, dinheiro no bolso proveniente de anúncios d'O Pasquim', pegou tudo e jogou pela janela, os transeuntes assustados e admirados e lutando para pegar as notas.

Um personagem assim, valia a pena.

Difícil pensar nele como sujeito para dirigir comercialmente qualquer empreendimento, e por isso os conflitos permanentes com quem tivesse pés no chão.

Um dia, depois de ter pedido entrevista, Cardoso é surpreendido:  Castro chega à casa dele em São Paulo, toma da máquina de escrever, três laudas num rompante - era o que tinha a dizer.

Não usou porque o livro restou na gaveta, abandonado, rascunho.

O filho Tom aproveitou a pesquisa dele, recolheu as pérolas, e incluiu tudo no livro sobre Tarso de Castro.

Não é difícil concluir o quanto aquela tempestade de músculos e fúria fascinava Cardoso.

Na memória, retém uma enormidade de coisas sobre ele.

Mistura grandes personagens do jornalismo brasileiro nessas memórias, maior parte deles em trajetória de conflitos com a tempestade...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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(Revista Caretas, editada por Tarso de Castro) 

Emiliano José

24 de novembro de 2021

Jary Cardoso: o lápis do Serjão

 

Quando fala da convivência da Fúria com grandes personagens do jornalismo, Cardoso não está exagerando.

Tarso de Castro sempre conviveu com os maiores, por ser um deles.

Pero, de difícil convivência, como já dito e redito.

Esteve lado a lado com Sérgio de Souza, por exemplo.

Dos maiores jornalistas que conheci.

Convivi com ele primeiro no Jornal da Bahia, em 1978, quando editor-chefe do Jornal da Bahia. Na ocasião, entre vários, trouxe junto outra fera, Narciso Kalili, com quem também convivi - dos grandes, inegavelmente.

Serjão, o avesso do avesso da Fúria.

Sereno, tranquilidade pra dar e vender, talento e sabedoria a esbanjar.

Comandou muitas redações.

Sem nunca dar um grito.

Figura fundamental de Realidade, nos primórdios da revista.

Fundador da Caros Amigos, revista onde publiquei, no número um, a histórica fuga de Theodomiro Romeiro dos Santos, além de outros textos.

Morreu cedo, e sobre ele, produzi o texto "O lápis do Serjão", referência à mania dele de corrigir, copidescar os textos à lápis, nada de caneta, e era um olhar tão rigoroso quanto o de Jary Cardoso, não fosse mais - foi minha maneira de homenagear um mestre, última homenagem.

Editor de alguns livros meus - Marighella e Renzo, entre eles.

A partir de certo momento, não queria mais ver Tarso de Castro pela frente.

Assim, com um mundo de gente - pense num sujeito capaz de acumular desafetos.

O talento, enorme, era proporcional à capacidade de provocar divergências e inimizades.

Não se falou, ainda, dele editor da revista Careta e nem do jornal O Nacional, título recuperado por ele - no passado, editado pelo pai, Múcio de Castro.

Bebia muito, e nunca quis ouvir conselhos de moderação.

Morreu de cirrose hepática, aos 49 anos.

Viveu a vida confrontando desafios, criando, dando murros em ponta de faca, abrindo caminho na porrada.

Fúria, tempestade. 

De tanto ouvir falar dele, ansioso pra ler o livro de Tom Cardoso - repito, pra não ouvir perguntas: 75 kg de Músculos e Fúria.

Nosso protagonista, hoje, foi ofuscado pela Fúria - é da vida...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

25 de novembro de 2021

Jary Cardoso: pegando o bonde

 

Ontem, falando de Tarso de Castro e Sérgio de Souza, disse de possível relação entre eles, direta.

Não é bem assim.

Cardoso me corrigiu.

Aconteceu assim: já saindo, ou já fora do Jornal de Amenidades, criado por Tarso, publicação já no fim, resolve fazer uma entrevista com Tarso de Castro.

Ligou o gravador, e pau.

Escreveu.

Na matéria, entre tantas coisas, Fúria desencava um bom número de jornalistas, estrelas consagradas, com quem convivera, a quem conhecia de cor e salteado.

Matéria quente, pensou Cardoso - e era.

Serjão, editor do Bondinho, onde Cardoso já estava, recebe, coloca-a na gaveta.

E lá a matéria restou.

É provável Serjão tenha considerado impróprio comprar briga com colegas de profissão, alguns provavelmente amigos dele.

De integridade a toda prova, era, no entanto, dado à conciliação, não estivessem em jogo princípios essenciais.

Dela, da matéria, Cardoso jamais teve notícia, nem da fita cassete.

Assim, esclarecido: Cardoso nunca testemunhou tenham os dois trabalhado juntos.

De confronto entre os dois, se é possível chamar assim, apenas esse - indireto, silencioso.

Ainda perseguindo trajetória jornalística de Cardoso, vamos surpreendê-lo agora numa revista, já dissemos de passagem.

Bondinho começou patrocinada pelo grupo Pão de Açúcar - a revista era distribuída gratuitamente nas lojas e supermercados do grupo.

Reuniu a nata do jornalismo brasileiro, especialmente profissionais egressos da Realidade, rompidos com os novos rumos imprimidos pela Editora Abril à revista.

Além de Serjão, podem ser lembrados Narciso Kalili, Woile Guimarães, Roberto Freire, Mylton Severiano da Silva, Hamilton Almeida Filho, Odiléa Toscano na Ilustração, George Love e Cláudia Andujar na fotografia.

Brinquedo não - um time de primeira linha.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Joaquim Lisboa Neto: Mylton Severiano da Silva, Myltainho -deve ser o mesmo-, grande admirador de Osório Alves de Castro, na Enfermaria, Caros Amigos junho 2001, ele publicou texto sobre o centenário do nosso romancista  

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(Casamento com Ana Lúcia Magalhães, em frente ao cartório em São Paulo, final de janeiro de 1971) 

Emiliano José


26 de novembro de 2021

Jary Cardoso: marido e mulher na carona de um motoqueiro

 

Era ali, no meio de tanta cobra criada, a próxima parada de Cardoso.

Último número do Jornal de Amenidades (JA) saiu no final de agosto de 1971.

Foi pra Ubatuba, litoral paulista, casa de amigo.

Desempregado, melhor fosse passar tempo flanando, ao lado de jovens malucos e criativos, como ele mesmo define, entre os quais Afonso Coaracy, conhecido dele nas movimentações estudantis, do curso de Direito da Católica, ele e Zé Dirceu, ambos da Dissidência do PCB.

Nesses dias de Ubatuba, Coaracy dá carona a duas lindas meninas.

Conversa vai, conversa vem nessa carona: ele casou com uma, Cardoso com a outra, Ana Lúcia - Aninha.

Carona proveitosa.

Casou no final de outubro, a contragosto do pai, magistrado mineiro da Justiça do Trabalho.

Pai disse ao genro: arrume trabalho.

Tive tentação jornalística de lascar um "vá trabalhar, vagabundo", mas me contive, que o juiz não devia de ser assim tão abusado.

Nem Cardoso era de levar desaforo pra casa.

Mas, ajuizado, tomou um ônibus, desembarcou no Rio de Janeiro, pediu socorro ao amigo Tarso de Castro, naquele momento meio desacorçoado, ele próprio sem perspectiva de trabalho, decepcionado com os amigos ricos, incapazes de colocar a mão no bolso para ajudá-lo a garantir a sobrevivência do JA.

Assim estivesse, não se negou no entanto a ajudá-lo: pegou um papel  e escreveu ligeiro bilhete para Cláudio Abramo:

"Este é meu amigo Jary Cardoso. Contrate-o. Tarso".

Impositivo.

Sem rodeios.

Meteu o bilhete num envelope e entregou-o a Cardoso.

Foi com tal envelope a chegada dele à redação da Folha, e ficou impressionado como o consagrado jornalista obedeceu à ordem.

Contratado em 16 de novembro de 1971, demitido em 22 de janeiro de 1972 - meteórica presença.

O editor da Editoria de Domingo, José Álvaro Moisés, mais tarde sociólogo de nomeada, não foi com a cara dele.

Tem certeza: fez boas matérias.

Mas, o santo não bateu, fazer o quê?

Aí, chegou ao Bondinho, convidado a trabalhar com o Marcos Faerman e com o hoje celebrado Fernando Morais, na Editoria de Artes e Espetáculos.

Quem diz é Cardoso: ele e Aninha iam de carona para a redação do Bondinho.

Na garupa da moto de Fernando Morais.

Queria uma foto: os três, bem agarradinhos.

Não consegui...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

27 de novembro de 2021

Jary Cardoso: Bondinho, motivo de orgulho

 

Início de 1972.

Cardoso chegava ao Bondinho.

Foi experiência ligeira.

Em maio, se os meus registros estiverem bons, a experiência terminaria - Bondinho deixaria de circular.

Teve primeira fase, de novembro de 1970 a dezembro de 1971, bancada pela rede de supermercados Pão de Açúcar.

Depois, vida própria.

Mas, como suportar?

Custos são altos.

Aguentou até maio do ano seguinte.

Foram 13 edições nessa fase, segundo Rubens Fernandes Júnior, no texto "A experiência da revista Bondinho".

Foi uma das mais brilhantes experiências da imprensa alternativa.

E pelas informações, chegou a rodar 400 mil exemplares.

Cardoso considera a revista uma de suas grandes experiências jornalísticas.

Os trabalhos realizados no decorrer daqueles poucos meses foram marcantes na opinião dele, motivos de orgulho.

Pode lembrar entrevista de capa  com Bethânia - não era pouca coisa, não.

Ou com Mautner - outro gigante.

Matérias nas páginas internas, de grande significado.

Com o Rei do Baião, o show de volta do Luiz Gonzaga, inesquecível.

A visitação do feminismo, com Rose Marie Muraro.

Reviveu Estúpido Cupido, Banho de Lua - entrevistou Celly Campello.

Luiz Carlos Maciel, considerado um dos gurus da contracultura, um dos fundadores de O Pasquim.

Nada disso, nenhuma dessas entrevistas nasceram ao acaso.

O chefe direto dele era Hamilton Almeida Filho - o HAF.

Faz parte da santíssima trindade de Cardoso no jornalismo - a ele se agregam Marcos Faerman e Tarso de Castro.

HAF conhecia o time, sabia as matérias mais apropriadas ao talento de Cardoso, e foi pautando-o.

Frustração, a primeira: a não publicação da entrevista com Tarso de Castro.

Houve uma segunda: jornalismo tem disso - sucessos e frustrações.

Esta, com Elis Regina.

HAF pediu fosse atrás dela.

Desembarcou no Rio de Janeiro.

Ao lado dele, acompanhando-o, a mulher, Aninha.

Conversa fluiu, e ele não esquece a contribuição de Aninha - ajudou a criar o necessário clima de intimidade para uma boa entrevista.

Ele, tentando manter postura profissional, esforçando-se.

Explique-se.

Elis aparecia pra ele como personalidade fortíssima, além de tudo encantadora, mulher linda, deslumbrante, e sexy - tem de confessar tais impressões.

E aí...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

28 de novembro de 2021

Jary Cardoso: olhos de ressaca

 

Elis Regina, são recordações de Cardoso, enfrentara havia pouco tempo frustração amorosa com Nelson Motta  e acabara de se apaixonar por César Camargo Mariano, este vivendo com outra mulher.

A entrevista prosseguiu na mansão dela, na avenida Oscar Niemeyer.

Papo demorou, e no curso, Elis convidou-os, a ele e Aninha, para dormirem na mansão.

Destinou aos dois um amplo quarto.

Papo invadiu altas horas, e Aninha seguiu antes para dormir.

Cardoso levou mais algum tempo jogando conversa fora.

Elis levantou-se, e começou a subir a escada em direção ao quarto dela.

Ele, olhando os passos daquela mulher exuberante.

Nos primeiros degraus, ela para.

Olhava-o, ele retribuía, e retribuía com olhos de ressaca.

Mirava Elis de baixo para cima, e o grave, ou o melhor, ela estava de minissaia.

O olhar dela, também olhos de Capitu, de ressaca, cobiça - ao menos assim interpretou-o.

Ela parada, os dois se olhando.

Segundos intensos.

Ele juntou todas as forças do espírito, esmagou o tesão, resistiu.

Havia casado com Aninha fazia pouco tempo.

Não podia colocar tudo a perder.

Elis subiu, sozinha.

Cardoso foi para o quarto onde Aninha já dormia a sono solto.

Chegou a São Paulo, entusiasmado, saboreando previamente o feito jornalístico.

Escreveu a matéria, entregou-a.

Passava o tempo, e nada de vê-la publicada.

Um dia, Narciso Kalili, um dos editores da revista, chegou à mesa dele:

- É tudo mentira aquilo que a Elis disse pra você. Conheço ela muito bem, eu trabalhava na Record e as invenções e mentiras dela eram muito frequentes. Não tem condições de sair essa matéria.

Outra frustração - e das grandes.

Ao menos ficaram boas lembranças da conversa, do papo alegre, e daqueles inesquecíveis segundos dos olhares de ressaca...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: pimentinha ardia

Joaquim Lisboa Neto: A vulcânica baxinha

Joaquim Lisboa Neto: Resistiu a cair nos braços da malagueta 

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Emiliano José

29 de novembro de 2021

Jary Cardoso: HAF Palace Hotel

 

Pensa: a última edição da revista Bondinho trazia Zé Celso (Martinez Corrêa) na capa, maior parte da matéria dedicada ao Oficina-Uzona, grupo teatral liderado por ele.

Naquele maio de 1972, Cardoso continuava morando com Ana Lúcia, Aninha, a primeira mulher.

Moravam no HAF Palace Hotel.

Todo mundo chamava assim o apartamento de andar inteiro, de elevador privativo, no final da avenida Rio Branco, na capital paulista, oficialmente residência do editor-chefe do Bondinho, Hamilton Almeida Filho - HAF.

Na prática, o apartamento prestava-se a acolher o funcionamento de parte da redação - ali se trabalhava duro na distribuição das pautas, no recebimento das matérias, na edição, no fechamento da revista.

E era, de alguma forma, uma comunidade meio hippie e meio profissional.

Havia alguns moradores fixos - o próprio HAF e a mulher dele, Lúcia Correia Lima, e também Cardoso e a mulher.

O apartamento era grande - Cardoso, pela amizade com HAF, gozou desse privilégio.

Alta frequência de jovens e obstinados jornalistas da pesada. 

Um dia, Zé Celso e Renato Borghi chegaram com suas tralhas e acamparam na enorme sala do apartamento.

Os dois multiplicaram a agitação - choviam discursos, debates entre berros e gargalhadas, noites e dias seguidos.

Desses discursos e debates, todos participavam.

No meio desse fuzuê, saía a Bondinho.

Tudo muito louco, tudo muito bem, mas no meio do caminho havia uma pedra.

Repressão não estava pra brincadeira.

1972 era período Médici, o mais terrível da ditadura.

Marcos Faerman, já fora da revista, manda um recado impositivo para Cardoso:

"Sai imediatamente do País. Os homens estão a fim de te pegar. Seu nome consta como fundador e dirigente do POC. Fui mais uma vez chamado para interrogatório e vi a lista das pessoas em que eles estão interessados. Pega suas coisas básicas e some!".

Não pensou duas vezes.

Ganhou a estrada.

Ele e Aninha, grávida.

O ônibus no caminho para Pedro Juan Caballero, cidade fronteiriça do Paraguai, colada a Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul.

Destino final: Santiago do Chile, onde Salvador Allende governava....

#MemóriasJornalismoEmiliano


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Emiliano José

30 de novembro de 2021

Jary Cardoso: tarefa arriscada

 

Estava numa rota de fuga já conhecida.

Convém dizer conhecida como.

Voltar um pouquinho no tempo.

Vivera o ano de 1969 em Porto Alegre, já contamos a experiência dele no Sul, onde iniciou a trajetória jornalística.

Voltara, e estava sossegado em casa, e ao mesmo tempo atormentado porque desempregado, sem saber rumo a tomar.

Encontrara uma profissão

Era jornalista agora, mas sem emprego.

Amiga muito querida, já falada em prosa e verso aqui, bate à porta.

Ela o levara à Polop, cês sabem dela: Marie Christine Laznik.

Cês sabem também: Cardoso estava afastado das atividades revolucionárias diretas, depois do transe.

Ela foi entrando e logo dizendo: pudesse, queria um favor dele, um grande favor.

Sabia de uma coisa: pedido dela, por tudo, nunca poderia negar.

Marie disse da situação.

Filho mais novo do casal Boris e Regina Schnaiderman, Carlinhos, havia se metido com uma das organizações da luta armada.

Cardoso não se recorda se Ação Libertadora Nacional (ALN) ou Vanguarda Popular Revolucionária (VPR)

Resumo da ópera: ninguém menos que o famigerado Sérgio Paranhos Fleury estava no encalço dele.

Pegassem-no, ninguém imaginava o destino do rapaz, se escaparia com vida sequer.

Ela ouviu dos pais o apelo dramático: alguém precisa acompanhar Carlinhos na fuga para o Chile.

E fosse alguém com alguma experiência, traquejo.

Na cabeça dela, ninguém melhor, mais apropriado: Cardoso.

Indicou-o aos pais.

Só não havia combinado com o russo.

Fazia-o agora.

Ouvindo-a, o pensamento a mil.

Estava fora das atividades revolucionárias, mas como deixar de atender o pedido de pessoa tão querida?

E de um casal, também tão respeitado, querido?

Boris, professor de línguas orientais, tradutor de Maiakóvski, de tantos poetas russos.

Regina, psicanalista ortodoxa da escola freudiana, mulher de fibra, personalidade fortíssima.

Os dois o conheciam bem.

Só podiam confiar o filho a alguém da mais profunda confiança...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

1º de dezembro de 2021

Jary Cardoso: segurança de adolescente rebelde

 

Boris e Regina Schnaiderman era um casal raro.

Além de tudo, pais de Miriam, com quem Cardoso havia namorado.

Fora Marie Christine o anjo anunciador para aquele mundo judaico-comunista.

Heresia dizer isso?

Judaico-comunista?

Ora, e quem foi Marx?

E tantos outros judeus, comunistas?

Cardoso era bem aceito entre aqueles judeus intelectualizados, eruditos em alguns casos.

Um goy - um não judeu amigável e de confiança.

Ele próprio, bem mais tarde, descobrirá, se isso tiver importância, também ter sangue judeu - Cardoso é sobrenome típico de cristãos novos.

O casal saudou calorosamente a aceitação da tarefa de deixar o filho no Chile.

Deram-lhe dinheiro para as despesas de viagens, instruções sobre a rota a seguir e disseram até do comportamento - espécie de manual de segurança: ele conhecia bem do ramo, mas o que abunda não prejudica.

Deveria tentar manter-se ligeiramente distante de Carlinhos, mas sempre de olho nele e nas pessoas do entorno.

Atenção: caso a polícia apanhasse o menino, era importante Cardoso estar a salvo para poder avisar a família imediatamente.

Levou consigo um número de telefone, devidamente mocozado.

Viagem longa, cansativa.

Houve momentos de relaxamento na segurança, e ficaram juntos.

E a proximidade às vezes desembocava em conflito porque o Carlinhos era um adolescente bem rebelde, a acreditar na avaliação de Cardoso, e é pra acreditar.

Final de jornada, e Carlinhos foi entregue no Chile, como o combinado.  

Confessa: com problemas de relacionamento e tudo, gostou do rapaz.

Nunca mais soube dele.

Curioso, pesquisou na internet, e o localizou, falando em 2015 como secretário municipal de Saúde de Guarulhos, onde também teria sido vereador, não sabe por qual partido.

Ar tranquilo, nenhum sinal mais daquele jovem agitado, e muito parecido com o pai.

Tempo, tempo, tempo...

A viagem o preparara para a outra, a de quase meados de 1972.

O destino, novamente Chile...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

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(Jary com Ana Lúcia esperando os filhos gêmeos)

Emiliano José

2 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: on the road

 

Quando você pensa no diabo quieto, ele volta a atentar.

Imaginava não fosse ser mais incomodado pela ditadura.

Estava na dele já havia algum tempo.

Ditadura o vigiasse, e saberia estar devotado ao ganha-pão, agora ali no Bondinho, dando duro.

Adianta, não.

Ditadura é ditadura.

E qualquer indicativo, volta atrás do antigo militante.

Fica a marca.

Quando Marcão lhe deu a dica - os homens estão a fim de você - deu frio na barriga.

Quando disse saia do País, não pensou duas vezes.

Nos momentos difíceis, sempre pensava rápido.

E a experiência dos tempos de militância na Polop lhe valia muito.

Defrontado com o perigo, era tomado sempre por uma calma impressionante.

Conversou com Aninha, mostrou-lhe não haver outra alternativa.

Grávida, arrumou algumas mudas de roupa, e pé na estrada  - os dois.

À saída de São Paulo, olhava prum lado, pra outro, todas as antenas ligadas, verificando não estar sendo seguido.

De ônibus, primeiro para Pedro Juan Caballero.

De lá, Assunção.

Do Paraguai, destino Buenos Aires.

Da capital argentina, seguir para Santiago do Chile, onde Allende governava, onde a esperança de um socialismo fundado na democracia parecia real.

Passaram por Mendoza, o ônibus seguindo - atravessaram os Andes até chegar à capital chilena.

Não fora possível participar da finalização da última edição do Bondinho.

Providencialmente, no entanto, alguém, no dia da partida, entregou-lhe uma prova de pré-impressão da revista.

Durante a longa viagem e os três meses de Chile, lia e relia o Bonde.

Tentava no percurso, ele e Aninha, guardar parecença com jovens brasileiros em viagem turística.

Levava a tiracolo o inseparável gravador cassete, o velho companheiro de tantas entrevistas.

Em cada parada, e foram muitas, inseria no cassete fitas com gravações de Roberto Carlos ou de músicas pop de sucesso...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

4 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: banzo do exílio

 

Quem tivesse saído do Brasil, aquela ditadura Médici, anos de terror, sobretudo no pós-AI-5, estar no Chile era uma sensação muito boa.

Já era ditadura de alguns anos, desde 1964, a brasileira.

No Chile, aquele clima democrático, as ideias de esquerda em alta.

Cuba, presença constante - modelo, exemplo de luta revolucionária, bastião de resistência.

De repente, o dinheiro levado do Brasil começou a escassear.

Viver custa, mesmo acolhidos na casa do amigo encontrado na estrada, ele e a mãe tão generosos.

As deliciosas empanadas chilenas, seriamente ameaçadas.

Cardoso resolve então, coração partido, torrar nos cobres um presente da mãe, de meses antes: preciosa máquina fotográfica Pentax.

Rendeu tantos pesos chilenos, a máquina, a ponto de dar aos dois a ilusão de pessoas ricas.

Saíram entrando em lojas, comprando ponchos vistosos, dos melhores.

Passaram a comer nos melhores restaurantes.

Vida boa.

É, mesmo ricos, o banzo surge, apesar da liberdade e dos pequenos prazeres.

Tristeza profunda, sentiam os dois.

Cardoso sentia uma falta terrível do Brasil.

Falta danada de conversar com brasileiros.

Viver os costumes do País, a cultura, jeito de ser.

Aninha, a cantar baixinho músicas de Chico, Caetano, acreditando distrair-se, de modo a não pensar muito na vida levada no Chile, distante da Pátria, enquanto a barriga crescia para dar espaço aos gêmeos.

Não, os filhos não podiam nascer ali, tão distantes da família.

De modo nenhum.

Cardoso, lendo ficção científica.

Conseguia viajar num "Mundo Paralelo" - título do autor preferido dele então, Clifford D. Simack.

A descoberta dessa literatura, no Bondinho - nele se publicara alguma coisa da área, textos e desenhos.

Na bagagem da fuga, havia muito dessa literatura.

Cardoso vivia, ainda, invocando a mãe, pretendendo tivesse ela a capacidade, nessa invocação, de resgatar a mediunidade reprimida por ele quando jovem ateu e incrédulo.

Quando menino, tinha visões, rostos, bichinhos coloridos se mexiam e queriam se comunicar com ele - ao menos, pareciam pretender tal comunicação.

Tinha medo - dizia à mãe.

Ela o levou a uma sessão espírita para afastar tais espíritos.

No Chile, vontade, tentação de tê-los de volta.

A mãe, no Brasil, preocupada, morrendo de saudade, e querendo-o por perto.

Começou a mexer os pauzinhos...

#MemóriasJornalismoEmiliano    

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(A mãe Luiza Cardoso regendo um de seus muitos corais de estudantes)

Emiliano José

5 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: mãe é mãe

 

Ele, no banzo chileno, doido pra ter os espíritos de volta.

Com eles, pegar um disco-voador e sair deste mundo cruel.

Quem sabe, os espíritos o levassem a territórios menos inóspitos, mais solidários e sem ditaduras.

A mãe, preocupada.

Mãe é mãe.

Queria porque queria: voltassem os dois.

O mais rápido.

Nem pensar em nascimento dos netos longe dela.

Íntima de um companheiro de fraternidade espírita, foi atrás pra levar uma conversa.

Sujeito, fosse nada, era militar da ativa.

Major Dirceu, da Aeronáutica.

Naqueles tempos, mão na roda.

Foi até ele e contou a história.

- Meu filho está no Chile. Mulher grávida de gêmeos. É jornalista hoje, só isso. Teve umas coisinhas no passado. Está limpo, mas teme ser preso ao desembarcar de um avião chileno.

O major, atento, ouviu tudo com atenção em respeito à fraternidade espírita.

Ouviu e garantiu:

- Mande seu filho embarcar. Estarei no Galeão. Acompanharei o desembarque dele.

Mãe é mãe - se ela não faz milagres, nem Deus faz.

Dinheiro para as passagens, tinha.

Ainda restava algum da venda da milagrosa Pentax.

Pegaram o avião em Santiago.

A mais longa viagem aérea feita na vida.

Ele e Aninha desceram tensos.

Ditadura é ditadura.

Major Dirceu estava lá, como prometido.

Homem de palavra.

E de correr riscos.

Fazer aquilo sob uma ditadura, requeria coragem.

Serviço completo: levou os dois para a casa dele.

Por alguns dias, foram muito bem tratados pela família do militar.

Até partirem para São Paulo.

Pulou fogueiras.

A primeira, não ser incomodado pela ditadura brasileira.

A segunda, não ser alcançado pela feroz ditadura chilena, implantada 11 de setembro do ano seguinte, o facínora Pinochet à frente, Allende sob as cinzas do La Moneda.

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

6 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Bondinho, cartão de apresentação

 

Saltar fogueiras não era propriamente algo desconhecido para Cardoso.

Muitas, na vida.

Agora, cuidar do pão de cada dia.

Gêmeos a caminho, existência cobrava providências.

Ao voltar pra São Paulo, sentiu-se distante do pessoal do Bondinho, cujo fim acontecera em maio daquele ano.

- "A turma radicalizou, se enturmou com Zé Celso, e acabaram todos presos".

HAF editou jornal na prisão.

Cardoso, acompanhava tudo de longe.

Curioso: sentia-se estrangeiro em São Paulo, deslocado.

E havia o espectro da OBAN.

A tigrada, quem sabe, poderia ainda botar as mãos nele.

São Paulo era o epicentro da repressão no País.

Melhor tirar o time.

Aninha e ele aportaram novamente no Rio de Janeiro.

Os pais dela garantiram aluguel de apartamento na Rua Lauro Muller, décimo quarto e último andar de prédio em frente ao Canecão.

O apartamento ficava nos fundos do prédio e havia um janelão na sala, a permitir visão deslumbrante do Morro da Babilônia.

Começava nova história, intensa e de pouca duração.

Trabalhar com o empresário tropicalista Guilherme Araújo, a quem ele apresentou-se como ex-repórter do Bondinho, boa carta de apresentação.

Do Bondinho, lembranças sempre presentes.

Naquele momento, iniciando nova jornada, e com um tropicalista, mais ainda.

Desde "O Pasquim" de Tarso de Castro, lançado em meados de 1969, as atenções dele como jornalista estavam voltadas para esse tipo de publicação.

Nas bancas, ia atrás de cada edição d'O Pasquim', com a obstinação de colecionador - é provável que reste boa parte dessa coleção na casa dele.

Não só d'O Pasquim'.

Foi assim também com "Flor do Mal", surgida em 1971, fundada por Luiz Carlos Maciel, Tite Lemos, Rogério Duarte e Torquato Mendonça.

Excitou-se quando viu o Bondinho na bancas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Joaquim Lisboa Neto: Da Flor do Mal, quando vivia em Beagá, li as se não me equivoco três e nada mais edições.  Se não for viagem lisérgica era tamanho A4 

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Emiliano José

7 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: desbunde concentrado

 

Precisava fazer o cerco.

Aproximar-se.

Assim como quem não quer nada, querendo.

Começou frequentando a redação da revista, na sede da Arte & Comunicação Editora (A&C),1971.

Quando o Bondinho despontou nas bancas, leva um susto: nunca vira uma publicação alternativa de tanta qualidade.

A A&C editava o Bondinho e outras publicações, como o Grilo, primoroso gibi underground - continha a vanguarda dos quadrinhos brasileiros, europeus e americanos: segurou as pontas entre 1971 e 1973, censura determinou o fim.

Editou ainda o Jornalivro, de 1971 a 1975, comandado pelo escritor Roberto Freire, psiquiatra reichiano, anarquista: pretendia levar clássicos da literatura para as bancas  de jornais a preços populares, e conseguiu.

No frigir dos ovos, tomou o bonde.

O Bondinho, já foi dito, foi a mais rica experiência jornalística dele.

Esses dias, provocado por mim, Cardoso deu-se de abrir algumas caixas de papelão em casa e deparou com preciosidades: quase todas as edições do Bondinho independente e algumas da fase patrocinada pelo supermercado Pão de Açúcar.

Topou também com várias edições do Ex, corajoso jornal libertário, sucessor do Bondinho.

Pesquisadores podem se deliciar com esse acervo.

Talvez já tenha dito: a redação do Bondinho era constituída de jovens com aparência igual à dele, até mais espalhafatosa: cabelos compridos, roupas coloridas, camisetas curtas, umbigo sempre aparecendo, calças bocas de sino, colares, pulseiras, anéis, festival de cores.

Desbunde, pero desbunde concentrado. 

As edições do Bondinho permitiram a Cardoso navegar por sobre a história dele na revista.

Dele e de parceiros.

Estava acompanhando a edição onde se encontra a entrevista de Tom Zé, concedida a Ricardo Vespucci, repórter preferido de Hamilton Almeida Filho (HAF).

Vê sair de uma sala de repente, o próprio, Tom Zé...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Jary e a Vó Mercedes, que teria sido fruto da relação sexual de um Cardoso de Almeida com a escrava Inês)

Emiliano José

8 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Tom Zé e a "Preta Velha"

 

Antônio José Santana Martins.

Tom Zé.

Filho de Irará.

Sertão de gente braba.

E talentosa.

Terra perigosa, porque cheia de comunistas.

Ele próprio, de família vermelha.

Os Santana dali de Irará fizeram história na luta revolucionária.

Ligados ao PCB.

Mais famoso deles, Fernando Santana.

Saiu de Irará para impressionar o País e o mundo - esteve exilado quando do golpe de 1964.

Deputado algumas vezes.

Outro, quase tão famoso quanto Fernando Santana, nascido naquelas paragens de Irará: Aristeu Nogueira, dedicado à luta revolucionária, dirigente do partido por décadas.

Ali, desembarquei um dia pelas mãos de Edson Barbosa, filho de Tieta e de Edson, ele iraraense talentoso, festejado publicitário.

Ali fui sempre muito bem acolhido desde o início dos anos 80, e tive votos quando disputei mandatos parlamentares. 

Em meio aos Santana, fiz amizades: tanto o velho Fernando, o velho João, pai de Elísio.

Elísio Santana, com quem até hoje convivo, tantos outros.

Tom Zé vem daquela terra abençoada, agraciada pela presença de tantos comunistas.

A revolução dele, real, espécie singular de tropicalista, veio por outros caminhos, mas se de Irará não podia ficar à margem da Revolução.

O singular personagem, Cardoso viu sair de uma sala na redação do Bondinho.

Era fã dele.

No gargarejo, vibrara num show dele com Os Brazões.

Não resistiu, vocês sabem o que é tiete: abordou-o.

Tom Zé, simpático, acessível.

De cara, Cardoso sentiu-se amigo íntimo dele.

Mãe morava ali perto, chamou-o para puxar um fumo.

Tom Zé não relutou: vamos nessa, alegria, alegria.

Foi entrar no apartamento e se encantar com Vó Mercedes, a "preta velha", como a mãe de Cardoso a chamava, nascida de "ventre livre", mãe dela escrava do primeiro Cardoso da família vinda de Portugal, ele poderoso cafeicultor da região do interior de São Paulo, Botucatu.

Mercedes foi babá de três gerações dos Cardoso, inclusive babá dele, Jary Cardoso.

Tom Zé, amor à primeira vista:

- A dona Mercedes é idêntica, na aparência e no jeito de ser, às tias e avós de Irará, minha terra natal.

Tão entusiasmado e enlouquecido com a madrinha e avó de criação de Cardoso, que a erva restou abandonada.

