Nas pontas dos pés e me apoiando na barra da cadeira do ônibus coletivo, tentei buscar mais alcance para avistar melhor o que se anunciava. Quase não me aguentei de espanto e encantamento quando vi despontar à minha frente aquele mundaréu de água, o que me levou a segurar firme o braço da minha mãe. Fiquei sem fôlego diante da imensidão que as minhas vistas podiam alcançar dali de dentro do ônibus, descendo a ladeira da Cardeal da Silva em direção à orla, no bairro do Rio Vermelho. Excitação e alegria se misturaram e foram crescendo à medida que nos aproximávamos de todo aquele azul profundo que ia ganhando ainda mais amplitude. Era o mar, em todo o seu esplendor.
Tinha
visto muita água até aqui. Eram três rios na cidade onde nasci e
cresci até esses meus 10 anos de vida, diferentes em largura, mas
igualmente margeados de plantas e barrancos, que mesmo assim nos
causavam medo de nos tornarmos uma das suas vítimas dos afogamentos,
que vez por outra levavam crianças “teimosas” e adultos
“irresponsáveis”, na falação geral da cidade. Eu e meus irmãos
éramos proibidos de frequentar sozinhos, mesmo o mais estreito
deles, o Santa Maria. Este parecia um córrego estreito em alguns dos
seus pontos, alargando-se mais adiante, e também era o escolhido da
minha mãe para os nossos raros e inesquecíveis piqueniques de
domingos.
A comida era o menos importante nos domingos à beira
do rio, correndo e brincando de picula, ou dentro d‘água pulando
dos ombros dos maiores, batendo a água para espirrar na cara do
outro, fazendo uma algazarra danada até a nossa mãe nos chamar para
comer a farofa com carne de sol picadinha e tomar garapa de maracujá,
ou limonada. De sobremesa tinha fatias de melancia, banana e
tangerina. Descansávamos alguns minutos e a brincadeira recomeçava
nas águas frescas do Santa Maria.
E foi na paz e tranquilidade do Santa Maria que se deu o inusitado, o fenômeno que ficou marcado em nossas cabecinhas infantis. Num determinado trecho, onde o rio ganha largura e profundidade e ninguém ousa brincar ou nadar, Isaurina foi bater lá. Parecia puxada, arrastada por uma força invisível e ela não oferecia qualquer resistência. Os adultos começaram a gritar por Isaurina e ela nada de dar atenção, sem sequer virar o pescoço e olhar para trás, onde todos chamavam pelo seu nome e imploravam que voltasse imediatamente.
Andando
lentamente, como se estivesse flutuando na água que já ia na altura
do pescoço, a nossa empregada parecia transformada numa entidade,
soltando seus longos cabelos negros e ondulados que viviam presos num
coque feito na altura da nuca. Disseram que ela estava “manifestada”,
que Janaína a pegou e se isto aconteceu não havia mais jeito. Mas
Isaurina de repente se recompôs, como que voltando de um transe.
Sacudiu os braços e os longos cabelos, dando a volta no corpo para
retomar a caminhada pelas águas em nossa direção.
Nossa
mãe ficou assustada com aquela cena e por mais que perguntasse a
Isaurina o que deu na cabeça dela para seguir na água daquele jeito
e assustando todo mundo, a pobre mulher não sabia dizer, não tinha
explicação. Repetia que sequer se lembrava, a não ser do seu
retorno à beirada do rio, onde todos estavam reunidos e aflitos com
o que lhe acontecera.
Danei
a perguntar à minha mãe e aos irmãos maiores quem era Janaína e
porque ela queria levar a nossa Isaurina. Quase perderam a paciência
comigo, receosos de muita informação para uma pequenina que nem eu,
mas não saí em vão dessa luta para matar a minha curiosidade.
Falaram da sereia do rio, uma mulher-peixe, que em alguns lugares era
chamada de Iara, uns diziam que era lenda, outros que era invenção
de gente doida, e teve quem a definisse como uma divindade, uma
espécie de santa das águas.
Avistar
o mar me lembrou o temor que me incutiram para não me afogar nas
águas e foi bastante temerosa que pulei a primeira ondinha, tão
fraquinha e espumante que mal cobria meus pés. Mas em poucos
momentos eu já rolava na beira do mar com a minha irmã, molhando o
corpo em uma onda e outra que se desfazia na areia. Daí para o
mergulho nas ondas foi só mais outro pulo. Já me sentia íntima das
águas salgadas de Iemanjá, a mulher-peixe do mar. Contaram-me, mais
uma vez para matar a minha curiosidade de menina, que a protetora dos
pescadores podia ajudá-los a encher as suas embarcações de peixes,
mas poderia transformar-se numa malvada e cruel encantadora que os
arrastava para as profundezas do mar, se não tivesse pelo menos uma
vez no ano os agrados e mimos que apreciava: perfumes, espelhos,
sabonetes e adereços de vaidades femininas. Eu não entendia bem
essa história, mas ficava encantada imaginando a mulher-peixe
recebendo seus presentes e agrados.
Já
maiorzinha, com os meus 13 anos, fui conhecer a festa de Iemanjá,
realizada no dia 2 de fevereiro. Vi muitos cestos e balaios repletos
de flores e presentes levados por pescadores, em suas embarcações,
e também muita gente à beira da praia lançando suas oferendas.
Entendi que na crença geral daquelas pessoas a mulher-peixe as
protegia para além das águas do mar. Ano seguinte fui de novo.
Desta vez, e de outras seguintes, sem esquecer de lançar uma
flor ao mar. Odoyá!
Massa, Joaninha. Bem vinda ao reino do encantado!
ResponderExcluirA quem devo agradecer?
ResponderExcluirMuito bom, vc está bombando nesses desafios. Vá fundo, parabéns
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