Gostei desse texto de Martha Medeiros, pulicado em 2010, portanto bem antes do remake da novela.
Uma das provas irrefutáveis de que estou prestes a virar um fóssil é que assisti à novela Gabriela, em 1975, e lembro até hoje da famosa cena em que Sonia Braga se arrasta feito uma lagartixa por cima de um telhado de Ilhéus, para assombro do seu Nacib. Outro dia, numa dessas retrospectivas tipo vale a pena ver de novo, reprisaram a cena, enquanto se ouvia a trilha sonora que virou hit: “Eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi assim, vou ser sempre assim, Gabriééééla”.
Salve Dorival Caymmi, autor da letra, mas, cá entre nós, hoje em dia Gabriela seria forte candidata a algumas sessões de psicanálise, porque só pode ser teimosia crônica essa mania de nascer assim, crescer assim, viver assim e, mais grave, ser sempre assim. Por mais que “assim” seja bom, é muito assim pra pouco assado.
Tenho uma amiga que é a última a sair dos encontros da nossa turma. Invariavelmente, a última. No entanto, dias atrás, nos reunimos e não eram nem 21h quando ela pegou sua bolsa e se despediu. Silêncio na sala. Está se sentindo mal? Não. Alguma coisa que dissemos te ofendeu? Não. Vai se encontrar com alguém? Não. Ela apenas sentiu vontade de voltar cedo pra casa em vez de, como de hábito, ficar para apagar a luz. Havia nascido assim, crescido assim, vivido assim, mas não precisava ser sempre assim.
Depois que ela se foi, ficamos especulando sobre o que a teria feito ir embora, sem aceitarmos a explicação trivial que ela deu: vontade. Como vontade? Desde quando alguém faz algo diferente por simples vontade? Muito suspeito.
É por causa dessa desconfiança que tanta gente se algema aos seus preconceitos, aos mesmos gostos que cultiva há 20 anos, às manias executadas no automático e a amores que nem lhes satisfazem mais, tudo para que os outros não questionem sua integridade, já que se estabeleceu que quem muda é frívolo.
Se é isso mesmo, salve os frívolos. Só não muda quem não se relaciona com o mundo, não passou por nenhuma experiência amorosa, por nenhuma frustração. Só não muda quem não consegue racionalizar sobre o que acontece a sua volta, não se interessa pela condição humana, não é curioso a respeito de si mesmo, não se permite ser atingido pela arte e pelo pensamento filosófico, em suma, só não muda quem está morto.
A vida não recompensa os amadores. No máximo, lhes dá uma vida tranquila, e isso nem sempre é uma graça divina. Gabriela era um personagem de ficção, e Caymmi um poeta enaltecendo a pureza humana, que merece mesmo ser enaltecida em prosa e verso. Mas a pureza não precisa se defender o tempo inteiro contra a mudança. Pode-se migrar da pureza para o experimentalismo, sem perdas.
Minha amiga, naquela noite, dormiu cedo como há séculos não fazia, e eu, que costumo cabecear quando termina a novela, fui a última a sair, fiquei para apagar a luz. E ambas continuamos íntegras como sempre fomos.
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