Fumo, pra quê fumo?

Ouvir Mercedes foi seu delírio naquele dia.

Preferia aquele papo ancestral a qualquer outra coisa.

A preta velha roubou a cena.

Ela o levou de volta aos velhos tempos de Irará...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Carlos Pereira Neto Siuffo: Esqueceu, o grande Vicente Santana, irmão de Fernando, também comunista e grande pessoa.

Emiliano José: Faltam muitos, Carlinhos...

Carlos Pereira Neto Siuffo: Sei, Juca, que foi Ministro da Cultura, gostava de dizer que na Bahia até o PC era aristocrático, pois pertencia a uma família -a Santana. Exagêro, claro.

Edgard Navarro: Sou fã de Tom Zé e do Baião Atemporal:

"No último pau de arara de Irará

Um da família Santana viajará."

E também sou fã de um tal de Emiliano José.

Emiliano José: Edgard Navarro honrado

Artur Carmel: Família Santana de Irará ! Sou fã !!

Emiliano José: Somos

Carlinhos Safira: Eu também amigo Fernando

Jailson Alves: Tom Zé se encanta sempre com o simples. E quase sempre, suas sofisticadas canções partem do simples. Belo texto, Camarada Emiliano José

Aleksei Santana Turenko: Bacana!

Paulo Marcos Voz: Bárbara Anunciação não conheci essa gente comunista toda, mas vc os representa bem  

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(Aninha é a autora dos desenhos em preto e branco)

Emiliano José

9 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: desembarque de mala e cuia

 

A chegada ao Bondinho foi de mala e cuia.

Já trocamos palavra sobre isso.

De raspão.

Mais uns dois dedinhos de prosa.

Aninha, mulher de Cardoso, a primeira, fez amizade rapidamente com Lúcia Correia Lima, casada com HAF.

Se não sabem, Lúcia é talentosa fotógrafa, baiana, amiga, cujo pai tem fantástica história de militante, já contada por mim num dos meus livros da série "Galeria F: Lembranças do Mar Cinzento" - Mário Alves.

Militante de base, não dirigente nacional, como o homônimo dele, assassinado em 1970 pela ditadura, biografado pelo nosso colega jornalista Gustavo Falcón.

Mário Alves, comunista, borracheiro em Alagoinhas, obrigado a fugir para São Paulo por conta  do golpe de 1964, que saiu a caçar o PCB no município.

Dona Íris, mãe de Lúcia, tornou-se minha amiga querida.

Agliberto Lima, é também amigo querido, irmão de Lúcia, dos maiores fotógrafos do País, meu colega no Estadão.

Assim, estamos em casa ao falar de Lúcia.

Ela gostou muito do casal.

Convidou os dois para morarem num dos quartos do enorme apartamento onde ela e HAF residiam - andar inteiro de edifício situado no final da avenida Rio Branco.

Sopa no mel pro casal.

Mãe de Cardoso se juntara com um companheiro da Federação Espírita.

Sujeito não gostou do jeito de Cardoso - filho mimado e dependente não era com ele.

E o expulsou.

Com o convite de Lúcia, ele e Aninha não eram mais sem-teto.

E o apartamento, como vocês já sabem, era também, redação do Bondinho.

O casal pegou as poucas tralhas e foram para o HAF Palace Hotel - assim chamado pelos jovens repórteres e diagramadores do Bondinho, frequentadores por dias e noites do local.

Assemelhado mais a uma comunidade hippie, creio já ter dito isso, mas repito.

Mas, ninguém se engane: dirigida por duro comandante.

HAF nem sempre era paz e amor.

Aninha, formada pela Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP, gostava de desenhar e pintar.

Fez amizades com o pessoal da editoria de Artes.

Colaborou com ilustrações pra a seção de cartas e para várias matérias, inclusive para a entrevista feita pelo casal com Maria Bethânia, capa da revista.

Cardoso lembra de uma espécie de treinamento, não planejado: antes de fazer qualquer matéria para a revista, ajudava a tirar do gravador as entrevistas em estilo ping-pong, destaque da publicação...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lucia Correia Lima: Que lindo filme Jary e Emiliano José me trazem de volta. Mas amado amigo Emiliano, um romântico amante dos fracos e oprimidos. Defensor dos trabalhadores oprimidos pelo burro cruel capitalismo. Pai era MÁRIO DANTAS Alvez, veio para ficar sossegado. Mas em Alagoinhas tinha uma das melhores casas de Auto-peças. A borracharia era um dos seus comércios bem sucedidos. Uma das lembranças da infância foi mãe - que foi ver Lula no Pelourinho qdo ele falava para o povo subindo em um caixote - brigando comigo porque queria brincar com água da cadeira do dentista. Pense. Qual filha de borracheiro com 6 filhos vai ao dentista?! Kkk

Mônica Bichara: Esses comentários são tão importantes para complementar as histórias e a história. Adoro essa interatividade que as redes proporcionam e que levamos para os livros da série

Emiliano José: Ele nunca foi borracheiro, Lúcia? Pensei tivesse sido. Terei de alterar o livro, havendo 2ª edição. E cobrar das fontes que me informaram errado. Informei no livro as demais atividades. Bom mesmo, será o livro que você está escrevendo : fará justiça ao grande pai. Beijo

Lucia Correia Lima: Ele teve sim uma borracharia que comprou para ajudar um amigo. Mas seu carro chefe como próspero comerciante era uma grande loja de peças para automóveis. Mas o povo sempre sacana, nunca via seu boné italiano. O chamava de Mário da Barracha. Invejosos. Foi a auto-peças que lhe deu uma vida boa. A ele e a todos do partido ou não, que ele ajudava de muitas formas. Como ao Antônio Torres , que pai pagou o trem para apresentá-lo ao João Falcão e no mesmo dia começar a trabalhar no jornal do companheiro a pedido por ordem de pai. Veja esta história no discurso de posse de Antônio Torres tanto na ABL do Rio quanto a ABL da Bahia. Eu tenho vou copiar p vc. Beijos no

Emiliano José: Pela memória dele, seu livro é importante.

Lucia Correia Lima: Na luta por ele. Emiliano, MUITO MUITO importante seu incentivo. Grata. Tá duro, mas sou otimista

Antônio Torres: Lucia , querida: é verdade, sempre rendi minhas homenagens ao seu pai, o desprendido, muitíssimo generoso, melhor dizendo, Mário Alves, tão bem lembrado pelo confrade - na Academia de Letras da Bahia - Emiliano José num dos seus livros da série "Galeria F: lembranças do mar cinzento", que vim a ler recentemente. Mencionei o grande empurrão que ele deu para o meu ingresso no jornalismo numa crônica que escrevi para o Jornal do Brasil ("Tributo a um comunista"), que veio a ser incluída no livro "Sobre Pessoas", de 2007, e numa entrevista ao diretor teatral Aderbal Freire Filho, num excelente programa que ele fazia na TV Brasil, "A arte do artista". E mais e mais. Eu o conhecia apenas de vista, em Alagoinhas, daí a grande surpresa da pergunta que ele me fez, ao se sentar ao meu lado num banco da praça principal daquela cidade, a J. J. Seabra, depois de me dizer que havia gostado muito de um artiguete que eu havia escrito para um jornalzinho local, quis saber se eu não queria trabalhar "num jornal de verdade". E aí, poucos dias depois, ele me levou para o Jornal da Bahia, fazendo-me entrar nele pelas mãos do seu dono, João Falcão. Fiquei só um ano no JBa., de onde parti para a Última Hora de São Paulo, e nunca mais vi o Mário, a quem consigno aqui a minha eterna gratidão.

Emiliano José: Obrigado pelo depoimento

Lucia Correia Lima: Antônio Torres, você como todo nordestino é uma nobre criatura. Poucos se lembram de que nos empurra para uma nova vida. Estou sempre a falar de Saulo Garroux. Que me levou para o Departamento de Criação da REALIDADE, eu meninas indo almoçar com Zé Hamilton Ribeiro, só para lembrar de uma das feras onde era mascote. Jesus Oxalá Ala lhe proteja lhe inspire e que o mundo mais ainda encontre seu talento.

Lucia Correia Lima: Mônica Bichara sim. Cria uma dinâmica rica para o leitor.

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Emiliano José

10 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: complacência da imprensa diante do terror

 

Na fase mais dura da ditadura, fazer jornalismo exigia coragem e talento para driblar a repressão em sentido lato, e a censura, no plano específico.

Coragem, claro, para aqueles dispostos a fazer jornalismo.

Nossa grande imprensa incomodava-se, claro, com a ditadura, mas nem tanto - ia acumpliciando-se, a bem da verdade.

Lembro do jornalista Bernardo Kucinski, amigo, convivemos no "Em Tempo", estivemos juntos mais recentemente, hoje brilhante escritor.

O livro dele - "Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da Imprensa Alternativa", além de tratar com rigor o objeto principal, aborda também a grande imprensa - olhaí Cardoso, a publicação lhe servirá, se já não a tem em mãos, para pesquisas em torno do livro a caminho, de sua lavra.

A censura prévia regular em "O Estado de S. Paulo" e "Jornal da Tarde", em agosto de 1972, afetou pouco o modo de produção daqueles dois jornais, como diz Kucinski, mas teve um efeito essencial: reforçou o poder dissuasório do sistema - da ditadura - sobre os demais jornais, "que docilmente se autocensuram":

"Frequentemente, os jornais resvalavam para o colaboracionismo veiculando notícias plantadas pela polícia sobre 'fugas' ou 'atropelamentos' de presos políticos, indiscriminadamente chamados de 'terroristas'. Tornavam-se, assim, cúmplices do processo de liquidação desses presos".

Complacente - assim Kucinski define o comportamento da grande mídia com o autoritarismo da época.

Da imprensa convencional, entre 1970 e 1974, a contrariar o colaboracionismo, Kucinski ressalta uma exceção: o jornalista Hélio Fernandes.

Durante quase 10 anos, o jornalista enfrentou censura prévia rigorosa no diário dirigido por ele, "Tribuna da Imprensa", sem jamais transigir ou negociar com o censor.

Assim, quem quiser discutir a censura no período da ditadura, a relação dela com a grande imprensa, bom pesquisar com mais cuidado antes de produzir textos aligeirados, antes de colocar tudo no mesmo saco, antes de embarcar no discurso liberal vazio, dissociado da história, tão comum.

E com isso não se está minimizando o esforço dos trabalhadores jornalistas a laborar nessa grande imprensa, cujo interesse em busca da verdade, aqueles de convicções democráticas, era constante, sempre atrás de brechas onde revelar alguma coisa daquele tenebroso período. 

A imprensa alternativa, sim, teve de rebolar, se virar nos trinta pra produzir alguma coisa.

E produziu.

Muito.

O Bondinho, nessa conjuntura, procurava caminhos, desbravados pelo ímpeto, coragem, talento dos jornalistas reunidos em torno dele.

Exercitava a liberdade de expressão pela palavra das pessoas entrevistadas.

Deixava-os falar, comentar...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

11 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: desafio de novo livro

 

Protagonista e jornalista, é problema.

Cardoso sugeriu: você começou, agora siga adiante.

Imprensa alternativa, vá em frente - propunha.

Voltei ao hoje romancista, nosso querido Kucinski.

À obra de referência: "Jornalistas e Revolucionários: Nos tempos da imprensa alternativa" - lembrei-me de um faroeste famoso, "No tempo das diligências": com o olhar de hoje, nada dignificante.

E aí pensei: não dá pra seguir o conselho de Jary Cardoso.

Daria outro livro - vou deixar a tarefa pra ele, nesse momento meio atarantado com pauta dada a ele por Tom: mais não digo porque não estou autorizado a revelar qual o livro trabalhado pelo filho.

Anoto apenas uma coisa.

Relendo Kucinski fui surpreendido por um registro dele - releitura é sempre cheia de descobertas.

A ver comigo e com a própria história de Cardoso.

Naturalmente, a ser conferido.

Em 1968, ele argumenta, quando Ação Popular, organização revolucionária a que pertenci, decidiu pela política de integração na produção, optou por enviar seus militantes ao mundo operário, camponês e de bairros, caindo na clandestinidade se necessário, quando isso ocorreu, os jornalistas da base de AP na revista "Realidade", contrários a essa diretriz, deram origem à linhagem dos "alternativos existenciais e antidoutrinários".

Foram eles, diz nosso Kucinski, os criadores do "Bondinho", "Jornalivro", "Grilo", "Foto-Choq", "Ex", "Viver", "Mais um", "Extra Realidade Brasileira" e "Domingão":

"Começaram por um jornalismo engajado mas anti-doutrinário, passaram por uma fase de experimentação com drogas e terminaram num jornalismo 'kamikaze', através de Ex, em que cada edição era um ataque definitivo ao regime ditatorial."

Só isso, sei, dá baita discussão.

Provoca tremenda controvérsia.

É pauta para o livro de Cardoso.

Tentar saber, eu não sei, quem era da base de AP na "Realidade".

Narciso Kalili, Roberto Freire e Sérgio de Souza, me parece, foram de AP - não o digo de modo definitivo, é afirmação sujeita a chuvas e trovoadas.

Para concluir quanto a isto, insistindo: passo a bola pro próprio Cardoso.

Quando estiver lavrando o eito, ajudo - se requisitado.

Acho empreitada do maior valor.

E ele já tem em casa material para excelente ponto de partida.

Grande desafio, estimulante... 

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

12 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: a cama d'água...

 

Era uma festa, o hotel do HAF.

Festa de muita responsabilidade.

Não imaginem um bocado de pessoas a vagabundear.

Nem pensar.

Que ali tinha mando, e mando forte.

HAF não era brinquedo não.

Bondinho tinha de chegar ao destino.

Agora, moçada de então, era compenetrada na curtição:

até instrumentos de trabalho serviam ao prazer.

Depois de cada nova entrevista, a gravação ecoava pelo apartamento, e moçada então ouvia e reouvia, enquanto alguém fazia a degravação.

Dessa curtição, Cardoso participou muito, degravando uma porrada de gente, com muito gosto.

Sempre com o cuidado de manter as palavras do entrevistado, intrometendo-se apenas para alinhavar uma frase, outra, prejudicada pela oralidade do entrevistado.

Festa, o Hotel do HAF.

Trabalho criativo?

Ócio criativo - antecipando Domenico De Masi?

O fato é que ali todos trabalhavam alegres, alegria, alegria, até porque a maioria adorava Caetano.

Após cada nova reportagem, o artista botava em slides todo o material e o exibia numa das altas paredes da sala através de um projetor, enquanto um potente aparelho de som reproduzia em alto volume os discos preferidos da tribo.

Sei, corro riscos : slides? que diabo é isso?

Quando falei artista, o fotógrafo da reportagem.

Slides, as novas gerações irão ao dicionário - Google, não?

Havia um álbum de preferência, e não cansava: os dois LPs da gravação ao vivo do show Gal-Fatal.

Mal ia terminando a última faixa do segundo LP, e já havia alguém de plantão pra colocar novamente no começo do primeiro disco.

Assim eram as noites, assim eram os dias, e nem sempre se sabia quando dia quando noite:

- Até hoje, quando ouço faixas desses discos de Gal, revivo com intensa alegria o clima daquele apartamento, mistura de trabalho com curtição e erotismo.

Cardoso completa:

- Havia muito sexo no ar, as meninas soltas e exuberantes, namoros, beijos, amassos, tudo multiplicado pela enorme cama d'água que ocupava boa parte do quarto de HAF e Lúcia.

Ah, aquela cama d'água:

- Só de deitar naquela cama, já dava vontade de fazer amor.

Roberto Freire, famoso reichiano, aparecia por lá, afundava numa poltrona, e assuntava, em silêncio, olhar perscrutador, a cama d'água e todo o resto, estudando aquela loucura...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lucia Correia Lima: Como Mônica ama valorizar os comentários vou contar de como "risos" entrou nas entrevistas. Os editores me botaram também para "tirar" as entrevistas da fita. Quase todas em um super profissional gravador Huer. Não lembro se escreve assim. "Não perca um detalhe." Era séria recomendação.

Pois bem: quando o entrevistado ria ou gargalhava. Sempre um riso que virava coletivo, pois as entrevistas, muitas eram feitas por mais de um jornalista e as vezes convidados dos jornalistas ou das fontes, abria parênteses e colocava (risos). Colocava também (gargalhadas) e sinalizava os silêncios.

Lembro de Chico Buarque que bebia uma bebida verde, ficar triste silencioso. Era ditadura. Ele, por exemplo, falava, meditava sobre o futuro das filhas. Vinha um silêncio triste. Mas os editores passaram a botar somente (risos).

Mônica Bichara: Verdade, amo os complementos de quem viveu a situação. Enriquece a narrativa e torna a série mais interativa

Lucia Correia Lima: Vero. Eu também sempre procuro os comentários dos textos que leio. Foi feliz ontem.

Artur Carmel: Roberto Freire não esteve à altura do apto de HAF...Certa feita, aqui em SSA, numa de suas inúmeras incursões pelo país, para ratificar a tese "sem tesão não há solução", perguntei-lhe sobre seu signo zodiacal e o cara se ofendeu...Sem tesão não há solução!  

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Emiliano José

13 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: dançando nus...

 

Vai contar um dia tim-tim por tim-tim.

Vai.

Quando estiver na estrada, cavalo bom, de passo, vai se recordar do Hotel do HAF, e contar tudo.

Ali tem história pra mais de metro e meio.

Promessa já está feita: Cardoso vai escrever sobre a imprensa alternativa, nanica, marginal, como se queria chamar.

E o Hotel do HAF, capítulo especial.

Só para apimentar, ele solta uma historinha aqui, outra acolá sobre o Hotel do HAF.

Assim, o leitor vai ficando curioso, esperando o livro.

Falaram tanto na cama d'água, daquelas só vistas em motéis, a ponto de um casal amigo pedir uma visita ao hotel.

Visitar a cama: só, nada mais.

Casal chegou, cumprimentou timidamente todo mundo, e seguiu para a principal atração do hotel.

Entrou no quarto.

Os dois, deslumbrados com a cama.

Nunca haviam visto coisa igual.

Devia de ser bom demais fazer amor ali, não?

Início de noite, resolveram ir às vias de fato, por que não?

Já que estamos aqui, né?

Bom demais, demais de bom.

Ninguém na redação se assustou quando os dois apareceram no salão dançando.

Dançando nus.

Êxtase.

Felicidade completa.

Estivesse ali, e Roberto Freire se deliciaria - Reich tinha razão.

Uma vez ao menos, Sérgio de Souza, líder máximo da Arte e Comunicação Editora, sentou-se na famosa cama.

Ele e a esposa.

Ao lado de um monte de jovens, erotismo e fumacê no ar.

Não, se entusiasmem não.

Serjão não caiu  na gandaia, nem a esposa.

Leve sorriso, cúmplice, respeitou a curtição.

Na dele.

Entrar no jogo, aí já era demais.

Porque era do jeito dele.

E porque era o chefe.

Tudo isso, junto e misturado, atraiu Cardoso.

Bondinho juntava os dois mundos: o comunismo anterior e a contracultura vívida por ele naquele momento histórico...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

14 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: TRANSBUNDAR

 

HAF e equipe selecionavam as celebridades a serem entrevistadas.

Celebridades de esquerda.

Bondinho tinha lado.

Chico Buarque e Chico de Assis, por exemplo.

Assis, assim apresentado na capa da primeira edição de 1972:  "teatrólogo, ator, astrólogo, músico, poeta, etc., ser humano por vocação".

Do mundo, líderes internacionais da contracultura.

Guitarrista da banda The Who, Peter Townshend: "fala de Jesus, juventude, drogas".

Yoko Ono: "Mulher é o negro do mundo".

Indispensáveis, os tropicalistas.

Tom Zé, o genial bruxo de Irará.

Rogério Duprat: "o maestro descobre que bom é criar com liberdade".

E outros líderes do movimento, presentes na edição do início de fevereiro de 1972.

A edição marcava a volta à cena dos tropicalistas.

A capa, um desbunde.

Melhor, um

TRANSBUNDE

como grafado na capa, em letras garrafais, seguido de subtítulo:

"Número especial: a volta/Gil depoimento total/CAETANO lança verbo transbundar/GONZAGA encontra com Gil/CAPINAN miséria da cultura/MACALÉ músico e operário/TUDO EXCLUSIVO".

Títulos não são pra qualquer um.

Manchetes, subtítulos, chamadas constituem territórios singulares do jornalismo.

Muitos títulos do Bondinho eram da lavra de um mestre: Mylton Severiano da Silva - Miltaynho.

Brasileiro: levava y e Silva no nome.

Cardoso, besta nem nada, costumava sentar ao lado dele para acompanhar a elaboração daqueles pequenos textos, aquelas sínteses admiráveis, as chamadas provocativas.

Edição seguinte, e Cardoso é colocado em campo.

Reportagem a várias mãos.

Imprensa alternativa.

Entrevistou Luiz Carlos Maciel, criador da "Flor do Mal'.

Chamada de capa:

"Underground - Flor do Mal, Presença, Pato Macho, Verbo, Sobrou só um. Por quê?"...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jose Jesus Barreto: bons ? tempos !

Lucia Correia Lima: sim, pois lições p sempre

Joaquim Lisboa Neto: Myltainho. Grande admirador do nosso Osório Alves de Castro

Edson Valadares: Soube que foi o Heleno que planejou a fakada. 

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Emiliano José

15 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: viagem pro carnaval de Gil e Caetano

 

E veio o maior acontecimento do Bondinho:

- A ordem: todos para a Bahia.

O HAF Palace Hotel entrou em transe.

Todos queriam ir.

Você já foi à Bahia, nego?

Registrar e participar do carnaval.

Não um carnaval qualquer: aquele, de homenagem a Caetano e Gil, de volta à Bahia, depois de London, London, o triste exílio dos dois, iniciado em 1969.

Foi um reboliço: ninguém queria ficar pra trás.

Todos queriam participar daquela cobertura.

Dinheiro pra passagens de avião, cadê?

Nem pra ônibus não tinha.

Galera, nem aí.

Iria de qualquer jeito.

Um amigo dos editores, apresentou armas: emprestaria uma Variant.

Nela, caberiam alguns chefes.

E o restante?

O restante, não queria nem saber: fosse em carroceria de caminhão, iria.

Perder aquele carnaval, por nada deste mundo.

O restante, descolar, transar um jeito.

Pra morte, não há jeito.

Pro resto, sempre há.

Um frenesi: repórteres, fotógrafos, diagramadores, desenhistas, nervos à flor da pele.

Alguns, foram a pé até a Via Dutra.

Como os hippies de todo o mundo, polegar levantado, pediam carona.

Um parava, dizia, só vou até o Rio - embarcavam os que coubessem.

De lá, seguiriam com outro.

Alguns, de plantão em postos de gasolina: tome-lhe descobrir destino e suplicar carona.

Cardoso e Aninha localizaram um motorista de caminhão.

Ia para o Nordeste.

Passava por Salvador.

Não precisaram insistir muito.

Verdade, verdade: os olhos dele brilhavam só de olhar pra Aninha, escandalosamente linda e atraente.

Cardoso percebeu, mas fazer o quê?

Melhor aproveitar.

Guardando o devido respeito, olhar não mata.

Motô conversava muito, os três na cabine.

Viagem corria bem.

Depois de muito chão, param os três num posto à beira da estrada: tomar banho, comer.

Chuveiro ao ar livre.

Cardoso, toma banho só de cueca.

Aninha, de calcinha e blusa.

Sem soutien, roupa molhada, transparente.

Certamente, motô viu tudo.

Foi ganhar estrada, e ele cresceu em ousadias.

Cantadas indiretas pra cima de Aninha.

Fez até alusão a uma transa, valendo-se do movimento dos limpadores de parabrisa durante chuva.

Cardoso, no meio, ressabiado.

Tentando desviar a conversa.

Confrontar, não.

Sujeito era parrudo, dava pra enfrentar não.

Viagem tensa, os dois com medo.

Respiraram aliviados quando se despediram dele em Salvador com um civilizado muito obrigado.

Mais ainda, Aninha:  intacta...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

16 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: resolver os complexos do Freud

 

Para Cardoso e Aninha, não foi uma estadia tão confortável.

Salvador estava quente naquele fevereiro de 1972.

Eu olhava o carnaval detrás das grades, na "Lemos Brito", onde chegara no início do ano anterior.

Eles, os dois, andando pelas ruas, e dormindo muito mal.

Tinham de se ajeitar num vão superior de uma casa no Pelourinho, um calor infernal,.

Suavam os dois a noite toda.

Sequer puderam fazer amor - é Cardoso confessando, segredo não é com ele.

Terça de carnaval: 15 de fevereiro.

Datar carnaval em Salvador, no entanto, é temerário.

É festança de dias.

Eu, detrás das grades.

É provável, muito provável, houvesse algum carnaval na Galeria F.

Havia uma turma do MR-8 virada na porra, da folia, da desgraceira no caminho da feira, e grades não engaiolavam a alegria dela.

Eram o hoje respeitável professor José Carlos de Souza.

O nosso operário Diogo de Assunção Santana.

Denilson Vasconcelos, mais tarde jornalista - já fez a viagem para o reino dos encantados.

Carlos Moreira Villanueva, cuja profissão nem me recordo.

Alegravam aquele mundo cinzento: vozes, rebolados, timbaus e cachaça.

É.

Até algum tipo de cachaça davam um jeito de fabricar - nunca provei, de besta.

Os demais, ou entravam na roda, mesmo meio ressabiados, ou ficavam à espreita, mais ressabiados ainda, mais sem jeito ainda.

Estes, os caretas - como negar fosse eu um dos mais?

Agora, meio afastado, achava maravilha aqueles loucos, recriando o carnaval em plena Galeria F, plena ditadura Médici, o assassino a ocupar a presidência da República, terceiro ditador desde o golpe de 1964.

Me perguntarem qual a matéria prima da cachaça, sei não.

Careta, não queria saber.

Volto ao Bondinho.

Antes da revoada para Salvador, havia saído o número do TRANSBUNDE, cês já conhecem.

Caetano e Gil, já figuravam naquele número.

Datado: 3 de fevereiro a 16 de fevereiro - Bondinho era quinzenal.

Edição seguinte, foi a da AUDÁCIA - entrevista com Walmor Chagas.  

A entrevista era bombástica, mesmo - Walmor propunha modo simples de resolver os complexos de Édipo e de Eletra: meninos, meninas, completassem 15 anos, deviam dormir com a mãe, com o pai.

Já pensou?

Renato Pompeu, copidesque, foi a Serjão, todo escabreado:

- Olhe isto aqui: pode dar problemas para a revista.

Sérgio de Souza, sendo Serjão, nem levantou os olhos, seguia com seu lápis implacável a copidescar um texto:

- Não sou censor.

Pompeu despachou a entrevista na íntegra: liberada.

Ditadura apreendeu a revista.

#MemóriasJornalismoEmiliano

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(Jorge Mautner em foto de Domingos Cop Júnior, um dos grandes repórteres fotográficos do Bondinho) 

Emiliano José

17 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: viver a chegada dos baianos

 

Imaginar, não ia.

Eu o conhecia pouco.

Mas a entidade sobrevoou meu território, e pediu prestasse atenção.

Prometi dois ou três capítulos, porque não esperava mais.

E o personagem ocupou a cena desde setembro.

E parece não sair tão já.

A entidade, o sábio Adilson Borges.

O protagonista, Jary Cardoso, cês sabem.

Talvez ninguém o tenha percebido na devida dimensão por modos antigos, aprendidos havia tempo. 

Tomara lições de catacumbas durante o enfrentamento da ditadura.

Soube ficar ali no cantinho, sem nada alardear.

Por costume.

Agora, estou aqui, me danando a persegui-lo, a reencontrá-lo em meio a muitas peripécias.

É bom quando a gente é surpreendido.

Já aconteceu comigo.

Com muitos personagens dessa série.

Mais um.

A gente conhece pouco do mundo.

Lá ia eu saber dessas ousadias de Walmor Chagas?

Sabia nada.

E de repente, por Cardoso, vou saber de radicalismos dele, dessa confrontação com os complexos de Édipo e Eletra, confrontando ou concordando com Freud, a provocar apreensão do Bondinho.

Nem sabia de Elis censurada pelo Bondinho.

Nem tanta coisa, tudo vida de Cardoso.

Sobretudo no momento mais luminoso do jornalismo dele - ele assim o considera.

O momento do jornalismo cultural, da contracultura, se assim quisermos considerar.

São décadas de jornalismo, mas foi aqui, na cultura, o encontro, sua Estrada de Damasco, metáfora bíblica de que me valho sempre.

Quando o Bondinho saiu com Walmor, a tropa toda já estava na Bahia - então souberam da apreensão.

O primeiro Bondinho pós-Salvador levava Jorge Mautner na capa.

Matéria de Cardoso. numero da primeira quinzena de março de 1972 - Bondinho, se repita, era quinzenal.

HAF chama Cardoso, ali na casa alugada por Gil no Rio Vermelho, onde estava toda a redação do Bondinho no momento, e dá a ordem: entreviste este cara - apresenta Mautner.

Edição seguinte, segunda quinzena de março, Bethania ocupa a capa, e é Cardoso novamente a fazer a entrevista.

Estava virado no capeta, nosso Cardoso.

HAF botou os olhos nele, não tirou mais.

Pra não ser injusto, Aninha participou da entrevista com Bethania.

Só depois de tudo isso, vai aparecer Caetano na capa, número de 31 de março a 13 de abril, entrevistado pelo próprio HAF provavelmente durante aquela estadia em Salvador.

Caetano foi a principal produção daquela ida à Bahia - uma viagem.

A ordem pra todo mundo ir para Salvador foi mais uma maneira de todos viverem a experiência da volta dos baianos Gil e Caetano.

Não foi propriamente uma cobertura...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lucia Correia Lima: A capa de Walmor ele estava nú ou quase, sentado em uma privada. A casa de Gil e Sandra era em Amaralina.

Emiliano José: Obrigado. Nada como testemunha ocular da história...

Marylene Melgaço Valadares: Amei  

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Emiliano José

18 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: terror do atrás do trio elétrico

 

Quando fevereiro chegar, Cardoso verá completado meio século.

Não é de idade, não.

Já tem um pouquinho mais.

Meio século da estadia dele em Salvador com turma do Bondinho.

Você já foi à Bahia, nego?

Ao chegar, a sensação de pousar em outro planeta.

Tá legal, eu aceito o argumento: ele já estivera na cidade, cinco anos antes.

A estadia anterior, no entanto, fora em outra conjuntura, outro astral.

Dois dias, meados de 1967, correria, um sem-número de reuniões com líderes estudantis, companheiros de militância, ele, dublê de dirigente da UNE e da Polop.

Cabeça e compromissos de jovem militante comunista.

Mal olhava pros lados.

Guarda apenas a imagem vista da janela de um bonde: baianos, baianas, com roupas brancas, caminhando por uma avenida central, imaginada por ele hoje sendo avenida Sete.

Andavam num ritmo bem mais lento, com ar muito mais descontraído do que estava acostumado a ver no Viaduto do Chá ou no Anhangabaú.

E claro: Salvador vivia então seu cotidiano, a rotina da vida.

Nada a ver com os dias de carnaval, de loucuras e festas, de fuga da rotina ou se quiserem fuga da chamada normalidade.

Primeiro choque, em 1972, foi térmico.

Sol fortíssimo: queimava a pele.

Hospedagem no sótão superior de um velho casarão no Pelourinho.

Da janelinha, o olhar se perdia, reconhecendo a velha cidade: sucessão de velhos telhados e torres de velhas igrejas.

Dentro, nada é perfeito, calor infernal a invadir a noite, a ensopar o corpo, lençol, colchão.

Exaustos estivessem, ele e Aninha não resistiram e ganharam as ruas.

Você já foi à Bahia, nega?

Cabelões, os dois, roupas coloridas e curtas.

Barrigas à mostra.

Peixes n'água: em meio àquela multidão alegre, maluca, exuberante: cantava, dançava, falava alto, gritava, dando gargalhadas.

Relembra, como hoje: arrepiou-se todo, conteve lágrimas de emoção, tal a sensação.

Não tinham noção, no entanto, do que era ir atrás do trio elétrico.

Mínima noção.

Surgiu a multidão ululante atrás do trio elétrico parecia tempestade furacão tufão vá lá o que seja eram empurrados pra frente pros lados pra trás não se governavam recebiam safanões sem saber de onde vinham as agressões se intensificando nunca imaginavam e de repente dois ou três caras correndo se enfiando entre os foliões passavam a mão na bunda dos dois um deles meteu a mão por trás e entre as pernas de Aninha agarrando com força o sexo dela ao redor parecia ninguém ver nada ou ser todo mundo cúmplice os dois apavorados como se no meio de redemoinho até caírem fora sem saber como respirando...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Entrevistando Jorge Mautner pro Bondinho na casa de Gil, início de 1972. Foto de Domingos Cop Júnior)

Emiliano José

19 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Mautner e o choque com a Bahia

 

Atrás do trio elétrico

Só não vai quem já morreu

Quem já botou pra rachar

Aprendeu, que é do outro lado

Do lado de lá do lado

Que é lá do lado de lá

Não queriam sentir?

