Adilson Borges: "A DOR E A ALEGRIA QUE DEVORAM A GENTE" - Sobre o livro autobiográfico de Emiliano José "O cão morde a noite"
Fotos/Reprodução: Bianca Silvany
Mestre em emocionar colegas ao revirar o baú de lembranças com a série #MemóriasJornalismoEmiliano, o agora imortal Emiliano José sentiu o gostinho das lágrimas com o texto MA-RA-VI-LHO-SO do também jornalista e amigo Adilson Borges sobre seu mais novo livro, a autobiografia "O cão morde a noite". O lívro tem prefácio do Reitor da UFBA João Carlos Salles
Nas palavras de Emiliano: "Ele fez uma leitura que nem eu fazia, extremamente intimista e me levou às lágrimas. Muito forte, me comoveu muito".
O texto foi publicado originalmente no Bahia Notícias, mas reproduzo aqui
Adilson Borges
Seu
Emiliano José da Silva não gostava muito de pensar no passado. Achava que o
passado não existe porque já passou e o futuro não existe porque não chega
nunca. Tudo que há é o presente. O mais importante é viver o agora, sem olhar
pra trás, filosofava em silêncio, no pensamento, porque não era de muitas
palavras. Mas, após morrer, concluiu que a morte muda tudo. Então, ávido, leu
letra por letra, palavra por palavra de O cão morde a noite, autobiografia de
Emilianinho, seu filho.
A
morte muda tudo. Até os mortos. Mas não mudou naquele homem rígido a convicção
de que devemos fazer o que os instintos mandarem sem dar bolas para o que
outros pensam. Trata-se de uma espécie de militância em prol da liberdade e do
bem-estar individuais. Mesmo que isto fira indelével e profundamente outras
pessoas, inclusive aquelas que amamos.
A
leitura atenta do livro mordeu-lhe fundo desde o começo. Forçou o pensamento
acomodado, ajudou-o a auto decifrar-se. Seu Silva viu, então, sair das letras
um ser de que sequer suspeitara. Era um homem forte, adubado pelo destemor e
avidez da busca por prazeres surpreendentes. Só um filho puxou a ele: Antonio
Carlos (Cal).
As
narrativas de Emilianinho não lhe causaram espanto e orgulho. A eloquência
sempre esteve presente naquele menino. Seus silêncios divagadores às vezes
pareciam sermões. Jamais esquecera aquele olhar do mordido pelo cão, do infante
no cavalo prestes a superar o obstáculo intransponível. E do rapaz, dentes de
polícia nos pés, mergulhando na irresoluta noite do seu sonho coletivo.
O
que espantava e permitia orgulhar era o manejo com as palavras. No princípio,
eram as águas contidas em um dique. Presas e hesitante. De repente, o verbo se
desprega do temor. Revolta-se como pororocas. Não escorre: debate-se, contorce
em toda fibra e vigor até explodir
em
cores - vermelho do sangue das torturas, negro da noite escura acolhedora dos
peregrinos;
em
sabores - do pão com caneca de café preto à milagrosa comida de dona Conceição,
no bairro da Saúde;
em
sons – sonhados, como os acordes do acordeom e a viola enluarada da sua íntima
trilha sonora, e concretos tal qual o imponente Elvis de pélvis dissonante para
a caretice xenófoba da esquerda pré-tropicalista.
Ultrapassado
o estágio do verbo prisioneiro, a gramática se revela pequena para traduzir o
que Drummond chamava de o sentimento do mundo. As vírgulas são desprezadas ou
viram alvo de desprezo até o sacrossanto ponto perde sua divindade para dar
conta das emoções. É chegada a hora,
além da vez, de matracar. Não como um palrador. Ou o antigo e robótico
datilógrafo do Banco Comercial do Brasil.
Mais como um psicógrafo de si mesmo.
Autopsicografia no sentido de Fernando Pessoa; Olhos fechados, alma (s) aberta
(s) para o essencial, o mais profundo, o mais bonito, o mais aterrador, o mais
vívido e vivido.
