Os velhos

Bira Paim Nery


Bom-dia! Disse o casal de idosos quase que simultaneamente, separados apenas por um

suave delay.

Bom dia, eu com a plena convicção de que o meu dia assim o seria.

Cruzávamos sempre no início da minha caminhada matinal, sempre a altura de um

quarto das seis, com um pequeno oscilar de alguns minutos para mais ou para menos que

nos fazia por consequentes, se não britânicos, quase que pontuais pela força do acaso.

Era um bom-dia mágico, carregado de simpatia e boa vontade, era o bom-dia mais

sincero e verdadeiro que alguém pudesse desejar a alguém e o dia parecia ganhar um outro

sentido, passava a ter um outro azul, uma outra cara, diferente de outros dias como aqueles

que se diz levantar com o pé esquerdo. Eu não sabia que tão simples palavras pudessem

carregar consigo tal grandeza ou talvez que a grandeza estivesse apenas na sinceridade de

quem as pronunciassem.

Nunca soube o nome deles e, creio, nem eles o meu, apenas nos cumprimentávamos e

seguíamos; eu para minha caminhada e eles para o mercado ou para feira. Poucas vezes,

antes de completar o meu percurso, eu os via longe voltando, mãos dadas, o mesmo ritmo

lento e contínuo, uma sacola pequena quase transparente a mostrar além de hortaliças, uns

tomates encarnados e mais algumas, frutas, folhas, não sei bem. Raras foram as vezes que

não nos encontramos e sempre fora assim, quase como um ritual.

Ele alto, tão alto que o tempo o curvara para frente e o fizera balançar como um

pêndulo enquanto caminhava, ora para a direita ora para a esquerda. Aparentava uns setenta

e tantos anos e pelo bronzeado da pele, me levava a crer que metade desse tempo o

consumira sob o sol tropical. Poderia facilmente arriscar que fora pescador, garimpeiro ou

homem do campo. Os poucos cabelos prateados atrás das orelhas contrastava com um

farto bigode branco que escondia o lábio superior. Sempre com uma bermuda branca,

camisa leve de cor indefinida e chinelão de couro que quase não se ouvia arrastar sobre a

calçada. Ela baixinha, tímida e doce, exalava felicidade e um frescor de antiga colônia que

meus pulmões aprenderam a gostar, andava pela casa dos setenta e parecia carregar algum

tipo de enfermidade visual pelo esforço com que olhava á distância. Os manchados senis,

não apagara de tudo o que outrora fora belo, e o branco do cabelo e da pele se confundiam

e tornavam ainda mais sobressalientes o par de olhos azuis.


Pela atenção mútua que demonstrava um para o outro, era certo não haver mais ninguém

além deles, eram sós no mundo e isso não parecia os magoar, nada que talvez a vida não já

houvesse feito e o tempo apenas os calejara.

Eu gostava de imaginar o que eles faziam, o que conversavam, como viviam, no entanto

não saber de nada disso e apenas especular em minha própria cabeça tornava mais

confortável e menos entediante a caminhada.

Que tipo de pessoa faz compra para o almoço todos os dias?

Talvez ao longo dos anos tenham adquirido o costume de escolher suas verduras, frutas

e legumes diariamente para que as tivessem sempre frescos em sua mesa, ou apenas como

pretexto para uma ocupação qualquer que pudesse entreter o declinar de suas velhas vidas.

Moravam há duas quadras da minha, mas nunca soube exatamente onde, só os via

pela manhã quando nos cumprimentávamos e pronto.

Eu nunca pensava neles durante o dia, no trabalho ou outra hora qualquer. Nunca

conversamos, nem nos tocamos, sequer um aperto de mão - embora soubesse que um dia

poderia sofrer por não tê-lo feito - nosso contato era apenas passageiro.

Mas quando punha meus pés no calçadão queria vê-los logo, apenas para ouvir a

saudação que inaugurava o dia e da qual me tornei dependente.

Somos bichos urbanos que vivemos em cidades com nosso egoísmo, afastados, portanto,

de nos mesmos, escravos de nossa própria solidão, mergulhados em nosso medo. Carentes

de amizade verdadeira.

Muitos dias de passaram.

Eu já não os via desde que o inverno interrompera, por quase dois úmidos meses, minhas

caminhadas. Retornei com a primavera quando o sol já se mostrava firme e soberano. Logo

no primeiro dia senti a falta deles, outros dias se passaram e nada.

Ouvi de vizinhos, que eles haviam retornados à terra natal para viver por lá o que restava

a ser vivido, ao lado de pessoas como eles que se desbotam apenas para desejar, que o dia

alheio seja tão bom quanto o seu próprio dia, e que sempre dividem o que há pra ser

dividido, certos de que a vida é apenas dá e receber.

Eu continuo minhas caminhadas matinais, mas não com a mesma disposição de antes;

talvez pela idade, talvez pelo vazio que aquele casal deixara nas manhãs. Quem sabe um dia

desses, numa manhã qualquer de verão, na segunda ou terceira volta da minha caminhada

eles apareceram sorrindo de mãos dadas para reacender mais uma vez meu coração com

aquele sincero e verdadeiro bom-dia!

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