Atrás do trio elétrico, a loucura?

O sem sentido, ou todos os sentidos?

Só não vai quem já morreu.

Aninha, sobreviveu, apalpada de todos os modos, sobreviveu.

Cardoso, também: nunca passaram tanto a mão na bunda dele.

Aprenderam que é do outro lado do lado de lá do lado que é lá do lado de lá, tão simples.

Caíram fora da multidão.

Aquilo, no entanto, era irresistível.

Continuaram ali ao lado, do lado de cá que é do lado de lá.

Um inexplicável deslumbramento os prendia.

Dia seguinte, casa de Gil e Sandra Gadelha, HAF ordena fazer matéria com Jorge Mautner, Cardoso, apresentado, começa a conversar com o sujeito, de cabelos mais compridos do que os dele.

De repente, noite já, e marcianos desembarcaram na terra.

Luzes intensas iluminaram toda a área livre e todos os aposentos da ampla residência.

Parece mentira, mas alguns se assustaram.

Nunca não tinham visto nada igual.

Alguns: é polícia?

Outros: disco-voador?

Muita viagem.

Os mais intrépidos, mais valentes, mais corajosos, correram pra frente da casa, dispostos a desafiar o monstro, fosse qual fosse.

Cardoso na linha de frente.

Era sim: uma nave espacial.

Monstruosa.

Dezenas de spot-lights acesos no alto.

Silenciosamente, a nave havia pousado em frente à casa de Gil.

Diante da nave, Cardoso não resistiu: chorou à vontade, nem esforço fez para conter o choro, emoção.

O trio elétrico, o mistério se dissolvendo, vinha com inscrição ao lado, em letras garrafais:

CAETANAVE.

Repórter é o diabo, e descobre: trio era de Orlando Tapajós, discípulo de Dodô e Osmar.

Aqueles marcianos queriam simplesmente, com aquele trio, saudar a volta de Caetano e Gil à Bahia, ao Brasil, depois de exilados em Londres por mais de dois anos.

E não era pra comemorar?

Seguiu a entrevista com Mautner - o próprio qualificaria a matéria como histórica.

Um marco na vida de Cardoso:

- Me levou a uma síntese dialética entre o passado comunista e a contracultura abraçada nos últimos anos.

Inseparável gravador cassete, de sungas, sentados no chão, a entrevista foi acontecendo, no costume dos desbundados, hippies e outsiders.

Mautner também sentiu o choque:

- Vim pra conhecer a Bahia. Encontrei um negócio assim que eu nunca imaginava. Sabia indiretamente pela literatura, pela música baiana. Mas você chegar e ver isso aqui dá até um choque cultural. Tive um choque primeiro com o carnaval, porque eu constatei que o carnaval é bem violento aqui...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

Jose Jesus Barreto: outra Bahia, outros carnavais, outros tempos! até os Ovnis curtiam 

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Emiliano José

20 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: chinês na guitarra, um Jimi Hendrix

 

Também Mautner teve os cabelos puxados no carnaval.

Você já foi à Bahia, nego?

Já foi atrás do trio elétrico?

Porém, quando ele falava "violento", ia além do aspecto físico, brutal, estúpido mesmo de alguns ou de muitos.

Queria dizer da "parte selvagem, agressiva da coisa, que tem assim um sadismo muito grande, um sadismo meio saudável, mas sadismo", como ele dizia.

E adiantava uma posição controversa:

- É violento também no sentido de ter raízes bem plantadas na África, uma cultura basicamente negra no que tem de irracional, de dionisíaco... não sabia que a Bahia era tão forte nisso.

Cardoso nunca esquecerá aquela experiência.

Recordará sempre a alegria e a disposição daquele mergulho.

Vários da turma do Bondinho acharam tudo aquilo muito engraçado e transável, inclusive a violência e o sadismo:

- Lembro que uma menina linda e bem jovem, tipo mignon, da área de arte da equipe, desapareceu no meio da folia, nunca mais foi vista. Quem a viu pela última vez, contou da felicidade dela nos braços de um musculoso negão.

Bom tenha encontrado a felicidade - penso.

O Bondinho havia entrado de cabeça na cobertura dessa volta dos tropicalistas antes.

O jornalista, escritor, dramaturgo e psiquiatra Roberto Freire, egresso de "Realidade", um dos fundadores e diretores da Arte & Comunicação, fez questão de participar da reportagem sobre Gil, em janeiro de 1972, desde sua chegada a São Paulo logo após a volta do exílio londrino.

Os jornalistas seguiam Gil matando saudade da cidade onde morou no alvorecer e desenvolvimento do tropicalismo.

Estavam no encalço dele quando da passagem pela boate Stardust, onde tocavam o multi-instrumentista Hermeto Paschoal e o guitarrista Lanny Gordin, tropicalista de primeira hora, considerado prodígio da guitarra,  e filho do russo dono da casa noturna, Alan Gordin.

Gil ficou ali por umas seis horas, ouvindo e conversando:

"Depois, no fim da madrugada, no vestiário dos empregados, fez um improviso de mais de meia hora com Lanny".

Esta, a apresentação da entrevista intitulada "Gil está sabendo tudo", de Hamilton Almeida Filho, o HAF, publicada no Bondinho 34, primeira quinzena de fevereiro de 1972.

De Lanny, nascido em Xangai, não custa dizer, por justo: tão bom na guitarra, chamado de "Jimi Hendrix brasileiro"  até por Caetano e Gil...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Jôh Castro Lima Castro Lima: Também os leio com atenção e muito prazer, aliás, tudo que Vc escreve me encanta e desperta profundas e deliciosas reflexões. Obrigada, Emiliano José ! Bjo

Emiliano José: ô, Jôh, outra querida. Me honram: a leitura, o carinho, a amizade.

Sônia Maria Haas: Adoro ler teus textos, eles são preciosidades. Obrigada

Emiliano José: Sônia, obrigado a vc pela leitura

Joaquim Lisboa Neto: Tive o grande prazer de assistir Lanny Gordin arrebentando na guitarra em 1972 num show de Gil em Beagá no teatro Francisco Nunes; a execução da Ema gemeu em roupagem rock antológica, lisérgica  

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(Jary entrevistado por Jorge Mautner pro programa dele na TV Brasil, cerca de 40 anos depois da entrevista que fez com ele pro Bondinho. Na casa de Gil no Horto)

Emiliano José

21 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: cristas-de-galo para Gil

 

Foi noite pra jamais esquecer.

Dia clareando, andavam pelo Largo do Arouche, famoso por variado mercado de flores.

Roberto Freire olhou pras flores, pra Gil - resolveu presenteá-lo.

Parou em frente a uma das barracas, pediu.

Ele escolheu - flores vermelhas, cristas-de-galo.

Entregou o buquê a Gil.

Havia, quem sabe, alguma nostalgia no ar.

"O sonho acabou".

Título da mais recente composição de Gil então.

E tema principal do depoimento dele ao Bondinho.

Dizia, em meio a um cenário nacional devastador, ditadura comendo no centro: o movimento da contracultura e dos hippies chegara ao fim.

Agora, TRANSBUNDE, título dessa edição do Bondinho.

A partir de então, cada um fosse transar, descolar, conquistar e realizar o seu próprio desbunde.

Sem desistir da utopia libertária.

Este, o recado dominante da edição, passado também pelas entrevistas e depoimentos de Caetano, Capinan e Macalé.

Chegar à edição do TRANSBUNDE deu trabalho.

Todos, no HAF Palace Hotel, passaram dia e noite passando para o papel as falas dos artistas, reproduzidas sempre em alto volume por potente gravador de rolo.

As vozes mansas, firmes, calorosas dos baianos ecoavam na redação.

Se paravam pra almoçar ou descansar um pouco da dura jornada, as fitas continuavam tocando, eles ouvindo.

Capinan, brilhante Capinan, mansamente desancava os colunistas da grande imprensa.

Via-os usando o poder deles para esculachar os artistas, impor avaliações.

Queriam ser eles os juízes sobre quais produtos deveriam chegar ao distinto público.

Como se pudessem, e de alguma forma podiam, mas não de modo absoluto.

A Cardoso impressionava a sabedoria e lucidez dos tropicalistas.

Era como fosse uma aragem suave em meio ao deserto, um oásis naqueles tempos sombrios de governo Médici, tempos de mortes e desaparecimentos, tortura, prisões, cenário de terror.

E eles falando, suavemente, sem perder o tom, sem deixar de exaltar liberdades, sempre naturalmente com o cuidado de não cutucar o leão com a vara curta. 

Caetano, com seu jeito sedutor, falava maravilhas dos trios elétricos, levava aos céus o carnaval baiano.

E o Bondinho já vinha na onda de valorizar o jeito de ser do nordestino, do nortista.

A redação, envolvida por esse clima: Cardoso recorda os slides com as notáveis fotos de Amâncio Chiodi de feirantes nordestinos, povo na rua.

E aí uma parte da redação resolveu embarcar para a Bahia...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

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Emiliano José

22 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: maracatu atômico

 

A entrevista com Mautner, outro choque.

Não bastasse o choque cultural e físico com o carnaval baiano, agora aquele.

Um choque existencial.

Quem acompanha a série, sabe: ordem para a entrevista partiu de HAF.

Cardoso não sabia quase nada dele.

Alguns artigos n'O Pasquim'.

Só.

HAF provavelmente também o conhecesse pouco.

Revendo as coisas, Cardoso deduz ter sido Gil a dar a dica da entrevista a HAF.

Ele se aproximara de Mautner em Londres, proximidade a se prolongar no Brasil.

Firmou-se uma parceria existencial e musical.

Resultou em pelo menos um hit: "Maracatu Atômico", composição de Mautner e Nelson Jacobina, sucesso na voz de Gil.

"Filho do Holocausto" - assim se definia o judeu nascido no Rio de Janeiro em 17 de janeiro de 1941.

Aos sete anos, família muda pra São Paulo, onde ele cresce entre livros e música.

Cardoso caprichou na abertura da matéria:

"Jorge Mautner chega aos 31 anos com três livros publicados ("Narciso em Tarde Cinza", "Deus da Chuva e da Morte" e "Kaos"), mais dois escritos, "Fragmentos de Sabonete" e "Vampiro da Babilônia", feitos em inglês, nos Estados Unidos. Lá, Mautner foi lavador de pratos, ajudante de garçom, datilógrafo das Nações Unidas e aprendiz de paganismo pop. Sua entrevista ao Bondinho foi feita logo depois do carnaval de Salvador, numa casa alugada no bairro do Rio Vermelho. Nela, Mautner aponta os manás da nova cultura."

Olho os títulos, e me surpreendo - tenho um livro denominado "Narciso no fundo das Galés", e o cinza me acompanha no "Galeria F - Lembranças do Mar Cinzento".

Talvez por filhos do mesmo tempo, herdeiros dos mesmos símbolos.

Foi entrevista e aprendizado, entrevista e choque.

Mautner expressava uma impressionante diversidade de culturas filosóficas, literárias e de vivências em mundos variados - da elite burguesa à marginalidade - foi cantor de rock em churrascarias, onde passava por americano.

Na entrevista, Cardoso apanhou muito...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Luiz Denis Graça Soares: Descobri ontem à noite a existência do livro de entrevistas do Bondinho. Editado pela Azougue, tem uns cinco exemplares na Estante Virtual

Emiliano José: Denis, corra atrás

Luiz Denis Graça Soares: já peguei o meu...fica à disposição depois da leitura

Luiz Denis Graça Soares: Estas entrevistas estão disponíveis em algum lugar?

Emiliano José: Denis, só na coleção do Bondinho

Lucia Correia Lima: Como é bom reviver um tempo de renascimento e total liberdade p criatividade que O Bondinho exigia com carinho e a mesma alegria buscada no carnaval da Bahia.

Joaquim Lisboa Neto: Salto no escuro  

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Emiliano José

23 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Mautner e a questão racial

 

Jornalista às vezes vicia.

Costuma, arruma um jeito de lidar com a fonte, e crê possa sempre ser do mesmo jeito.

Cardoso lia e ouvia as entrevistas dadas ao Bondinho.

Nelas, as pessoas se abriam pra valer, a ponto de fazerem confissões sobre pensamentos e sentimentos muito íntimos.

Cardoso foi ouvir Mautner nessa pegada.

Levou tombo.

Tentava levá-lo para as confissões pessoais, e ele escapava.

Com elegância.

E erudição.

Teorização e análises históricas e conjunturais.

Não deixava o sujeito penetrar em sua subjetividade, ao menos no território das intimidades.

Tombo, no entanto, é maneira de dizer.

As coisas ditas por Mautner eram geniais.

Seduziam-no.

Mautner tinha ciência da conjuntura.

Sabia do terror de Médici.

Abrir-se era óbvio risco.

Ele não era adepto do sincericídio.

Então, filosofava.

Chamava seu entrevistador: mora na filosofia pra que rimar amor e dor.

Mais tarde, sob Geisel, decorrer da chamada abertura lenta e gradual, Cardoso saberá de militância graúda de Mautner no Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Aí, então, entendeu melhor a estratégia de Mautner durante a entrevista.

Tal estratégia não eliminou o lado fascinante da entrevista.

Mautner trouxe coisas do passado.

Marcas fortes da militância revolucionária.

Tempos de Polop, e lá vem memória, sobraçava livro de James Baldwin, "Terra Estranha", lia e relia.

Refletia, a partir de Baldwin, sobre a questão racial, sobre ser negro numa sociedade racista, como a brasileira.

Como Baldwin, Stokely Carmichael o seduzia, tornado, numa fase, presidente honorário dos "Panteras Negras", a mais radical organização antirracista dos EUA.

Tudo voltava durante a entrevista com Mautner.

De repente, ela fala da Bahia:

"Você tem aqui uma população bem enraizada na sua cultura. O candomblé dá uma segurança de referências pra todo baiano. É uma cultura que ainda não foi destruída no mundo industrial. É uma cultura tribal, instintiva.  Isso é muito raro hoje em dia, e coincide com a procura da vanguarda no mundo desenvolvido, num certo setor da intelectualidade também,  que começa desde a beat generation com Kerouak, Allan Ginsberg, com o branco que queria ser preto, a importância desse vitalismo negro na cultura. E lá o movimento pop, hippie, underground, sei lá, o que você quiser chamar, tem elos por mais diferentes entre si, ele também é essa cultura...Se você comparar com a cultura preta americana, essa aqui está intacta, certo?"

Tudo muito forte para Cardoso...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Mautner é um tropicaoslista muito ilustrado.

Joaquim Lisboa Neto: O relógio de Cardoso quebrou... 

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Emiliano José

24 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Mautner e a Rainha Cigana

 

E eles estavam viajando, conversa boa, sentados ali na casa de Gil, Cardoso embevecido com a tanta sabedoria de Mautner, nem parecia fosse 1972, tenebroso.

No carnaval da Bahia, o clima de terror do País parecia se dissolver,

fosse por alguns dias, horas, mas parecia.

Lembro, sempre lembro, abro parênteses, tudo junto e misturado porque quem escreve sempre se intromete: estava preso.

Curiosamente, aquele início de ano na Galeria F da Penitenciária Lemos Brito não fora tão tristonho.

Ao contrário.

Era um momento de distensão, interno fosse.

No final de 1971, as celas foram abertas durante o dia.

Era possível conviver naquela meia-lua de vinte celas, reservadas aos prisioneiros políticos.

Antes, era tranca dura.

Fechados tempo inteiro.

Por isso, 1972 era ano cujo início prometia.

Ao menos, possível um cotidiano mais rico, mais conversas, análises compartilhadas da conjuntura, trabalho comum no artesanato, discussões nos grupos de estudo.

Fecho o parênteses, e volto.

Cardoso e Mautner numa boa, e de repente, irrompem na casa dois cabeludos de sunga, como eles dois - sunga e mortalha, imprescindíveis vestimentas do carnaval baiano.

Barulhentos, espalhafatosos os dois.

Entregaram uma caixa preta para Mautner.

O Filho do Holocausto abriu, gostou do que viu: um bandolim.

Os visitantes traziam consigo um violão e um atabaque.

A vida, a Bahia, sem linha reta - a entrevista é deixada de lado.

Ou não, quem sabe pudesse tudo aquilo ser considerado continuação: lamentos de blues em bom português misturados com batuque brasileiro de raiz africana.

"A noite é escura e o caminho é tão longo que me leva à loucura. Andando e dançando no fio da navalha, eu sou o faquir, eu sou o palhaço, e um grande canalha..."

"Estrela da noite", música feita em homenagem à mulher dele até hoje, "Ruth, rainha cigana".

Foi longa, a entrevista.

Especial, porque realizada em meio à balbúrdia.

Ocupou sete páginas do Bondinho.

Quiserem conhecê-la na íntegra, só ir atrás do livro "Entrevistas Bondinho", da Azougue Editorial, organizado em 2008 por Miguel Jost e Sérgio Cohn.

Jamais esquecida por Cardoso.

Prolongou-se no tempo.

Na leitura dos livros dele, na audição de cada novo disco, nos encontros com ele.

Em 1973, quando atuou como assessor de divulgação de Guilherme Araújo no Rio de Janeiro, Mautner era um dos contratados do empresário tropicalista.

Cardoso estreita relações com o Filho do Holocausto.

Final dos anos 1970, vira assessor de divulgação dele.

Uma vez, no pós-Bondinho, encontra HAF

Não perdeu a chance:

- HAF, sabe que continuo fazendo a entrevista com Mautner encomendada por você?

HAF, surpreso, Cardoso segue:

- É trabalho pra toda a vida.

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

25 de dezembro de 2021

Mautner: a bandeira do meu partido

 

Mautner foi definitivo.

Não somente uma entrevista.

Cardoso foi tentando absorver os ensinamentos dele.

Lembra: na entrevista pro Bondinho, focou na negritude.

Foi perceber, no decorrer, uma abordagem mais complexa.

Convivendo com ele, compreendeu: entendia a miscigenação como característica cultural do Brasil, exemplar para o mundo - o amálgama brasileiro. 

Numa entrevista a Omar Godoy, publicada na revista "Cândido", da Biblioteca Pública do Paraná, lembrada agora por Cardoso, ele definia os objetivos do Partido do Kaos, criado por ele, com atividades encerradas em 1962 porque ele entrou para o PCB: impedir um novo holocausto e irradiar a imensa grandeza e profundidade da cultura brasileira.

Na entrevista, recorre ao "Patriarca da Independência", José Bonifácio. definindo o Brasil em 1823:

"Diferentemente dos outros povos e culturas, nós somos o amálgama, esse amálgama tão difícil de ser feito".

E ele, Mautner, completava:

"E tudo aqui é amálgama mesmo, essa é uma das nossas riquezas."

Eu ignorava a música, letra e música tão belas, trazidas a mim por Cardoso agora, e não sabia tivesse ele, Mautner, cedido os direitos autorais ao PCdoB, transformada em hino do partido desde 2017 - li isso agora sobre "A bandeira do meu partido":

"A bandeira do meu partido

é vermelha de um sonho antigo

cor da hora que se levanta

levanta agora, levanta aurora

leva a esperança, minha bandeira

tu és criança a vida inteira

toda vermelha, sem uma listra

minha bandeira que é socialista

estandarte puro da nova era

que todo mundo espera, espera

coração lindo, no céu flutuando

te amo sorrindo, te amo cantando

mas a bandeira do meu partido

vem entrelaçada com outra bandeira

a mais bela, a primeira,

verde e amarela a bandeira brasileira."

Surpreendente, este Mautner, por tudo - surpreendente para mim, ignorante dele até aqui, só ruídos até agora.

Obrigado, Jary Cardoso.

#MemóriasJornalismoEmiliano   

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Emiliano José

26 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: mulatos mais cafuzos que tudo mais

 

Mautner não é passado.

Percorre nosso tempo.

Não só porque vivo.

Mas pela densidade do pensamento.

Esses dias, Caetano foi parar no "Roda Viva".

Arejou aquele ambiente.

A jornalista Adriana Couto, cheia de simpatias, lembrou esforços de Caetano em busca da ancestralidade dele.

E aí recordou o fato de Caetano referir-se ao pai como mulato.

- Hoje essa terminologia soa pejorativa, há outras formas de falar.

Chega a perguntar a Caetano como ele se identificaria diante do recenseador do IBGE. tentando, quem sabe, induzi-lo a dizer negro.

Caetano, bem distante do polemista agressivo de tantas ocasiões, e às vezes agressivo com muita razão, reagiu com serenidade de monge budista.

- Sou pardo.

- Tem uma música no meu disco que fala isso.

Lembrava da música "Meu Coco":

- A primeira palavra que aparece na música é mulato.

Somos mulatos, híbridos e mamelucos

E muito mais cafuzos do que tudo mais

O Português é o negro dentre as eurolínguas

Superaremos cãibras, furúnculos, ínguas.

E acentua ter dedicado o disco a Jorge Mautner:

- Que é um eterno defensor idealizado da miscigenação brasileira.

- Ele sabe por que. É judeu, de origem austríaca, cujos pais tiveram que fugir para o Brasil devido ao nazismo.

- O amor dele pelo que viu no Brasil ninguém vai apagar. Ele acha um deslumbramento a miscigenação brasileira.

Por outro lado, argumenta Caetano, a miscigenação virou um mito de beleza brasileira, que atrapalha coisas que precisam ser feitas, estatísticas a serem aprimoradas, problemas a serem enfrentados.

- Assim, tem muita gente que decide modificar a terminologia que se pode ou não se pode utilizar em termos de raça.

- Eu não sou obrigado a concordar com tudo isso. Essa movimentação, em grande parte americanizada, é muito útil ao Brasil, se o Brasil souber aproveitar.

- Porque eu sou  antropófago. O Brasil precisa saber comer, metabolizar isso, e não se deixar dominar por isso.

- Quanto a mulato, não vejo por que não usar. Meu pai era mulato, a pessoa que eu mais adorava e respeitava. Tirada de mula? E qual o problema? Não tenho nada contra as mulas.

Caetano deu uma aula.

Tem mestres.

Seguramente, entre eles, Oswald de Andrade.

E inegavelmente, Mautner, como reconhecido por ele.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Artur Carmel: Também as políticas de reparação deste país terminaram por cair em mãos erradas... 

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(Jary e Aninha hippies na praia)

Emiliano José

27 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: um editor imbecil

 

No Brasil, depois da fuga para o Chile, Cardoso vai morar no Rio de Janeiro.

Ele e Aninha.

Nascem os filhos, gêmeos Denis e Tom - dezembro de 1972.

Trabalha com Guilherme Araújo.

Atua, simultaneamente, no "Diário Notícias - redator da editoria Nacional.

Fazia um freelancer aqui, acolá, especialmente para a Sucursal da "Abril" e para o "Caderno B" do "Jornal do Brasil".

Lembra bem: no segundo caderno do "Jornal do Brasil" fez duas boas matérias.

Uma, com Jackson do Pandeiro.

Outra, com o ator e dramaturgo Walmor Chagas.

Dele, vocês se recordam: entrevista com ele causara apreensão do Bondinho pela ditadura.

Sugestão dele de as pessoas terem relações com o pai e a mãe para se livrarem dos complexos de Édipo e Eletra não fora bem recebida por Médici e sua tropa - senso de humor do ditador e da tropa, zero.

Tentou recuperar o nome do editor do "Caderno B" do "JB", mas não conseguiu.

De um episódio com ele, sim.

Encostou na mesa onde Cardoso dava tratos numa reportagem.

Começou a conversar, a falar da matéria feita por ele com Bethânia no Bondinho.

Arrematou com um comentário arrasador, tipo bronca dura de profissional experiente pra cima de foca:

- Vocês tinham tudo na mão e perderam a grande oportunidade de fazer a Bethânia abrir o jogo como lésbica e falar de suas relações homossexuais.

Cardoso quase não se conteve de tanta raiva.

Ódio mesmo.

Vontade de xingá-lo com todos os impropérios vindos à cabeça.

Nunca mais voltar àquela redação.

Mas quem tem dois filhos com poucos meses de idade se contém.

O pão das crianças, sagrado.

Sujeito se revelou: daqueles acostumados a faturar fazendo sensacionalismo com a vida privada de artistas famosos.

E ele acredita que o sujeito sequer leu a entrevista do Bondinho com atenção.

Lesse, ia deparar com uma fala de Bethânia, muito esclarecedora:

- Quando eu tô amando eu sou de uma fidelidade! Quando eu num tô, sai da frente: homem, mulher, periquito, cachorro, papagaio, tudo!

Precisa mais?

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Folhetim, suplemento dominical da Folha)

Emiliano José

28 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: patrulhas ideológicas, realismo socialista

 

Segundo semestre de 1973, e Cardoso volta pra São Paulo.

Depois de ter produzido shows de Caetano, Gil, Macalé, Gal, Luiz Melodia, Mautner e Wanderléa, sob a batuta de Guilherme Araújo.

E ter ralado simultaneamente no "Jornal do Brasil", "Diário de Notícias", Sucursal da "Abril".

Os gêmeos Denis e Tom, com sete meses.

Rolou ser repórter da revista "Química & Derivados", do Grupo Técnico da Abril.

Logo, logo promovido a redator principal, e lá permaneceu por dois anos e meio.

Entre 1975 e 1976, copidesque da editoria Internacional do "Estadão", levado por Marcos Wilson Spyer - creio já ter revelado isso, mas o leitor não é obrigado a lembrar.

Demitido, junto com um monte de jornalistas.

Entre 1977 e 1978, sem carteira assinada, repórter fixo do "Folhetim", da "Folha de S. Paulo", sob o comando de Tarso de Castro.

Havia gostado muito da experiência do "Bondinho".

No "Folhetim", vive o maior sucesso, seus quinze minutos de fama.

Ocupou a capa do suplemento com entrevistas de muita repercussão.

E isso quando o jornal batia recordes de vendagem - inéditos 200 mil exemplares vendidos nas bancas nos dias de domingo.

Era comum jovens comprando a "Folha" só para levar o "Folhetim" - deixavam o resto na banca.

Entrevistas e matérias com nomes consagrados, e capazes de gerar boas controvérsias.

Já pensou em Glauber, Caetano, Gil, Mautner, Macalé, Gal, Zé Celso?

Todos eles desfilaram no "Folhetim" pela pena de Cardoso.

A tônica era o combate às chamadas patrulhas ideológicas, a defesa dos artistas baianos e dos tropicalistas

Noutra vertente, entrevistou intelectuais renomados para a  série 'Que país é este?"

Repressão sempre andou de olho nele, e ele crê, entre tantos motivos, matéria com Caio Prado Jr. ter chamado atenção dos órgãos de segurança.

Velho comunista, intelectual respeitado, contrário à linha considerada reformista do PCB, defendia teses semelhantes às da Polop.

Na entrevista, apresentou armas: revelou ser filho de comunista histórico, Antonio Campos.

Entrevistou também Sérgio Buarque de Holanda, descendo o pau nas elites brasileiras, Gilberto Freyre, adepto da ditadura, e Darcy Ribeiro, inimigo visceral dela.

Em nenhum momento, sentiu-se tentado a qualquer proselitismo de esquerda.

Maior entusiasmo: combater as patrulhas ideológicas da esquerda "careta e burra", cujas viseiras tornavam-na incapaz de compreender as complexidades da conjuntura histórica, e seguia exigindo dos artistas produção enquadrada no realismo socialista.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Lucia Correia Lima: Jary deve reunir todas as entrevistas de todos e todas. Publicar livro. Mesmo que seja como no velho mundo: só capa dura e miolo com papel jornal.

Joaquim Lisboa Neto: Eu era um desses que preferia o Folhetim à Folha. Folhetim publicou texto de Lourenço Diaféria sobre Osório Alves de Castro quando da partida deste em dezembro 1978 

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Emiliano José

29 de dezembro de 2021  

Jary Cardoso: cultura, realização no jornalismo.

 

Desde o transe, a saída da luta revolucionária direta, Cardoso aprofundou ainda mais sua visão sobre a visão esquemática da esquerda tradicional, especialmente quanto à cultura, às artes, à poesia.

Desenvolveu ainda mais a noção da natureza essencial da liberdade.

O período no "Folhetim" foi enriquecedor para fortalecer essas concepções de mundo.

Maiakóvski seria perseguido pela patrulha da esquerda caso estivesse poetando no Brasil naquele período -  tem convicção disso.

Teve uma agradável surpresa nas entrevistas para o "Folhetim".

Foi ouvir Mário Schenberg.

Comunista notório, de carteirinha.

Anos-luz à frente daquelas patrulhas, capaz de olhar o mundo com lentes bem ampliadas, de incorporar a Antropofagia Cultural de Oswald de Andrade e até filosofias orientais.

Desde o início, tentei buscar em Cardoso sua concepção de jornalismo - afinal, é sujeito de algumas décadas de profissão.

Ele, provocado, me remeteu a um artigo de jornalista gaúcho, Nei Duclós.

Ele o conhecera quando ambos trabalharam na "Zero Hora", em Porto Alegre.

Diria: Duclós tem visão idealizada do jornalismo, mas não importa - é assunto pra outro momento.

Afirma: jornalista é protagonista, interfere no processo de representações da realidade por meio da imagem, da palavra, do som.

A meta do jornalista "é revelar o que os outros escondem, por isso raramente se dá bem".

É uma sombra do poder, um olho em cima do crime - é o pensamento de Duclós, e eu reflito: ah, como seria bom fosse verdade.

Diz mais: todo jornalismo é investigativo.

Faz parte da fauna selvagem.

Uma parte faz parte, uma reduzida porção faz jornalismo investigativo, pequena parte faz parte dessa fauna selvagem - acrescento.

Hoje, espécie em extinção, ao menos na chamada grande imprensa, na mídia empresarial.

Com esse artigo, Cardoso me sinalizava sobre sua concepção do jornalismo, parte de sua visão.

Considera ter vivido feliz no fazer jornalístico enquanto esteve vinculado à área cultural, quando teve chance de fazer entrevistas de fundo, ouvir pessoas cujo pensamento iluminavam a existência, sobretudo aquelas envolvidas com as artes, com a cultura em sentido ampliado.

Aí sentia-se como peixe n'água.

Como se por aquelas vozes fizesse a luta de que tanto gostava:  combater o reacionarismo, o sectarismo, difundir a mais ampla liberdade, dar sentido à ideia de democracia.

Então, se posso extrair um resumo do balanço da vida jornalística dele, poderia dizer ter sido curto o período de realização, de exploração das próprias potencialidades - a maior parte do tempo cumpriu tarefa, e cumpriu bem, com responsabilidade, sem, no entanto, o entusiasmo do "Bondinho" e do "Folhetim".

Ousadia minha dizer isso, e ele pode até fazer um pé de página, um comentário me contrariando, querendo...

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

30 de dezembro de 2021  

Jary Cardoso: mergulho em águas cristalinas

 

Nei Duclós, encontrou-o na "Zero Hora".

Marcão o apresentou como "jovem e promissor poeta".

Cardoso já conquistara a posição de segundo do Caderno do jornal.

Passou pra Duclós todo o aprendizado recebido de Marcão.

Não era pouco.

Na época, cercou-se de livros, todos indicados por ele.

Tome-lhe Hemingway, Norman Mailer, John dos Passos, Truman Capote.

Com ele aprendeu o avesso do avesso do jornalismo tradicional:

abrisse as matérias obedecendo ao primeiro impulso sentido logo ao voltar da rua com os rascunhos nas mãos.

Nada de lead, sublead.

Nada de linguagem asséptica.

Começar com uma ideia, uma frase capazes de despertar a curiosidade do leitor.

Como se apontasse uma tese a ser desenvolvida ao longo do texto.

Necessário ter capacidade de fluência, de manter o leitor ligado.

Matérias deviam ter um dinamismo, um texto capaz de garantir a leitura até o fim, importasse pouco o tamanho, se uma tira, uma página, duas.

Nada da ideia estreita de o leitor ficar satisfeito lendo o primeiro parágrafo, como ensinam as técnicas jornalísticas nascidas no final do século XIX.

Cardoso defende: era a filosofia de jornalismo criada por Mino Carta e desenvolvida por Murilo Felisberto no "Jornal da Tarde", "com toques da erudição literária de Marcos Faerman".

Marcão sabia, e por isso recomendava leituras: esse jornalismo havia se desenvolvido em outras partes do mundo - quem quiser começar a treinar esse jornalismo, recomendo sempre "A sangue frio", de Truman Capote. 

Restava fosse desenvolvido no Brasil. 

O "Jornal da Tarde" foi um experimento inovador nesse sentido.

- Esse era um jornalismo capaz de me fazer sentir como um peixe nadando em águas cristalinas.

Quando ele se defrontou com o áspero dia-a-dia do jornalismo, desapareceu esse prazer.

Não era mais o jornalismo do Marcão, do Tarso de Castro, do Hamilton Almeida Filho.

Não era mais a praia dele.

Foi nela, no entanto, onde passou a maior parte da vida profissional.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

31 de dezembro de 2021

Jary Cardoso: Revolução dos Mutantes

 

Possa, e ele sempre retorna à convivência com Marcos Faerman.

O primeiro mestre a gente nunca esquece.

Nem a primeira matéria.

Lembrar: Marcão havia convidado vários artistas muito loucos e desbundados para compor a redação da "Zero Hora".