Em
discreta, mas certeira metamorfose, o narrador encarna a mãe, Maria Aparecida
Barbosa da Silva, a forte, que admira o pai tanto quanto se irrita com as
paixões irrefreadas do sedutor. O processo camaleônico avança para as irmãs e
irmãos. De Picida, que chama para si o papel de reunificadora da família, a
Edvard, o mais novo dos homens, e deste a Cal, de quem pouco se sabe. É um
honesto e fecundo mergulho no passado do menino de Jaçanã e outras paragens. Em
busca de si mesmo, dos seus pais, do seu País.
Ainda
há pedras no caminho do texto, é claro. Uma delas tenta inútil conter a
aspereza das pinaúnas nos pés descalços: a exagerada retórica do baianês. Na
boca ‘estrangeira’, mesmo que quase aclimatada, soa estranho. Mas, porra
nenhuma, esses percalços são insuficientes para nublar a luminosidade do
sendeiro.
A
vida não é reta. O significado é impreciso até para os crentes na redenção.
Impreciso como a verdade. E este parece ser um dos grandes pontos do texto. O
detour marca a narrativa do agora imortal Emiliano José. As dúvidas valem mais
do que as certezas. Há um gesto generoso e talvez sábio quando ele vê
“sensibilidade”, humanidade mesmo, em algumas almas no cenário infernal onde
vicejam a bestialidade do opróbrio e da tortura. Nem todos os gatos são
pardos. O sargento Pádua, “um negro
muito forte”, destaca, “era incapaz de qualquer violência”. A frase acabaria aí
se a dúvida não fosse o nome da verdade. Então emenda: “Ao menos conosco”.
O
livro vai além, muito além, dos conosco e nosotros. Aponta para uma perspectiva
coletiva, sem desprezar a saída individual tão dimensionada pelo Seu Silva e o
enigmático Cal, que morreu aos 29 anos.
Relata a história recente do Brasil, com destaque para a Ação Popular,
importante organização na luta contra a ditadura militar. Expõe virtudes e
equívocos e dimensões da entidade, que conquistou corpo e alma de muita gente,
especialmente jovens na encruzilhada dos caminhos da paz e amor e da ação
política tradicional, que contemplava até a luta armada.
Sem expressa militância, destaca o papel das
mulheres na sua família e na humanidade. Revela dramas religiosos e moralistas
da sexualidade na esquerda, abrindo-se ao entendimento LGBTS de que vale a pena
toda forma de amor.
A
despeito de tanta dor, ou exatamente por isso, reafirma a política como saída
única para a sociedade humana e o polêmico credo da liberdade como bem
universal. E mantém integral e
triunfante a esperança no idealizado amanhã.
Seu
Silva chega ao fim da leitura, mas retrocede à página em que Emilianinho lembra
que, às vezes, ele e o pai, choravam na escuridão. “O choque da realidade o atormentava”,
interpreta o filho. Seu Silva pensa na vida e debocha da morte. Satisfeito,
sorri. E fecha o livro.
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Ainda sobre o livro de Emiliano José, comentou o colega Carlos Navarro Filho na coluna Literatura do Bahia Notícia
O cão morde a noite
Esta semana temos, para encerrar o ano, o Cão morde a noite, o novo livro do jornalista e escritor Emiliano José. São memórias autobiográficas, nas quais o autor narra ora com delicadeza, ora com a crueza das torturas e das prisões, o que viveu a partir de 1968 quando caiu na clandestinidade em São Paulo e terminou na Bahia. Separei os textos da orelha do livro e da bela apresentação do jornalista baiano Adilson Borges. Desconfio que esta é a grande obra de Emiliano, autor de outros quinze títulos, entre eles Lamarca, o capitão da guerrilha, trabalho iniciado quando ainda trabalhava na redação da sucursal do Estadão, em Salvador, aí por volta do fim dos anos setenta, início dos oitenta. É nesta época que ficamos amigos, ele tinha saído na prisão fazia pouco. O lançamento virtual, com direito a debate, será em fevereiro. E o prefácio é do Reitor da UFBA João Carlos Salles, outro amigo de Emiliano desde os anos setenta. Você vai gostar.
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