Pretendia viessem a ser jornalistas, não fossem ainda.

Com eles, faria o Caderno D do jornal.

Fez.

Achou desse jogo: "Os Mutantes" estavam em Porto Alegre naquele início de 1969.

Os irmãos Sérgio e Arnaldo Batista e Rita Lee.

Pauta revolucionária: iriam dar show numa boate.

A casa levava nome muito sugestivo: Encouraçado Butikin.

Rememorava inesquecível episódio revolucionário de 1905, o do Encouraçado Potenkim, na Rússia, espécie de marco da caminhada em direção à Revolução de 1917, e certamente o filme de Serguei Eisenstein, considerado o melhor filme de todos os tempos na Feira Mundial de Bruxelas de 1958, e como o décimo primeiro melhor filme de todos os tempos pelo British Film Institute, em 2012.

Daí, Encouraçado Butikin - durante ditaduras, há sempre meios de fazer a resistência, e às vezes, um nome, uma alusão, ajudam, garantem acesa a esperança, mantém os sonhos.

Um deleite para Cardoso.

Nada melhor para o pontapé inicial como jornalista.

Foi pro hotel onde "Os Mutantes" estavam hospedados.

Sobraçava o livro "Balanço da Bossa", de Augusto de Campos - para ele, bíblia de iniciação do tropicalismo.

Não perdeu tempo, zagueiro bom não perde viagem: pediu autógrafo a Rita Lee no livro.

Fez a matéria com muita garra.


Quando Marcão leu, exultou: sentiu orgulho pelo pupilo.

Acertara: o novato sabia dar trato às letras, entendera o espírito da coisa.

Título da reportagem, dado por Marcão:

"A REVOLUÇÃO DOS MUTANTES".

Gol, um belo gol, e logo no primeiro jogo.

Cardoso sentiu-se confiante pra seguir adiante.

Seguiu.

Fosse aquilo o jornalismo, era só correr pro abraço.

Mas não era.

Havia momentos de apelo ao jornalismo investigativo, pautas nessa direção.

Desse jogo, jamais gostou...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Alberto Freitas: Sidney Miller, que era ligado ao partidão, contou, antes de morrer, que a ditadura forçou o fechamento do Encouraçado.

Emiliano José:  o Butikin?

Alberto Freitas: Sim. O nome, segundo um oficial do comando do sul, era uma evocação ao comunismo.  

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Emiliano José

1º de janeiro de 2022

Jary Cardoso: distância de jornalismo investigativo

 

É, essa história de jornalismo investigativo, aquele celebrado por Nei Duclós, não era com ele.

Nem que a vaca tossisse, e o boi saísse voando.

Gostava não.

Jornalismo investigativo, heroico, aquele de arriscar a vida, com ele não.

Não é bem tivesse medo.

Não.

Questão é não se encaixar no espírito da coisa.

Não conseguir jogar coração e razão em tarefas desse tipo.

Uma vez, repórter da "Folha Ilustrada", segundo caderno da "Folha", editor o chama e o coloca em campo atrás de uma pauta.

Questão seguinte, diz o editor: presidente da Ordem dos Músicos é conivente com desvio de recursos de direitos autorais - denúncia chegada à redação.

Aquilo era corrupção.

Caiu em campo - que fazer?

Ouviu um, outro, tentava entender, pra escrever.

Prazer nenhum na matéria.

Não lhe agradava escarafunchar merda.

Chega a Gilberto Gil - arredio que só a porra.

O homem do "Domingo no Parque", cortante, foi logo ao ponto:

- Quer saber de uma coisa? A corrupção está entranhada em todos os lugares. Faz parte da vida social.

Da matéria, Cardoso não gostou nem um pouco - nem se recorda qual o resultado, embora saiba ter se desdobrado em série.

Caminhando, ia conhecendo as aptidões.

Cada um só se conhece como fruto da própria experiência.

No "Bondinho" deu-se muito bem com o trabalho, as muitas matérias em torno da cultura, as entrevistas, tudo.

Não houve nada de jornalismo investigativo.

Findo o "Bondinho", toda a equipe praticamente lançou-se à empreitada do "EX", publicação também alternativa.

Mas de combate direto e frontal à ditadura a exigir muito jornalismo investigativo.

De combate tão direto a ponto de ter vida curta: no número 16, quando estampou forte reportagem sobre a morte de Vladimir Herzog, foi fechado pela ditadura, cuja atitude sempre era de horror à verdade.

Aquele número do "EX", a repercussão obtida, foi parte do início das movimentações a redundar no fim da ditadura, dez anos depois.

A chamada sociedade civil começava a se levantar.

De modo particular, a Igreja Católica, sob a liderança em São Paulo de dom Evaristo Arns, puxou culto ecumênico na Igreja da Sé, a maior manifestação contra a ditadura desde 1964, realizado no dia 31 de outubro de 1975, poucos dias após o assassinato de Herzog pela ditadura.

Para a iniciativa do "EX", não chamaram Cardoso.

Sabiam: praia dele era outra:

- Fui apenas um leitor na primeira fila. Não tinha o perfil para aquele trabalho.

Escrever, entrevistar, tudo bem.

Escarafunchar, fuçar vida dos outros, mexer na merda, nada a ver. 

Tivesse razão Nei Duclós, e tinha, aquele jornalismo não era com ele.

Se jornalismo fosse só aquilo, e ainda bem não fosse, não era jornalista...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Reinhard Lackinger: Penso que jornalista investigativo antes de tudo é um eterno indignado e como tal um revolucionário que não escolhe o caminho. Ele pega o rochedo na diretíssima! 

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Emiliano José

2 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: aprendendo Brasil

 

Qualquer mergulho na memória, e Marcos Faerman aparece.

Afinal, Marcão foi decisivo na vida profissional de Cardoso.

Não apenas profissional.

Fora também o gatilho do transe dele na reunião da Polop, ele bancando o estalinista furioso, e depois deixando de lado a militância direta.

Logo após a saída de Cardoso da Polop, Marcão, sujeito do bem, nem mágoa guardara com aquela explosão do amigo, chama-o:

- Vou lhe dar algumas coisas pra fazer no "Jornal da Tarde".

Cardoso se entusiasmou.

Mas Marcão avisou: é pra aprendizado, vai ganhar nada.

Marcão era editor de Esportes.

Começou treinando, fazendo frases curtas, treinando.

Ali, Cardoso começou a  perceber: dava pra coisa.

Cardoso vai sempre lembrar dele como um mestre.

Guarda na memória e nos arquivos algumas entrevistas.

Aquelas a ensinar de Brasil.

Ele pode dizer: Brasil não se aprende na escola.

Como o samba.

Tá certo, havia lido muito, mas as entrevistas, o intercâmbio, foram uma nova Universidade.

Inesquecível a entrevista com Caio Prado Jr., para a "Folha de S. Paulo", 21 de maio de 1978.

Ouvi-lo dizer: o Brasil perdeu o bonde do capitalismo, chegou atrasado.

Ou falar do sucesso do capitalismo americano, com fortes traços europeus, que se transportaram para lá e criaram um país moderno.

Diferente do Brasil.

Pra cá, vieram os portugueses tratando o território como um negócio, para explorá-lo.

Ouvi-lo fazer a celebração do capitalismo, bem Marx, e simultaneamente, mostrar ter esse modo de produção já cumprido a sua tarefa....

A iniciativa privada virou um sistema inviável, de funcionamento emperrado.

Antes, baseada na concorrência.

Agora, não mais, só monopólios.

O capitalismo está se decompondo - mais dia, menos dia está acabado.

E quem chegou atrasado, dizia o historiador, "vai pegar o rabo do rojão".

Não tem mais jeito: não dá mais para construir um país propriamente capitalista.

A industrialização exige um nível de cultura que o Brasil não tem.

Assim seguia Caio Prado.

Uma análise situada naquela década, passados já mais de quarenta anos.

Com algum grau de catastrofismo.

Mas, inegavelmente preciosa, e cheia de verdades do ponto de vista estratégico.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

Artur Carmel: O que ocorreu com a 'chegada do capitalismo no Brazil' , mais de um século depois, também ocorreu com a globalização (ou globarbarização, segundo TomZé) : o país não estava preparado (parece que nunca estará) e a tal globalização foi (está sendo) crudelíssima para com o povo brasileiro. 

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Emiliano José

3 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: lições de mundo

 

Caio Prado Jr. soltou-se na entrevista com Cardoso.

Claro, provocado pelo repórter, bastante preparado pela escola polopiana, também de alguma forma herdeira do pensamento do professor.

Lembrar sempre: corria o ano de 1978.

Ele dizia da exigência cultural feita por qualquer processo de industrialização, já não mais reduzida à fábrica de tecidos, metáfora utilizada por ele.

Não adianta só a elite estudar - e olhem como isso é atual.

"A formação de técnicos depende de um nível cultural que vem de baixo. Numa massa muito grande, vai selecionando, selecionando e vai subindo. Aqui não acontece assim. Essa massa brasileira você sabe o que é, não é? Você vai transformar isso de repente, de uma hora pra outra?"

E Caio Prado constatava, ao olhar o panorama mundial do desenvolvimento capitalista: agora está cheio de gente na frente, e não havia chance de vencer toda essa gente.

No passado, olhava-se para o Japão, e o país era encarado como Terceiro Mundo.

Ah, quanto engano.

"O Japão, embora não tivesse ainda aquele desenvolvimento, era uma população que tinha um nível muito alto. Desde o século passado a população inteira era alfabetizada."

A base para o assustador desenvolvimento do Japão era a formação, a cultura, a educação.

Quando chegou a hora, e quiseram fazer computadores, automóveis, diabo a quatro, fizeram, "e muito bem, não é?"

Nós não temos aquelas condições - acentua.

Brinca um pouco com o tempo, ao dizer que nós temos "a eternidade na nossa frente". Quem sabe, em 200, 300 anos, o Brasil chegue a um grau impressionante de desenvolvimento...

Mas, e lá vem o professor e seu olhar estratégico, "antes de acontecer isso, esse capitalismo vai se decompor e vem outro regime depois".

A mudança, o fim do modo de produção capitalista, inevitável - "é a história do mundo, uma transformação contínua, né?"

Difícil marcar data, mas que tal mudança vem, lá isso vem, não há dúvida.

O capitalismo não tem nem mais moeda, virou bagunça, desorganização total.

"O Jimmy Carter desvaloriza o dólar, atrapalha a vida de todo mundo porque os EUA não podem mais importar produtos, acham muito caro".

Fala de reunião realizada naqueles dias, na Cidade do México, a reunir as sumidades da economia mundial representando todos os grandes países.

Resultado: zero.

Fracasso total...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

4 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: revolução burguesa ou socialista

 

Não, não era qualquer um, o entrevistado.

Um dos maiores intelectuais brasileiros.

Caio Prado Jr. era referência em qualquer debate sobre os rumos da luta política no País.

Em 1966 escreveu "A Revolução Brasileira".

Pelo livro, recebeu o título de "Intelectual do Ano", o prêmio "Juca Pato", instituído pela "Folha".

Nas discussões sobre os rumos da Revolução Brasileira, dois grandes nomes demarcavam campos: ele e Nelson Werneck Sodré, outro gigante.

Caio Prado, analisando o Brasil como país essencialmente capitalista.

Nelson Werneck Sodré, tendo o Brasil ainda com presença acentuada de relações semi-feudais, e portanto ainda à espera de uma revolução burguesa, com esperanças na burguesia nacional.

Curioso: os dois vinham de um mesmo tronco: o PCB.

Enquanto Sodré permaneceu na linha tradicional, ele avançou na interpretação do Brasil.

Sodré continuava a dar sustentação teórica a grande parte da esquerda brasileira, com sua visão de revolução em duas etapas - primeiro revolução burguesa, depois a socialista.

Nessa barca, estavam não só obviamente o Partidão, como quase todas as organizações da esquerda armada.

Caio Prado, ao contrário, dava sustentação aos que advogavam a revolução de uma etapa só, a socialista, por entender o País como capitalista - e aqui envolviam-se poucas organizações, entre as quais a Polop, não necessariamente por influência direta dele.

Então, era um gigante, o entrevistado.

Que País era o Brasil?

Ele tentava explicar na entrevista a Cardoso.

"A massa brasileira foi formada como? Foi formada por africanos trazidos pra cá, que perderam a cultura de lá que eles tinham. Cultura no sentido geral. Perderam porque foram jogados aqui como escravos, não tinham vida de família, não tinham nada. Quer dizer, eram animais dentro de uma estrebaria. Era a massa brasileira, formada assim."

O País era tão violento com os trabalhadores-escravos, tão cruel, a ponto de a Itália dificultar a imigração para o Brasil.

Considerava fossem maltratados os italianos chegados ao Brasil para trabalhar.

"E eram mesmo, não podiam deixar de ser. Estavam habituados a lidar com escravo, vinha um homem livre, não estava habituado àquilo, sofria, né?"

Na entrevista, ele explica: não criticava por criticar.

Sempre se interessou pelo Brasil.

"Mas não tenho esse patriotismo idiota de pensar que patriotismo é falar das grandezas do Brasil."

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

5 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: três gigantes e compreensão do Brasil

 

Enquanto entrevistava Caio Prado, Cardoso pensava nos caminhos para chegar até ali.

Tarso de Castro concebeu a série "Que País é este?" para o "Folhetim".

Cardoso estava lá.

Foi quem deu a ideia de ouvir Caio Prado, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda.

A sugestão dos três gigantes não veio ao acaso.

Herança do curso com Antonio Cândido, inegavelmente também um dos maiores intelectuais brasileiros, feito antes.

Fora aluno dele, no tempo de militância da Polop.

No "Vários escritos", do velho mestre, espécie de bíblia para Cardoso, está dito: quiser compreender o Brasil sujeito deve ler "'Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado, "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, e "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda.

Esses três autores foram uma espécie de divisor de águas - até surgissem, não existia análise tão acurada sobre o Brasil.

Espécie de privilégio das gerações seguintes: ter essas obras à mão para decifrar o Brasil, cuja tarefa é espinhosa.

Ao ouvi-los, Cardoso tinha em mente extrair dos três o sumo da visão deles sobre o Brasil.

Não queria ater-se ao contingente, a uma conjuntura específica.

Mais estrutura.

Menos conjuntura.

Aqui, lembro dito recorrente quando dei aula: repórter não é só perguntar.

Tem de saber o conteúdo das perguntas.

Ter pretensões.

Formação histórica.

Isso sobrava em Cardoso, garantia para tornar as entrevistas peças históricas.

Ele chegou pra Tarso de Castro e disse: temos de ouvir os três.

O editor gostou da ideia.

Dos três, na avaliação dele, o mais importante foi Caio Prado.

Além do "Formação do Brasil Contemporâneo", havia "Evolução Política do Brasil", também essencial, para lembrar duas das muitas produções dele.

Nomes têm história: assim com "Que País é este?"

Nasceu de expressão de Francelino Pereira, presidente da Arena em 1976, reagindo a dúvidas da oposição sobre promessas de Geisel: regime seria aberto gradualmente e os governadores seriam eleitos pelo voto direto dali a dois anos.

Como se duvida da palavra de um presidente?:

- Que País é este? - perguntava Pereira.

Ano seguinte, Geisel fechou o Congresso, aumentou o mandato dos presidentes para seis anos, e decidiu fixar indicação de um terço dos senadores pelo próprio regime, sem voto - chamados senadores biônicos.

Que País é este?...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Artur Carmel: Ô meu mestre Emiliano José , quando se fala de Brasil e seus pensadores - uns mais ilustrados e despreendidos de utopia e fanatismos que outros - quase que todo o "pensamento", todas as teses, só abarcam até pouco mais da redemocratização caolha do país. E em quase todos os enunciados, esses mesmos pensadores clamavam, esperavam, mesmo que veladamente, por a chegada da esquerda ao poder. A esquerda chegou ao poder e "esqueceu" boa parte de todas as teorias desses lendários intelectuais brasileiros, ao se alinhar com setores retrógrados da política e do empresariado brasileiro. Meio que num jogo de adivinhação, o que podemos esperar dessa esquerda - que teve o país nas mãos, mas não conseguiu realizar o sonho, o esforço , de todos esses intelectuais e teólogos da libertação nacional e mundial do julgo capitalista, além do sonho do povo brasileiro, e o povo brasileiro não são só os miseráveis, os comunistas e identitaristas - o que podemos esperar dessa esquerda cheia de perrengues estruturais e judiciais? Veremos um novo Lula, a pregar um novo Brasil? Que podemos esperar?

Emiliano José: Querido Carmel, boa discussão. Ainda bem que temos pontos de concordância e outros de discordância. Muito, muito mesmo foi feito durante os governos liderados pelo PT. O combate vitorioso à fome, um fato. Houve políticas públicas voltada às maiorias, e o País melhorou muito, inegavelmente. Fruto do pensamento e prática da esquerda. Se não existissem erros, estaríamos fora do território humano. Muitos. O saldo, no entanto, largamente positivo. Tanto que tiveram que dar um golpe e excluir pela orcrim de Curitiba o candidato favorito, colocando-o na cadeia, hoje reconhecido inocente. Sei, no entanto: o espaço aqui é insuficiente. Teremos outros espaços, passados pandemia e pandemônio. Vão passar. Abração.

Artur Carmel: Sim, amigo...Houve melhoras, afinal de contas quem estava assumindo o país (posse do 1° mandato de Lula) era um homem vinculado a uma corrente progressista e no qual todos os que votaram nele - a maioria, pelo menos - esperavam não menos dele. Só que, após o segundo mandato (e já no meio deste) "coisas estranhas" começaram a acontecer no país e continuaram acontecendo no governo Dilma - diga-se, uma mulher proba, mas arrodeada de hienas, inclusive da própria agremiação. Por quê Lula, o homem, o mito (sim, Lula tb é (ou foi) um mito) não conseguiu fazer a roda parar? O que fez Lula para desatar o nó górdio da corrupção, da ganância dos lobos aliados? Aquilo deu nisso, deu em Moro, deu em Bozo, deu ruim. Sei, e vc tb sabe, que as coisas não são "tão simples assim", e que existe muito mais petróleo, gás, plataformas, navios, comoditties e acordos mal-feitos do que nossa vã filosofia (e ideologia) possa perceber. Mas que Lula, Zé Dirceu et caverna perderam a mão, lá isso é verdade.

Emiliano José:  Rende grande discussão. Disse: nesse espaço, impossível. Em outro, e não deve demorar, faremos. Evidente, como disse, temos diferentes visões. E como também disse: ainda bem. Só assim, discussão. Chega o momento.

Artur Carmel: Tem toda razão qto ao espaço...Espero que em breve possamos, presencialmente, continuarmos o debate. Profícuo, desde já! Abraço !!

Luciana Mandelli: Emiliano José e as entrevistas? temos? 

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Emiliano José

6 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: raízes do atraso

 

Caio Prado dizia, olhando para o Brasil: é preciso ver a realidade como ela é.

Não critico por criticar, dizia a Cardoso:

- Não fiz outra coisa na vida senão me interessar pelo Brasil. E compreender e conhecer este País.

Escapar de nossa herança histórica, o único jeito é elevar o nível da população, não só cultural, mas tudo: educação, saúde.

- Outro dia eu li no jornal o resultado de uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde, que diz que 50% dos brasileiros são doentes. Você já imaginou uma coisa dessas?

A elevação do nível da população brasileira será um benefício para o País inteiro - dizia:

- E não se cuida disso.

O que conta num País não são as estatísticas.

É o indivíduo.

É preciso saber o que é a média do homem brasileiro:

- Você não vai dizer que é uma coisa admirável, né?

Fazer grandes empreendimentos, grandes empresas, impressionam à primeira vista:

- Mas o homem que está trabalhando lá, o que ele está ganhando com isso?

Aborda a impressionante concentração urbana:

- O indivíduo que vem morar na cidade fatalmente tem que gastar mais, comprar mais coisas. No campo, você tem outras condições. Ele pode até viver melhor no campo e gastando muito menos do que gasta na cidade. Na cidade tem uma porção de despesas que não tem no campo.

Então, fala-se no aumento do consumo, mas isso não significou o essencial: aumentar a qualidade de vida do indivíduo:

- Economistas têm esse grande defeito de deixarem completamente de lado o aspecto humano das coisas, né? Consideram só o número.

O sujeito que consumia 10 passou a consumir 20, dobrou. E no entanto a situação dele pode até ter piorado. E os economistas não entendem isso.

Para falar das raízes do Brasil, ele mergulha na análise de Portugal.

Espanha e Portugal marcharam ao lado da Contra-Reforma, e Portugal muito mais.

A Reforma foi o reflexo na religião de toda uma transformação social e econômica na Europa, foi o Renascimento.

A cultura moderna começa praticamente aí, no século XVI, com a destruição da cultura antiga - "o aristotelismo, a escolástica, enfim toda essa coisa, né?

Portugal não teve isso porque os jesuítas dominaram Portugal:

- Você sabe que a Ordem dos Jesuítas foi organizada pra lutar contra a Reforma, e manteve Portugal dentro daquele sistema antigo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

7 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: ficando pra trás

 

A Ordem dos Jesuítas foi criada para isso, lutar contra a Reforma, e manteve Portugal no mundo antigo.

Pombal tentou a transformação dessa cultura - reformou o ensino, veio a Universidade de Coimbra.

Mas não aguentou, ficou nos propósitos, foi excluído.

E foi posto ao lado exatamente porque as forças retrógradas não aceitavam as propostas dele.

Dominaram de novo.

É isso, dirá Caio Prado: Portugal se atrasou, o mundo caminhava, e Portugal ficava pra trás:

- É um país que ficou à margem da Europa. Não é um país europeu. A Espanha, também, em grande parte, mas menos que Portugal.

A História tem de ser interpretada assim, dirá o mestre:

- Não é dizer que o único fator da vida humana é ganhar dinheiro - esse materialismo vulgar, se diz até que "o marxismo é isso", mas isso é falso, né?

Tem que se considerar o conjunto do indivíduo. Claro: a primeira coisa que se vê são as condições de vida dele - enfatiza o professor.

E a partir disso, analisar a história das várias civilizações.

O caso do Japão é típico.

Fala-se: o Japão é muito diferente, na mentalidade, em tudo:

- Mas vá conversar com um homem de negócios japonês. É como um americano, senão melhor.

O Japão, dirá o mestre, cria problemas terríveis para os EUA, é um concorrente e tanto, "criaram coisas novas que os americanos ficam assim meio espantados". E evidentemente o Japão não tinha uma mentalidade capitalista há 100 anos.

O certo: há circunstâncias favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo em alguns países, em outros, não.

Não se trata de "ah, nós temos jeito pra isso?" - o professor recusa esse senso comum.

Nem aceita qualquer espécie de determinismo, a ideia de uma causa e um efeito:

- Não existe uma causa.  Existe um processo, um conjunto de circunstâncias que estão se desenvolvendo.

As condições de vida criam uma mentalidade e a mentalidade depois reinflui sobre as condições de vida.

- Qualquer indivíduo analisando a sua própria vida está vendo isso. A vida transforma, ele se transforma, e também transforma a vida. Vai orientando a sua vida e modificando-se, assim também a história de um País. E no Brasil acontece isso.

O fato: Brasil nasceu como negócio.

Caio Prado insiste: o português é essencialmente um comerciante, não é um industrial.

O português dá o "Pão de Açúcar" - empresa formidável, a se estender por vários países:

- Agora, onde é que eles estão na indústria?

Sintetiza:

- A gente não pode dizer é isto ou aquilo, é um conjunto de fatores. E o conjunto de fatores é desfavorável ao desenvolvimento capitalista.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

8 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: é o capitalismo, estúpido!

 

Da análise sobre o desenvolvimento capitalista, das dificuldades históricas do Brasil para chegar a um capitalismo de cara própria, Caio Prado salta, na entrevista a Cardoso, para a situação política.

Lembra: naquele momento, início dos anos 80, não existia mais censura prévia, não obstante o País vivesse ainda sob uma ditadura.

Se ditadura, sempre existia o risco de a censura voltar:

- Daí, o medo, a autocensura - que é a pior censura que existe: o hábito de escolher as palavras e a maneira de dizer para evitar qualquer suspeita.

O clima político estava melhorando, o terror diminuía devido, entre outros fatores, às pressões internacionais.

A campanha de Jimmy Carter pelos direitos humanos influía muito, importando pouco a sinceridade ou não do presidente americano.

E era inegável, também, na avaliação de Caio Prado, o enfraquecimento do governo - da ditadura.

A ilusão do "Brasil Grande Potência" ia desaparecendo:

- Agora, a dívida externa ultrapassa 30 bilhões de dólares, há déficit na balança comercial, e a crise econômica leva até empresários a protestarem.

Recorre a conhecido ditado popular:

- Casa que não tem pão, todos brigam, e ninguém tem razão.

Não bastasse isso, ocorre uma coisa espantosa: "a escolha do presidente e dos governadores é feita sem dar satisfação a ninguém":

- Se o Figueiredo não for capaz de governar o Brasil, não será por incompetência, mas por não ter prestígio, por ser inteiramente desconhecido como homem público.

Vai e volta, o mestre, na entrevista.

A vida numa sociedade de classes implica uma discussão constante.

O que é o trabalho? - ele pergunta, e responde:

- É força de trabalho que um está vendendo pro outro. E da mesma forma que se discute o preço de mercadoria, a gente discute também o preço dessa mercadoria, que é a força de trabalho. Então é uma discussão constante de todo dia. Eu já dirigi empresa e senti os problemas que surgem.

Conta.

Os problemas não surgem devido à maldade de um, à bondade do outro.

Não é isso.

Não podem ser encarados com esse romantismo.

Devem ser olhados como são, a vida como ela é, concreta.

Vence o mais forte, e não há outro modo de resolver:

- Eu me lembro de um problema muito comum que surgia na indústria: chegava um operário atrasado, a indústria pra funcionar tem de chegar todo mundo no mesmo horário, bateu o relógio, acabou, não deixa mais entrar, aí o sujeito chega atrasado e diz assim: "ah, não sei o que, imagine que minha mulher ficou doente, se sentiu mal, não sei o que, tive que chamar médico, foi uma luta tremenda".

Aí, o encarregado fica com pena, deixa entrar, porque senão o sujeito perde o dia:

- No dia seguinte, todo mundo chega atrasado, um é o filho, outro "porque o pai, porque a mãe..." O patrão não pode ser detetive, acompanhando a vida de cada um, e ver o que ele está fazendo, se ele está sendo sincero ou não. Então tem que estabelecer certas normas rígidas. É maldade? Não. O mal não está nas pessoas, mas no regime que leva cada um a se indispor com o outro.

Poderíamos parafrasear James Carville, assessor de Clinton, e dizer:

"É o capitalismo, estúpido!"

 Mais ou menos o que quis dizer nosso Caio Prado.

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

9 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: lições de mestre

 

Compreendo quando Cardoso fala dos momentos felizes no jornalismo.

Aqueles de longas, memoráveis entrevistas, quando foi possível perguntar e aprender.

Estar cara a cara com um sujeito-referência, aquele Caio Prado.

No passado, sei lá quando, para elogiá-lo, nós o chamaríamos um traidor - traidor da classe dele.

Comunista desde jovem.

Cardoso ainda tem na memória a chegada à casa dele.

Mansão nos Jardins.

Rua Maestro Elias Lobo, no Jardim Paulista.

Casa centenária, da família Prado.

Com porteiro, mordomo, tudo no melhor estilo burguês, ou aristocrático, se quiserem.

E como foi rica aquela convivência, por rápida fosse.

Aprendeu muito.

Lições de Brasil.

Lições de mundo.

1978 foi ano importante.

A chamada abertura, acelerada.

Não por boa vontade da ditadura.

Porque a luta crescia feito fogo de monturo desde meados da década, ia empurrando o regime para abrir.

Ano seguinte, viria a anistia - momento marcante, não obstante as limitações.

O mestre, naquele maio de 1978, falava assim: como mestre.

Dizia de suas preferências como aluno aplicado.

Gostava de História e Geografia.

Didático, dizia ao repórter:

- Geografia não é dizer que tem um rio de tantos quilômetros de comprimento. Geografia é compreender as condições naturais da vida, as relações, a distribuição, a maneira de viver.

Caio Prado estudou Geografia e História.

Pra valer.

Por isso, quis conhecer o Brasil.

E conheceu.

De cabo a rabo.

A Geografia ajudou muito.

Abriu perspectivas.

E graças a Defontaine, o professor da disciplina:

- O maior professor que conheci na vida.

Não pela erudição - não era a dele.

E sim pela capacidade de viver o assunto.

De um entusiasmo único - assistir a uma aula dele era alegria, divertimento:

- Professor não é o sujeito que sabe muito. Ensinar tem toda uma comunicação, não?...

Defontaine sabia das coisas, conversar, entusiasmar os alunos...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

10 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: ir aos fatos para compreender a realidade

 

É, o mestre dava aulas sobre como ser professor.

Não depende da erudição.

É preciso criar empatia, relacionar-se com as alunas, alunos.

Saber comunicar-se.

O quanto cada um de nós sabe disso.

Quem foi aluno, quem deu aula.

E a gente tem sempre um professor, uma professora, pra chamar de seu.

Ou mais de um.

Lembro da professora de História do ginásio - notável.

E do professor de Português, também do ginásio.

Inesquecíveis.

Caio Prado, na conversa com Jary, na entrevista, perguntava:

- Como  é que você vai conhecer um país se você não conhece os meios e as condições de vida?

Tem de saber essas duas coisas: tem que saber Geografia, que é o lugar, e tem que saber História, que é a evolução - assim falava o mestre, com pertinência.

Constatava: há no Brasil um grande número de estudiosos de Geografia.

Eles, como grupo, são os que melhor conhecem o Brasil.

No entanto, na avaliação dele, não eram levados em consideração.

Ninguém sabe sequer da existência deles:

- Então, fazem aí estradas e o diabo, mas não consultam os geógrafos. É preciso criar a mentalidade do geógrafo, que não tem aqui.

Em História, dirá Caio Prado, é relacionar.

História é ver as relações.

O mais importante da História é a vida das pessoas, como se vive:

- Por exemplo, eu compreendi grande parte da História lendo os anais da Câmara de São Paulo. Li aquilo página por página, inteirinho.

Ensina: não basta ler uma vez.

Porque você só percebe a importância depois de ter lido.

Daí, tem de voltar pra rever.

Só então você compreende a vida, como é que se vivia.

Lições de um sábio.

Bom anotar.

E por fim, na conversa, filosofa um pouco.

Estamos acostumados, desenvolve o professor, com esse resto de aristotelismo metafísico existente no Brasil, a discutir os conceitos, não os fatos:

- Hoje em dia tá todo mundo discutindo democracia. Agora, ninguém vai aos fatos, à significação prática da democracia, o que ela tem de positivo e de negativo nos fatos, não é? Fica-se discutindo qual é o conceito. Não procuram ver as coisas como elas são, mesmo que sejam contra a gente. Quando eu vejo essas falhas que têm no Brasil, eu vejo em função da maneira de corrigir isso, e dediquei minha vida a isso. A crítica é o reconhecimento de uma situação que necessita de uma correção. Olho pro Brasil assim.

Um olhar generoso - eu diria.

Ácido, às vezes - por necessário.

O olhar de um intelectual orgânico, tal e qual pensado por Gramsci.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Joana D'arck: Ricardo Lipe me marcou. Ele era cênico, crítico, irônico e sabia contar história em várias versões. 

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(Reprodução da entrevista com Chico Buarque no Folhetim, em 1978)

Emiliano José

11 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: pra ver a banda passar...

 

Chico Buarque é desses personagens a marcar época.

A perpassar a existência de inúmeras gerações.

Eu cantarolei Chico sem perceber, primeiro "A Banda", creio, me corrijam havendo erro, ali por 1966, andando pelas ruas e becos do Jaçanã, em São  Paulo.

Não era não?

Festival da Record, não?

Mais de meio século.

No festival, houve disputa com Vandré, a memorável "Disparada", murmurava até mais, pelo lado nitidamente político dela, eu mal iniciando minhas inclinações de esquerda, logo depois consolidadas.

Ganhou "A Banda" mas, do que se conta, Chico não aceitou ganhar sozinho, e acabaram jogando as duas pro primeiro lugar - agradou as torcidas: é, não estranhem, havia torcidas.

Não há torcidas hoje pela sofrência?

Pelo sertanejo, sertanejo moderno?

Havia torcidas de Vandré e de Chico, mais barulhenta a de Vandré.

Desde lá vem o Chico, e ele nunca mais abandonou a estrada - estrada criativa, imensamente criativa, e com um norte claro.

Nunca abandonou o caminho da esquerda.

Teve de se exilar por conta disso.

Foi censurado, em limites extremos, pela ditadura.

E o seu verbo, sua poesia, sua banda nunca deixaram de emocionar, envolver multidões, e mesmo aqueles cujas posições políticas estavam a léguas de distância dele, admiravam-no, compartilhavam o trabalho poético dele:

"Você não gosta de mim, mas sua filha gosta" - vocês se recordam disso, né?

Fui admirá-lo mais e mais ao longo da caminhada.

Na fase inicial, era da torcida de Vandré.

Fui vendo, olhando, fruindo a poesia, a musicalidade, e sendo tomado por ele.

Já ocupou dois séculos, e segue.

Influenciou o XX, prossegue XXI agora.

Ainda escutamos, não?:

Estava à toa na vida

O meu amor me chamou

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor...

Não é linda?

A minha gente sofrida

despediu-se da dor

Pra ver a banda passar

Cantando coisas de amor...

E segue,

Até o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou..

Pois é: é esse insuperável poeta, cantor, romancista, teatrólogo, contista, o próximo personagem nosso, entrevistado por Jary Cardoso - Jary tem ipsolone, nunca olvidar.

No mesmo ano de 1978, tal e qual Caio Prado, ele comparece no "Folhetim".

Nosso Jary Cardoso começou a entrevista com ele numa sala de gravadora.

Continuou em sala da casa dele, no alto da Gávea, no Rio de Janeiro.

E o começo, propôs Cardoso: fosse fala do Chico como criador, "não apenas como cidadão".

Gravador ligado, aquele tijolão, e nosso Chico começa a soltar o verbo:

- Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para se misturar as duas coisas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Joaquim Lisboa Neto: Parodiando Chico Julinho da Adelaide Buarque, "você não gosta de mim mas sua neta gosta", relembrando caso que tive com Cristina mineirinha de Beagá neta do tenente-delegado em Santa Maria nos anos 70s, chegada que só numa marijuana

Emiliano José: conta...

Joaquim Lisboa Neto: Então lá vai...

Ana Vieira: Essa gera inveja branca.Ai,como eu gostaria de ter tido chance de entrevistar o genial Chico Buarque.

Benilson Ataide: Randolfe chamaria de inveja Cristã. Rsrs

Grande menino Randolfe!

Solange Souza Lima Moraes: Inveja boa. Branca parece que o que é preto é ruim e não é

Ana Vieira: Nunca ouvi ninguém falar a expressão inveja preta. Isso cheira a policiamento linguístico. Se a pessoa fala preto de alma branca, aí há clara conotação racista .

Solange Souza Lima Moraes: Muito bom.

Benilson Ataide: Assisti ontem na netflix: Chico, um Artista Brasileiro. Confirmei a genialidade do filho de seu SÉRGIO. Imperdível.

Joaquim Lisboa Neto: Uma noite em 67 o documentário 

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Emiliano José

12 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico, 1978, cultura e política

 

Não, Chico não considerava fosse hora de misturar política e arte, cidadão e cultura.

Naquele momento, naquele ano de 1978, naquela conjuntura, Chico Buarque não achava oportuno ficar cobrando posturas dos artistas - postura como cidadão.

De 1968 a 1974, aconteceu muito isso:

- Havia um vazio político profundo no País inteiro.

As opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar à juventude.

Esta gostaria de estar participando de alguma forma da vida política:

- Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna.

Mesmo não querendo, o artista estava lá assumindo uma posição.

O tempo todo, a cada momento, a cada canção, a cada entrevista.

Situação havia mudado:

- Acho que chegou um pouco a hora do artista.

Na entrevista, enfatiza uma obviedade: falava em nome pessoal.

Já era tempo, naquela conjuntura, de passar um pouco a função da crítica num sentido mais político:

- Num momento em que transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição mais clara que eu posso assumir.

Em 1972, por exemplo, não existia isso.

Muita gente votava nulo:

- Eu andava pelo interior fazendo shows com estudantes e a grande maioria deles, a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era melhor do que a do Maranhão.

Chico, então, cantava "Construção", "Deus lhe pague", e aquilo tinha uma função política efetiva, "tenho consciência que tinha".

Depois de certo tempo, no entanto, esse papel já não o agradava:

- Parecia que estava jogando com baralho falso.

Continuava a fazer do palco uma tribuna quando os problemas nacionais já podiam ser discutidos.

Isso aconteceu principalmente a partir do momento em que a imprensa "começou a ser menos censurada".

- A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição... Mas esse governo abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou tudo no País.

Cardoso comenta com Chico: um dos jeitos mais fáceis de chamar a atenção das pessoas para o Fernando Henrique Cardoso foi dizer que ele apoiava a candidatura dele ao Senado.

- É, isso ainda é o resto dessa deficiência que está aí. Se existisse liberdade pra valer não precisava usar o nome dos artistas para promover fulano.

Ele diz saber de casos...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

13 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: implacável garrote da censura

 

Muitas pessoas iam pra urna votar no sujeito indicado pelo cantor, pela artista, não propriamente pensando no candidato:

- O ideal seria que elas soubessem porque fulano é candidato de fulano. Não simplesmente uma credibilidade que você tenha. Sem Lei Falcão, sem cacete a quatro, o povo realmente estaria votando nesses candidatos e saberia por quê.

Cardoso provoca Chico: falando de censura, ainda então presente:

- Censuraram a música que você fez para as Frenéticas, ao mesmo tempo em que liberaram outras, antigas. Acabou a marcação?

- É, "Mambordel" - responde Chico.

- É claro que a libertação dessas três que estão no último disco foi uma coisa muito pensada.

Foi uma jogada, explica Chico:

- E muito bem bolada, porque eu não podia reclamar, porque liberaram as músicas. O máximo que eu podia fazer era não gravar em sinal de protesto.

Soube da liberação pelos jornais:

- Isso é muito maior do que o rancor de um ou outro censor. Isso existiu em tempos, não só com relação a mim, mas a outros compositores e gente de teatro, Plínio Marcos, por exemplo.

Constata: há, ainda, centenas de peças de teatro proibidas:

- É claro que a liberação de uma peça de teatro tem menos repercussão que a liberação de uma música de um compositor popular.

Cardoso pergunta se ele sabe a causa da censura de "Mambordel":

- Digo sinceramente: nunca tive muita ideia porque estavam censurando. Às vezes liberam música que a gente pensa que vai ser proibida.

"Mambordel" devia parecer à ditadura como atentatória à moral e aos bons costumes.

Chico havia feito a música para um filme, afinal não realizado.

Entrava numa situação no filme, quando as prostitutas conseguem enxotar o dono do bordel, o poderoso gigolô delas,

Elas, então, expulso o gigolô, decidem:

- Fica proclamada a república nesse bordel.

E termina assim:

- Ao povo, nossas carícias, ao povo, nossas carências, as nossas delícias e as nossas doenças.

Chico faz um balanço da luta dele contra a censura. Acentua: não era uma luta pessoal, mas em alguns momentos assumiu aspectos pessoais:

- Eu era pessoalmente incomodado, quase semanalmente. Em cada lugar que eu ia, era obrigado a comparecer ao Deops. É claro que isso foi me afetando pessoalmente e eu reagia às vezes até de uma maneira menos racional. No aspecto geral, essa picuinha não pesa nada. Aí, a discussão é outra, é a gente fazer um balanço do prejuízo que a censura representou para a nossa cultura esse tempo todo...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

14 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico, censura, e cultura esmagada

 

Chico Buarque sempre contextualiza os problemas.

Evita trazê-los para o âmbito pessoal.

Agiu assim o tempo todo durante a entrevista.

Ao falar da liberação das músicas pela ditadura do disco lançado por ele, dizia não significar "absolutamente nada":

- O prejuízo [causado pela censura] não foi maior pra mim nem pra ninguém, foi para a arte nesse País mesmo.

O público que assiste a uma peça de teatro que tenha alguma ousadia, alguma contribuição, saía desse mesmo espetáculo enriquecido, "é um dado a mais para a cabeça desse público":

- No mês seguinte, quando voltar ao teatro, ele vai querer um acréscimo a essa sua informação ou emoção.

- Então o autor é obrigado e desafiado a estar sempre criando mais e melhor. Isso durante um ano representa um salto cultural de todo o País. Durante dez anos é o que se chama desenvolvimento cultural de um País.

Segue: o público que não viu "Rasga Coração", do Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), perdeu com isso, os autores dramaturgos também perderam porque não são obrigados a fazer uma coisa melhor que aquilo. E vão ficando parados no mesmo lugar, "emburrecendo com as moscas em volta":

- Aí chega um cara qualquer e diz assim: em Portugal, depois de 50 anos, abriram as gavetas e não tinha nada... É evidente, depois de um certo tempo ninguém fica escrevendo coisas maravilhosas pra botar na gaveta. Ele tem necessidade de exibir seu trabalho, de ter o reconhecimento ou o repúdio do público, ele precisa desse diálogo e o público também. Se não houver esse diálogo, morre.

- Isso vale para o teatro, para cinema, para música, para todas as áreas. Tenho certeza que se não tivesse havido essa censura toda, a música brasileira estaria muito melhor, eu estaria um compositor melhor do que sou, haveria muita gente nova, muito mais do que há hoje.

Juventude, como é que é?:

- A gente, pelo menos, tinha a ilusão ou a certeza de estar de certa forma participando da Nação. E o jovem participava, através de sua atividade estudantil ou de outra, tinha consciência de que estava participando. Hoje o máximo que ele pode almejar é um bom emprego quando sair da faculdade.

- A coisa foi colocada toda em termos de competição e nada mais. Estou falando de classe média, da minha classe. Se você for olhar em volta, as opções são trágicas.

E a abertura?

- Ninguém garante nada: essa pequena abertura que houve pode ser retirada amanhã de manhã. A única vantagem que tem é eu estar falando essas coisas e saber que elas vão ser publicadas no jornal.

De qualquer forma, há um salto em relação a 1973, "quando proibiram 'Calabar' e proibiram a imprensa de falar no assunto, aí realmente era o buraco, aí não tem saída".

É um consolo:

- Pelo menos a gente já está podendo falar dessas coisas, já é um progresso. Esses anos todos da ditadura Médici é que foram uma das coisas mais pobres.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO 

Isadora Browne Ribeiro: A clareza de Chico é impressionante.  

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Emiliano José

15 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico, Cuba, Brasil

 

Cardoso vai provocando Chico:

- Não pode ter sido pura falta de talento você, por exemplo, não ter continuadores?

Chico refuga:

- Evidente que não. Não acho que faço parte de uma geração privilegiada pela natureza, pelos astros.

E aí vai falando, refletindo.

Que País é este?:

- Durante esses anos o jovem foi uma pessoa conduzida por todos os meios de comunicação e por todo o sistema que está aí a ser uma pessoa desprovida de ideal, de criatividade. Quero deixar muito claro que se não tem aparecido muita gente depois da minha geração é simplesmente porque as dificuldades são muito maiores do que eram antes. São dificuldades que inibem qualquer talento.

Tem uma certeza:

- Fosse dez anos mais moço, não seria um compositor, ou seria medíocre, frustrado, desconhecido.

E Cuba, país visitado por Chico naquele início de 1978, veio à baila, provocação de Cardoso: "tem muita música cubana no seu último disco."

Enquanto esteve em Cuba, Chico revela ter trabalhado demais, fez muita coisa em muito pouco tempo, tanto a ponto de ter uma vontade danada de voltar e garante: vai voltar logo.

Nos 20 dias cubanos, fez um show de música brasileira e música cubana, fizeram um documento com ele, coisa pra burro.

Um povo parecido, parecido demais, com o povo brasileiro.

Semelhanças incríveis.

Ele chegou a ficar chato lá: a cada pergunta sobre Cuba, danava a falar do Brasil, tal a parecença:

- A gente tinha até uma brincadeira: todo cubano que aparecia tinha um igual no Brasil.

É muita semelhança: no humor, no ritmo, na música, no calor.

E de repente, tudo é diferente.

Chocante mesmo: não haver consumismo:

- Minha mulher foi comprar um creme hidratante e deram um potinho com um negócio marrom dentro. Ela acostumada com Ponds, Helena Rubinstein, olhou aquilo sem rótulo, sem nada, com um aspecto meio feio e perguntou: não tem outro?

A atendente reagiu:

- A senhora não quer creme hidratante? É isso.

Marieta Severo usou, deu ótimo resultado:

- Mas você está viciado por aquele apelo...

Ele mesmo resolve parar:

- Se eu for falar de Cuba, não paro mais. Quando cheguei lá, dei uma entrevista e saiu uma frase assim: "Aqui em Cuba vejo o Brasil que nós sonhamos".

Depois soube: "a mesma frase foi dita por um político brasileiro que está aí, aliás na Arena".

De Cuba, Chico salta para a música, ele gravando apoios sob a forma de paródias a políticos de esquerda no período, direito autoral.

- Você falou nisso [nas paródias] e lembrei, nesse tempo também se usava muito músicas de carnaval: "Lata d'água na cabeça", "Chora doutor", e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50, lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

16 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: arte popular está comprometida

 

Lata d'água na cabeça

Lá vai Maria, lá vai Maria

Sobe o morro e não se cansa

Pela mão leva a criança

Lá vai Maria...

Chico, na entrevista, lembrava-se de música ouvida com tanta frequência na infância.

Chega à música de protesto no Brasil:

- É uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil é um palavrão, compositor de protesto é um insulto terrível, é "Apesar de Você", que é alegre, um pouco com a ideia de músicas antigas de carnaval.

Trata de direito autoral, constata ter havido melhorias na relação com o compositor, acabou o critério misterioso.

- Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um tostão e o autor da música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais.

Conta historinha.

Toma um táxi.

Motorista diz:

- Sou seu colega.

Apresentou-se: parceiro de João do Vale em "Carcará".

Esta, fizera sucesso.

As demais, e ele era compositor de músicas sertanejas, nem tanto.

- Como está agora? - Chico perguntou.

- Muito pior - respondeu.

Compositor.

E motorista de táxi...

- É preciso levar em conta esse aspecto, principalmente de gente que foi roubada durante todo esse tempo, até quando mudou o sistema, e agora deveria ser indenizada pelo que aconteceu até então.

Cardoso provoca:

- Quando você diz que é um artista classe média, você está se colocando a dúvida de como chegar ao povo?

Chico não tergiversa: há cada vez mais um abismo entre a produção intelectual e o povo.

O general Geisel fala no aumento do consumo de eletrodomésticos:

- E isso é uma coisa totalmente furada. Eu aqui em casa tenho quatro aparelhos de televisão. Sou uma pessoa beneficiada pela má distribuição de renda.

Os endinheirados podem ter dois, três carros. O consumismo, em alta. Cigarros são lançados todos os dias. Filtro de ouro, filtro platinado, tudo voltado para o pessoal de renda alta.

Mas, como há a luta pela abertura democrática, "o que a gente quer para essa pequena parcela de público que atingimos, que ela receba o trabalho da gente integralmente. Mas acredito que dentro do sistema capitalista essa questão da arte popular está comprometida".

#MemóriasJornalismoEmiliano

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Emiliano José

17 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico e o poço de ressentimento Brasil

 

No compasso dele, Chico Buarque seguia.

- Eu aqui tenho uma ressalva porque acho que no momento o que há de mais importante mesmo para colocar é a questão democrática.

Dizia: à parte dessa centralidade, da questão democrática, cultivava outras convicções, e queria ter a liberdade de expor cada uma delas a cada entrevista ou a cada canção ou a cada peça de teatro.

Expor essas convicções para ser ouvido, e de modo fossem julgadas:

- Não estou querendo dizer que sou o dono da verdade, pelo contrário, estou sempre dizendo que não sou. Agora, quero ter a liberdade de manifestar minha opinião pessoal e, como já disse nessa entrevista, hoje existe a vantagem de poder dizer alguma coisa na imprensa.

Define as possibilidades da arte popular:

- Na verdade, a arte só é popular na medida em que ela tende a estar aliada ao governo, e o governo seja popular na medida em que esteja ligado ao povo. Eu só acredito em arte popular num país em que o povo esteja no governo.

- Você acredita no Estado? - pergunta Cardoso.

- Eu defendo o povo no poder, o Estado enquanto povo no poder. Aí a arte é popular, senão será sempre uma arte de elite, sempre foi. É claro que é muito mais importante dar pão para o povo, mas de repente você pode através da arte comunicar a esse povo a importância que ele tem para reivindicar o básico. Isso aconteceu em Cuba. Tá acontecendo em Moçambique, mas é inteiramente diferente do que está acontecendo aqui. O sistema que está aí procura desviar a arte a seu gosto, contra os interesses populares.

Cardoso o provoca, talvez sem pretender, ou pretendendo:

- Você é um sujeito meio inatacável, até parece uma exceção. Você se sente assim?

- Não, isso não é verdade. Sempre que eu leio uma coisa assim é um pretexto para dar uma paulada e o cara ainda sair com fama de corajoso.

Diante dos seguidos ataques, Chico adota a política de responder com trabalho, com sua obra poético-musical-teatral:

- Eu pessoalmente não tenho nenhuma admiração pessoal por mim, mas pelo meu trabalho eu tenho porque quando nada eu vivo pra isso. Então as pessoas usam um pouco isso, de chamar o Midas, como se fosse uma coisa meio mágica ou uma coisa intocável.

Ele insiste:

- Não é, é resultado de muito trabalho, eu estou produzindo constantemente.

- Se eu produzir uma coisa muito ruim, podem falar mal, é uma porcaria e vão falar mal. Porque é isto que a gente vê, esse País tá virando um poço de ressentimento.

Fala de Milton Nascimento: há 80 por cento a considerá-lo maravilhoso, vinte por cento não o veem assim mas não têm coragem de expressar a crítica porque "vai pegar mal e tal":

- Aí, um dia, numa apresentação no festival de jazz, essas pessoas que estavam com esse ressentimento guardado há muito tempo botam pra fora esse negócio de uma maneira selvagem. Isso já aconteceu comigo, com os baianos todos, com o Milton. A crítica aqui no Brasil é uma coisa muito provinciana, funciona muito a ligação pessoal...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Emiliano José: Jari Cardoso talvez consiga a data exata.

Jary Cardoso: Emiliano José, mate o homem, mas não lhe troque o nome. O meu é com ipsilone... Ah, consegui a data exata, veja abaixo.

Paulo Dourado: Olá Emiliano, saíram aonde, essas falas?

Jary Cardoso: Caro Paulo Dourado, essas falas estão na entrevista que Chico Buarque concedeu a mim e à repórter Maria Da Paz Trefaut Minouche, publicada com o título de "Arte popular só com o povo no poder", no "Folhetim", então suplemento dominical da "Folha de S. Paulo", no dia 31 de dezembro de 1978. A íntegra dela está na internet (veja o link), indicando apenas o ano da publicação, mas fui no acervo digital da "Folha" e encontrei a data exata.

http://www.chicobuarque.com.br/.../entre_folhetim_78.htm

Folhetim - Folha de So Paulo - 1978

Folhetim - Folha de São Paulo - 1978 (chicobuarque.com.br)

Mônica Bichara: Que relíquia maravilhosa, dessas pra se guardar pra sempre

Paulo Dourado: Muito obrigado Jary. Para uma eventual citação esses dados são importantes. O material é ótimo! Forte abraço. 

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Emiliano José

18 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico Buarque e o processo criativo

 

- Você acabou virando uma das figuras mais importantes da cultura brasileira. Como você se vê hoje? - Cardoso pergunta.

Chico Buarque reage, bem a seu modo:

- Não sei não, não me vejo como figura, imagem, essa coisa toda. Acordo bem comigo quando estou criando, quando estou trabalhando. Se  na véspera fiz uma linda música eu acordo cheio, orgulhoso, contente, me achando muito bom. Mas isso passa com o tempo.

Fala daquele momento, já se desligara do último disco - logo depois da gravação ouvia muito e ficava muito contente.

Dá outro exemplo:

- Minha peça de teatro, passei um mês indo lá diariamente. Já não vou há quase dois meses.

Chega um momento, não quer mais comer comida requentada, e para.

Sente então vontade de fazer coisa nova, e aí sente-se um pouco angustiado e impotente.

Certamente, a angústia e a impotência passam quando consegue elaborar coisa nova.

Surge a pergunta: como compõe?

- Eu só componho com violão e só componho sozinho. Aliás, a maioria das minhas músicas faço sozinho.

Revela: a ideia de uma canção pode acontecer a qualquer momento, em qualquer lugar, no banho já surgiram várias ideias:

- Aí, você se enxuga depressa, põe o calção, corre, pega o violão pra ver se continua a ideia com a música.

Não, ele não escreve uma letra antes. Uma música pode pintar debaixo d'água, uma ideia qualquer, "uma transação que depois de pegar o instrumento vai mudar, vai ser inteiramente alterada":

- No fim, o que deu início a tudo vai sumir, muitas vezes some.

- A bebida ajuda? - pergunta provocativa, leve.

- Uisquinho, essas coisas assim são um pouco vagabundagem.

Confessa: se estiver um pouco alto, não faz nada bem.

O álcool está mais ligado à apresentações em público - aí, indispensável.

Houve ideias surgidas em sonhos, semelhança com alucinações, e no fim resultando em coisas boas.

Trabalho criativo, insiste, em estado sóbrio, sério, disciplinado.

Já passara bom tempo, a permitir reflexão em torno do impacto da criação sobre o estado de espírito.

Durante muito tempo, muita amargura, e razões havia para tanto.

Vieram "Construção", "Calabar" "Chico Canta" - "são discos muito pesados, amargurados".

Aquele ano, 1978, descontou um pouquinho, e fez um disco alegre, "Chico Buarque", e estava assim, alegre e otimista.

Tem uma convicção: mesmo nos momentos mais duros, não perdeu o bom humor.

Orgulha-se da presença das mulheres nas músicas dele:

- Muitas vezes, as mulheres me dizem que eu interpretei o pensamento delas, o sentimento delas, o sentimento principalmente.

Puxando o fio, liga tais situações, dos carinhos das mulheres, com outro episódio.

Chamaram-no um dia no Sindicato da Construção Civil de Minas Gerais, em Belo Horizonte:

- E me deram um prêmio, essa pá que está ali, por causa de "Construção".

Ele se comove com isso, com tais manifestações.

Não se incomoda com a crítica burguesa, reacionária - "ele não tem direito de falar em nome do povo, falar do operário".

Frustrado ficaria se algum dia uma pessoa do povo o desautorizasse, dissesse não ter o direito de falar em nome dela:

- Aí vou me sentir frustrado, vou ser obrigado a dar a mão à palmatória.

Carinho especial pelas mulheres:

- Enquanto as mulheres disserem que eu interpreto bem o sentimento delas, inclusive cantando no feminino, compondo no feminino, vou me sentir nesse direito.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Mônica Bichara: Chico sempre maravilhoso

Maria Luiza Mota Miranda: Muito bom! Vou aproveitar! Sobre a criação, a ideia, a alucinação! Veio a calhar! As representações, as ideias, um corpo, as alucinações! Valeu querido escritor!

Emiliano José: Maria Luiza, aproveite...

Sônia Maria Haas: Muito bom!!!

Jôh Castro Lima Castro Lima: Muito bom. Chico me assina. Assina minha alma , meu sagrado, meu feminino mais doce e forte. Além de me arrancar suspiros infindos. O Buarque, ah ... risos. Obrigada , Emiliano. Bjo

Graça Azevedo: Como não amar?

Zeca Peixoto: Aula! E que aula! Amei!

Artur Carmel: Houve um tempo no qual as substâncias não permitidas pela carta.magna eram de excelente qualidade....

Solange Galvão: Grande entrevista. Jari brocou!

Jary Cardoso: Poxa, Solange Galvão, obrigado!

Lucia Correia Lima: Solange Galvão tenho uma linda imagem de vc uma pessoa delicada, como o mundo necessita. Mas creio que "brocou" é uma gíria criada na violência que hoje está no poder graças ao ego de .... Deixa. Desculpa.

Lia Robatto: Obrigado Lucia

Maria Luzia Sánchez: quando eu ouvi "brocou" pela primeira, da boca de um adolescente, me assustei, achando uma expressão pesada. Mas foi por um breve momento, até ver a expressão facial de admiração de quem falou, e entendi que essa gíria juvenil significa um grande elogio.

Lucia Correia Lima: As expressões são criadas também para dominar mentes. Comentaristas esportivos chamavam o jogador que botavam bolas nas redes de "matador". O inconsciente coletivo é manipulado.

Lucia Correia Lima: Sabemos dos equívocos da adolescência! Brocar é dar um tiro...

Lucia Correia Lima: Lia Robatto né?

Isadora Browne Ribeiro: Tem direito mesmo. Incrível como consegue escrever letras com alma feminina.

Raquel Nery: Uma aula de processo criativo. Adorei. Obrigada, Emiliano!

Emiliano José: Raquel Nery sempre honrado por sua leitura

Eliana Noronha: Esse gênio humano não precisa da "caquetica" Academia Brasileira de Letras, do obtuso Merval Pereira, para nada! Chico é genial!

Maria Luzia Sánchez: Chico, maravilhoso no que cria e como cria, e na sua empatia, humanidade, no seu "olhar para baixo, para as pequenezas tão grandes" (lembrei de Manoel de Barros). Como não amar? 

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Emiliano José

19 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico, feminismo, com açúcar com afeto

 

Foi demorada a conversa.

Chico deu corda pros dois, Cardoso e Maria da Paz, os dois repórteres do "Folhetim".

Puxaram pro feminismo:

- Nenhuma feminista te chamou de machão?

Não relutou:

- Isso eu acho uma bobagem.

Fala da amiga feminista, Rose Marie Muraro, para quem ele está de acordo com as teses do movimento feminista.

Não recusa a controvérsia:

- Não sou contra o feminismo, mas acho que de vez em quando elas falam um montão de bobagens.

- Tipo o quê, por exemplo?

Chico lembra: houve quem tivesse feito pregações nos bares da moda em São Paulo contra "Com açúcar, com afeto", afirmando ele colocasse a mulher como sendo submissa.

- Eu respondo: realmente a mulher é submissa, é isso tudo, o machismo existe e se eu disser que não existe estou sendo machista, porque estou querendo escamotear uma realidade.

Explica:

- Eu estou colocando uma situação, não estou de acordo com ela, a mesma situação estou colocando pelo canto de "Pedro pedreiro".

O homem é pobre, se eu disser que ele é rico aí vou estar sendo fascista.

Conta caso ocorrido com a ditadura.

Com a música "Partido Alto".

Nela, dizia "Deus me fez um cara pobre, desdentado e feio pele e osso simplesmente, quase sem recheio".

Censura foi pra cima dele: a música era uma ofensa ao povo brasileiro.

Não é.

- Se disser que o pobre é bonito e rico um coitadinho, é a mesma coisa que dizer que a mulher é forte e o homem um pobre coitado.

Outra crítica apareceu: girava em torno de "Mulheres de Atenas".

Reage duro - "aí eu fico preocupado com a capacidade crítica das pessoas".

Era música feita para uma peça:

- Achei que era bastante claro que estava dizendo uma coisa com um refrão que era contraditado o tempo todo pela letra da música, tipo outra música que está proibida e que fiz pro Calabar, "vence na vida quem diz sim", e o tempo todo repete o refrão.

Recusa liminarmente a ideia de símbolo sexual.

Ao contrário, acredita-se uma pessoa desajeitada, um pouco inábil com as mãos, "que funcionam de um jeito esquisito".

Nunca gostou de desmentir coisas.

Há casos incríveis.

Uma repórter do jornal "O Dia" foi entrevistá-lo, e ela se mostrava um pouco acanhada.

Conversa vai, conversa vem, ela disse saber que ele era muito agressivo, a ponto de um dia ter batido numa jornalista:

- As coisas vão se cristalizando: que eu seja agressivo, o que não sou, e que eu tenha batido numa mulher, o que também é um pouco demais. Sou uma pessoa com uma série de defeitos e vulnerabilidades, mas mentira me irrita muito.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Isadora Browne Ribeiro: Que interessante! Sempre considerei "Com açúcar e com afeto" um hino anti machista. Minha leitura é a mesma de Chico, no sentido de explicitar uma realidade, quem sabe provocar mesmo esta controvérsia que leva à reflexão. Não é um gênio este rapaz?

Joaquim Lisboa Neto: No romance Maria de todos os rios, do paraense Benedicto Monteiro, a personagem central dá um show em defesa de Chico no concernente a mulher

Jonathan Fonsêca: Valeu! E o outro responde: É niuma! 

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Emiliano José

20 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Você não gosta de mim, mas sua filha gosta

 

De paz.

Chico se revela assim.

Nem precisava: a existência dele tem dito isso.

Críticas, costuma receber de amigos, a considerá-lo excessivamente indulgente, do tipo de fechar os olhos para as sacanagens:

- Tem horas que vem a explosão, mas sempre na defesa.

- Você não joga no ataque? - perguntam.

- Só no futebol. No resto, tô aqui: na defesa. Por isso tudo tô falando: uma pessoa muito exposta, com uma posição bastante clara diante de tudo - eu sou odiado por muita gente.

Tem uma hora que o ódio dessa gente explode:

- Se vem com mentira e se me encontra na rua, aí tem briga.

Mas reafirma: não é briguento.

É paciente.

- Eu odeio os fascistas. Odeio de uma maneira abstrata.

Garante: se vir um fascista na frente dele, não vai falar com ele, vai virar a cara.

Agora, caso o sujeito fale com ele delicadamente, responderá qualquer coisa.

Acrescenta, a falar talvez mais para os tempos atuais:

- Se você for brigar com todo fascista que tem por aqui, vai ficar louco.

Uma dúvida inquieta Maria e Cardoso: cantou "Cálice" antes da liberação?

- Em alguns casos, circuitos universitários, Nordeste, Rio, São Paulo.

Conta como era.

A vida era dura sob a ditadura: era obrigado a mandar o título das músicas pra censura antes de qualquer show.

Não ia mandar o título "Cálice", né?

Mandasse, tesoura certa.

Então o cálice era servido aos censores com o nome "Pai".

Nem desconfiavam.

Aí, "Pai" aprovado, ele contrabandeava "Cálice", e começava, baixinho:

- Pai, afasta de mim esse cálice..."

Tempos sombrios são assim, a requerer sempre muita criatividade, saber dar o drible, cair pelas pontas, não confrontar diretamente, ser eficiente no combate de modo a afastar o cálice amargo, quando puder.

Quando na casa do sem-jeito, beber - sentir o gosto amargo do fel.

Há períodos, em épocas de ditadura, onde a criatividade está mais voltada para esses estratagemas do que para a própria criação poético-artística-literária.

Diz ter até algum receio de estar contando tudo isso - de repente há um revertério, tudo muda, censura volta, e o pegam no contrapé.

Pseudônimo, não dava mais pra usar -  depois de Julinho de Adelaide, com que assinou tantas músicas, o recurso esgotara-se.

Envolto numa conjuntura tão repressiva, sabendo de tantas torturas e tantas mortes, vendo amigos morrendo assim, tinha uma convicção: a popularidade dele era o seu real guarda-costas.

Nunca seria um Vlado.

Não teriam força pra isso.

Chegou até a cutucar o leão com vara curta, com aquela música do Julinho de Adelaide:

- Você não gosta de mim, mas sua filha gosta... 

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Isadora Browne Ribeiro: De censura, temos repertório. Com Chico mesmo. Aquela letra maravilhosa da trilha de Bye, bye Brasil, a censura substituiu horrores. MAS DEIXOU VAZAR!!! A Tribuna da Bahia publicou original e substituição. Teatro Castro Alves lotado, Chico começa a versão autorizada. A plateia TODA canta o original. Fazer o quê? Rs

Arthur Dazzani: Querido Emiliano José, sou um rato de YouTube. Como bem disse Ruy Castro, quero viver muito para rever o passado, através de qualquer tipo de arte salvadora, libertadora. Acho que você vai gostar dessa apresentação de Gil e Chico, de 1973, cantando "Cálice", com os censores e a polícia de prontidão. No meio da música ele manda uma "arroz a grega". Em verdade, Cálice já estava e a censura não tinha como evitar. Li seu último post sobre Chico. Estou a refletir para comentar. Segue a apresentação... https://youtu.be/ZiT_YHvUThw

Mônica Bichara: Fantástico, o "arroz a grega" foi um primor

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Emiliano José

21 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico Buarque e a luta cultural

 

Você não gosta de mim mas sua filha gosta dizia-se filha de Geisel ouvia as músicas dele e se deliciava.

Ninguém se iludisse: barra sob Geisel, diferente fosse, e era se tomada a comparação com Médici, continuava pesada, muito pesada.

Tão a ponto dele sem meios-termos ter dito da necessidade de continuar a matar os adversários: significava matar, como matou, os jovens e velhos revolucionários dispostos a enfrentar o regime.

Sorte dele, ou mérito, a fama o salvava.

Ela, no entanto, não viera à toa.

Não caíra do céu.

Fruto de muito trabalho, dedicação, amor à cultura.

Um dia, vai preso - é, nenhuma fama impedia de ser arrastado pelas forças de segurança.

Está subindo o elevador, devidamente escoltado, aquele clima.

Um dos policiais não resiste, e lhe estende um pedacinho de papel:

- Será que dá pra o senhor me dar um autógrafo?

Chico se surpreende, pega o papel e a caneta, esta também já à mão do agente e ouve a explicação:

- É pra minha filha!

- Claro - disse, e tascou a assinatura.

O policial certamente levou o troféu pra casa, feliz da vida.

Era assim: a fama se espalhava, chegava aos policiais - senão ao delegado, aos escalões abaixo, doidos por alguma atenção, algum rabisco de autógrafo.

Enfrentou grosseria, era de lei naqueles tempos, "mas sempre tive a garantia de que não iam me tocar".

Quando preso, ia com essa certeza.

A fama era a retaguarda, escudo.

Ia com essa certeza e com uma obrigação: tinha de ir mais longe, ousar:

- Se tenho essa cobertura, e não for mais longe, sou um fraco, covarde, canalha.

Equilibrava-se no fio da navalha: tentava descobrir a medida certa, até onde podia ousar, e ousava, sempre ousou.

Não, nele não havia qualquer sentimento de heroísmo:

- Seria até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais consequente e mais concreta e mais séria.

Os repórteres reagem:

- Mais séria por quê?

Ele pensa e responde: entra um pouco aquela sensação de que ficar fazendo música não é suficientemente sério:

- Eu tenho um pouco essa tendência. O que me consola é que eu tenho consciência da importância da música e da cultura de maneira geral.

Atormentava-se com tais dilemas.

Lia um Niemeyer dizer: a arquitetura não vale nada diante da imensidão dos problemas deste País:

- Então, o que vou achar de minha música?

De outro lado, não comunga do pensamento daqueles acostumados a viajar na ideia de que cinema é frescura, música, cultura, tudo, frescura:

- A gente vê grande parte da população desse mundo inteiro que não tem sequer noção do que seja a dignidade humana e do que seja a possibilidade de satisfazer suas necessidades básicas, e então a arte pode ser um veículo.

Volta a Cuba:

- Lá, eu vi o povo participando, se sentir participando. Isso vi com estes olhos que a terra um dia há de comer.

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

22 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Chico Buarque: eterno

 

Repressão, mil e uma facetas.

Devia levar em conta a linhagem, sujeito procedente de família tradicional, pai de renome intelectual raro.

Por isso, talvez alguma preservação.

Chico sabia disso.

Tinha um escudo em torno de si.

Desses invisíveis, mas escudo.

Os repórteres comparam com os baianos, Gil e Caetano, "dois baianos do interior da Bahia".

- No caso de Gil, então, existe um componente racial muito forte... aquele mulato que chama de mulato pernóstico, com aquela ousadia do Gil, já falei pra ele, tem aquelas narinas que são agressivas e tal, que pesa muito.

Reflete: esse pessoal que fica pichando os baianos o tempo todo e se esquece disso.

Quando ele foi detido em 1968, logo após o AI-5, vieram pra cima dele com gosto de gás:

- Que é que você estava fazendo na passeata dos 100 mil ao lado daquele crioulo sujo chamado Gilberto Gil?

Pensa alto, bate da madeira: se houver outro 68, outro AI-5, talvez eu vou estar mais protegido do que Gil, mais que Caetano, porque os trejeitos dele agridem um certo tipo de cabeça, mais protegido que Ney Matogrosso:

- Não estou muito no fim da lista, não. Eles se incomodam comigo.

Identifica no pensamento da ditadura estranhos sentimentos:

- Eles se incomodam comigo, mas com certo respeito, onde pinta o ódio e mais um ressentimento paternalista, como quem tá falando com uma pessoa que traiu a sua classe.

Como se dissessem, penso em Paulinho da Viola, tá legal, eu aceito o argumento mas não me altere o samba tanto assim: que seja, né, aquele crioulo, aquela bicha, vá lá estejam do outro lado,  mas esse sujeito, de nome e sobrenome de responsa, sujeito da elite, olhos verdes, torcedor do Fluminense, como é que pode bandear-se pro outro lado?

Não, não e não.

E assim segue Chico.

Personagem a dar ânimo à ideia de eternidade.

Pessoas como ele não deviam perecer.

A gente o ouve no final de dezembro de 1978, e sente a sensibilidade, a voz do poeta atravessando décadas, faca amolada, é Milton, mas vale, cortando, mergulhando na conjuntura, desenhando cenários, sempre querendo colocar-se de modo retraído, como fosse possível, pretendendo um pequeno papel na história, como fosse possível.

Nele, qualquer um de nós, cidadãos comuns, identificamos a força da cultura, dela em si mesma, e da cultura como arma política - quem há de negar o papel da cultura naqueles anos sombrios de ditadura?

Quem há de negar a doçura e a firmeza da voz de Chico atravessando desertos, sendo a voz de Clarices e de todos nós, ouvidos nas grades, de lá lutando por um novo tempo?

Ele, o novo tempo, veio.

O manto sombrio volta e meia aparece, de várias formas, como agora.

E ele, presente.

Agora, na morte de Elza Soares, possível testemunhar, lembrar um Chico amparando-a nos momentos difíceis, perseguição da ditadura na Itália.

Essa entrevista nos recorda esse Chico, Dom Quixote.

Rocinante, ele não deixa descansar.

Segue na estrada.

Retiro o dito: Chico não perecerá.

É eterno.

Obrigado, Jary Cardoso.

Obrigado, Maria da Paz.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, o Mestre entrevistado por Jary Cardoso)

Emiliano José

23 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Sérgio Buarque de Holanda e o pecado...

 

Tempo de aventuras.

Foi assim aquele ano de 1978.

Para tanta gente.

Ano da antessala da anistia.

Começava o País a respirar uma aragem nova, não obstante sob ditadura, cujo término só se daria em 1985.

Cardoso viveu aquele ano intensamente.

Foi seu momento maior no jornalismo.

Quando foi colocado frente a frente com alguns dos grandes mestres da Nação.

Da cultura.

Da história.

Disso, pode se orgulhar.

Não ouviu Chico Buarque, tão demoradamente no final daquele ano?

Antes, vejam só, ouvira o Pai.

E o Pai não era qualquer um: um dos pilares da História do Brasil, autor de "Raízes do Brasil", um dos clássicos indispensáveis a quem queira entender o País, jornalista, invadiu outras fronteiras, tal a grandeza acumulada de saber.

Naquele abril de 1978, também para o "Folhetim", da "Folha de S. Paulo", foi cumprir a nobilíssima tarefa de entrevistar o Mestre - tudo, nesse caso, merece maiúscula, perdoem as leitoras, os leitores.

Imagino Cardoso se preparando para a entrevista, relendo, procurando saber quem iria encontrar.

Sabia por leituras, precisou revê-las: era um momento de glória.

Podia dar errado, se o treinamento não fosse dos bons.

De chofre:

- Professor Sérgio Buarque de Holanda, que país é este? - notem a cerimônia, o respeito aos mais velhos, à autoridade.

Bebam as palavras, o verbo do Mestre:

- É um país que pode se dar ao luxo, em pleno século XX, de restaurar o absolutismo, as capitanias, a inquisição e o banimento político dos cidadãos. Antes dessa revolução, que se diz redentora, houve outra redentora, que não baniu ninguém. Ela mesma acabou banida, chamava-se Princesa Isabel.

O repórter ouve extasiado.

Vai ouvindo o Mestre falar dos personagens da História, dos tempos da Colônia, dos anos 1500, passado passado, assim como fossem "amigos, parentes, vizinhos", pessoas com quem bate papo ancorado na cerca a separar os quintais.

À pergunta desafiadora "Que país é este", o Mestre dana-se a contar casos de família ocorridos em 1500 e pouco ou no século XVIII ou na semana passada, "tudo entrelaçado por análises profundas e simples", e com um bom humor permanente.

A História ganhava vida.

Sentia-se um privilegiado - ah, como era diferente daquela "chatice fantasiosa dos compêndios escolares".

Enquanto o ouve, enquanto lembra de "Raízes do Brasil" divaga.

Como o Mestre foi importante na formação do filho.

Você está lendo "Raízes", e a memória é assaltada por um samba de Chico.

Lembra de uma nota de rodapé:

"Corria na Europa, durante o século XVII. a crença de que aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado: "ultra aequinoxialem non peccari". Barleus, que menciona o ditado, comenta-o dizendo: 'Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício'".

Lembram de "Calabar":

"Não existe pecado do lado de baixo do Equador./Vamos fazer um pecado safado debaixo do meu cobertor..."

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Jose Jesus Barreto: !!! ouro

Ana Vieira: O colega Jary Cardoso tem muito mais que "café no bule". É dono de um grande cafezal, daqueles bem produtivos nos tempos áureos da cafeicultura em São Paulo. Experiências históricas!

Lucia Correia Lima: Jary é modesto. Somente um velho marinheiro para mostrar a pescaria de reservado timoneiro

Ana Vieira: Muito bom! Pescaria em águas profundas

Lucia Correia Lima: sim sim tipo forte homega

Ana Vieira: Jary Cardoso carrega a virtude que considero a mais linda e mais importante: simplicidade. Por sinal, não muito comum nos jornalistas

Lucia Correia Lima: exato. O quarto poder... Homega 3

Alvaro Figueiredo: compartilho-um abraço

Antonio Nahas: Lindo. 

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Emiliano José

24 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Ibrahim Sued da esquerda festiva...

 

O livro de Sérgio Buarque de Holanda ficou para a história.

É indispensável a quem queira conhecer o Brasil.

Antonio Cândido, outro Mestre, a também merecer maiúscula, aconselhava em 1967 a quem quisesse conhecer o Brasil: ler "Casa Grande & Senzala", de Gilberto Freyre; "Raízes do Brasil" e "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Júnior, intelectual a também requerer maiúscula, outro dos entrevistados de Cardoso.

"Raízes do Brasil" surge às vésperas do Estado Novo.

Visão anticonvencional, inédita até então na historiografia brasileira, como registra Cardoso, obedecia a postulado definido por Antonio Cândido: "o conhecimento do passado deve estar vinculado aos problemas do presente". 

Quando Cardoso falou da atualidade do livro com o Mestre, ele discordou.

Uma fonte como ele dá trabalho: discordava de toda fala do repórter.

Pensamento dialético: negava afirmando, afirmava negando.

Não, não renegava o livro.

Mas não o escreveria do mesmo jeito, pensando-se naquele 1978.

Dá exemplo: fosse escrevê-lo naquele final de década de 70, não se deteria muito na análise e interpretação das raízes ibéricas do Brasil, já tão distantes.

Cardoso foi entrevistá-lo com uma lista infindável de perguntas.

Ia engatilhar uma pergunta atrás da outra - o Mestre ia ter trabalho com ele.

Ele o ouvia, e o magnetismo, a sabedoria dele só aumentavam o número de questões.

Percebeu o método do Mestre: intrigar as pessoas, levá-las elas próprias a fazer as perguntas a partir da fala dele.

O interlocutor ia enxergando com mais clareza a história, perguntando-se mais e mais, e caso pudesse encontrasse então as próprias respostas.

Foi lembrado: até o ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, valeu-se de "Raízes do Brasil" em livro lançado havia pouco tempo.

O Mestre reagiu, bem humorado, que zagueiro bom não perde viagem:

- Só vou comprar o livro dele se fala mal do meu, se fala bem não interessa.

Cheio de compromissos, aceitou receber o jovem repórter, sobraçando um "Raízes do Brasil", lido e relido.

Cardoso preocupou-se diante de agenda tão cheia.

Temeu pelo tempo.

Besteira: conversa durou generosas três horas.

Não passou desapercebida a caixinha de plástico transparente nas mãos dele, com cigarros Gauloise, e nem o quanto ele fumava.

O Mestre vai contando histórias, sem parar.

Falou da segunda edição japonesa de "Raízes do Brasil", nem sabia da primeira lançada em 1971, e achou maravilhoso o feito japonês: a capa do livro era lavável.

Demorou pra entrar no assunto - Cardoso queria saber onde estava o "brasileiro cordial" nesses últimos 14 anos - pós-golpe.

Duro chegar aí.

Ele conta as peripécias das várias edições de "Raízes", então na décima primeira edição, com 12 mil exemplares, coisa rara para um livro de História.

Carlos Guilherme Mota aparece - o livro dele, "Ideologia da cultura brasileira", iniciara a série sobre história e cultura brasileiras do "Folhetim", e o Mestre aproveita a brecha:

- "Carlos Guilherme Mota, o Ibrahim Sued da esquerda festiva". Foi o Fernando Henrique Cardoso que falou isso uma vez aqui em casa, mas no Rio disseram que fui eu que inventei. Encontrei o Darcy Ribeiro lá no Rio e ele: "Me disseram que você inventou uma formidável sobre o Mota..." Mas não fui eu! Foi Fernando Henrique que espalhou que fui eu.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Lucia Correia Lima: Poxa! Vontade de ler reler tudo aqui citado. Pessoas profissionais amigos como Emiliano e Jary Cardoso, estendendo as suas esposas, me fazem ter manter a chama da ESPERANÇA na humanidade, no Brasil. Claro, palavras com a força e dignidade do sertão onde estou hoje

Joaquim Lisboa Neto: Engraçado. Tava pensando em duas palavras que Ibrahim Sued usava frequentemente. Sorry periferia

Joaquim Lisboa Neto: Naquela indefectível coluna n'O Globo 

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Emiliano José

25 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: "jeitinho brasileiro" é mundial...

 

Será?

O leitor fica a duvidar se um, se outro, a rotular Carlos Guilherme Mota - precioso e apropriado rótulo: Ibrahim Sued da esquerda festiva.

Melhor tomar como palavra de fé, a do Mestre, e deixar a maldade com Fernando Henrique Cardoso.

O Mestre, no entanto, não é condescendente com Mota - e aí as dúvidas aumentam.

Intriga de narrador, relevem.

Sérgio Buarque de Holanda considerou o livro de Mota - "Ideologia da cultura brasileira" - "todo desigual, muito cheio de coisas, parece que uma está encaixada na outra".

Não deixa barato.

Conta: um dia escreveu artigo sobre Mota no extinto "Suplemento Literário" do "Estadão", e tascou-lhe título: "A doença infantil da historiografia" - a falar por si, recorrência ao velho Lênin, "A doença infantil do esquerdismo no comunismo".

Pode ser, deve de ter sido o Fernando Henrique dos bons tempos a pespegar a pecha no pobre do Mota, mas é inegável o espírito crítico do Mestre com relação ao cidadão, má vontade expressa.

Viajado, o Mestre correu mundo.

Essas viagens serviram para encompridar conversa.

Falar da famosa expressão: "Você sabe com quem está falando?"

Tal dito, maldito, é próprio, típico mesmo do brasileiro - encontrou vestígios dele apenas em Espanha.

Agora, o chamado "jeitinho brasileiro", não tão maldito, já é mais universal.

Varia na forma, mas "jeitinho", encontradiço em muitos países pelos quais passou.

Americano tem "jeitinho" - conta o Mestre.

Só que "jeitinho" americano é um pouco mais sofisticado, diferente.

Primeiro, ele nega.

Diz:

- Ah, não é possível, absolutamente não se pode fazer isso.

Aí, o sujeito insiste, lasca um "veja bem...".

Aí, o funcionário ou quem quer seja a autoridade, "pensa melhor":

- Bom, mas se fizer isso assim..."

E as coisas se ajeitam, "jeitinho" americano.

Cardoso encontra uma brecha na caudalosa fala do Mestre, e encaixa preocupações trazidas na algibeira:

- Já é possível definir alguns traços característicos do brasileiro contemporâneo?

- Já nos livramos das raízes ibéricas e adquirimos personalidade própria?

Difícil definir isso, adianta o Mestre: "os traços mudam com o desenrolar da História em cada região".

Segue com os exemplos, com a aula:

- Um irlandês que morou em São Paulo no início do século dizia que preferia morar aqui [em São Paulo] e não no Rio.

E sabem por que: em São Paulo, no olhar daquele irlandês, havia muitos poetas, enquanto no Rio "se trabalhava muito" - exatamente "o contrário do que se diz hoje numa comparação entre os dois Estados."

É preciso observar os traços de cada momento histórico.

Cardoso pergunta mais:

- A industrialização paulista estaria provocando uma mudança semelhante nos traços ibéricos do comportamento brasileiro?

O professor pensa um pouco.

- Pode ser, mas é uma coisa local porque é uma parte pequena do Brasil.

O Norte, ele diz, está fora disso:

- E eu não sei se todos os países têm uma revolução correspondente. Podemos ter uma revolução industrial sem os mesmos requisitos que tiveram na Inglaterra. As estruturas sociais são diferentes...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

26 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: o Mestre e as mudanças de cima para baixo

 

Foi uma aula, a entrevista - insista-se.

Para Cardoso, uma revisitação ao "Raízes do Brasil".

Agora ao vivo.

Vai alertando o repórter para equívocos.

Lembra: os traços apontados em "Raízes" são mais de caráter rural.

Como a tendência para o emprego de diminutivos.

A terminação "inho" aposta às palavras, tão comuns para nosotros, serve para nos familiarizar com as pessoas ou objetos, e também para lhes dar relevo.

Lembrei-me agora: na família, sou Naninho ou Emilianinho.

Vim do campo.

O traço persiste apesar da urbanização.

A cidade ainda é plasmada pelo ambiente rural e patriarcal:

- Pode-se dizer que é um traço nítido da atitude "cordial", indiferente ou, de algum modo, aposta às regras chamadas, e, não por acaso, de civilidade e urbanóide - como ele diz no próprio livro.

Cardoso, enquanto ouve o Mestre, deixa a memória voltar-se ao "Raízes", livro de inúmeras leituras quando de seu esforço clandestino para entender o Brasil - quase conseguiu, tenta até hoje.

O português foi se transformando em brasileiro durante a Colônia e o Império, e nessa época poderia oferecer ao mundo seu traço mais característico, o "homem cordial", termo a sempre cobrar explicações.

Trata-se, explica o Mestre, da cordialidade entre familiares, a paixão que pode ser afetuosa ou arbitrária - diferente, por exemplo, da polidez típica do japonês.

O homem cordial é individualista e atua através das relações de simpatia, o que é incompatível com as relações impessoais do Estado moderno e com as necessidades de organização da vida urbana.

Uma das consequências desse comportamento familiar e rural é que "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido".

No século passado [fala do século XIX] os intelectuais brasileiros exibiam um liberalismo de fachada e mesmo as reformas, como a Independência e a República, "partiram quase sempre de cima para baixo".

Disso é "documento flagrante" a carta de Aristides Lobo sobre o 15 de novembro, citado no livro:

"Por ora a cor do governo é puramente militar e deverá ser assim. O fato foi deles, deles só, porque a colaboração de elemento civil foi quase nula. O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava".

A tradição da mudança por cima vai aparecer também em novos pensadores, como Carlos Nelson Coutinho, de inspiração gramsciana.

- Ainda sobrevive a nossa tradicional "repulsa à hierarquia", outro traço decorrente das condições de nossa formação nacional? - pergunta o repórter.

- Esse traço eu acho que subsiste, mas aí o que nós temos hoje é governo militar. E o militarismo tem por força uma base de hierarquia. O Exército vive disso, de modo que a hierarquia se implantou no Brasil em 1964.

Explica: a classe que domina no Brasil é uma classe muito estreita, pequena - são elementos muito ligados entre si. Trabalha como se fosse uma família só, a solução tem que ser o conchavo, resolve-se tudo de comum acordo.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Jose Jesus Barreto: a democracia no Brasil continua um incorrigível mal entendido.

Isadora Browne Ribeiro: Isto que é denominado "relações de simpatia" é, de fato, a relação de favores que vem da Casa Grande e persiste, no mínimo dificultando as relações profissionais e sempre colocando alguém "devedor" de outrem. Nada democrático nem republicano. Aliás, faceta esta promiscuidade público/privado que vemos diariamente. 

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Emiliano José

27 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Exército recruta ralé no laço

Um oficial-militar era quase um nobre.

Caxias era cadete desde os cinco anos de idade.

Luis Alves de Lima e Silva era de "quatro costados" - quer dizer, até os avós não podiam ter sangue judeu.

Tinha de ter linhagem para ser militar, não era brinquedo não.

Sérgio Buarque de Holanda segue a conversa sobre o Brasil, agora os militares, de presença tão fundamental na história da Nação, indesejável seja, mas presença.

Essa linhagem de "quatro costados" vai se modificar.

Meados do século XIX começam a pagar mal os oficiais.

Aí, ninguém queria mais saber de ser oficial.

E a massa de soldados, caçada a laço.

Recrutas, nunca iam por vontade própria.

- Dizer que militar vem do povo... Não, porque isso não é povo. Povo não é caçado assim. As pessoas fugiam do Exército.

Ele detalha: havia a camada de oficiais, quase nobre de ascendência, e a camada baixa de recrutas, a ralé da sociedade, caçados à força para serem soldados.

O Mestre vai desmontando a história, trazendo-a para a realidade.

Dom Pedro II até quis acabar com a "pranchada" - castigo aplicados aos soldados com espada de prancha.

Mas o Duque não deixou - castigos deviam seguir, de modo a garantir disciplina.

- Essa gente é a ralé da sociedade - dizia Caxias, o Duque.

Insistia: essa ralé só tratando a pranchadas, pauladas mesmo.

Só aprende assim.

Foi um baiano, senador João José de Oliveira Junqueira, a determinar o fim desse tipo de castigo, quando na titularidade do Ministério da Guerra, de 1871 a 1875.

Mais tarde, o Visconde de Pelotas, José Antônio Correia da Câmara, um dos heróis da Guerra do Paraguai, lamentou, em discurso do Senado, houvessem extinguido aquelas punições:

- Esse foi o pior serviço que já se prestou ao Exército porque sem a pranchada há indisciplina, essa indisciplina que nós temos aí dos soldados é a falta da pranchada.

Não é uma história exemplar, a do Exército brasileiro: isso o Mestre demonstra. 

Volta ao presente: os militares têm que arranjar um jeito para justificar o governo duro. Aí veio "essa profissionalização do anticomunismo".

A hierarquia agora existe de modo geral em todos os exércitos.

De particular no caso brasileiro, era o fato de o Exército ser uma justificativa da nobreza:

- O nobre era o militar, o nobre tinha que ir para a guerra, enquanto a função da burguesia era o comércio.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

Isadora Browne Ribeiro: Há controvérsia. A marinha é que era a força aristocrata. Tanto que até a década de 70, pelo menos, não havia oficiais negros na marinha. 

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Emiliano José

28 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: Mestre desanca Figueiredo

 

Não é fácil acompanhar as palavras de um Mestre.

Até porque, numa entrevista, nem tudo pode ser explicado como se exigiria, assim fosse um artigo acadêmico.

Isadora Browne, querida amiga, respeitada professora de História, registra, em comentário no capítulo anterior, a natureza aristocrática da Marinha, não propriamente do Exército, e creio tenha razão.

Mas, Mestre é Mestre.

Logo à frente, ele fala: quando acaba a nobreza, o militar herda os atributos dela, "e então não tem mais limites a ambição de subir".;

E aí, vem o esclarecimento:

- No Brasil, a não ser no começo e com algumas exceções, como Caxias e Barbacena, o militar não vem de casta nobre, aí por isso mesmo ele exagera esses atributos.

Como se vestisse uma roupa estranha, às vezes mais larga, outras, mais apertada.

Já passava da meia-noite.

Mestre quando Mestre não economiza prosa.

Deu de prosear sobre história das eleições no Brasil:

- O Brasil criou várias singularidades: a democracia relativa, o senador biônico, o Pacote de Abril...

Dessas criações, destaca a democracia relativa:

- A lei não pode ser relativa. Na prática, a democracia é relativa mesmo nos países mais democráticos, como na Suíça, mas isso é um vício. "Todo poder emana do povo" é uma verdade absoluta, se não é cumprida trata-se de um vício do sistema. Não se pode transformar um vício em lei.

Aí, Cardoso mete o Pacote de Abril nos peitos do Mestre.

Ele não refuga:

- Já houve outro pacote de abril, no dia 7 de abril de 1831 (abdicação do imperador D. Pedro I), mas bem diferente desse último (reforma política decretada em 14 de abril de 1977). O primeiro foi feito pelo povo para expulsar o soberano. E esse pacote de agora foi feito pelos atuais soberanos para expulsar o povo e manterem-se donos da situação.

- E os senadores biônicos? - emendam os repórteres.

- Hoje os governadores e os senadores biônicos são escolhidos por uma cabala, não se pode nem dizer que seja uma minoria. A decisão do presidente é que prevalece.

Ironia, brinca um pouco, respeitosamente, com o general Figueiredo, presidente da República.

Dissera Figueiredo, numa entrevista, revelando-se intelectual, conhecer bem matemática.

Como sempre digo, zagueiro bom não perde viagem:

- O general Figueiredo deve conhecer bem a geometria euclidiana, mas o mundo de hoje não é mais euclidiano. Depois de Euclides outras geometrias foram criadas. O mundo de hoje é "o mundo do não", como disse muito bem o professor Antonio Candido em palestra recente. 

Faz ressalva ao pai do presidente, general Euclides Figueiredo, com quem chegou a manter boas relações.

 O pai, registra, era coronel na revolução constitucionalista:

- E esse Figueiredo (o João Baptista) já tem quatro estrelas antes mesmo de ser presidente da República. Acho que nisso ele não seguiu muito o pai.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

29 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: ao fim - Que país é este?

 

E aí, na longa prosa, o Mestre danou a falar da história dos sistemas eleitorais brasileiros.

Sérgio Buarque ia considerando: nos tempos da Colônia o eleitorado era relativamente grande.

Foi diminuindo proporcionalmente  ao crescimento da população.

Isso foi corrigido depois da Revolução de 1930.

E novamente agravado com o golpe de 1964.

Dá lições, fundamentais:

- O voto do analfabeto tinha desde a Colônia, nas eleições municipais.

Como é que se dava?:

- O analfabeto assinalava com uma cruz o livro de presença e pedia para um amigo votar por ele.

O amigo escrevia o nome do votado numa bolinha chamada "pelota".

- Na hora da apuração era sempre uma criança que tirava as pelotas do saco - a urna de então.

No Império, a Constituição de 1824 garantia o voto para toda a população ativa, inclusive ex-escravos.

Quem não votava?

- Escravos e frades, porque era o critério da independência pessoal que prevalecia para definir o eleitor: o escravo dependia do senhor, e o frade, da Igreja.

Aquela Constituição exigia do eleitor uma renda mínima de 100 mil réis por ano, "o que era pouco, só o mendigo indigente não tinha essa renda":

- Era praticamente um sufrágio universal.

(Não exageraria o Mestre, considerando que os escravos não votavam?)

Eleições eram chamadas de "paroquiais" - realizadas dentro de igrejas:

- E eram indiretas, mas no primeiro turno votava toda a massa da população ativa: o votante escolhia o eleitor e este o senador.

Os três senadores mais votados eram indicados ao imperador que, de modo geral, escolhia o primeiro da lista ou de acordo com o partido que estivesse no poder - Partido Liberal ou Conservador.

O eleitorado começou a diminuir relativamente. com a Lei Saraiva, de 1880:

- Nessa época votavam um milhão e meio dos 12 milhões de habitantes. Com a Lei Saraiva, que elevou o nível de renda mínima exigido e que ainda passou a exigir prova de renda - o que era difícil de ser obtido -, o eleitorado baixou para 1,5% do total da população e, na prática, votava menos de 1%.

Em 1889, ano da República, o Brasil era considerado um dos países de menor eleitorado do mundo.

Em 1881, a Constituição republicana extinguiu o voto do analfabeto.

Foi assim até 1930, daí começa a aumentar o número de eleitores:

- O voto feminino dobra o eleitorado, uma medida propriamente progressista, mas de iniciativa da Liga Católica, que achou que as mulheres eram mais devotas que os homens. Depois o voto secreto trouxe uma massa que antes não votava. Aí veio o freio, através de várias tentativas, e a mais forte foi em 1964, por causa desse aumento de eleitorado.

Que país é este?

Exclamação feita de alguma forma muito antes por Herbert Smith, um dos viajantes citados em "Raízes do Brasil", advertência do século XIX:

"Lembrai-vos de que os brasileiros estão hoje expiando os erros de seu país, tanto quanto os próprios erros. A sociedade foi mal formada nesta terra, desde as suas raízes".

Lá atrás, estão as raízes do Brasil.

Que país é este?

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

30 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: começa a olhar para Salvador

 

1986 era ano de voltar a respirar.

No ano anterior, a ditadura havia sido sepultada.

Exagero, talvez.

Como nossas transições sempre foram feitas por cima, sobraram marcas dela.

Os torturadores restaram impunes.

Por azares do destino, Tancredo Neves morreu antes de assumir.

E Sarney, por artes da sorte, torna-se presidente da República.

E assim estávamos: a democracia de volta, com Sarney no comando da Nação.

Melhor assim - ditadura seria bem pior.

Bahia convivia com João Durval Carneiro governador, eleito pela força de Antonio Carlos Magalhães que à pergunta de um repórter sobre ser o candidato dele um desconhecido, respondeu ser capaz de eleger até um poste, e elegeu João Durval, derrotando Roberto Santos.

O prefeito era Mário Kertész, desta vez eleito pela via direta. Havia sido prefeito biônico entre 1979 e 1981, nomeado por ACM, com quem brigará ao final do mandato, filiando-se em seguida ao PMDB, partido pelo qual se elege em 1985.

Foi ano de alegrias e tristezas, como qualquer outro.

O carlismo foi derrotado: Waldir Pires obteve estrondosa vitória sobre o candidato de ACM, Josaphat Marinho.

Bahia em festa.

Mãe Menininha e Dom Avelar Brandão Vilela morreram.

Bahia em lágrimas.

Nosso Jary Cardoso vivia na Paulicéia, não tão desvairada.

Ao menos pra ele.

Entediante a existência, naquela quadra.

Seguia a monotonia diária de melhorar a embalagem da mercadoria.

A mercadoria-notícia chegada às suas mãos no mesão da Editoria Geral do Estadão.

As mercadorias eram provenientes da reportagem local e das numerosas sucursais do Estadão - o jornal já foi grande um dia.

O nome mesão reclama duas ou três palavras: as escrivaninhas dos redatores da Editoria Geral eram dispostas de modo a formar um círculo.

O chefe ocupava a mesa maior, com caixas de entrada e saída de matérias.

Verdadeira linha de produção - o proletariado, na finalização da mercadoria.

Sei: jornalista não gosta de se ver assim, mas é assim: um proletário.

Cardoso revela: só despertava do tédio quando caía nas mãos dele alguma matéria proveniente de Salvador.

Meio sem jeito porque não era copy dado a crueldades, confessa: algumas das matérias "eram muito mal escritas".

Pareciam ter sido feitas às pressas, sem muito cuidado.

Navarrinho, ainda chefe então, vai ler e poder comentar.

Ainda bem - disse "algumas".

Para compensar, o diagnóstico positivo: quase todas apresentavam conteúdo interessantíssimo.

Ponto pra Navarrinho, dos melhores jornalistas da Bahia, um de meus mestres, hoje escritor dos melhores.

Nas matérias coisas da Bahia, peripécias, estrepolias de ACM, e também ações da Prefeitura de Salvador, a entusiasmar Cardoso.

Passou a acompanhar a gestão de Mário Kertész.

Notou: ele se cercara de gente boa, competente, digna de admiração.

Como João Santana, secretário de Comunicação Social...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

31 de janeiro de 2022

Jary Cardoso: a Bahia é o meu lugar...

 

Conheceu João Santana no decorrer da militância comum na imprensa alternativa.

Ele no "Bondinho", João Santana no "Verbo Encantado".

Patinhas - à época, todos conheciam Santana assim.

Creio já ter falado do "Verbo Encantado".

Apareceu pela primeira vez nas bancas de Salvador em outubro de 1971.

Plena vigência do AI-5, pau comendo.

Eu próprio, preso, e naquele momento recambiado pra São Paulo pra responder a um de meus processos.

Estava preso desde novembro do ano anterior.

Gustavo Falcón, no livro "Os baianos que rugem", afirma que "aparentemente, toda essa conjuntura era driblada pelas matérias do jornal, predominantemente de caráter cultural, com uma linguagem coloquial, mesclada de gírias ou expressões ligadas à chamada cultura underground ou contracultura".  

Rica experiência.

Resistiu até junho de 1972.

Foi esse verbo encantado, onde Patinhas transitava, e brilhava, a ponte para a relação dos dois.

E amizade cresceu a partir das idas anuais de Cardoso a Salvador.

Passou a curtir a cidade.

As festas de largo e o carnaval.

Isso foi facilitado porque Patinhas casou-se com Lúcia Correia Lima, fotógrafa e amiga dos tempos do "Bondinho".

João Santana, e é bom chamá-lo assim agora, nesse meados dos anos 1980, quando já secretário de Comunicação do prefeito Mário Kertész, satisfazia todas as curiosidades de Cardoso sobre a Bahia.

Cedia-lhe as gravações mais interessantes das canções do carnaval baiano.

Derramava-se em explicações e conceitos sobre o riquíssimo candomblé baiano.

Não era pouca coisa saber de Mãe Menininha, do Gantois.

Ou de Mãe Stella, do Ilê Axé Opô Afonjá.

Em 1986, além de João Santana na Secretaria de Comunicação, o governo Mário Kertész exibia Gilberto Gil na Secretaria de Cultura.

De Gil, Cardoso andou próximo quando do "Bondinho".

E quando trabalhou com o empresário dele, Guilherme Araújo.

A Secretaria de Planejamento da Prefeitura era ocupada por Roberto Pinho, definido por ele como "figura mítica da Tropicália".

Entrevistou-o quando ainda estava como copidesque da Editoria Geral do "Estadão".

O jornal dava oportunidade aos redatores de saírem às ruas pra fazer matéria.

Entrevistou Roberto Pinho num encontro de prefeitos de capitais, realizado em Salvador.

Dessa reunião, nasceu nele uma nova compreensão do urbanismo.

Conheceu as teorias e projetos revolucionários de Jaime Lerner.

E rendeu-se a Roberto Pinho, à sua visão do urbanismo inserido na história.

Estava ele posto em sossego um dia na sempre entediante tarefa de copidesque, quando cai nas mãos dele texto e fotos da sucursal de Salvador, dando conta de uma iniciativa de Mário Kertész: toda a frota de carros da Prefeitura estacionada na Praça Municipal exibia uma pintura - reproduzia  um mesmo padrão de desenhos geométricos e coloridos.

O autor: Rogério Duarte.

Na opinião de Cardoso, a cabeça mais influente na concepção do Tropicalismo em Caetano Veloso.

Tal matéria foi decisiva para uma decisão: a Bahia era seu lugar no mundo..

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lucia Correia Lima: Delícia d. Tx

Jose Jesus Barreto: João Santana, o Patinhas, começou repórter da Tribuna da Bahia, dos bons. Foi repórter e depois chefe da sucursal O Globo em Salvador. ótimo texto. isso antes de MK...

Lucia Correia Lima: Creio q João iniciou no JBa. " Deu gorgulho na estrada do feijão" fez na Barroquinha. Acho

Jose Jesus Barreto: Entrou comigo na TB em 1971. lembro. 

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(João Santana e Jary) 

Emiliano José

1 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: desembarcando na terra dos orixás...

 

Parecia um chamado.

Talvez fosse.

Quem sabe os orixás o quisessem naquela terra.

Houve uma espécie de encantamento.

Um encanto chamado Bahia.

Você já foi à Bahia, nego?

Já fora, sentira.

E houve o deslumbramento.

Antes do episódio dos desenhos geométricos de Rogério Duarte, João Santana, numa das passagens de Cardoso pela Bahia, estimulou a vinda dele para a terra do Gantois, da Casa Branca, do Oxumaré, do Bate-Folha, do Ilê Axé Opô Afonjá, do Bogum.

Ouvindo o desejo dele, disse mais ou menos o seguinte:

- A sua vinda fará muito bem ao jornalismo baiano. Estamos precisando de profissionais com experiência cosmopolita para superarmos o provincianismo.

Logo depois de ler a matéria e observar as fotos da frota de carros desenhada por Rogério Duarte, ligou pra João Santana e comunicou, apenas comunicou:

- Vou para a Bahia.

João Santana parecia já esperar a notícia.:

- Venha trabalhar como assessor de Gilberto Gil na Fundação Gregório de Mattos - a fundação corresponde a uma Secretaria de Cultura.

Prudente, pediu licença de seis meses no "Estadão".

Acertou com a mulher, a primeira delas: iria primeiro fazer uma pesquisa de modo a encontrar o melhor bairro para a moradia do casal e, também, um colégio adequado para os filhos gêmeos, já com 14 anos.

No pouco tempo transcorrido entre a decisão de partir e a chegada à Cidade da Bahia, o cenário havia mudado.

Gil não estava mais na Fundação Gregório de Mattos.

João Santana, no entanto, não roeu a corda.

E encontrou lugar para Cardoso na Secretaria de Comunicação Social da prefeitura.

Salário era muito baixo.

João Santana, muito bem relacionado, consegue para ele uma vaga de redator da Editoria de Economia do "Jornal da Bahia", já funcionando na Djalma Dutra, em dependências alugadas no prédio onde funcionava também a "Tribuna da Bahia", à rua Djalma Dutra.

Cardoso percebeu: vida na Bahia não seria fácil, não.

Os dois salários somados não chegavam a representar o montante ganho no "Estadão".

Não era problema.

A escola da Polop o treinara bem no quesito viver com poucos recursos e situação precária.

Nessa primeira fase, sozinho, foi morar numa pensão no centro da cidade.

Dividia o quarto com quatro ou cinco pessoas, agrupadas em três beliches - o leitor não há de ser indiscreto e perguntar como cabiam cinco pessoas ali, em três camas: escassez faz milagres.

Almoçava nos restaurantes das redondezas.

Populares, mas guardavam sofisticação, apuro na comida, e fizeram parte da tradição do Centro Histórico de Salvador: "Porto do Moreira", "Mini-Cacique", "Cantina da Lua".

"Mini Cacique" fechou recentemente devido à pandemia, depois de funcionar desde 1974 e ser frequentado por Caribé e Pierre Verger entre tantos artistas e intelectuais. Ficava na rua Ruy Barbosa, paralela à rua da Ajuda, pertinho da rua Chile.

"Porto do Moreira" acumula mais de 80 anos de História.

Situado no Largo do Mocambinho, parelho com a rua Carlos Gomes...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

2 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: vida não tem linha reta

 

O "Porto do Moreira" era ancoradouro dos jornalistas.

Ninguém não devia de ir à busca de pratos leves.

Fosse, havia de encarar moqueca de carne, rabada com pirão, mocotó, moqueca de arraia, língua ensopada, malassado, a notável galinha ao molho pardo, tudo com condimentado tempero, sem quaisquer tentações gourmet.

Jornalistas e toda a intelectualidade baiana fizeram dali ponto de encontro.

Se fazem ainda, não sei.

Pertinho de casa, Cardoso o frequentava sempre.

Tive a satisfação, honra de propor e conseguir aprovação da Comenda e Medalha Tomé de Souza a Antônio Moreira, o principal responsável pelo restaurante naquele ano de 2002 - era vereador pelo PT.

Quem me animou a isso foi um assíduo frequentador do "Porto do Moreira", e amigo de Antônio Moreira, Ricardo Melo, um notável memorialista da Bahia sem nada escrito, hoje morando lá pelas bandas de Goiás.

A memorável "Cantina da Lua" persiste.

Vivo, inteiro, atuante, o querido Clarindo Silva, criador, fundador daquele centro cultural.

Seria pecado chamar a "Cantina" de restaurante tão somente.

Clarindo soube torná-la ponto de encontro da boemia e intelectualidade de Salvador.

Era pisar no Terreiro de Jesus, e lá estava, lá está, Clarindo Silva, de braços e sorrisos abertos, invariavelmente vestido de branco.

Cardoso, freguês contumaz.

Mereceu livro já, de autoria do conterrâneo Vander Prata.

Chegou, sentou praça, conheceu pessoas, ia se ambientando nosso protagonista.

A vida, insisto, não tem linha reta.

Cardoso estava pesquisando os melhores colégios particulares, as mensalidades, métodos de ensino para os dois filhos, gêmeos, com 14 anos, como revelamos.

Ana Lúcia Cardoso, mulher dele, e os filhos o aguardavam em São Paulo.

Era mandar o aviso, e viriam.

Ele seguia dando duro nos dois empregos.

A vida não para.

Ele chegara em Salvador no início de 1987.

No início de 1988, e é sempre bom lembrar: nada será como antes - é surpreendido.

Ana passara a viver com outro.

Apaixonou-se.

A correnteza da paixão a levou - deixou-se levar pelas águas.

Por que não?

Paixão é sempre assim.

Não nega: foi um inferno.

Inferno astral.

A notícia veio em pleno carnaval...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Joaquim Lisboa Neto: Pra mim ir a Salvador e não marcar presença no Porto do Moreira era viagem incompleta. Cheguei até a passar cheque sem fundo –informando ao dono- num dos almoços antecedidos de uma dose de Abaíra, Seleta... Já tive lá umas vezes com o poeta Carlos Anísio Melhor. Cantina da Lua, outro templo prazerosamente obrigatório. E o Quintal do Raso da Catarina? Centenas de chops com cachaça.  De forma que essa santíssima diabólica trindade consistia na minha andarilhagem pela velha São Salvador, além das livrarias e lojas de discos evidentemente.

Emiliano José: Boêmio de Santa Maria da Vitória não nega 🔥 em nenhum lugar..

Joaquim Lisboa Neto: As igrejas não, mas os bares me perseguem, exatamente no térreo abaixo da kitnete onde me entoco tem um chamado AltaZoras, dizem as más ou melhor boas línguas que é meu escritório extraoficial

Artur Carmel: E quando vai a Santa Maria não dispensa uma passada nos botecos da Praça do Jacaré..rss

Joaquim Lisboa Neto: Falou! E disse!

Emiliano José: Vive lá, Arthur, de bar em bar. Já lasquei nele o apelido de Quincas Berro D'ÁGUA...

Artur Carmel: Kkkkkk Gostei !

Joaquim Lisboa Neto: Onde moro na entrada da Sambaíba, têm quatro terreiros que frequento diariamente, noturnamente também é claro 

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Emiliano José

3 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: Você sabe o que é ter um amor, meu senhor...

 

Quem é do mar não enjoa

Chuva fininha é garoa

Homem que é homem não chora, não, não, não chora

Quando a mulher vai embora...

Bom ouvir Martinho da Vila.

Mas ele se dividia.

Você sabe o que é ter um amor, meu senhor

Ter loucura por uma mulher

E depois encontrar esse amor, meu senhor

Nos braços de um outro qualquer...

Lupicínio, na voz dele mesmo, ou na suave toada de Paulinho da Viola.

Corriam os dias de carnaval.

Fevereiro de 1988.

Notícia veio como tempestade súbita.

Raio caído num dia de céu azul.

Sujeito aí sente tormentos do inferno.

Já havia, todo alegre e faceiro, todo disposto à folia, comprado a multicolorida fantasia do Olodum.

Certo, dúvida nenhuma: sairia no bloco.

Perderia nenhum dia.

Quando a mulher foi embora, a alegria se dissipou.

Ainda pensou em Martinho da Vila.

Na primeira saída, primeiro dia, embalado pela Banda Olodum, cantarolou baixinho, tirando do fundo do poço forças de resistência, macho: homem que é homem não chora, não, não, não chora quando a mulher...

Parou a meio caminho.

Lupicínio, mais forte: você sabe o que é ter um amor, meu senhor, ter loucura por uma mulher, e depois encontrar esse amor, meu senhor, nos braços de um outro qualquer...

Um outro qualquer.

Lupicínio enterrava a faca, e girava.

Desabou.

Na Praça Castro Alves.

Deixou o Olodum seguir.

Restou sentado na calçada, inteira desolação.

Aos prantos.

Já viu homem chorando?

É coisa forte, convulsiva.

Retirou-se do carnaval.

Homem que é homem chora.

Precisasse aprender, aprendeu.

Ana Lúcia se fora.

Com um outro qualquer.

No quarto de pensão, abraçado ao travesseiro, pensava: a vida é dura.

Sem linha reta.

Pensou no desbunde.

Rompimento com a militância clandestina.

Na inesquecível fase do jornalismo alternativo.

Alegria, alegria.

Depois, o rebunde - voltar a ser uma simples peça do "sistemão".

"Estadão" foi o rebunde.

Bahia, outro desbunde.

E de repente, Ana partiu com um outro qualquer.

Os filhos, com ela, em São Paulo...

#MemoriasJornalismoEmiliano 

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(No restaurante Vital, no Pelourinho, final da década de 80, com a nova companheira, Vilma Nascimento, paixão desde 1988)

Emiliano José

4 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: escapando das garras da depressão...

 

É curioso: quer escrever sobre trajetória jornalística do protagonista, e se mete de repente na vida privada dele.

É a mania do todo.

Nada é separado.

Tudo junto e misturado.

Pois é, Cardoso havia feito uma escolha.

Arriscada, e consciente.

Olhava o entorno, agora.

A moradia precária naquele quarto de pensão compartilhado com vários homens, nenhum deles conhecido, e a súbita separação, a perda do grande amor, davam-lhe a real dimensão dos riscos admitidos quando renunciou às mordomias familiares.

Tinha uma vida relativamente estável em São Paulo.

E a estabilidade, pudesse ser chamada assim, era dada pela confortável situação financeira do sogro desembargador, cuja generosidade teve a ver até com o emprego no Estadão, conseguido graças a uma palavra dele.

Expandia-se em generosidades - era o amor pela filha, disso Cardoso tinha consciência.

Generosidade estendida aos netos, naturalmente.

Era uma estabilidade modorrenta, no entanto.

E a rigor, como verá com a separação, não era estabilidade.

A Bahia ofereceu-se, naquela escolha, como um outro mundo.

Começaria tudo outra vez, embora soubesse das disposições do sogro de continuar ajudando a filha e os netos.

Tudo por água abaixo com a nova paixão de Ana Lúcia.

Agora, era ele e ele.

Mais ninguém.

Dois trabalhos, suor derramado para garantir o pão de cada dia.

Levantou-se, começou a dar a volta por cima.

Chorei, não procurei esconder

Todos viram, fingiram

Pena de mim, não precisava

Ali onde eu chorei

Qualquer um chorava

Dar a volta por cima que eu dei

Quero ver quem dava...

Tantos cantaram a música de Paulo Vanzolini: Noite Ilustrada, Bethânia, Elza Sores, um mundo de gente boa.

Era como um eco na memória.

Um homem de moral não fica no chão

Nem quer que mulher

Lhe venha dar a mão

Reconhece a queda e não desanima

Levanta, sacode a poeira

Dá a volta por cima.

Dor de cotovelo - doía muito, nega não.

Saudade - muito grande.

Mas em meio às lágrimas, travesseiro ensopado, alguma alegria: estar vivendo na Cidade da Bahia.

Não era qualquer coisa.

Fazer matérias entre casarões seculares, conhecendo melhor a História do Brasil, fruindo a diversa, impressionante cultura do povo baiano, sentir-se mais uma vez testemunha ocular da história.

Não, não era qualquer coisa.

E a depressão não durou tanto assim.

Essa história de "nem quer que mulher lhe venha dar a mão" às vezes é conversa mole pra boi dormir.

Quando aparece, ah, como é bom.

Apareceu Vilma Nascimento.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Charles Fonseca Coutinho: Muito Bom!

Emiliano José: Obrigado

Daniel Thame: lindo texto

Emiliano José: Daniel Thame obrigado, amigo

Artur Carmel: "Na Bahia ninguém fica em pé..." ! Mas Cardoso conseguiu dar a volta por cima.

Joaquim Lisboa Neto: Começaria tudo... Gonzaguinha. Volta por cima com Bethânia pra mim definitiva no vinil Anjo exterminado Drama

Pedro Rocha: Tô lendo e gostando... 

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(Vilma Nascimento por Uli Burtin em 1980)

Emiliano José

5 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: as artes do acaso, manhas do destino

 

Desde muito pequeno, Cardoso sonhava com um grande amor.

Quem não?

Na adolescência e início da vida adulta, viveu paixões intensas.

Verdade: efêmeras.

E não correspondidas.

Grandes desilusões.

Quem não?

Vilma Nascimento surgiu quando aportava na maturidade.

Ela, também, às vésperas dos 40 anos.

Os dois, sem arrebatamentos.

O encontro tem história.

As coisas não surgem assim, de inopino.

Era copidesque do Estadão em 1983.

Contígua, no mesmo andar, funcionava a redação do Jornal da Tarde.

Na Editoria de Variedades, havia uma excelente repórter, Maria Amélia Rocha Lopes.

Especializada em música.

Cardoso trocava ideias com ela frequentemente.

Pessoa amiga.

Nunca deixava de ler as matérias dela.

Chega um dia, Maria Amélia publica nota sobre a apresentação de um novo grupo de rock, estilo new wave, constituído apenas por meninas.

Garotas do Centro - o nome.

- E quem havia subido até a redação para dar tais informações era uma linda negona - explica Cardoso.

Justo ela: Vilma Nascimento.

Prima de Milton Nascimento.

Até ali, desconhecida dele.

Dele, mas não do restante do mundo musical.

Em 1977, Vilma Nascimento fora backing vocal no show Refavela, de Gilberto Gil.

Em 1980, gravou LP próprio, de nome Conquistado.

Leu atentamente a matéria de Maria Amélia.

Ouviu dela mais detalhes sobre a banda, constituída em parte por namoradas de integrantes de um grupo de rock  que começava a despontar, os Titãs.

E aí teve o interesse despertado: por Vilma.

Um dia, há destino?, ainda 1983, ele a encontra por acaso, e há acaso?

Fechada a edição do Estadão, quando você sai em busca de outros ares, saco cheio dos bares da moda, não quer mais saber dos recantos da Vila Madalena, Cardoso cai na região central de São Paulo, próximo ao Minhocão, rua Marquês de Itu.

Point dos punks.

Teatro, bares,. boates.

Estava entre os seus: roqueiro desde menino, sentiu-se como peixe n'agua - como era bom ver aqueles jovens com piercing no nariz,.na boca, nas orelhas, sabe-se lá onde mais, roupas rasgadas, esburacadas.

Aquilo o encantava, o seduzia.

Entrou na Napalm, nome da casa noturna.

E depara com Vilma Nascimento.

Garçonete.

Naquela noite, naquela primeira noite, Vilma olhou carinhosamente para ele.

Que olhar lindo!

Que deslumbramento!

Mas ele, timidez em figura de gente: nem nada.

Só muito depois, uma separação e um divórcio depois, um rio de lágrimas depois, vai reencontrá-la em Salvador.

Passava de carro pelo Pelourinho e a viu.

Majestosa, caminhando, desfilando junto aos antigos casarões.

Foi um relance.

Inesquecível.

Sumiu na poeira.

Mas, o acaso existe?, outro dia ele a vê na fila do elevador de um prédio na rua Chile.

Não é possível perdê-la de novo, pensou, e aí já estava documentado, com papel de divórcio e tudo, dor de cotovelo se esvaindo...

Ela iria subir a um andar do mesmo prédio onde Cardoso trabalhava para dar entrevistas sobre duas apresentações dela no Restaurante Cheiro de Mar, no Rio Vermelho.

Escaparia novamente?

Aceitou o convite para o show, besta não era.

A chance - pensou.

Era...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(Jary e Vilma)

Emiliano José

6 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: 34 anos de um grande amor

 

Se preparou todo alegre para a apresentação de Vilma.

Os olhos brilhavam.

Alguma coisa nova nascia no coração.

Ainda lembrou do amor perdido.

Veio-lhe Clara Nunes.

Quis você pra meu amor

E você não entendeu

Quis fazer você a flor

De um jardim somente meu

Quis lhe dar toda ternura

Que havia dentro de mim

Você foi a criatura

Que me fez tão triste assim.

Voltava, a dor.

Ainda.

Mas ia sumindo.

E como era bom a chegada de Vilma.

Enquanto vestia a melhor camisa, voltava a Clara Nunes, já em outro astral.

Ah! E agora você passa

Eu acho graça

Nessa vida tudo passa.

Entre as flores, você era a mais bela

Minha rosa amarela

Que desfolhou, perdeu a cor.

Era Vilma a despertá-lo, sentir-se outro homem.

Se ia dar certo ou não, quem sabia?

Ele, depois de vê-la cantando, sentir tanta beleza, agora também a voz, presença de palco, ganhou coragem, e convidou-a para a festa de inauguração da nova casa dele, alugada no bairro do Barbalho.

Dele e de Lago Júnior, colega de Jornal da Bahia.

Bendita festa.

Uma dança, outra, uma palavra, uma declaração, e o namoro começou.

Um mês depois, Vilma deixou a residência no Pelourinho onde morava com a fotógrafa Célia Aguiar.

Foram viver juntos numa casa antiga no alto da Ladeira da Palma, no bairro da Mouraria.

Já lá se vão 34 anos de um grande amor.

Ambos nasceram em 1948, Cardoso um mês mais velho.

Ele, nascido em São Paulo, 17 de abril.

Ela, em Juiz de Fora, 16 de maio.

Aos poucos, foi se dando conta do privilégio de ter Vilma como companheira.

Bom entender.

Além da idade, os dois têm pouca coisa em comum.

A independência talvez tenha sido o fator de mantê-los unidos durante todo esse tempo...

#MemóriasJornalismoEmiliano   

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(A tia Ercília, Milton e Vilma)

Emiliano José

7 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: Vilma e o Clube da Esquina...

 

Aos 21 anos, Vilma caiu no mundo.

Deixou Juiz de Fora, cidade natal.

Destino: Rio de Janeiro.

- Não é metida a intelectual, como eu, e se guia pela intuição - revela Cardoso.

Tem faróis a iluminar o caminho: a própria experiência adquirida ao longo da vida, e a rígida educação recebida dos pais.

Logo percebeu: não era tão roqueira quanto ele.

O rock é um dos gêneros musicais curtidos por ela.

Gosta mais de cantar bolero e samba-canção, gêneros predominantes em seu LP "Conquistado".

Nele, encontra-se apenas um country rock, "Big Black Mania", composto por Luciana de Moraes, filha de Vinicius de Moraes - homenagem a Luiz Melodia, a quem o LP é dedicado.

Canta desde criança, a menina.

Venceu concurso infantil em Juiz de Fora.

Em casa, ouvia sempre os programas de auditório da Rádio Nacional.

Chegada à adolescência, passa a viajar aos fins de semana pro Rio de Janeiro.

Fica perto de Juiz de Fora, e no Rio havia a casa de uma irmã, onde se hospedava.

Gostou da Cidade Maravilhosa.

Aos 21 anos, juntou mala e cuia e mandou-se.

No Rio, vive por 23 anos - uma existência.

Estreita amizade com o primo Bituca e os demais músicos do Clube da Esquina.

Lembra: Wagner Tiso foi um dos arranjadores de seu disco e dele participa tocando piano e sanfona.

Torna-se também muito amiga de Luiz Melodia, com quem divide o palco algumas vezes.

Casa com o arquiteto Paulo Rocha e tem uma vida muito intensa na cidade.

Canta na noite.

Assiste a muitos shows.

Especialmente, as rodas de samba do Teatro Opinião, e espetáculos como "Maria, Maria" encenado pelo Grupo Corpo, com música de Milton Nascimento, textos de Fernando Brandt - encantou-se: o espetáculo trazia para o palco a saga mineira da família dela, negromestiça.

Entre tantos amigos e amigas dos anos 1970/80, queridos até hoje, lembra de modo especial da turma ligada ao movimento de poesia marginal "Nuvem Cigana", tão bom, tão bom, a ponto de fazer a cabeça de Milton Nascimento.

No final de 1986, estressada com a vida na cidade grande, manda-se do Rio de Janeiro.

Foi parar no Arraial d'Ajuda, Porto Seguro.

Passa a viver entre artistas, artesãos e caiçaras.

Cantava na noite.

Ela, como Cardoso, era, é, apaixonada pela Bahia.

Esteve, como ele, muitas vezes em Salvador, antes do início do namoro, especialmente nos períodos das festas de largo e carnaval...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Lucia Correia Lima: Vilma grande linda positiva mulher

Joaquim Lisboa Neto: Lembrei de 26 poetas hoje organizado por Heloísa Buarque de Holanda 

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Emiliano José

8 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: viver e não ter vergonha de ser feliz...

 

Vilma andou pelo Nordeste, um show dela com João do Vale.

O show, em Salvador, inaugurou o teatro do Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA).

Dirigido por Roland Schafner, o ICBA foi um importante centro cultural durante os anos de ditadura, em Salvador.

Quando ela e Cardoso já moravam juntos, cantou muito em bares da orla.

Participou de showmício de Gilberto Gil como candidato a prefeito.

Foi indo, indo, e cansou-se da carreira solo.

Passou a participar de corais, valendo-se dos estudos de canto lírico, feitos no Rio de Janeiro.

Em Salvador, começou cantando no coral de Keiler Rêgo.

Seguiu com o maestro, quando ele passou a reger o Coral Bibiano Cupim, do Terreiro do Gantois.

Ecumênica, integrou por mais tempo o Coral do Mosteiro de São Bento.

Cardoso rememora a importância das meninas, das moças, das mulheres adultas e das idosas na vida dele, tomando como gancho, pra usar a expressão jornalística, a relação com Vilma.

Filho único de mãe solteira, do berço aos 17 anos foi cuidado por três mulheres.

A supermãe, professora Luiza Cardoso.

A avó de criação Mercedes Maria da Conceição.

Luiza, a mãe, chamava Mercedes de "Preta Velha".

Ele, menino, corrigia: - "Não é preta, é marrom!".

E uma babá, quando ainda bebê.

Um mulherio.

Teve mais: sucessão de empregadas domésticas.

De duas destas, guarda recordações impagáveis: já na puberdade, usufruiu de deliciosas brincadeiras sexuais.

Agora, Cardoso acentua: Vilma personificou todas essas mulheres.

Sem os extremos da superproteção maternal.

Sem qualquer paixão possessiva e ciumenta.

Para ele, um norte.

Deu-lhe exemplo de independência e determinação.

E sempre com gestos e atitudes de carinho e amor.

Deu-lhe segurança emocional.

Ele, aprendiz, eterno aprendiz.

Pode cantar com Gonzaguinha:

Eu só sei que confio na moça

E na moça eu ponho a força da fé

Somos nós que fazemos a vida

Como der ou puder ou quiser.

Com ela, tinha a tranquilidade de ir fruindo a sabedoria da mineira do interior, mineira capaz de driblar as turbulências da vida de artista na cidade grande, tornar-se, ser uma saudável sobrevivente.

Com ela, pode cantar, soltar a voz com o mesmo Gonzaguinha:

Viver e não ter vergonha de ser feliz

Cantar (E cantar e cantar...) A beleza de ser um eterno aprendiz

Ah meu Deus!

Eu sei... (Eu sei...) Que a vida devia ser bem melhor e será.

Mas isso não impede que eu repita

É bonita, é bonita e é bonita.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

9 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: paixão pelos livros

 

Cardoso tem sido para mim uma agradável surpresa.

Amizade construída a partir das interlocuções durante essa caminhada, jornada de mais de cinco meses já.

Como em vários outros casos, imaginei ser coisa de poucos capítulos.

O personagem era muito rico, e eu não sabia.

Eu o conhecia de longe, contatos esporádicos, especialmente quando ele chefiava a Editoria de Opinião de A Tarde.

Quando ele chegou ao Jornal da Bahia, eu já havia saído.

Nós o acompanhamos, nessa série, desde os primeiros passos até a chegada em Salvador, em 1987.

Trabalho na Secretaria de Comunicação da Prefeitura e no Jornal da Bahia;

Ficou três anos na Comunicação da Prefeitura e chegou à chefia da Redação quando Fernando José se elegeu prefeito.

No Jornal da Bahia, foi editor de várias editorias, e no final, secretário de Redação:

- Apaguei as luzes do jornal depois de sete anos lá.

Em 1994, torna-se repórter de Geral de A Tarde.

Logo, copidesque da mesma Geral.

E aí foi num crescendo: redator, subeditor e editor de Internacional.

Ao final, editor de Opinião.

Foram 22 anos no jornal A Tarde, a mais longa permanência durante a trajetória profissional dele.

Saiu quando já estava aposentado.

Sempre gosto de ir em busca das origens.

Como um jornalista se forma.

Claro, tem escola, as primeiras leituras.

É aconselhável, no entanto, no caso dele, buscar uma das origens na relação dele com os livros.

Já falamos um pouco da militância e das muitas leituras decorrentes dela.

Não se esquece de um inesquecível amante de livros: Luiz Pilla Vares.

Ele o conheceu quando ainda era militante da Polop, no ano de 1967, quando esteve em Porto Alegre em dupla missão: como vice-presidente da UNE e como dirigente da Polop.

Então, deparou com Pilla Vares, tido como um ex-quadro rebelde da Polop, naquele momento um simpatizante simpático à ideia da formação de uma Frente de Esquerda Revolucionária, no que Cardoso estava empenhado, seguindo orientações da Polop.

Nesse primeiro contato, Pilla Vares o impressionou.

Como intelectual e pela capacidade de exposição das ideias.

Dois anos depois, já afastado da militância revolucionária direta, Cardoso, de volta a Porto Alegre, foca, o reencontra.

Cardoso observava o colega, copidesque do mesmo Zero Hora, onde ambos trabalhavam: Pilla Vares raramente levantava da mesa, a máquina de datilografia de um lado, um livro de outro.

Despachava rapidamente os textos chegados à mão para dar um trato, e no intervalo entre matérias, abria o livro - era de lei.

Podia ser um romance, antologia poética, tratado de sociologia, economia ou filosofia.

Mergulhava na leitura sem levantar a cabeça.

Nem estava aí para a barulheira da redação, das máquinas, da gritaria dos colegas, tão comuns.

Leitura era como um ato sagrado.

Entrasse numa lanchonete, num restaurante, num bar, trazia um livro à mão e mergulhava enquanto esperava o garçom ou a conta.

Quando havia muitos colegas à mesa, se a conversa não lhe interessasse, não se continha: danava-se a ler.

Obsessivo.

Não se importava parecesse pedantismo intelectual.

Deu-se de admirá-lo por esse amor.

Se já era apaixonado por livros, a paixão aumentou.

Nunca conseguiu, é verdade, ler com as pessoas ao lado, na mesma mesa.

Tinha inveja da capacidade dele de não se incomodar com o mundo ao redor...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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(O pai Antonio Campos, de pé à esquerda, quando conheceu Jary aos 9 anos, na entrega do diploma do primário)

Emiliano José

10 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: Deus está morto

 

Aqui vamos meter a mãe no meio.

Luiza Cardoso foi a primeira a introduzi-lo no amor pelos livros.

Tão importante ela foi para Cardoso, tão, a ponto de ele ter mandado despachar desde São Paulo a estante onde ela perfilava os livros destinados à leitura.

Está na casa dele em Salvador, como lembrança, presença da mãe - apenas a estante, não os livros.

A coleção completa e encadernada de Monteiro Lobato.

A maior parte dos livros para crianças - "As reinações de Narizinho e sua turma no Sítio do Picapau Amarelo" - e os demais para adultos, como "Urupês".

A coleção também completa e encadernada do "Tesouro da Juventude".

E livros de Luiza, da mãe.

Como "Iniciação Sexual", com gravuras.

Diabo daquelas gravuras, ele olhava e se excitava: o livro explicava tintim por tintim como um ser humano era produzido.

Lia e relia esses livros, revezando com outras maravilhas.

Tarzan, de Edgar Rice Burroughs.

As aventuras de Sherlock Holmes - quanto a estas, a mãe guardava especial interesse fossem acompanhadas, lidas.

Conan Doyle era espírita kardecista, como ela.

Aos 14/15 anos, leituras mais sérias.

Erich Fromm e Platão o introduziram no mundo intelectual.

Aos 14 anos, começa a pensar por conta própria.

Liga-se numa frase de Nietzsche, encontrada não sabe onde, e rompe com a religião da mãe.

Deixa de frequentar a Federação Espírita do Estado de São Paulo, à rua Maria Paula.

Fazia isso com a mãe todos os domingos, religiosamente.

Assistiu ali incontáveis aulas sobre o Evangelho segundo o Espiritismo.

"Deus está morto" - a frase de Nietzsche.

E rompe com Deus.

O sentido profundo da frase do filósofo alemão só foi captado melhor em anos recentes.

Escreveu em alemão, a caneta, numa das madeiras de sustentação da estante de livros da estante: "Gott ist tot".

A mãe deve ter torcido o nariz.

Se meteu a mãe no meio, por que não meter o pai?

Antonio Campos, o velho comunista, deixou a mãe quando ainda grávida dele.

Tinha nove anos de idade quando o conheceu.

A mãe o convidara para a formatura dele, no primário.

Veio e deixou dois livros de presente.

O primeiro volume d'O negro brasileiro', de Arthur Ramos, antropólogo alagoano formado médico na Bahia, segunda edição, de 1940.

Outra: "Os mestres da música - 50 pequenas biografias de grandes compositores".

Neste, para não deixar dúvidas, lascou carinhosa dedicatória:

"Ao meu querido filho, esta pequena recordação do teu pai que te ama. Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1957. Antonio Campos".

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

11 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: filho de peixe, peixinho é.

 

Relação com o pai, no mínimo conturbada.

Acidentada.

Depois da formatura do primário, em 1957, vai encontrá-lo dez anos depois.

Deu um jeito de buscar o encontro.

Fez o pedido do contato a Antonio Lousada, vice-presidente como Cardoso da UNE, único indicado pelo "Partidão" na diretoria.

Lousada se virou, e conseguiu.

Era a terceira vez a vê-lo.

A primeira, quando acompanhou a mãe para o convite da formatura do ginásio, quando ela também pediu fosse Cardoso reconhecido como filho, reconhecimento feito logo depois.

Aconteceu no consultório dentário dele no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

No encontro de 1967, o pai o elogia: sentia-se orgulhoso de vê-lo lutando contra a ditadura, e na clandestinidade.

Para um comunista, um orgulho ver o filho nesse caminho.

Como se a si mesmo dissesse: filho de peixe, peixinho é.

Ou quem sai aos seus não degenera.

Fez questão de lhe entregar um presente: a coleção das obras completas de Josep Stálin, impressas em Moscou em português.

Provável, muito provável, tivesse segundas intenções.

Quem sabe, a leitura pudesse fazer o filho voltar às ideias do "Partidão", tirá-lo do leito antiestalinista, tão próprio da Polop, nascida já contra o ideário dogmático do estalinismo.

Os livros tornaram-se um problema de segurança.

Não era simples sair viajando com eles por aí.

Dois anos depois, Pery Falcón é preso, barbaramente torturado.

A casa da mãe de Cardoso era a casa de Pery quando vinha a São Paulo para reuniões da Polop ou da UNE.

Rapidamente, iniciou-se uma operação limpeza, retirando-se tudo assemelhado à subversão, considerado como tal, inclusive o precioso presente do pai.

Para onde foi, ninguém sabe, e não devia de ninguém saber mesmo.

Operação dirigida pela amiga Marie Christine.

Sabia: Cardoso estava em Porto Alegre dando os primeiros passos no jornalismo, e já distante da militância revolucionária direta.

Repressão fosse à casa da mãe, e ele voltaria a ser preso, e num momento de barra pra lá de pesada.

Anjo salvador, sempre, Marie Christine.

Por justiça, não pode ignorar ter sido ela a aliciá-lo para o mundo.

Apresentou-lhe imensa quantidade de livros a serem lidos e esmiuçados.

Esboço de um curso de formação.

Curso continuado ao ingressar na Polop.

Não pode também esquecer Marcos Faerman.

O fascínio pelo jornalismo nasceu das leituras indicadas por Marcão.

Conhece Ernest Hemingway, Norman Mailer, Truman Capote e John dos Passos graças a ele.

E John Reed.

#MemóriasJornalismoEmiliano  

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Emiliano José

12 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: John Reed, jornalista e revolucionário

 

Uma reportagem exemplar.

Era como Marcos Faerman referia-se ao "Dez dias que abalaram o mundo".

Lançado em 1919, o livro revelou a Revolução Russa para o mundo.

De forma diferente da proclamada pela imprensa mundial.

John Reed cobria a Primeira Guerra Mundial, 1917, soube da Revolução acontecendo, se mandou pra lá, testemunhou e escreveu uma das melhores reportagens da história.

Jornalistas liberais podem até criticá-lo.

Por ter escrito de modo verdadeiro, e apaixonado.

Por se identificar com os ideais da Revolução.

Jornalistas liberais consideram ser correto se identificar e defender o liberalismo, neoliberalismo, propriedade privada, todo o ideário capitalista.

É pecado mortal, heterodoxia inaceitável, ser adepto do socialismo.

E John Reed era.

O livro foi lançado em 1919.

Reed morreu logo depois, curta existência, em 19 de outubro de 1920, aos 32 anos de idade.

De tifo.

Começou cedo sua atividade jornalística.

Sempre teve lado.

Andou lado a lado com trabalhadores em greve, cobriu a Revolução Mexicana, tornou-se próximo de Pancho Villa, entre tantas coberturas.

Não era, não queria ser, o chamado jornalista imparcial - sempre teve lado.

Antes de seguir para cobrir a guerra, quando vai deparar com a Revolução Russa, dirá:

- A guerra significa histeria coletiva, crucificando os defensores da verdade, sufocando os artistas. Esta não é a nossa guerra.

Na Rússia, acompanhou a trepidante marcha dos acontecimentos revolucionários, tomava notas sem parar, reunia cada panfleto, jornaizinhos, o que lhe caísse à mão.

Militou nos EUA contra o recrutamento para a guerra, chegou a ser preso por isso.

No início de 1918, volta aos EUA, doido pra escrever a história.

É, mas a democracia americana não é tão democracia assim: na chegada, todas as anotações dele foram confiscadas.

Depois de muita luta, conseguiu tomá-las de volta e em dois furiosos meses, escreveu o "Dez dias que abalaram o mundo", eternizando-se. 

O livro foi uma das paixões de minha juventude.

Como era do Marcão.

E de Cardoso.

A leitura desse livro devia ser obrigatória nas escolas de jornalismo.

Aos de pensamento liberal, calma: apenas para aprender como escrever uma grande reportagem.

Não precisa concordar com nada do escrito.

Além de Reed, Hemingway, "O velho e o mar": outra das paixões de Marcão...

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

13 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: santa vaidade e loucura de Trumam Capote

 

Um dia estavam os três, num sarau literário, certamente estimulados por bom uísque.

Falavam dos livros deles.

Eram já famosos: Truman Capote, Gore Vidal e Norman Mailer.

Capote, o mais baixinho, o mais frágil deles, assuntava.

De longe, era o mais venenoso dos três.

Virou-se, e disse, interrompendo fala dos outros dois:

- Tudo isso que vocês estão dizendo pode ser muito interessante, mas a verdade é que eu escrevi uma obra-prima, e vocês não.

Vaidade pouca é bobagem.

Ivan Lessa conta isso na apresentação de "A sangue frio", a obra-prima.

Tenho à mão edição de 2003, da Companhia das Letras.

Capote era outro dos ídolos de Marcão.

Tornou-se também de Cardoso.

Devia de ser também leitura obrigatória das escolas de Jornalismo.

Ajudaria os estudantes a se livrarem das amarras do fato, a não se transformarem em idiotas da objetividade, como diria nosso Nelson Rodrigues.

Capote é coisa de cinema.

O livro provocou filme com o mesmo nome, de 1967.

Tem histórias que até Deus duvida, o Diabo também.

Não serão contadas aqui.

Em 1959, lê notinha sobre o assassinato de um casal, mais filho e filha.

Em Holcomb, Kansas.

Os quatro, brutalmente assassinados.

Tomou da mala, e partiu para Holcomb.

Conversou com Deus e o Diabo na pequena povoação, conquistou a todos.

Holcomb deve ter hoje em torno de 2 mil almas.

Presos os dois assassinos, tornou-se íntimo deles.

Passou um ano e meio no Kansas, tornando parte daquele ambiente.

Não usa gravador, não anota nada.

Devia de achar isso tudo tirasse intimidade.

Rumina o livro por seis anos, e por fim no início de 1966, livro todo na cabeça, coloca o "romance sem ficção" nas ruas - a qualificação é dele próprio.

Jornalismo pra ele era apenas uma fotografia literária.

Ele não costumava economizar sobre si mesmo, como Norman Mailer e Gore Vidal haviam percebido.

Se gostava de seu autoelogiar, não deixava de ser cáustico consigo mesmo.

- Um dia, comecei a escrever, sem saber que me acorrentara por toda a vida a um senhor nobre porém implacável. Quando Deus lhe dá um dom, ele também lhe dá um chicote; e o chicote se destina apenas à autoflagelação... Estou aqui sozinho na escuridão de minha loucura, sozinho com meu baralho - e, é claro, o chicote que Deus me deu.

Santa loucura, a nos legar romances, filmes, e jornalismo literário.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Rui Patterson: Também vou de Capote e não estou com frio. Gore foi aquele intelectual refinadíssimo traçando paralelos sobre a Roma Antiga e os USA, Mailer um senhor criador do Novo Jornalismo, bipremiado, mas a mão e o pão da criação estavam com Capote.

Emiliano José: É vero

Raquel Nery: Tudo ficou mais interessante desde que Capote, Didion e outros borraram os limites entre o jornalismo e a literatura.

Emiliano José: Tudo  

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Emiliano José

14 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: o velho, o mar, sonho com leões

 

O best-seller "O velho e o mar", transformado por Marcos Faerman "na mais refinada reportagem existente".

Lembrança de Cardoso.

É livro de 1952.

Jamais alguém ousaria classificá-lo como reportagem.

Marcão ousou.

É uma bela e singela e rica história.

Ernest Hemingway é romancista mundial.

Correspondente de guerra na Espanha, extraiu daquela experiência o imortal "Por quem os sinos dobram".

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, instalou-se em Cuba, país por quem foi apaixonado até o fim da vida.

Até hoje, as ruas de Cuba, sobretudo as do Centro Histórico de Havana, respiram Hemingway: falam de suas histórias, de noitadas, e de seus amores, e de sua lealdade amorosa com a Ilha.

La Bodeguita del Medio e El Floridita eram os santuários dele, onde passava as noites.

No Floridita, há escultura dele no balcão, a quem os turistas abraçam e fotografam.

Ali, ele emborrachou-se tantas vezes com daiquiris.

Há, ainda, o hotel "Ambos Mundos, no coração da belíssima Havana.

Conserva-se o quarto 511, onde ele escreveu "Por quem os sinos dobram".

Andei por esses caminhos, recentemente, com Carla, entre final de 2018 e fim de 2019 - andei entusiasmado com os dizeres "Vá pra Cuba", e nesse intervalo estive por lá três vezes.

Daiquiris, mojitos, e andanças por Havana - não tem muita coisa melhor no mundo.

Marcão, quando leu "O velho e o mar", certamente impressionou-se com a riqueza da construção dos personagens, os detalhes - "o velho pescador era magro e seco e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas".

É a história de um velho homem na solidão do alto mar, a debater-se e a derrotar um grande peixe.

Do mar, Hemingway conhecia.

Volta e meia, punha-se ao largo de Cuba, em épicas jornadas de pescaria a bordo do seu iate Pilar.

Deparou com Fidel, em maio de 1959, durante um concurso de pesca, vencido pelo revolucionário.

Hemingway entregou o troféu a Fidel, cuja mesinha de cabeceira guardava sempre "Por quem os sinos dobram", fonte de ensinamentos para a guerra de guerrilhas, segundo o próprio comandante de Sierra Maestra.

A leitura de "O velho e o mar" é emocionante.

Lição de superação.

De como um homem, cuja vida o ensinara humildade, não se entrega diante das dificuldades.

Humildade a não dispensar a coragem.

Um homem cuja fé em si mesmo, não obstante a idade, ensina a viver.

Como acreditar pudesse o velho Santiago, já havia 84 dias sem pescar um único peixe, pudesse, numa jornada inacreditável, ele só pele e osso, travar uma batalha memorável em alto mar, derrotar tubarões?

Chegou morto de cansado.

Foi para casa.

Um dos pescadores perguntou por ele.

- Dorme, respondeu o rapaz amigo dele, da mais profunda amizade, sempre a acreditar nele.

- Mede cinco metros e cinquenta da cabeça à cauda, disse o pescador que estivera medindo o peixe.

Como havia conseguido?

"Lá em cima, na cabana, o velho estava dormindo de novo. Continuava dormindo com o rosto escondido no monte de jornais que lhe servia de almofada e o rapaz estava sentado a seu lado a observá-lo".

A última frase:

"O velho sonhava com leões".

Marcão, outra vez, tinha razão.

A mais refinada reportagem existente.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

Mônica Bichara: Doida que me mandem pra Cuba novamente, vou correndo

Valter Xéu: Mônica Bichara vou em maio

Solange Souza Lima: duas

Emiliano José: três

Juvenal Payayá: Preciso atingir a maioridade e ir em Cuba.

Emiliano José: Juvenal Payayá Só ir...

Jose Jesus Barreto: O Velho e o Mar ! fantástico.

Alberto Freitas: Saudade de andar pela Obispo.

Joaquim Lisboa Neto

Gil

O velho

O mar

I o Lago   

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Emiliano José

15 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: mestre John Dos Passos

 

Outro dos autores preferidos de Marcos Faerman, John Dos Passos.

Amigo de Hemingway, desentenderam-se em 1937 na Espanha: Hemingway era adepto ardoroso da causa antifascista, Dos Passos, sujeito desconfiado do comunismo e da esquerda em geral.

A admiração de Marcão por ele, enorme.

Por conta dela, e querendo influenciar o discípulo, deu a Cardoso a trilogia "USA", edição portuguesa, até hoje à disposição de visitantes na estante principal dele, na casa do Pernambués:

"Paralelo 42", "1919" e "Dinheiro graúdo" - este vendido atualmente  nas edições em português no Brasil sob o título "O grande capital".

A série constitui um painel político e social dos EUA no começo do século XX, publicada nos anos 30.

Trajetória dele iniciou-se cheia de esperança, com forte caráter social, passa por uma fase de profundo ceticismo político, e termina a vida como um ultradireitista.

A gente conhece alguns com essa história.

Voluntário na I Guerra Mundial em 1917, dá ácido testemunho sobre a II Guerra Mundial, na revista Life, em 7 de janeiro de 1946, afirmando: "o estupro brutal e álcool é o salário de um soldado".

No texto, qualifica o exército de Aliados na Alemanha como "exército de assassinos e estupradores".

Em "1919", faz desfilar uma profusão de atores - eles revelam a repercussão da Primeira Guerra e da Revolução Russa na vida norte-americana.

Lembrei de "1919" porque é um ano a me marcar, sobretudo pelo assassinato da grande Rosa Luxemburgo.

E porque o querido amigo e reitor João Carlos Salles cometeu a heresia de dizer ter livro recente meu, "O cão morde a noite", lembrado a ele "a narrativa de um John Dos Passos, em 1919 - febril, entre consciente e inconsciente, ao ritmo dos acontecimentos, como é costumeiro quando nos sentimos colhidos pela história".

É autor do generoso prefácio do livro, cuja segunda edição está no forno, pela EDUFBA.

Parar por aqui para não me dizerem com razão: quem gaba o toco é a coruja.  

Obra vasta, admirável, e ousada na inovação, a de Dos Passos, e certamente essa característica foi a principal motivação de Marcão ao presentear o discípulo com a famosa trilogia do autor.

Marcão não queria jornalistas - queria escritores.

Melhor, queria jornalistas, sim.

Contanto, capazes de colocar alma nos textos.  

Por isso, entupia os discípulos com livros de autores acostumados a penetrar o coração das gentes.

John Dos Passos, um deles.

Cardoso nunca se esqueceu disso.

#MemóriasJornalismoEmiliano 

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Emiliano José

16 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: Norman Mailer, outro mestre

 

Norman Mailer, a última indicação de Marcos Faerman.

Última na minha escrevinhação.

Poderia ser o primeiro.

Há controvérsias, mas Mailer é considerado o pai do chamado Novo Jornalismo, da não-ficção criativa, do jornalismo literário, como se queira.

Claro: ao lado dele, para alguns superando-o, estaria um Truman Capote, um John Dos Passos, um John Reed.

Ele, como Reed, ativista contra a guerra, empenhando-se de modo especial na luta contra a Guerra do Vietnã, a lhe valer prisão uma vez.

Expoente da contracultura nos EUA nos anos 1960, fundou o The Village Voice, influente publicação alternativa.

Na biografia sobre Marilyn Monroe, escrita por ele e publicada em 1973, notável sucesso editorial, escancara: a morte dela teria sido causada pelo FBI e pela CIA, cujos protocolos não admitiam o romance com o senador Robert Kennedy.

À minha frente, presente do amigo já ausente do nosso convívio, Fernando Schmidt, num de meus aniversários: "O fantasma da prostituta - Um romance da CIA".

Duvidosa a afirmação da capa face aos tantos livros premiados de Mailer: "A obra-prima do maior escritor americano da atualidade".

Na contracapa, definição do livro: "Um romance sobre homens e mulheres treinados para mentir e enganar em nome da Pátria".

Apropriada - a CIA segue assim, sem tirar nem pôr.

Marcão indicava de modo especial um dos livros de Mailer: "Miami e o cerco de Chicago".

Num esforço jornalístico a seu estilo, mergulha nas convenções presidenciais de 1968, ano a marcar o mundo e os EUA.

Guerra do Vietnã numa escalada, assassinados Martin Luther King e Robert Kennedy, e o Partido Republicano escolhe Nixon como candidato.

Chicago tornou-se quase uma cidade da insurreição: manifestantes encheram as ruas, e a polícia desceu o cacete, tudo em meio à Convenção do Partido Democrata.

Os autores indicados por Marcão, Mailer entre eles, ajudam os novos jornalistas, e os velhos também, a repensarem o jornalismo.

Subverteram a noção de um jornalismo bem comportado, nascido no final do século XIX, início dos anos XX, fundado nos fatos, como se os fatos falassem por si, como não tivessem a intervenção da subjetividade humana.

Valessem os fatos.

Mas envoltos em sangue, em paixões, em amores, insurreições, suor e lágrimas, mulheres e homens em movimento - nada de frieza, nada de "idiotas  da objetividade", insistindo na crítica de Nelson Rodrigues.

Quem faz jornalismo, quem viveu a vida das velhas redações, sabe o quanto é difícil livrar-se da chamada ditadura dos fatos.

Era essa a pedagogia de Marcão: olhe para os fatos, mas compreenda tais fatos sob o olhar das paixões humanas.

E para tanto enchia os repórteres sob sua direção de indicações de autores, às vezes até presenteando alguns com livros escolhidos por ele, Cardoso um dos beneficiados.

Dele amigo, companheiro de Polop, e admirador, Cardoso foi beneficiado por especial atenção quando iniciou jornada jornalística.

Marcão não só lhe arrumou o primeiro emprego como acompanhou os passos iniciais dele, como eficiente tutor.

Bom aluno, Cardoso aprendeu.

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS 

Joaquim Lisboa Neto: Com Fernando Schmidt tive o privilégio de participar em várias reuniões do Comitê Conjunto no Politeama, liderado, que me lembre, por Leonelli e Luiz Umberto. A última vez que vi Fernando foi num encontro na casa de Jehová de Carvalho, Matatu de Brotas, recepção a Clodomir Morais, inícios dos 80s. Lá estavam também Leonelli e Capinan. Tarde/noite muito agradável. Abraços camarada, sempre me deleitando com suas MJ aqui e lá na kitnete com o Balança mas não cai...

Emiliano José: tá chique... De Kiti e Nete...

Joaquim Lisboa Neto: Espero que a praga pegue

Se Kite pintar Nete que espere  

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Emiliano José

17 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: mico de circo nas ruas da Bahia

 

Cardoso estava em Salvador no início de 1979.

Havia se apaixonado pela cidade.

Pelo clima cultural.

Pelas festas de largo.

Pelo carnaval.

Ele e a primeira mulher, Aninha.

Desde fevereiro de 1972, a paixão.

Daquela estadia, não se esquece.

Sobretudo pelo "Mico de Circo", nome de disco lançado por Luiz Melodia.

Fora destacado pela "Folha de S. Paulo"  para cobrir esse lançamento.

O cantor, costumeiramente iconoclasta, abre o disco com "A voz do Morro", de Zé Keti.

Abriu assim por sugestão de Waly Salomão.

Quiseram os dois com isso confrontar os racistas inconformados com o negro descendo o morro pra cantar:

"Eu sou o samba, a voz do morro sou eu mesmo, sim senhor" - Melodia abria o disco todo debochado, com sua voz do morro, e em formato de gafieira.

Queria também, com o disco, homenagear os amigos marginais marginalizados do Morro de São Carlos, do Rio de Janeiro.

Fosse simples lançamento, seria pouco.

Melodia queria mais.

Ele e Waly Salomão queriam mais.

Resolveram lançar o disco numa espécie de apoteose popular.

À maneira das festas de largo de Salvador.

Dia 24 de janeiro de 1979.

Tomaram de um burro, de uma carroça.

Ornamentaram o veículo - na parte de trás, imenso cartaz, com o título: "Mico de Circo".

Os dois, ele e Waly, de branco.

Waly, vestido como árabe, bem a caráter, em cima da carroça.

Melodia, de branco, camisa de mangas compridas, arregaçadas, de boné, ia à frente, montado no burro - o pobre puxava a carroça e aguentava o peso do cantor.

Hoje, talvez não fosse permitido: os animais, mais protegidos.

A aglomeração começou na rua Djalma Dutra, num posto de gasolina, ao lado do jornal "Tribuna da Bahia".

Cardoso e Aninha, ali, no gargarejo.

- Só na Bahia - murmuram os dois.

 Na porta da "Tribuna", olhares atentos, Nelson Motta e a psicanalista Betty Milan.

Melodia cutucou o burro com os calcanhares, como tivesse esporas.

O burro obedeceu, lentamente, sem pressa.

Até porque o peso não era pequeno.

Nem os rojões disparados à saída o fizeram apertar o passo.

Destino: Mercado das Sete Portas.

Não é trajeto tão longo: se der um quilômetro, muito.

E juntando gente.

Na Bahia, juntar gente é a coisa mais fácil do mundo.

Cardoso e Aninha, passo a passo, iam seguindo atrás da carroça lentamente, até porque o burro não tinha pressa.

Se é fácil, facinho, juntar gente em qualquer festa na  Bahia, imagine se houvesse a promessa de um caruru quando se chegasse ao destino?

Havia a promessa...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: Quem vai querer comprar...

Presente cotidiano

Textos de Emiliano

Desculpem a rima fácil   

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Emiliano José

18 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: 24 de janeiro de 1979 e a festa de arromba

 

Cardoso caprichou na abertura da matéria sobre o lançamento do "Mico de Circo".

"Folha de São Paulo", 29 de janeiro de 1979.

Ocupou página inteira, prestígio danado.

De Melodia e do repórter.

"O 24 de janeiro não é dia de festa na Bahia, embora as festas de largo se estendam por todo o verão. Mas este ano, nesse dia, o lançamento nacional do novo disco de Luiz Melodia, comandando pelo poeta baiano Waly Salomão, motivou uma verdadeira festa popular em Salvador, com desfile e rojão, confete e serpentina, samba e carnaval, culminando com um caruru de 7 mil quiabos, servido de graça, junto com batidas, no mercado das Sete Portas. "Uma coisa de preto, nesta terra de preto que é a Bahia" - como disse Caetano Veloso.

Fácil imaginar o furdunço causado pelo caruru de sete mil quiabos, a multidão reunida nas Sete Portas, tudo de grátis, e de graça até injeção na testa, ninguém recusa, quanto mais caruru de gente famosa.

No sublead, assim chamado o segundo parágrafo de qualquer matéria, invenção brasileira, Cardoso fala de Waly e de Melodia.

O poeta baiano descobriu Melodia no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro.

Impressionou-se com o canto dele, encantou-se com ""Pérola Negra", e levou a canção para Gal Costa gravar em 1971 - tornou-se hino dos hippies e de toda a moçada barato legal.

Conhecido mesmo, pra valer, Melodia tornou-se com "Juventude Transviada", tema da novela "Pecado Capital".

Conheceu a Bahia, trocou olhares com uma baiana, e não escapou: casou-se.

Ao gravar o terceiro long-play, o "Mico de Circo", resolveu presentear o amigo Waly: incluiu no disco "A Voz do Morro", de Zé Keti - era antigo pedido do poeta, gravasse a música, tão bela.

E Waly então propôs lançar o disco numa festa de largo produzida por eles.

Além das milhares de pessoas, havia os famosos.

Cardoso conta tudo isso.

Caetano, no pedaço.

Só não gostava quando qualquer sujeito tomava de um rojão, aquele suspense até estourar, ele com as mãos nos ouvidos.

Entrou logo pro saguão da "Tribuna da Bahia", convidado por João Ubaldo Ribeiro, e os dois riam à vontade, falavam muito do furacão Glauber Rocha.

Betty Milan, recém-chegada de Paris, famosa por ex-assistente e tradutora de Lacan, deixou momentaneamente o repórter da "Tribuna", para quem fora dar uma entrevista, e se deliciava com toda aquela ferveção.

Se a leitora quiser, ou o leitor, não é tão difícil recuperar a matéria completa.

Vá lá no acervo digital da "Folha".

Vale a pena.

Mas não foi tudo maravilha para Cardoso.

A estadia na Bahia rendeu-lhe bom contratempo...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Joaquim Lisboa Neto: Depois de Maravilhas contemporâneas e Pérola negra... Mico de mico!   E lá vai Melô!

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Emiliano José

19 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: um barato de demissão

 

Parece brincadeira, mas não é.

Cardoso foi para Salvador bancado pela "Folha de S. Paulo".

Dialogou com os botões, perguntou:

- Algum problema de Aninha ir comigo?

- Nenhum - responderam.

Ele e a mulher adoravam a Bahia - já se disse.

Ele, cioso dos protocolos financeiros do jornal, tomou cuidado: notas fiscais de restaurantes e hotel deveriam constar apenas e tão somente as despesas dele.

Aninha não existia.

É, mas nem tudo foi perfeito: os prestimosos serviçais do financeiro da "Folha" fuçaram, fuçaram, e acharam um descuido, transformado num bafafá.

O financeiro usou lupa, e localizou, entre as tantas notas, uma do hotel onde surgia o nome de Aninha, uma despesazinha de nada.

Foi o bastante.

Surgira o pretexto para Boris Casoy, redator-chefe, ordenar a demissão de Cardoso.

Muitos jornalistas incômodos já haviam sido defenestrados pela "Folha" naquela quadra.

Incômodos - chamados à boca pequena de subversivos, logo logo não mais à boca pequena.

Cardoso imaginava, quem sabe, seguir ali, quietinho, fazendo o trabalho dele, apenas isto.

"Apenas" às vezes incomoda muito.

Ele já era demais ali, numa redação em transformação acelerada, para pior.

Cardoso chega a imaginar, penetrar os pensamentos de Casoy:

- Vê se pode, o cara entrou na onda do doidão do Waly e se meteu com a marginalidade e a negrada e ainda escreveu matéria exaltando essa loucura baiana, especialmente os negros.

Ele o imagina vociferando:

- Isto é uma vergonha!

- Não, não dá mais para esse repórter continuar entre nós.

Ao mandá-lo embora, Casoy disse dos protocolos do financeiro, a cobrar dele, Cardoso, a restituição do valor atribuído à despesa de Aninha.

Iria demiti-lo, informou.

Generoso, Casoy não queria de Cardoso o desembolso do dinheiro.

- Eu pago do meu bolso.

Cardoso não é capaz de atualizar qual o valor das despesas de Aninha.

Não deveria, no entanto, ser superior a dois cruzeiros.

Um barato.

Um pretexto muito barato.

Não se iludam, no entanto: atrás desse mato tem coelho, dos grandes...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIOS

 

Lia Robatto: Que figura execrável esse Casoy

Joaquim Lisboa Neto: Boris, o dedoduro de sempre 

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Emiliano José

20 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: no olho do furacão..

 

Cardoso, demitido no meio de uma tempestade.

Dois anos antes, a "Folha de S. Paulo" afastara Cláudio Abramo da chefia da Redação.

Por detrás disso, uma conjuntura nacional explosiva.

Corria o ano de 1977.

Três anos de abertura lenta e gradual de Geisel.

Conjuntura de "continuar a matar", como dissera o próprio Geisel.

E continuou.

Conjuntura nervosa também na imprensa.

Golbery,  bruxo daquela abertura, considerava necessário estabelecer alguma convivência com a imprensa - com os donos dos meios de comunicação.

Ditadura precisava aparar arestas sobretudo nos meios impressos.

Tinham nas mãos a "Rede Globo".

Desde o início, porta-voz da ditadura, inclusive a fazer eco dos assassinatos dos adversários sob tortura, dados sempre por ela como acidentados, mortos pelos companheiros - divulgava os releases da Oban, dos DOI-Codi.

Assim, a Globo - e nunca desviou desse caminho.

Quem quiser, se iluda.

Mas, ditadura precisava mais.

Alguns veículos ligeiramente rebeldes precisavam ser amansados.

E foram.

- No projeto de abertura, houve um acordo tácito entre os militares e os donos dos jornais. Creio que eles não chegaram a falar no assunto, mas deve ter havido um entendimento implícito de tirar os chefes de redação que eram "trouble-makers". Subitamente num prazo de dois ou três anos, fomos quase todos eliminados. Janio de Freitas já estava fora da direção, mas em sucessão saímos Alberto Dines, Mino Carta, eu.

É depoimento do próprio Cláudio Abramo, a ser encontrado no livro "A regra do jogo", construído a partir de depoimentos prestados por ele.

O pretexto para demiti-lo foi uma crônica de Lourenço Diaféria, julgada ofensiva à memória de Duque de Caxias.

A demissão ocorreu em 17 de setembro de 1977.

Continuou como editorialista e membro do Conselho Editorial.

Saiu do Conselho na greve dos jornalistas, de 1979, por decisão própria - ele conta o papel dele como mediador, malsucedido.

Trabalhou no "Jornal da República", fundado por Mino Carta, experiência a resistir por efêmeros cinco meses.

Não achava emprego.

Boris Casoy o visita numa madrugada - mediador.

Frias o convida para seguir para Londres, como correspondente.

Aceitou - e revela ter sido um erro. 

Faz um balanço num dos depoimentos:

- Quem mudou a história da imprensa no Brasil fomos eu, no "Estado" e na "Folha", Janio de Freitas, no "Jornal do Brasil", e Mino Carta, no "Jornal da Tarde" e na revista "Veja".

A ditadura conseguia, naquela quadra, fazer uma limpa geral nas redações.

Expurgar os inconvenientes.

Afastar os subversivos.

Por interpostas pessoas...

#MemóriasJornalismoEmiliano

 

COMENTÁRIO

 

Artur Carmel: "Essa abertura é um furo" Rô. 78 

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(Com Florisvaldo Mattos, editor-chefe em A Tarde, onde trabalhou por 22 anos, comemorando o aniversário dele no Bar do Edinho, Mercado do Rio Vermelho, em 2-8-2018)

Emiliano José

21 de fevereiro de 2022

Jary Cardoso: celebração no altar da amizade

 

Boris Casoy era o homem certo para a conjuntura vivida pelo jornalismo brasileiro.

E pela "Folha" de modo especial.

Era, e é, um jornalista de direita.

Considera-se isento, coisa difícil de se provar face à sua atuação.

Assumiu no calor da crise Sílvio Frota, em confronto aberto com Geisel - o presidente conseguiu defenestrá-lo. 

A "Folha" precisava dar recados apaziguadores - e tirar Cláudio Abramo foi um.

Melhor ainda, para os militares, colocar Casoy no lugar dele.

Ficou à frente da redação até 1984, quando Otávio Frias Filho assumiu a direção do jornal.

Arrisco dizer, sobre aquela conjuntura: para o jornalismo brasileiro, findava a aura do grande jornalista, "daquele sujeito capaz de produzir uma coisa única e irrepetível, cheia de inovação e criatividade".

Digo isso no meu livro "Jornalismo de campanha e a Constituição de 1988".

Completo: é o desencantamento do mundo do jornalismo.

Tratava-se de expulsar o "político-partidário" do espaço jornalístico, expulsar o que se considerava "engajamento".

Desmascaro essa operação: expulsa o político-partidário em sentido estrito, mas o retém em sentido ampliado, na medida em que os jornais têm partido, adotam posições, fazem política.

Foi nesse clima, nesse quadro político-cultural, que Cardoso caiu.

Casoy usou o pretexto de dois vinténs para demiti-lo.

Em 1979, Cardoso volta então ao "Estadão".

E em 1987, desembarca na Bahia.

Já contamos um pouco da passagem dele pela imprensa baiana.

Terminou a trajetória em "A Tarde", onde passou 22 anos, a mais longa permanência num jornal.

Num artigo, Jorge Portugal, relembra quando foi convidado por Cardoso para escrever em "A Tarde".

Mote para comentar a saída dele do jornal.

"Demitiram sua erudição incomum e sua capacidade de iluminar as páginas do jornal com presenças intelectuais invulgares. Demitiram sua presença física sem afetação, de paulista que virou baiano e se tornou um grande filho d'Oxum. A ausência de Jary se converte em pobreza cultural, em um momento em que ´imbecis perdem a modéstia´, e as redes sociais tornam-se pastos de idiotas."

Hoje, orgulha-se de ajudar o filho Tom Cardoso, autor de tantos livros, nos projetos tocados por ele.

Nessa minha escrevinhação, às vezes dizia não poder me atender porque "o patrão" era rigoroso, e cobrava o cumprimento das tarefas, com deadlines apertados.

Conhecê-lo de perto, acompanhar uma vida de aventuras, militância na Polop, desbunde criativo, saber mais de seu talento como "rei dos verbos", usufruir de sua capacidade como copidesque, de sua erudição, saber de Vilma, amor sereno, dos filhos talentosos, tem sido experiência pra lá de agradável, privilégio.

Poderia comemorar com Neruda o quanto viveu, um bem-viver.

Cedo: muito ainda por desfrutar da vida.

Pode, isso pode, celebrar com Violeta Parra e Mercedes Sosa, e dar gracias a la vida, que lhe ha dado tanto.

Falta comemorar isso, quase seis meses de convívio diário, com um bom vinho.

Logo, logo o faremos.

No lugar escolhido por ele e por Vilma.

Deixemos a peste dar uma trégua.

Então, brindaremos.

Contaremos casos.

No altar da amizade, o mais belo dos sentimentos.

#MemóriasJornalismoEmiliano

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COMENTÁRIOS

 

Mônica Bichara: Verdade, foram quase 6 meses de doses diárias de uma rica trajetória. Gracias a la vida......

Jaciara Santos: Que maravilha de texto. Emocionante como a história do protagonista. Gracias a la vida!

 

 

 

Comentários

  1. Meu ego está aqui quase explodindo do inchaço...
    Muito agradecido à dupla do barulho, Emiliano & Mônica!

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    1. Que bom que gostou, foi um prazer. Parabéns pela rica trajetória, com pessoas tão empolgantes. E viva o desbunde hehehe

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  2. Foi um desbunde de experiência. Obrigado, Jary. E outra vez, obrigado à minha querida editora, a querida Mônica.

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    1. Sempre um prazer essa parceria. Doida pra ver essa verdadeira biografia virar livro. Mais um grande personagem

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    2. O comentário saiu anônimo, mas é do mestre Emiliano

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